UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
IGOR TADEU CAMILO ROCHA
ENTRE O ‘ÍMPETO SECULARIZADOR’ E A
‘SÃ TEOLOGIA’: TOLERÂNCIA RELIGIOSA,
SECULARIZAÇÃO E ILUSTRAÇÃO
CATÓLICA NO MUNDO LUSO (SÉCULOS
XVIII-XIX)
Belo Horizonte
2019
IGOR TADEU CAMILO ROCHA
ENTRE O ‘ÍMPETO SECULARIZADOR’ E A ‘SÃ
TEOLOGIA’: TOLERÂNCIA RELIGIOSA,
SECULARIZAÇÃO E ILUSTRAÇÃO CATÓLICA NO
MUNDO LUSO (SÉCULOS XVIII-XIX)
Trabalho final de Doutorado no
Programa de Pós-Graduação em História
da Universidade Federal de Minas
Gerais. Tese, apresentada junto ao
Programa de Pós-graduação em História
da Universidade Federal de Minas
Gerais, para a obtenção de título de
doutor em História.
Linha de pesquisa: História e Social da
Cultura.
Orientador: Prof. Dr. Luiz Carlos
Villalta
Belo Horizonte
2019
__________________________________________
Profa. Dra. Laura de Mello e Souza (Sorbonne Université)
__________________________________________
Profa. Dra. Marie-Noëlle Ciccia (Université Paul-Valéry/Montpellier 3 UPV-3)
__________________________________________
Prof. Dr. Aldair Carlos Rodrigues (UNICAMP)
__________________________________________
Profa. Dra. Adriana Romeiro (UFMG)
_________________________________________________
Prof. Dr. Álvaro de Araújo Antunes (UFOP)
Em memória do Museu Nacional do Rio de Janeiro, vítima de um dos nossos grandes e
piores dogmatismos – o neoliberal.
1
Agradecimentos
Começo meus agradecimentos, com toda justiça, ao meu orientador tanto desta
tese como da minha dissertação de mestrado, Luiz Carlos Villalta. Não cabem aqui
todas as contribuições que foram dadas a esta pesquisa, muito menos tudo o que aprendi
ao longo desses anos de orientação, séria e dedicada. Agradeço também aos professores
e funcionários – Maurício Mainart, Gustavo Monteiro e Francelina Gonçalves – do
Programa de Pós-graduação em História da UFMG que, mesmo vivendo num contexto
de cortes expressivos e um desmonte das universidades e da produção científica no
Brasil, assim como ataques contra as liberdades de pesquisa e de cátedra, e contra a
autonomia universitária, conseguiram conduzir, com todo esforço, este programa a nível
de excelência e grande reconhecimento. Sobre os professores, destaco alguns com quem
tive mais contato, embora reforce aqui meus agradecimentos a todos: Adriana Vidotte –
professora da UFG, que enquanto esteve aqui foi minha orientadora de iniciação
científica, Adriana Romeiro, Douglas Attila Marcelino, Ana Paula Caldeira, Regina
Helena Alves, Luiz Arnaut, José Newton Coelho Meneses, Douglas Cole Libby, Priscila
Brandão e Kátia Gerab Baggio.
Como estudioso das Luzes, não poderia deixar de incluir, em meus
agradecimentos, pessoas que, à sua maneira, mantêm viva a ideia de que espalhar a
razão e o conhecimento são ferramentas para se transformar o mundo num lugar melhor
e emancipar a humanidade: são pessoas como Alexandra Elbakyan – fundadora do Scihub, Brewsler Kahle – fundador do Internet Archive, ao Library Genesis, Aaron Swartz
– in memorian, fundador do Reddit, e todas as demais iniciativas nesse sentido. Incluo
aqui a política de expansão das universidades e institutos federais no Brasil, sob os
governos Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, importantes e raros investimentos
na educação e ciência brasileiros, sem os quais talvez eu e muitos colegas não
pudéssemos fazer curso superior e pesquisas de qualidade – sobretudo, considerando o
risco que essas políticas correm com o avanço do obscurantismo neste país.
Agradeço também a meus familiares, que comigo estiveram e estão por esses
anos e sem os quais não estaria aqui. Especialmente, agradeço minha avó falecida em
março de 2016, Eurídice Ferreira da Cruz, com quem convivi, felizmente, por muitos
anos da vida. Agradeço, aqui, também, minha mãe Marta, minhas irmãs Maíra e
2
Marina, meu irmão Frederico, meus cunhados Luana e Eric, além dos sobrinhos Benício
e Joaquim.
Quero também agradecer aos vários amigos que fiz nessa minha passagem pelo
curso de História da UFMG, graduação, mestrado e doutorado. A começar pelas
iniciativas discentes das quais faço parte – a Oficina de Paleografia, na qual estou com
Fabiana Léo, Natália Casagrande Salvador, Mateus Frizzone, Gabriela Sarmento, Elisa
Sales e Ygor Gabriel –, bem como nas que passei por alguma gestão – Encontro de
Pesquisa em História da UFMG e Revista Temporalidades. Fico feliz e orgulhoso de
participar de cada uma dessas iniciativas, que tanto contribuem para construir uma pósgraduação mais coletiva e colaborativa na sua produção do conhecimento. Aproveito
aqui para deixar minha admiração a outros grupos discentes dos quais não faço parte,
também de discentes do mesmo programa, como o Núcleo Interdisciplinar de Estudos
de Imagem (NINFA) e o Núcleo Interdisciplinar de Estudos Teóricos.
Aos meus amigos do “grupo” (que não sei qual o nome dele hoje), deixo
agradecimentos especiais: Douglas de Freitas Pereira, Gabriela Galvão, Thiago Lenine
Tolentino, Felipe Malacco, Luiz Guerra – a este, um agradecimento especial pelo
Campari –, Alexandre Bellinni Tasca, Alysson Faria da Costa, Marcelo Alves, Hugo
Rocha, Raziel Miranda e Matheus Arruda, obrigado por tudo. O mesmo digo a todos os
que podem voltar a nós, no caso, Bruno Carvalho Corrêa, Thiago Prates e Warley
Alves.
Ainda entre as pessoas que conheci ao longo da minha formação na História,
colegas de UFMG e fora dela, agradeço a Ana Tereza Landolfi Toledo, Allysson Lima,
Luísa Marques, André Pedroso Becho, Flávia Chagas, Bruno Vinicius de Morais, Isabel
Cristina Leite, Alexia Nascimento, Igor Barbosa Cardoso, Douglas Lima, André
Mascarenhas, Conrado Salazar, Lorena Lopes, Marcos Vinícius Gontijo, Cairo Barbosa,
Débora Cazelato, Marcus Vinícius Duque Neves, Marco Girardi, Rafael Fonseca, Lucas
Pereira, Ailton di Paula Junior, Robson Freitas de Miranda Junior, Raul Lanari, Mariana
de Morais Silveira, Leandro Faluba (in memoriam), Denise Duarte, Weslley Rodrigues,
Breno Mendes, Gabriel Pereira, Rute Torres, Hugo Palmier, Virgílio Coelho de Oliveira
Junior, Hudson Públio, Gislaine Gonçalves, Mateus Rezende, Rodrigo Paulinelli,
Matheus Frizzone, Ana Carolina Viana, Deborah Brait Gonçalves, Breno Gontijo,
Diego Prata, Rafael Leite, Edson Junior, Cinthya Oliveira e todos os demais membros
de minha turma de graduação, Lourival Cavalcante Junior – este, começando sua
3
trajetória nos estudos históricos – e Júlia Helena – e suas ótimas tirinhas do Mundo de
Julhelena.
Não poderia me esquecer, claro, de pessoas como William Rabelo, Dina Flávia
Costa, Raider Marzo, Lucas Simon Magalhães, Gustavo Lopes de Oliveira, Gustavo
Matheus, Diogo Dias Soares, Diogo “Belial”, Bernardo Sardinha, Luiz Vitorino e tantas
outras várias pessoas que conheci nos bares e cenas rock e metal de Belo Horizonte,
suas passagens pela universidade ou nos diversos encontros que a vida proporciona.
Incluo aqui também um outro grupo de amigos que conheci recentemente e que são
muito queridos por mim: Fabrício Soares, Nathan, Victor Kalin, Vitor Saes, Leonardo
Ribeiro, Pedro Ferreira e Renato Araújo.
Por fim, dentro de um contexto de desmonte da ciência e da universidade
empreendido pelo projeto de governo implementado após o golpe parlamentar de 2016,
devo aqui agradecer o privilégio – que, no meu mundo ideal não deveria ser privilégio –
de ter contado nesses quatro anos com uma bolsa de doutorado da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES/Proex), por todo o suporte
material que me proporcionou, viabilizando a realização da pesquisa dentro dos prazos
estipulados.
4
Resumo:
Esta tese é fruto de um trabalho investigativo sobre as formulações e defesa da
tolerância religiosa no Iluminismo católico de Portugal, em maior medida, mas tocante
também a alguns trânsitos com o Brasil. Parte-se do pressuposto que o processo
secularizador pelo qual o reino ibérico passou, ao longo do século XVIII, foi um
elemento fundamental de articulação de vertentes anteriores de defesa de maior
tolerância religiosa com debates pertinentes às Luzes. Dessa forma, essa tolerância
religiosa foi produto de sínteses bastante complexas, apresentadas em espaços e
sociabilidades típicas do Setecentos e foram, em alguma maneira, agentes de mudanças
numa realidade marcada pela vigilância em matérias de opinião e religião. Tais
formulações sobre a tolerância religiosa fizeram parte, de maneiras mais radicais ou
mais moderadas, de tensões próprias da disputa por um campo religioso – entendido,
aqui, como o acesso legítimo aos chamados “bens de salvação”, na terminologia de
Pierre Bourdieu, que englobam de interpretações reconhecidas e autorizadas das
Escrituras a ritos e preceitos religiosos –, formando, assim, um substrato crítico
fundamental para se pensar a dissolução de algumas instituições basilares do Antigo
Regime.
Palavras-chave: Tolerância religiosa; Iluminismo católico; Secularização.
Abstract:
This thesis is the result of an investigative work on the formulations and defense of
religious tolerance in the Catholic Enlightenment of Portugal, to a greater extent, but
also touching on some transits with Brazil. It is assumed that the secularization process
through which the Iberian kingdom passed, during the eighteenth century, was a
fundamental element of articulation of previous strands of defense of greater religious
tolerance with debates pertinent to the Enlightenment. In this way, this religious
tolerance was the product of quite complex syntheses, presented in typical spaces and
sociabilities of the Seventeenth and were, in some way, agents of change in a reality
marked by vigilance in matters of opinion and religion. Such formulations of religious
tolerance were part of the more radical or more moderate forms of tension inherent in
the struggle for a “religious field” – understood here as legitimate access to the so-called
“assets of salvation” in Pierre Bourdieu's terminology, which encompass from
5
recognized and authorized interpretations of the Scriptures to religious rites and
precepts –, thus forming a fundamental critical substrate for thinking about the
dissolution of some basic institutions of the Ancient Regime.
Keywords: Religious tolerance; Catholic Enlightenment; Secularization.
6
SUMÁRIO
SUMÁRIO ................................................................................................................................... 7
Introdução.................................................................................................................................... 9
Capítulo 1 – O Iluminismo na historiografia e no contexto luso-brasileiro ......................... 21
1.1
As sínteses historiográficas e os problemas de um único Iluminismo .................. 22
1.2
O mundo luso-brasileiro e as Luzes ecléticas e católicas ....................................... 27
1.3 As Luzes ecléticas ............................................................................................................ 30
1.4 Um Iluminismo Católico ................................................................................................. 38
1.5 A Ilustração e as novas abordagens historiográficas ................................................... 52
1.6 A Tolerância religiosa, do Renascimento ao Iluminismo católico .............................. 62
Capítulo 2 – A secularização, a tolerância e a cultura letrada sob o pombalismo .............. 92
2.1
A incipiente esfera pública e as Luzes católicas no mundo luso-brasileiro .......... 96
2.2
O campo religioso, a secularização e o regalismo pombalino .............................. 115
2.3
Um reino atrasado, diante das “mais polidas nações da Europa” ...................... 133
2.4
A “Companhia dita de Jesus”, o clero regular e os antimodelos de modernidade
157
2.5 O Triumpho da Religião e o espaço para a tolerância religiosa ................................. 169
Capítulo 3 – Para além do dirigismo ..................................................................................... 188
3.1 Proposições e heresias na historiografia e no pensamento político-religioso moderno
............................................................................................................................................... 189
3.2 Blasfemadores e hereges: “delitos de fala” ................................................................. 208
3.3 Fronteiras nacionais, fronteiras do religioso .............................................................. 236
3.4 A lodge de Lisboa, os sofrimentos de John Coustos e uma narrativa anti-Inquisição
............................................................................................................................................... 254
3.5 Antigas e novas críticas ao Santo Ofício...................................................................... 278
Capítulo 4 – Pela tolerância, contra o trono e contra o altar .............................................. 307
4.1 Quem era o libertino da Idade Moderna e como ele chegou ao Iluminismo? .......... 307
4.2 “E lá disputavam com muita liberdade sobre pontos de religião”: sociabilidades
libertinas no mundo luso-brasileiro ................................................................................... 339
4.3 A “Natureza”, o dogma e a moral cristã-católica: libertinos contra o sexto
mandamento ........................................................................................................................ 377
4.4 Os libertinos, os fanáticos e os intolerantes num “reino de estupidez” .................... 398
Considerações finais ................................................................................................................ 429
Referências bibliográficas....................................................................................................... 438
Artigos e capítulos de livros................................................................................................ 438
Livros, dissertações e teses.................................................................................................. 452
7
Dicionários, catálogos e enciclopédias ............................................................................... 461
Fontes impressas ou em formato digital ............................................................................ 463
Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT) ............................................................... 469
Arquivo Histórico Ultramarino (AHU) ............................................................................. 472
Mídias online........................................................................................................................ 472
Imagens ................................................................................................................................ 473
Outras mídias ...................................................................................................................... 474
8
Introdução
O tema da tolerância religiosa – e, por consequência, o da intolerância – causa
enorme inquietação aos debates públicos em torno dele. Apesar de que ser quase um
ponto pacífico a sua necessidade como fundamento basilar da vida em comum, a
violência produzida pela pouca tolerância praticada entre pessoas e grupos de diversas
sociedades, nos mais variados contextos e por um sem número de motivações nunca
deixou de ser um problema urgente. Um exemplo recente, que cumpre citar aqui: à
semana do término da escrita desta tese, primeiros dias após o primeiro turno das
eleições gerais no Brasil, proliferam relatos de agressões perpetradas por militância do
candidato do Partido Social Liberal – PSL, Jair Messias Bolsonaro, contra militantes
que representam adversários e críticos, despertando grande preocupação da comunidade
internacional.1 É bastante evidente que tais ataques têm de fundo um discurso de ódio,
fortemente relacionado com o fanatismo político – na retórica de um anacrônico e
delirante anticomunismo – e religioso– no fundamentalismo defendido e praticado por
igrejas protestantes neopentecostais. Bem por isso que opto em começar esta tese
ressaltando que, ao revisitar esse tema, a historiografia adentra uma inquietação sempre
constante para as mais diversas sociedades. Analisar criticamente a tolerância, nos seus
fundamentos e formação de ideias, espero, pode ser um primeiro passo para se enfrentar
recrudescimentos do fanatismo, tanto o de agora quanto os futuros – que, infelizmente,
virão. Os iluministas, em geral, entenderam que a razão e a crítica poderiam ser armas
para esse enfrentamento e, creio, alguns de seus apontamentos sobre isso se fazem
atuais e merecem ser relidos, sendo objetos de reflexão.
Alguns
breves
apontamentos
se
fazem
necessários
a
respeito
do
desenvolvimento e delimitação do objeto desta tese. Em primeiro lugar, trata-se de um
prolongamento de um trabalho iniciado em função de minha pesquisa para dissertação
de mestrado, intitulada Libertinos, tolerância religiosa e inquisição sob o Reformismo
ilustrado luso-brasileiro: formulações, difusão e representações (1756-1807),
Mapa de Violência – pós eleições. Disponível em <http://mapadaviolencia.org/as-denuncias/ >.
Acessado em 10/10/2018; SOARES, João. O ódio chega às ruas. Levantamento mostra que pelo menos
70 casos de agressões e ameaças foram registrados nos últimos dez dias, e apoiadores de Bolsonaro são
responsáveis por 50 deles. Mulheres e LGBTIs são os alvos mais frequentes. Deutsche Welle -online.
11/10/2018. Disponível em: < https://www.dw.com/pt-br/o-%C3%B3dio-chega-%C3%A0s-ruas/a45838154?maca=bra-Red-WhatsApp>. Acessado em 11/10/2018.
1
9
defendida em 2015, no Programa de Pós-graduação em História da UFMG.2 O recorte
dessa pesquisa de mestrado abrangeu a segunda metade do século XVIII e teve por
objetivo relacionar as reformas iniciadas durante a governança do Marquês de Pombal
com processos de dessacralização do mundo, no qual os chamados libertinos tomaram
parte fundamental. A tolerância religiosa, que muitas vezes envolvia cruzamentos de
uma vertente popular do tolerantismo com os debates da Ilustração, teve papel central
nas formulações feitas por esses libertinos no desenvolvimento de sua crítica à
Inquisição, à Igreja católica e à monarquia absoluta. Esta tese, apesar de também tocar
nesse mesmo tema, pretendeu, desde o início, ir além. A começar porque, aqui, se
analisou um grupo mais variado de agentes além dos libertinos. Incorporaram-se desde
letrados ligados à Coroa na segunda metade do XVIII – como d. Luís da Cunha e
Francisco de Pina e de Sá e de Melo – até outros cujas trajetórias foram de maior
conflito com ela – como o Cavaleiro de Oliveira e Hipólito José da Costa –, sempre
tendo em vista uma não linearidade, nem de suas trajetórias, nem de suas ideias. A
forma como o tema da tolerância religiosa e as questões que a perpassam – tais como as
críticas à Inquisição, o combate ao fanatismo, entre outras – aparecem de maneira
bastante diversa, e tal diversidade foi explorada nesta tese. Essa opção fez com que o
foco desta tese, diferentemente da dissertação, não fosse somente os processos
inquisitoriais. Estes são importantes ao longo do trabalho, mas o protagonismo deles é
dividido com outras tipologias de fontes, como publicações impressas em Portugal e
noutras partes da Europa. Esta tese, assim, avança em relação à dissertação de mestrado
por ampliar a reflexão sobre o tema da tolerância religiosa, inserindo-a na dinâmica da
formação e difusão de um Iluminismo católico – este, sim, um ponto que sequer fora
problematizado na dissertação e que terá destaque ao longo de toda a tese – no contexto
luso-brasileiro. Com isso, possibilita-se o confronto do tema com algumas
características desse contexto, como o processo do regalismo, o antijesuitismo ou a
constante ideia do atraso português face às demais nações da Europa.
A própria escolha das fontes inquisitoriais, diferentemente nesta tese em relação
à dissertação, não se restringiu aos libertinos. Foram analisadas outras tipologias de
crimes, como blasfêmias, e outros grupos de heterodoxias que caíram nas malhas
inquisitoriais, como maçons e estrangeiros com diversas formas de religião que
2
ROCHA, Igor Tadeu Camilo. Libertinos, tolerância religiosa e inquisição sob o Reformismo ilustrado
luso-brasileiro: formulações, difusão e representações (1756-1807). [Dissertação-mestrado em História].
Belo Horizonte: Programa de Pós-graduação em História UFMG/Universidade Federal de Minas Gerais,
2015.
10
entraram em conflito com a heterodoxia católica, em sua passagem por Portugal e
Brasil. Assim, objetivou-se aqui levantar trajetórias, cotejá-las com as tópicas diversas
dos séculos XVIII e XIX e também anteriores referentes à tolerância religiosa,
analisando como elas foram afetadas e se apropriaram de um processo secularizador que
veio com as reformas pombalinas a partir de 1750, mas teve raízes anteriores. Dessa
maneira, nesta tese, observou-se que formulações sobre tolerância religiosa
acompanharam um processo secularizador que modificou profundamente leituras a
respeito da vida coletiva e mesmo do tempo histórico em vários grupos e agentes
diversos no contexto luso. Isso marcou uma constante disputa por um campo religioso –
categoria que será melhor explicada no Capítulo 2 –, em que a religiosidade e todos os
campos da vida privada e em comum que ela perpassava eram modificados, sob a égide
de valores como “natureza”, “liberdade”, “igualdade”, “tolerância” e outros. Esse amplo
processo se deu dentro do contexto das Luzes católicas, que tiveram debates e
elementos que o particularizam, em certa medida, mas que não significam que foram
impermeáveis aos outros contextos de desenvolvimento do Iluminismo, marcando-se,
também, por um significativo cosmopolitismo.
Esta tese, enfim, tem por objetivo central investigar a difusão das ideias sobre a
tolerância e liberdade religiosas no mundo luso-brasileiro – marcadamente, com
destaque a Portugal, mas sem perder de vista algumas dinâmicas ocorridas no espaço
brasileiro – no período das Luzes, entre o final da primeira metade do século XVIII até
o as duas primeiras décadas do XIX. Grande parte da tese abrangerá um recorte
temporal que corresponde ao período do chamado Reformismo Ilustrado, que abrange
os reinados de d. José I (1750-1777), d. Maria I (1777-1816) e d. João VI (1816-1826),
neste último caso, desde o período em que governou como regente de fato, isto é, a
partir de 1792. Porém, não será um trabalho restrito a esta conjuntura que teve início
com as reformas pombalinas. Tomando a Ilustração, de maneira mais geral, pretendo, ao
longo da tese, analisar a fundo os debates em torno do problema da tolerância religiosa,
num âmbito geral do pensamento iluminista, mas traçando as particularidades dessas
discussões num contexto lusófono e católico. Isso se justifica pela datação das fontes,
que vêm desde a década de 1740 e se estendem até a segunda década do século XIX.
Além disso, entendo que este recorte permite uma leitura mais global a respeito do
processo do Iluminismo nos contextos luso-brasileiros, por dialogar, de maneira mais
aprofundada, com os modelos teóricos adotados nesta tese e que privilegiam concepções
sobre as Luzes segundo os quais elas tiveram interlocução mais ampla com ideias que
11
lhes foram anteriores. A hipótese que norteia esta tese é a de que, em meio a disputas,
debates e formulações em torno de um ideal de tolerância religiosa, formado no
pensamento iluminista e com raízes anteriores no mundo luso-brasileiro, em paralelo
com um processo de secularização que remonta meados do Setecentos, desenvolveramse, de um lado, uma vertente mais radical da defesa da tolerância religiosa e, de outro,
uma outra vertente, ancorada numa perspectiva moderada e “modernizada” de
Catolicismo. Estas, não antagonicamente, desenvolveram-se em meio a processos
complexos, fluidos e diacrônicos, em que ficaram evidentes disputas em torno de um
campo religioso, alterando-o e reestruturando-o, com importantes repercussões nas
realidades políticas e culturais, percebidas em todos os estratos da sociedade.
Inicialmente, cabe destacar alguns dos pressupostos do trabalho, primeiramente,
quanto aos atuais debates a respeito dos modelos explicativos sobre as Luzes e sobre os
processos de secularização. A Ilustração deve ser pensada sob a perspectiva das
dinâmicas sociais, não se centrando excessivamente na figura dos filósofos. Cabe ainda
considerar que ela possuiu uma maior amplitude cronológica e geográfica, não se
limitando ao século XVIII francês.3 Quanto ao segundo ponto, é importante também se
afastar das chamadas “teorias duras” de secularização, segundo as quais “secularizar”
seria um processo linear e contínuo de separação das instituições e das mentalidades do
religioso, inevitavelmente rumo a uma laicização. As apropriações dessa noção pela
historiografia têm se mostrado excessivamente prescritivas e teleológicas, ao passo que
os debates mais recentes sobre o tema destacam a multiplicidade de ressignificações,
apropriações e descontinuidades diversas nos chamados processos secularizadores.4
Outro ponto a ser destacado é referente ao lugar da religião nos modelos
explicativos sobre o Iluminismo. Muitos trabalhos incompatibilizam a religião e o
processo iluminista. Ao estabelecerem esta incompatibilidade, em grande parte,
ancoraram-se em teses hoje questionadas sobre a secularização, que a concebem como
um percurso linear cujo ponto de partida seriam as Luzes, por sua vez entendidas como
o alvorecer da modernidade. A leitura das fontes indica que, nas sociedades da época da
Ilustração, elementos religiosos diversos tinham uma grande força e, por conseguinte,
pautavam muitos dos problemas, ideias e representações do real formulados pelos então
sujeitos atuantes. Essa situação torna muito difícil aceitar a incompatibilidade
supracitada entre religião e Luzes. Quando se pensa especificamente sobre o Iluminismo
3
4
Essa discussão será feita no Capítulo 1.
Essa discussão será feita no Capítulo 2.
12
português, é importante, pelo que acabou de se apresentar, realizar uma crítica dos
modelos de explicação que o concebem como “luzes de meios tons” devido à forte
presença do Catolicismo em seu interior. A religião católica, sublinhe-se, não foi
incompatível com os debates iluministas e, nos diversos contextos da Europa
meridional, ofereceu contributos para as reflexões e também para as ações políticas,
expressas nos reformismos ali desenvolvidos.
Por sua vez, se as Luzes portuguesas, por um lado, tiveram contornos cristãoscatólicos, por outro, abrigaram correntes mais radicais, que questionavam mais
profundamente a própria religião em si, com um mais evidente anticlericalismo e
defesas mais veementes da tolerância religiosa. O chamado “Iluminismo católico”, no
interior da cultura letrada, em grande parte conduzida por um forte dirigismo cultural
vindo do Estado, é verdade, conciliava a tradição católica com as formas modernas de
representar o mundo e era, também, crítico e refratário à tolerância religiosa e às
correntes radicais do Iluminismo. Todavia, tais correntes tiveram seus espaços de
difusão nas lojas maçônicas, na universidade, em conventos e em diversos outros
espaços de sociabilidade. Além disso, é importante salientar que elas não se
desenvolveram somente dentro de sociabilidades letradas.5
Os objetivos específicos desta tese estão articulados com uma hipótese central
sobre a tolerância religiosa, no processo secularizador das Luzes no mundo lusobrasileiro. A tolerância, se não foi defendida por parte expressiva da cultura letrada,
chegando mesmo a ser por ela combatida, integrou os debates sobre a liberdade de
consciência e a tolerância em matéria de religião, desenvolvidos na incipiente esfera
pública que ali se formava. Acrescenta-se que, fora dessa cultura letrada, esses debates
se desenvolveram para além do dirigismo cultural régio e tomaram rumos diversos entre
libertinos, maçons, livres-pensadores e outros, articulando o que havia de mais recente
na cultura letrada das Luzes com aspectos tradicionais da mentalidade e religiosidade
ibéricas. A tolerância religiosa teve um espaço importante dentro de um amplo processo
de disputas em torno do religioso que marcaram o processo secularizador em Portugal e
também os espaços coloniais, onde se criou uma matriz de tolerantismo bastante
particular dentro do Iluminismo católico. Esta conjugava leituras de mundo, do tempo
histórico e de realidades diversas do mundo lusófono.
5
Esses aspectos serão mais pormenorizadamente abordados a partir do Capítulo 3.
13
Nesta breve introdução, cabe também apresentar alguns pressupostos teóricometodológicos e realizar uma discussão breve a respeito das fontes. A abordagem dos
temas da secularização e da tolerância requer uma análise a respeito da História das
ideias. Além disso, a pesquisa proposta exige que se examinem as possibilidades abertas
pela micro-história como aporte teórico e metodológico.
Primeiramente, o recurso à História das ideias se justifica pela finalidade de
analisar os textos. Tal análise não se reduz a seu significado interno, exigindo sua
inserção em seu respectivo contexto histórico e cultural, em conformidade com o que
Quentin Skinner denominou “método histórico”. Segundo o autor, esse método significa
“tentar situar esses textos [históricos] em contextos que nos permitam (...) identificar o
que seus autores estavam fazendo ao escrevê-los”.6 Dessa forma, é possível discutir
aspectos referentes à tolerância religiosa por meio da análise de elementos internos às
obras, do seu significado textual propriamente, mas sobretudo cotejando-as com as
diversas possibilidades históricas oferecidas pelo contexto no qual foram produzidas.
Como adverte Skinner, ater-se apenas ao significado textual induz o historiador a
diversos erros, sendo três dos quais, os mais comuns, referidos pelo autor como
“mitologias”: a mitologia da doutrina, a mitologia da coerência e a mitologia da
prolepsis.7
A mitologia da doutrina faz com que o historiador, por vezes, converta
observações dispersas em doutrinas que o autor e obra analisados jamais enunciou. Isso
se relaciona com o segundo erro, a mitologia da coerência, que consiste em, com base
nas mesmas informações, ver alguma “falha” em sua enunciação quando ela se desvia
de um todo coerente, absolutamente consistente, construído a priori pelo historiador.
Por fim, Skinner se refere à última mitologia, a mitologia da prolepsis, como sendo um
erro que parte de uma leitura retrospectiva de autores e obras de outras épocas,
negligenciando-se, de forma demasiada, o que de fato eles pretendiam dizer em
benefício do que é valorizado à época do historiador. O que Skinner propõe para se
evitar tais equívocos é uma análise que vá além do significado dos textos, que busque o
contexto de sua produção e suas possíveis intenções e condições de enunciação.8
Considerando-se os temas propostos nesta pesquisa, a partir desse método é possível
6
SKINNER, Quentin. Razão e Retórica na Filosofia de Hobbes. Trad. Vera Ribeiro. São Paulo: Editora
UNESP, 1999, p. 22.
7
_____________. Meaning and Understanding in the History of Ideas. History and theory, v. 8, n. 1, p.
3-53, 1969.
8
Ibidem.
14
evitar os diversos anacronismos, tais como leituras retrospectivas ou um enfoque
demasiado naquilo que a contemporaneidade veria como forte contradição. Um
exemplo claro seria Luís Antônio Verney, pensador renomado das Luzes portuguesas,
que conjuga sua tolerância religiosa com a defesa da manutenção dos tribunais do Santo
Ofício.9
Quanto à micro-história, deve-se salientar sua utilidade para a reconstrução de
contexto, sobretudo na análise da documentação inquisitorial, mas não somente
referente a ela. Essa utilidade advém primeiramente do caráter fragmentário de muitas
dessas fontes. Um livro referencial nesse aspecto é o de Natalie Zemon Davis, em sua
obra sobre Martin Guerre, resultado de segunda etapa de um trabalho anterior da autora,
realizado juntamente com o roteirista Jean-Claude Carrière e o diretor Daniel Vigne, de
construção do roteiro do que seria o premiado filme Le retour de Martin Guerre
(1983).10 O que mais chamou a atenção nesse trabalho de Davis foi o fato de sua
reconstituição ter sido feita com base em pouquíssimas fontes primárias e,
inversamente, assentar-se em relatos indiretos e fragmentados. Essa situação conduziu a
autora a refletir sobre os critérios de cientificidade da história e a relação do historiador
com as fontes. As atas do processo contra Arnaud du Tilth, em Toulouse, foram
perdidas. Natalie Davis teve de se contentar com reelaborações literárias, dentre elas, as
de Jean de Coras e de Le Sueut.11
9
Esse tema específico é analisado no último subtítulo do capítulo 2, em referência a uma análise feita por
Cabral de Moncada sobre os mesmos escritos de Verney.
10
O filme contou com Gerard Depardieu no papel do embusteiro Arnaud du Tilth. Recebeu o prêmio
César, do cinema francês, em 1983, nas categorias trilha sonora, decoração, melhores cenários e melhores
diálogos, além de Dominique Pinon ter recebido indicação ao prêmio de revelação. O filme foi também
indicado ao Oscar em 1985 na categoria melhor figurino. Além disso, recebeu diversas outras indicações
e outros prêmios nos Estados Unidos e Inglaterra entre os anos de lançamento, 1983 e 1985. Trata-se da
história de um famoso embusteiro do século XVI, Arnaud du Tilth. Na aldeia de Altigat, no Languedoc,
França, ficou por três anos se fazendo passar pelo camponês Martin Guerre. Este último se mudara do
País Basco com sua família para Languedoc, a contragosto, por volta do ano de 1528. Lá se casara com
Bertrande de Rols, aos 14 anos. Mas, por volta de 1548, Martin desapareceu e foi, ao que tudo indicou a
autora, para a Espanha. Lá, além de aprender o espanhol, entrou para o exército de Felipe II e lutou contra
a França. E exatamente nessa guerra, Martin e Arnaud du Tilth têm suas trajetórias cruzadas no momento
em que dois homens de Altigat trataram o segundo como o primeiro. Nesse momento, du Tilth teve a
ideia de se passar pelo camponês, e o fez, enganando Bertrande e o restante da família de Martin. Quando
o camponês voltou para a aldeia, o caso tornou-se escandaloso e du Tilth foi julgado e condenado à forca.
SILVA, Alberto Moby Ribeiro da. O retorno do retorno de Martin Guerre: Natalie Davis, cinema e
história. In: NÓVOA, Jorge & BARROS, José D’Assunção (orgs.). Cinema-História: teoria e
representações sociais no cinema. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008. p.87-118.
11
Ela não teve acesso aos autos do processo o, provavelmente, já está perdido. Suas informações provêm
de relatos do juiz do caso, Jean de Coras e de um observador do processo, Guillaume de Sauer. Os dois
relatos são datados de 1561, ano seguinte ao da execução de du Tilth. DAVIS, Natalie Zemon. O retorno
de Martin Guerre. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
15
Outra referência importante é a obra de Pietro Redondi, a respeito da
condenação de Galileu Galilei, no século XVII. Após uma vastíssima pesquisa
documental que durou cerca de dez anos, Redondi descortinou um contexto de
sociabilidades amplo e complexo, que envolvia a cultura cortesã romana do seiscentos.
Para tanto, muitas vezes, valeu-se de fragmentos e silêncios múltiplos das fontes, os
quais foram contornados com vários cruzamentos e vestígios indiretos de informações.
Essas relações, além da leitura dos processos e qualificações inquisitoriais contra
Galileu, levaram o autor a entender que sua condenação se dera por heresia, após sua
concepção de matéria na famosa obra Il Saggiatore (1623) ser considerada herética, e
não conforme uma mitologia cientificista que atribuía a sua condenação à defesa do
sistema copernicano. Sua concepção de matéria, segundo a leitura feita por Redondi dos
qualificadores inquisitoriais, remetia a heresias medievais e se incompatibilizava com o
dogma da transubstanciação. Conforme a tese de Redondi, sua condenação, ocorrida
décadas após a publicação da obra, deveu-se, sobretudo, às flutuações de interesses
dentro de uma rede de sociabilidade ampla, que tinha o Sumo Pontífice no centro, e
todo um jogo de interesses, que envolvia teatinos, jesuítas, letrados e a própria
Inquisição.12
Tanto na obra de Natalie Zemon Davis como na de Pietro Redondi, há o que se
pode chamar de conjecturas historicamente determinadas, ou seja, os silêncios deixados
pela documentação são contornados com a busca de documentos que cercam de
informações os fragmentos que outras fontes deixam. Articulado com a metodologia da
História das ideias, esse método permite uma melhor contextualização das discussões e
da inserção de diversos agentes dentro de um meio de circulação de ideias, evitando-se
o risco de anacronismos. A análise qualitativa da documentação e a subsequente
reconstituição da realidade requerem o cotejo com outras fontes do mesmo contexto ou
próximas, eventualmente extrapolando as balizas cronológicas e espaciais propostas na
pesquisa. Essas outras fontes, ocupando uma posição secundária na investigação
histórica, tornam possível o levantamento de possibilidades presentes no contexto e que
podem ser articuladas às informações presentes na documentação principal.
Em relação às fontes, serão analisadas diversas obras produzidas no mundo lusobrasileiro ou com alguma circulação em seu interior, tais como tratados, romances e
livros de outra natureza. Quanto à documentação inquisitorial, no caso específico da
12
REDONDI, Pietro. Galileu Herético [1983]. Trad. Julia Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras,
1991.
16
pesquisa proposta, serão examinados seus regimentos, publicados por Sônia Siqueira na
Revista do IHGB,13 bem como processos. Estes últimos trazem evidências importantes
de redes de sociabilidade entre indivíduos críticos ao status quo católico luso-brasileiro.
Tal documentação dará suporte às reflexões feitas sobre as obras supracitadas. Ainda
sobre
a
documentação
inquisitorial,
convém
explicar
alguns
procedimentos
metodológicos usados. Ela foi levantada a partir de alguns critérios: primeiramente,
foram procurados os processos relacionados aos libertinos, que, conforme a percepção
que se tinha em meados do XVIII sobre esta tipologia criminal, eram vistos como
críticos da religião e de toda a realidade absolutista, no geral, assumindo, assim, alguma
coloração política; em seguida, foram procurados documentos relacionados à
maçonaria, que, por seus espaços de sociabilidade e por alguns dos princípios
defendidos em seu interior, formou, nesse período, outro núcleo considerável de defesa
de matérias heterodoxas sobre religião e da tolerância; quanto à pesquisa nos Cadernos
do Promotor, foram procuradas diligências referentes à tipologia criminal de
proposições, que eram falas consideradas heréticas ou com risco de defesa de heresia,
segundo o vocabulário inquisitorial; e, por fim, procurou-se usar documentos referentes
a estudantes da Universidade de Coimbra, muitos deles nascidos no Brasil, instituição
também considerada um núcleo importante de difusão de ideias iluministas em
Portugal.14
No Capítulo 1, foi feita uma discussão teórica, bibliográfica e historiográfica em
torno de alguns lugares comuns da historiografia que, costumeiramente, nega haver um
Iluminismo em Portugal. Trata-se de negativas que, por diversas vezes, se ancoram em
adjetivos como “luzes ecléticas”, “luzes esmaecidas” e “luzes de compromisso” que,
geralmente, se pautam na premissa de que, se houve desenvolvimento das Luzes em
Portugal, apenas ocorreu um menor e incompleto, em relação a contextos como o
francês. Uma categoria em especial, o Iluminismo católico, foi mais profundamente
discutida, uma vez que ela, no geral, pode se ancorar num problema duplo: o primeiro,
quando o “católico” se torna um adjetivo pejorativo às Luzes de Portugal, em oposição
às supostas vertentes “laicas” da Ilustração; um segundo, que o uso desta categoria, por
esse viés, muitas vezes, ignora as próprias dinâmicas do religioso nas Luzes,
empobrecendo debates em torno de realidades que tiveram, por exemplo, instituições
13
SIQUEIRA, Sônia Aparecida. A disciplina da vida colonial: os Regimentos da Inquisição. Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
157, nº. 392, jul./set. 1996.
14
Documentos disponíveis no Arquivo Nacional da Torre do Tombo.
17
religiosas, querelas teológicas ou discussões sobre alçadas do clero ou do papa em
relação à autoridade civil, de fundo, como foram os casos do jansenismo, do regalismo e
mesmo de algumas elaborações sobre a tolerância religiosa. Por fim, este capítulo
relaciona tais aspectos com estudos sobre a tolerância religiosa como tema de análise
histórica.
No Capítulo 2, a relação “religião x Iluminismo” vai ser discutida em maior
profundidade, sobretudo, de acordo com o tema da tese, priorizando-se o Catolicismo.
Parte-se de debates recentes a respeito da secularização, segundo as quais ela
corresponde a processos descontínuos e diacrônicos, que não necessariamente
prescindem de elementos religiosos no seu curso. Pelo contrário, trata-se mais de uma
multiplicidade de reelaborações de sua importância na vida coletiva e no exercício das
autoridades que propriamente rupturas, processo que engloba muitas leituras a respeito
do religioso. O próprio pensamento iluminista não rompe com o religioso, mas toma a
própria religião como problema que norteia muitos dos seus debates e formulações,
entre eles a respeito da necessidade ou não de haver uma maior tolerância com
diferentes religiões. Partindo desses pressupostos, serão analisados alguns aspectos
centrais do Iluminismo católico português, como o antijesuitismo e as constantes
críticas ao clero regular; a ideia de que dever-se-ia empreender reformas para se superar
um presumido atraso de Portugal em comparação com “as nações mais polidas da
Europa”; e, por fim, como a tolerância religiosa, tópica das Luzes, é discutida e
elaborada por pensadores comprometidos com um projeto dirigista de reforma política e
de mentalidades, próprio do regalismo pombalino, fortemente identificado com um
ideal de unidade entre o Catolicismo regulado e racionalizado – uma “sã teologia”,
como aparece nas fontes – com a fidelidade à monarquia.
No Capítulo 3, ao contrário do anterior, o objetivo foi explorar os
desenvolvimentos e elaborações sobre a tolerância religiosa para além do referido
dirigismo cultural. Para tanto, a documentação inquisitorial foi de suma importante, pois
evidenciou críticas religiosas que fizeram diversas pessoas serem denunciadas ao Santo
Ofício por seu teor heterodoxo. Antes, foram analisados regimentos e manuais usados
pelo Santo Ofício, de forma a não se tratar “proposições heréticas” como categorias
autoevidentes, mas que desvelam um pensamento jurídico-teológico fundamental para
se analisarem as falas dos heterodoxos. Mais que isso, permitem entender no que essas
críticas à Inquisição, à vigilância da fidelidade à religião ou ao próprio estado de
mentalidades e religiosidade nos domínios portugueses tiveram de distinto – e digno de
18
repressão –, quando comparadas às elaborações do capítulo anterior. O que se observou,
analisando os primeiros maçons que caíram nas malhas inquisitoriais portuguesas,
blasfemadores luso-brasileiros, estrangeiros de diversas origens que foram apresentados
ou presos pela Inquisição, além de trajetórias como as do maçom John Coustos e de
Francisco Xavier de Oliveira, é haver algumas proximidades entre elaborações mais
populares do tolerantismo – sobretudo a ideia de se viver sob um estado de “divisão”
espiritual, entre a fé praticada no íntimo e a expressa em público – com elaborações
mais sistemáticas da tolerância, advindas de vertentes diversas que remetiam ao
religioso e também às discussões filosóficas e teológicas sobre o tema. Por fim, um
estudo a respeito de religiosos que foram degredados de Portugal após criticarem a
Inquisição, dizendo estar ter sido instrumentalizada por Sebastião José de Carvalho e
Melo para condenar o jesuíta Gabriel Malagrida, indica que o próprio processo
secularizador do período proporcionou mais elementos para as críticas, já existentes, aos
tribunais de fé e para defesas da tolerância.
Por fim, no Capítulo 4, serão analisados os acusados como libertinos, no
contexto que se inicia após a queda do Marquês de Pombal, isto é, a partir de 1777, e
vai até as primeiras décadas do século XIX. Inicialmente, propõe-se analisar o que era
entendido como libertinos na Idade Moderna e as particularidades da caracterização que
lhes era atribuída no final do século XVIII. O entendimento de que eles seriam
“espíritos fortes”, resistentes ou opositores das confissões religiosas – tal como surgiu
no século XVI – se modificou bastante ao longo do tempo. No contexto analisado,
libertino tornou-se uma categoria de acepção tripla (livre pensador, imoral e/ou crítico
da moral cristã católica e monarcômaco, conforme definiu Luiz Carlos Villalta em seus
estudos sobre o tema, que serão analisados a fundo no desenvolvimento do capítulo). Os
libertinos se caracterizavam, sobretudo, por sociabilidades livres e relativamente
igualitárias, nas quais todo e qualquer ponto sobre qualquer matéria poderia ser alvo de
conversas e disputas, espalhando-se em ambientes tão diversos quanto universidades,
conventos ou a marinhagem. Nesse capítulo, aborda-se como a tolerância religiosa foi a
matéria central de suas proposições e de algumas publicações. Nelas, articulavam-se
leituras críticas sobre o Catolicismo em si com valores da Ilustração, constituindo
chaves de interpretação sobre Portugal e – em menor medida – do Brasil, segundo a
qual a tolerância religiosa e a crítica à religião católica (como existia até ali) era parte do
vislumbre de um novo mundo, representado em contraste com as permanências de um
19
passado simbolizado pela monarquia absoluta, pelos excessos de religiosidade na vida
coletiva
e,
principalmente,
pela
Inquisição.
20
Capítulo 1 – O Iluminismo na historiografia e no contexto
luso-brasileiro
“Portugal, ainda não tendo recebido neste
tempo as luzes que iluminaram tantos
estados na Europa, estava mais submetido
ao papa que qualquer outro. Não era
permitido ao rei condenar a morte, por seus
juízes, um monge parricida; era necessário
ter o consentimento de Roma. Os outros
povos estavam no décimo oitavo século;
mas os portugueses pareciam estar no
décimo segundo.”
(Voltaire, Précis du siècle de Louis XV,
1769. p. 327).
Existem diversas formas de se explicar o Iluminismo. Ele já foi explicado como
uma unidade, mas também como algo desenvolvido e difundido a partir de diversos
núcleos. Já foi compreendido como um fenômeno do século XVIII, ou do mesmo século
com precursores no final do século XVII, ou ainda com raízes até mais recuadas nesse
século ou mesmo em épocas anteriores. Sobre sua relação com a religião, muito se
discutiu, sendo ele adjetivado ora como secular ou religioso, ora mesmo como
antirreligioso ou irreligioso. A partir dessas múltiplas concepções de Iluminismo, sua
presença e seus impactos em Portugal e no contexto luso-brasileiro geraram uma
relativamente vasta produção, feita por várias gerações de historiadores brasileiros e
portugueses e definindo-se diferentes correntes de interpretação. Sobre essa produção,
faz-se necessária uma análise crítica. Os diversos modelos explicativos construídos
sobre as Luzes na França, na Alemanha, na Inglaterra e, em alguns casos, nos Estados
Unidos, formulados do século XX até a atualidade, trazem e/ou exigem novas
abordagem de análise sobre o fenômeno em outros contextos, fora desses eixos
tradicionais.
O mesmo se pode dizer em relação à tolerância religiosa, sua historicidade e
desenvolvimento histórico no período, bem como sobre os processos de secularização,
complexos e bastante estudados em diversas áreas das humanidades. O objeto central
21
desta tese é a relação entre tolerância religiosa e secularização no contexto lusobrasileiro no período das Luzes, seguindo a datação das fontes, de meados do século
XVIII, poucos anos antes do Pombalismo, até as primeiras décadas do século XIX.
Neste capítulo, será feita uma discussão e análise críticas da historiografia sobre as
Luzes, de forma a se pensar um modelo explicativo adequado para o que está proposto
para este trabalho. Para tanto, serão analisados autores e correntes mais tradicionais da
historiografia e, igualmente, trabalhos mais recentes, abordando-se as mais diversas
concepções de Iluminismo, passando-se, sobretudo, pelo lugar da religião nessas
análises.
1.1 As sínteses historiográficas e os problemas de um único Iluminismo
Richard Morse, em obra clássica, afirma que, já a partir do início do século
XVIII, a Península Ibérica havia se tornado uma consumidora cultural. 1 Ainda sobre o
contexto do Iluminismo em Portugal e Espanha, salienta seu aspecto “eclético”.
Segundo o autor, dentro de um quadro absolutista, “sistemas e métodos estrangeiros
surgem como opções diante de exigências de modernização”, sejam militares,
administrativas, econômicas, dentre outros aspectos, conjugadas com a conservação de
postulados católicos. Morse compreende essa forma eclética de Ilustração nos seguintes
termos:
Qualquer sistema de ideias, em sentido amplo, é eclético, na medida
em que toma noções, suposições e argumentos de uma variedade de
demonstrações prévias (...). Usado mais estritamente, “ecletismo”
indica abstenção da especulação sistêmica e tentativa de resolver
problemas práticos.2
Dessa maneira, o Iluminismo em Portugal e Espanha tiveram, segundo o autor,
duas características gerais: uma, é a sua posição consumidora, do ponto de vista
cultural; a outra, é a sua orientação pragmática e eclética, em que modernizar as
instituições, a cultura e as mentalidades iriam ao encontro da preservação da ordem
absolutista e da primazia do Catolicismo.
Trata-se de uma concepção sobre as Luzes ibéricas que tem se evidenciado
equivocada em alguns aspectos e limitada noutros, conforme pretendo demonstrar
analisando algumas das bases teóricas e metodológicas usadas para se estudar a
Ilustração portuguesa. Equivocada, no sentido de que Portugal, no contexto Iluminismo,
1
MORSE, Richard M. O espelho de Próspero: cultura e ideias nas Américas. Trad. Paulo Neves. São
Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 72.
2
Ibidem, p. 73
22
não se limitou a consumir uma cultura externa. Também, levando-se em conta o
cosmopolitismo como aspecto central das Luzes, como é amplamente demonstrado pela
historiografia, há uma certa contradição em se conceber, no seu contexto, a existência
de lugares que se tenham mantido isolados delas. Pelo contrário, formou-se em Portugal
uma ativa esfera literária, composta, sobretudo, por membros de uma elite letrada, cujas
reflexões, no século XVIII, a respeito de problemas diversos no reino e em suas
colônias articularam-se com debates e questões presentes nos vários contextos do
pensamento iluminista europeu. Não se tratou, dessa forma, de letrados que somente se
apropriaram do que era produzido externamente com a finalidade de resolver problemas
práticos, e muito menos de meros consumidores. A perspectiva de Morse é, ademais,
limitada. Ele e vários autores influenciados por sua perspectiva sobre as Luzes e seus
desdobramentos nos contextos ibéricos coloniais recorrem a adjetivações, em alguma
medida, derivadas do sentido de “eclético” e que sugerem um “desvio” de um suposto
“Iluminismo puro”, que existiria nos Além Pirineus. Tais adjetivos se materializam em
expressões como “Iluminismo católico”, “Luzes de compromisso”, “Luzes pragmáticas”
ou “ecléticas”. Nessa situação, as Luzes ibéricas corresponderiam a modernizações
incompletas e conservadoras. As adjetivações supracitadas trazem consigo alguns
problemas de natureza teórico-metodológica, dentre os quais o de encobrir a diversidade
de apropriações, debates e circulação de ideias dentro de Portugal e do espaço lusobrasileiro no século XVIII e sua inserção dentro de um quadro marcadamente
cosmopolita de produção de pensamento.
Faz-se necessário, nesse ponto, analisar o próprio conceito de Ilustração e suas
diversas concepções, para, em seguida, trazer a mesma análise para os contextos
português e luso-brasileiro, a fim de se pensar em modelos explicativos que deem conta
de sua diversidade como contexto de ideias.
A Ilustração, conforme sintetiza Rogelio Blanco Martinez, foi um movimento
que impregnou todo o continente europeu, abarcando finais do XVII e todo o século
XVIII; não representou uma filosofia única, em que todos fossem devedores dos
filósofos precedentes ou próximos. Tratou-se de um movimento que, longe de ser um
todo absoluto, ou puro e eminentemente científico, compreendeu múltiplos processos de
transformações, que abrangeram todos os âmbitos da vida coletiva. O pensamento
ilustrado, ainda segundo o autor, tendeu a valorizar as explicações do mundo a partir de
todas as formas válidas de conhecimento e da construção de uma ordenação racional da
23
vida, a serviço de fins práticos e de validade geral.3 Blanco Martinez destaca ainda que,
entre os grandes pensadores iluministas, predominou um ambiente de debates, e não de
consensos. Disso foram exemplos as diferenças a respeito da religião existentes entre
Denis Diderot, Jean-Jacques Rousseau e Voltaire, ou mesmo a posição desses mesmos
autores em relação à monarquia. Há claras e significativas divergências entre os
pensadores ilustrados. No entanto, Blanco Martinez defende que, em maior ou menor
medida, a defesa da liberdade, da tolerância religiosa, bem como a condenação à
intolerância, ao fanatismo, aos dogmatismos e às injustiças foram aspectos do
pensamento que aproximaram esses grandes pensadores, que os defenderam de forma
variada.4
Essa perspectiva de considerar o Iluminismo em sua diversidade tem sido
fortemente adotada, sobretudo, por uma historiografia recente. Até os anos 1970,
predominou uma concepção que remetia a uma unidade do Iluminismo, como se pode
perceber nessa passagem de uma obra clássica do historiador estadunidense Peter Gay:
Houve muitos philosophes no século XVIII, mas somente um
Iluminismo. Uma desorientada, informal e totalmente desorganizada
coalização de críticos culturais, céticos religiosos e reformadores
políticos de Edimburgo à Nápoles, de Paris à Berlim, de Boston à
Filadélfia, os philosophes fizeram um coro clamoroso, e houve
algumas vozes dissonantes entre eles, mas o que é notável é a
harmonia geral dos mesmos, e não suas discordâncias ocasionais. O
homem do Iluminismo, unido num vasto e ambicioso programa, um
programa de secularismo, humanidade, cosmopolitismo e, sobretudo,
liberdade, liberdade em todas as formas – liberdade em relação ao
poder arbitrário, liberdade de discurso, liberdade de comércio,
liberdade de realizar talentos únicos (...) liberdade, em uma palavra,
do homem moral fazer seu próprio caminho no mundo.5
O Iluminismo, na concepção de Peter Gay, é uma unidade. Ele faz uma ressalva,
nas páginas seguintes, de que a “unidade não significa unanimidade”. Em diversos
pontos centrais do pensamento iluminista, continua o autor, os philosophes divergiram,
3
BLANCO MARTINEZ, Rogelio. La Ilustración en Europa y en España. Ensayo. Madri: Ediciones
Endymion, 1999. p. 23-25.
4
Ibidem. p. 16.
5
Original: “There were many philosophes in eighteenth century, but there was only one Enlightenment.
A loose, informal, wholly unorganized coalition of cultural critics, religious skeptics, and political
reformers from Edinburgh to Naples, Paris to Berlin, Boston to Philadelphia, the philosophes made up a
clamorous chorus, and there were some discordant voices among them, but what is striking is their
general harmony, not their occasional discord. The men of the Enlightenment United on a vastly
ambitious program, a program of secularism, humanity, cosmopolitanism, and freedom, above all,
freedom in its many forms- freedom from arbitrary power, freedom of speech, freedom of trade, freedom
to realize one’s talents, freedom of aesthetic response, in a word, of moral man to make his own way in
the world. (Tradução minha). GAY, Peter. The Enlightenment: the rise of modern paganism [1966]. New
York & London: W. W. Norton, 1996, v. 1. p. 3.
24
como na sua relação com a religião, com a monarquia ou quanto à defesa de governos
republicanos ou ainda conforme algumas questões que envolviam seus respectivos
contextos nacionais. Mas, ainda que com divergências, os mesmos philosophes se
aproximavam, formando uma espécie de núcleo central de debates e ideias, em torno de
uma crítica universal que formou o que chamamos de “Pensamento Universal”, que
Peter Gay sintetizou na metáfora de uma “família filosófica”, formada por esses
pensadores iluministas.6
Essa concepção de Peter Gay sobre o Iluminismo como uma unidade não é
pioneira, sendo, em alguma medida, tributária de abordagens clássicas anteriores,
sobretudo as do historiador francês Paul Hazard e do filósofo alemão Ernst Cassirer.
Cassirer elaborou uma grande síntese sobre a filosofia do Iluminismo. Para o
autor, tal filosofia difere da dos séculos anteriores pela impossibilidade de se elaborar
descrições da totalidade de seu conteúdo, como era possível fazer em relação ao século
XVII. O Iluminismo, segundo Cassirer, teve sua originalidade na forma da condução
dos debates, embora, em matéria de conteúdo, tivesse tido alguma dependência com o
que fora produzido nos séculos anteriores.7 Mas envolveu sobretudo uma ruptura
metodológica com um dedutivismo, derivado de axiomas, comum ao pensamento do
XVII, abraçando um indutivismo, baseado, principalmente, nos sistemas newtonianos.8
Concebe, ainda, o Iluminismo como um fenômeno, sobretudo, francês. 9 Cassirer,
segundo Dorinda Outram, elaborou grande síntese do pensamento setecentista,
considerando-o como um conjunto homogêneo de ideias autônomas e descarnadas, no
sentido de estarem deslocadas de um contexto social, político e cultural, que teria se
desenvolvido na Europa Ocidental.10 Além disso, apesar de apresentar como objetivo se
distanciar de uma história de ideias baseada na sucessão cronológica de autores e suas
doutrinas pessoais, em alguns pontos – como, por exemplo, ao destacar a importância
da Física no pensamento das Luzes, afirmando que Newton terminou aquilo que Kepler
e Galileu fizeram século e meio antes –,11 acaba por incorrer exatamente nesse tipo de
abordagem.
6
Ibidem, p. 4-8.
CASSIRER, Ernst. A filosofia do Iluminismo [1932]. Trad. Álvaro Cabral. Campinas: Editora da
Unicamp, 1997. 3. ed. p. 1-18.
8
Ibidem, p. 26.
9
Ibidem, p. 50.
10
OUTRAM, Dorinda. The Enlightenment: new approaches to European history. Cambridge: Cambridge
University Press, 1995. p. 3-4.
11
CASSIRER, Ernst. A filosofia do Iluminismo. Op. Cit. p. 27.
7
25
Já Paul Hazard, noutra síntese, possivelmente influenciada pela obra de Cassirer,
viu no século XVIII uma “crise no pensamento europeu”. A partir daí, elaborou uma
análise de diversos valores do Iluminismo, como a crítica universal, a felicidade, a razão
e o que chamou de “processo do cristianismo”, base para todo um processo de
secularização que teria sido produto dessa crise.12 Desses valores, segundo o autor,
descendem os valores do que chamamos de modernidade.13
Peter Gay, Ernst Cassirer e Paul Hazard, com concepções uniformizadoras sobre
o Iluminismo, influenciaram gerações de historiadores que usaram seus modelos
analíticos sobre esse contexto intelectual como referência. O contexto das Luzes é,
dessa forma, visto como um conjunto, quase harmônico, de ideias mais ou menos
coevas de pensadores, na sua grande maioria franceses. Assim, partindo dessa clássica
concepção sobre as Luzes, muitos estudos sobre esse contexto, que têm recortes
espaciais distintos dos abordados pelos referidos autores (Inglaterra, Alemanha, Itália e,
sobretudo, a França), durante várias gerações, tiveram de lidar com um problema
metodológico importante: como se pensar as Luzes, sua repercussão, produção,
impactos e circulação de ideias, escritos e também de seus debates em realidades
distintas das desses referidos países? Seria pretensão apropriada a um trabalho
historiográfico mais específico sobre essa questão discuti-la de maneira mais ampliada,
talvez com um mapeamento mais aprofundado e completo sobre aquilo que se estuda ou
estudou sobre a Ilustração nos recortes espaciais exteriores aos dessas ditas “nações
cultas” do Ocidente Europeu. No caso deste trabalho, no qual me ocupo com o contexto
de Portugal e sua colônia na América, entre meados do século XVIII e o início do
século XIX, observo claramente que boa parte do que foi produzido se pautou em cima
de buscas por aproximações e/ou desvios dos desdobramentos do Iluminismo nos
contextos lusófonos em relação aos contextos dos Além Pirineus. Tais trabalhos
pautaram-se também por ideias como “modernidade tardia”, “modernidade incompleta”,
identificadas em Portugal e no Brasil, em contraste com a “modernidade plena”,
localizada onde teria acontecido a versão “plena” do Iluminismo. Em relação à religião
e a todas as disputas e debates sobre o tema nas Luzes no contexto luso-brasileiro, a
12
HAZARD, Paul. La pensée européenne au XVIIIe siècle. De Montesquieu à Lessing. Librairie Arthème
Fayard, Paris, 1979. 1e édition : Boivin et Cie, Paris, 1946.
13
Nas palavras do autor: “Mais à partir de 1715 s’est produit un phénomène de diffusion, sans égal. Ce
qui végétait dans l’ombre s’est développé au grand jour ; ce qui était la spéculation de quelques rares
esprits a gagné la foule ; ce qui était timide est devenu provoquant. Héritiers surchargés, l’Antiquité, le
Moyen Age, la Renaissance, pèsent sur nous ; mais c’est bien du dix-huitième siècle que nous sommes les
descendants directs”. Ibidem, p. 7.
26
contraposição entre uma permanência do religioso, em contraste com uma plena
secularização além-pirenaica, também marca importantes trabalhos históricos, que
discuto a seguir.
1.2 O mundo luso-brasileiro e as Luzes ecléticas e católicas
Em seminário realizado em 1989, Emília Viotti da Costa afirmou que o modelo
interpretativo do Iluminismo, ao ser contraposto às diversas realidades históricas por ele
abrangidas, apresentou diversas contradições. Segundo a autora, “o estudo da Ilustração
tem sido frequentemente nada mais do que um fútil exercício sobre as influências de uns
autores sobre os outros”.14 Ela discorre sobre uma série de incongruências do contexto
intelectual que geralmente chamamos de “Iluminismo”, advindas da repetição de uma
tentativa da historiografia de sintetizar todo o complexo de ideias do século XVIII,
concluindo que:
A única resposta possível é que o Iluminismo é uma invenção. Uma
invenção de intelectuais, sobre intelectuais, para intelectuais, um
conceito criado por intelectuais do século XVIII que é mantido vivo
por sucessivas gerações de intelectuais.15
Emília Viotti da Costa, dessa maneira, apresenta uma crítica bastante
contundente, na qual o contexto das Luzes seria uma mera invenção, já que corresponde
a uma gama bastante ampla de generalizações que não correspondem à realidade
histórica de um contexto intelectual permeado por debates, discordâncias e dissensos.
Partindo da problemática levantada pela referida autora, Flávio Rey de Carvalho
defende que a adoção generalizada dessa noção de Iluminismo é descarnada de contexto
social (aqui, o autor usa terminologia de Dorinda Outram), por ser demasiado pautada
em uniformizações. Além disso, concepções generalizantes identificadas nas sínteses de
Gay, Hazard e Cassirer, foram, segundo Carvalho, articuladas fortemente com
interpretações cristalizadas por historiadores brasileiros e, sobretudo, portugueses,
herdadas da produção literária da chamada “Geração de 1870”. Elas contribuíram,
durante gerações, para a elaboração de análises sobre o contexto das Luzes no mundo
ibérico pautadas na noção de “duas Europas”, em que Portugal é visto sempre atrasado
14
COSTA, Emília Viotti da. A invenção do Iluminismo. In: COGGIOLA, Osvaldo (org.). A Revolução
Francesa e seu impacto na América Latina. São Paulo: Edusp, 1990.p.31-45. p. 33.
15
Ibidem, p. 34.
27
em relação às “nações cultas” dos Além Pirineus.16 Um dos expoentes nessa produção,
continua o autor, foi o poeta e filósofo Antero de Quental (1842-1891), especialmente
na obra Causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos (1871),
que, sob a influência de historiadores como Jules Michellet (1789-1874), reduziu o
sentido da história da humanidade à europeia. Assim, difundiu-se a ideia de que afastarse do modelo da Europa “civilizada” era estar à parte do curso teleológico natural do
gênero humano, tendo como norte a “europeização” de Portugal, inadiável e
retificadora. Dessa forma, as análises sobre o Iluminismo em Portugal e Brasil foram
marcadas por adjetivações que salientaram esse atribuído atraso, com expressões como
“luzes envergonhadas” e “luzes católicas”, que fizeram e fazem parte do vocabulário de
diversos autores, brasileiros e portugueses, que tentavam buscar as razões do “atraso”
luso em relação à “Europa civilizada”.17
Embora concorde em parte com a crítica que a historiadora Ana Rosa Cloclet da
Silva fez a essa conclusão de Carvalho18, o problema levantado pelo autor em relação à
produção historiográfica sobre o Iluminismo em Portugal tem grande validade, na
medida em que levanta problemas de ordem metodológica importantes quanto à
produção historiográfica sobre o pensamento no século XVIII. São problemas que
implicam, em grande medida, a construção de concepções similares às de Richard
Morse, com as quais comecei este capítulo. Por exemplo, uma condição subalterna de
16
CARVALHO, Flávio Rey de. Um iluminismo português? A Reforma da Universidade de Coimbra
(1772). São Paulo: Annablume, 2008. p. 28-33.
17
Ibidem, 25-28.
18
Segundo a autora, Flávio Rey de Carvalho, apesar de significativa contribuição, peca por atribuir a
autores clássicos (no caso Peter Gay, Paul Hazard e Ernst Cassirer) concepções a respeito do Iluminismo
sem necessárias ponderações quanto a seus contextos de produção e quanto a suas inserções específicas
em termos de campos disciplinares e teóricos. Nas palavras da autora: “Na intenção de salientar algumas
destas especificidades, devemos lembrar que enquanto Peter Gay é um historiador consagrado pelos
estudos no campo da história social das ideias – o que, em boa medida, já problematiza o tratamento
supostamente “descarnado” por ele emprestado ao Iluminismo – e que elabora seus estudos sobre o
Iluminismo na década de 1970, o filósofo judeu-alemão Ernst Cassirer especializou-se no campo da
filosofia cultural de tendência neokantiana, nos anos de 1920-40, enquanto o historiador francês Paul
Hazard tornou-se um especialista em História da literatura comparada entre as décadas de 1920-40,
especialidade que seguramente permeia seu clássico A crise da consciência europeia, de 1935.”
Considerar as respectivas formações e particularidades das áreas dos pensadores analisados por Carvalho
ofereceria alguns elementos que enriqueceriam a sua análise. Tornaria possível, por exemplo, cotejar as
suas respectivas conclusões com aspectos referentes às inserções de suas obras nos debates sobre Luzes e
Modernidade em seus contextos de produção. Contudo, não se trata de um elemento que comprometa
significativamente a análise feita pelo autor. Entendo a pertinência da crítica somente como um
apontamento quanto a possibilidades abertas pela sua crítica historiográfica. Também vejo que explorar
essas possibilidades implicaria um trabalho de maior fôlego, e nisso tenho uma discordância com a crítica
de Ana Rosa Cloclet da Silva: a meu ver, a autora não tomou a devida consideração a respeito da obra ter
se originado de uma dissertação de mestrado, que, como tal, possui suas limitações, por exemplo, de
amplitude. SILVA, Ana Rosa Cloclet da. As “luzes” de um “reino cadaveroso”: entre a polêmica e a
tradição (review Um iluminismo português? A Reforma da Universidade de Coimbra, de Flavio Rey de
Carvalho). História da Historiografia. Ouro Preto, n. 3, p. 174-180, 2009.p. 175.
28
Portugal face às “nações cultas”, como “consumidor cultural” ou “atrasado” em
matérias econômica, cultural ou política, referenciada em autores ilustrados portugueses
como d. Luís da Cunha, Luís Antônio Verney, Antônio Ribeiro Sanches e outros, ou
ainda a uma necessidade de se “iluminar” o reino de Portugal e suas colônias, foi um
lugar comum de diversos autores setecentistas. Considero que tomar tais lugares
comuns como fatos tende a induzir a graves erros de análise sobre o contexto, por não
os tratar como um problema a ser analisado.
Tal abordagem tende a afastar o historiador do conhecimento a respeito do que,
de fato, significava o “atraso português”, em relação às “nações modernas”, na pena de
autores como os mencionados no parágrafo anterior ou nas palavras de libertinos presos
pela Inquisição por proposições heréticas, que tocavam nesse mesmo tópico em seus
depoimentos e apresentações, ao longo do século XVIII. A carga de significado dessas
referências ao dito atraso, seus referenciais e as percepções sobre a vida em comum em
um referido contexto histórico se perdem, pois acabam dialogando mais com as ideias
de atraso formadas pelo historiador, esteja ele pensando nos “resultados” das Luzes
ibéricas ou em uma incompleta realização de uma modernidade. A concepção de atraso,
aplicada e não devidamente problematizada nos contextos português e luso-brasileiro do
Iluminismo, traz, explícita ou implicitamente, uma noção de que existiria um
Iluminismo ou modernidade “perfeitos”, no sentido de que seu “projeto” teria sido
realizado completamente em algum lugar no tempo e espaço, ao contrário de Portugal e,
consequentemente, de suas colônias. Esse problema, inclusive, articula-se com uma
questão levantada pela historiografia recente a respeito da ideia de “nós” (no sentido de
uma “modernidade”) sermos “descendentes diretos do Iluminismo” – usando a
terminologia de Paul Hazard – e de como isso interfere na formulação de questões para
se pesquisar o Iluminismo e nas suas conclusões.19
A secularização e a tolerância religiosa, vistas, muitas vezes, como realizações
do Iluminismo e como conquistas da modernidade, sofrem com esse mesmo tipo de
problematização
incorreta.
Para
vários
historiadores,
a
existência
de
um
desenvolvimento com contornos específicos de uma vertente do Iluminismo dentro de
19
Refiro-me, especificamente, à crítica de Stephen J. Barnett, em obra recente. Esse assunto será
retomado adiante. Adianto que o argumento do autor é de que existe uma espécie de “mito de origem da
modernidade”, comumente atribuído ao Iluminismo, que implica significativamente nas conclusões de
muitos historiadores. O principal problema apresentado, de acordo com o autor, é o de que as análises
históricas feitas sob a égide desse “mito”, geralmente, perdem ou deixam num segundo plano
peculiaridades da Idade Moderna e seus contextos de ideias. BARNETT, Stephen J. The Enlightenment
and religion: the myths of modernity. Manchester and New York: Manchester University Press, 2003.
29
um contexto católico e onde, diversas vezes, um ideal de Catolicismo norteou projetos
reformistas, é uma espécie de “falha histórica” ou “ruptura incompleta” com a religião e
com as autoridades. Tal ruptura, teoricamente, seria uma espécie de finalidade de um
processo iluminista. Pensando em trabalhar em modelos explicativos que sejam mais
adequados para explicar tais contornos no contexto luso-brasileiro do século XVIII, eu
me ocupo, nos dois próximos títulos, com duas adjetivações muito comuns nos estudos
sobre o Iluminismo em Portugal e no Brasil, que são as “Luzes ecléticas” e “Luzes
católicas”.20
1.3 As Luzes ecléticas
De acordo com Flávio Rey de Carvalho, o termo ecletismo foi utilizado em
obras de filosofia e de história, no século XX, para caracterizar “o movimento ilustrado
português da segunda metade do setecentos”. Esse uso, de maneira geral, deixou
transparecer “certo matiz pejorativo, conforme verificado nas obras dos historiadores
portugueses José Sebastião da Silva Dias e António Braz Teixeira”.21 Interpretando a
forma como o termo aparece nos autores mencionados, Carvalho conclui que:
Tanto em Silva Dias quanto em Braz Teixeira, percebe-se uma
conotação negativa no emprego do conceito de ecletismo, quando
associado ao processo de assimilação e de adaptação das ideias
ilustradas em Portugal. Infere-se, portanto, que o caminho adotado
pelos intelectuais portugueses no Setecentos teria sido diferente e
anômalo ao traçado pelos demais países, sendo ele resultado de
cruzamento híbrido – fadado ao insucesso – entre duas culturas: a lusa
e a europeia.22
Embora saliente esse “hibridismo”, marcado pelo uso, pela historiografia e
filosofia do século XX, do termo “eclético” ou “ecletismo”, para se referir à Ilustração
portuguesa, o autor observa que os mesmos termos tiveram conotações positivas no
século XVIII, conforme podem ser vistas tanto na Encyclopédie como no Compêndio
Histórico do Estado da Universidade de Coimbra (1771), analisados por ele.
Uma análise histórica mais aprofundada sobre o termo ecletismo na perspectiva
da História das Ideias, de fato, aponta para o sentido positivo que predominou sobre o
termo até o século XIX, como demonstra em artigo o historiador Donald R. Kelley.
Examinando a repercussão na filosofia francesa, durante o período napoleônico, da
“Luzes pragmáticas” ou as já referidas “luzes esmaecidas” ou “luzes envergonhadas” também são
expressões bastante comuns.
21
CARVALHO, Flavio Rey de. Um iluminismo português? Op. Cit. p. 21.
22
Ibidem, p. 23.
20
30
produção intelectual do filósofo, político, reformador educacional Victor Cousin (17921867), Kelley indicou como marca importante de sua obra a defesa de um sistema
filosófico eclético, que tinha como mote central a premissa de que um sistema filosófico
verdadeiro não se baseava em apenas uma escola de pensamento. O ideal para um
sistema filosófico, conforme Cousin, na discussão de suas ideias feitas por Kelley,
estaria na apropriação de elementos de todos os sistemas de pensamento que existissem
– o contrário disso seria um pensamento dogmático, que iria de encontro ao livre pensar
que marcaria uma verdadeira filosofia. Quanto à filosofia francesa daquele período, o
ecletismo poderia “arejá-la”, incorporando elementos das filosofias alemã e escocesa.
Assim, defendeu o ecletismo não como escola filosófica, mas como uma atitude diante
do pensamento que acompanharia as verdades ao longo da história da filosofia. A partir
daí, até analisar o impacto do autor, Kelley faz uma contextualização do ecletismo, indo
desde a Antiguidade Romana até a sua releitura feita por pensadores do Renascimento e
da Ilustração, ao longo dos séculos XVII e XVIII. O autor demonstra que Cousin
elaborara sua perspectiva de ecletismo em cima do que foi produzido por muitas
gerações e escolas de pensadores, que viam no trânsito entre as inúmeras escolas de
pensamento um método para se alcançar a verdade, libertando o pensamento das
amarras do dogma. Assim, Cousin, segundo Kelley, teve enorme impacto no
pensamento francês com sua perspectiva de ecletismo, marcadamente positiva e que se
manteve como hegemônica, no contexto francês e noutras partes da Europa e Estados
Unidos até o início do século XX.23
Apesar dessa possível conotação positiva, identificável no pensamento do século
XVIII e posterior, conotações negativas do termo aparecem com alguma frequência.
Chama a atenção, quanto ao uso do termo na historiografia sobre as Luzes portuguesas e
luso-brasileiras, que “eclético” engloba com alguma regularidade pelo menos dois
significados importantes. Um primeiro, corrente em dicionários de filosofia, está
sintetizado na definição de Gerard Dérozoi, André Roussel e Marina Appenzeller,
segundo o qual “eclético” é “aquele método que consiste em reunir teses inspiradas em
diferentes sistemas, negligenciando-se o que apresentam de incompatível”. E, apesar de
indicar, no mesmo verbete que, historicamente, nos séculos XVII e XVIII, o termo já
teve forte acepção positiva, “hoje em dia (...) o termo é utilizado com frequência com
um matiz pejorativo para designar um pensamento superficial ou desprovido de
23
KELLEY, Donald R. Eclecticism and the History of Ideas. Journal of the History of Ideas, v. 62, n. 4,
p. 577-592, 2001.
31
coerência”.24 Definição similar encontramos no dicionário de Hilton Japiassú, onde o
termo aparece definido como um “método que consiste em retirar dos diferentes
sistemas de pensamento certos elementos ou teses para fundi-los num novo sistema”.25
Outro procedimento comum é associar essa orientação eclética, atribuída à
Ilustração portuguesa como já foi dito, ao utilitarismo e ao pragmatismo. Com isso, as
tais retiradas de elementos de diferentes sistemas para transformá-los em outro teriam
sido feitas com objetivos absolutamente práticos, como o desenvolvimento econômico
de Portugal e das suas colônias. Seria, basicamente, como se as “retiradas” de ideias e
seu “ajuntamento” para tornarem-se um sistema novo fossem premeditados, com uma
finalidade prática previamente estipulada.26 É uma definição de “ecletismo” similar a
algumas que estão presentes em dicionários científicos de algumas áreas, como, por
exemplo, a da Psicologia voltada para a Educação e a Arquitetura, segundo os quais o
termo designa, grosso modo, a apropriação de diversos elementos de muitos sistemas
diversos, não necessariamente coerentes entre si, com a finalidade de se conseguir a
resolução de alguma idiossincrasia ou caso particular de algum indivíduo, grupo de
indivíduos, problema ou contexto específico.27 Em suma, é comum encontrar, em
trabalhos a respeito da Ilustração portuguesa, a expressão “Luzes ecléticas”, cujo
sentido é, por um lado, concebê-la como fadada ao insucesso ou, por outro, como algo
que se diferenciaria profundamente dos demais contextos, ao misturar muitos sistemas
de ideias incompatíveis, sem preocupação com sua coerência. A expressão, ainda,
remeteria a uma Ilustração marcada por uma mistura similar, porém utilitária e que
24
DUROZOI, Gérard; ROUSSEL, André; APPENZELLER, Marina. Dicionário de filosofia. Campinas,
SP: Papirus Editora, 2005. p. 145.
25
JAPIASSÚ, Hilton. Dicionário Básico de Filosofia de Hilton Japiassú e Danilo Marcondes. 4º. ed.
atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2006. p. 81.
26
É possível, também, criticar esse uso do termo ecletismo por outra via. No caso, seria o fato de
considerar-se um sistema como eclético no sentido pejorativo, entendendo que agrupar pressupostos de
sistemas filosóficos diversos para se resolver questões práticas e de ordem material os inferiorizaria.
Além disso, as próprias soluções encontradas seriam falsas ou efêmeras, por serem exóticas, artificiais e
incoerentes entre si.
27
Por exemplo, a definição de Maqbool Ahmad, no Comprehensive Dictionary of Education, segundo a
qual eclético em psicologia, aplicada à educação, seria a “combinação de teorias, fatos ou técnicas”
diversas “apropriadas para um cliente individual ao invés de contar exclusivamente com técnicas de uma
escola de psicologia”. Já na definição de Russel Sturgis e Francis Davis, aplicada à Arquitetura, há
menção de que, se de um lado, “diante do dilema enfrentado pelos arquitetos da modernidade de recorrer
a ou criar sistemas de aceitação universal, o método eclético aparece tanto como um promissor meio de
experimentação e de se criar padrões novos a partir de sistemas já existentes”, por outro lado “oferece o
risco de se colocar para o mesmo fim ideais e conceitos conflituosos entre si”, ou ainda “confusos e não
harmoniosos”, destacando o caráter prático do método para a resolução de problemas quanto às limitações
de estilos. AHMAD, Maqbool. Comprehensive dictionary of education. New Delhi: Ed. Atlantic
Publishers & Dist, 2008. p. 170. STURGIS, Russel et all. Sturgis' illustrated dictionary of architecture
and building: an unabridged reprint of the 1901-2nd edition. New York: Dover Publication, 1989. p. 846847.
32
visaria, com ou sem sucesso, à resolução de algum problema de ordem mais prática,
como o desenvolvimento material.
Ao discutir o processo secularizador em Portugal, no período pombalino,
Francisco Calazans Falcon usa o termo “ecletismo”. Em sua análise, não houve em
Portugal uma ruptura mais incisiva com a Igreja Católica. Os meios adotados por
Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, para modernização das
instituições e das mentalidades portuguesas, bem como a quebra da hegemonia
eclesiástica em pontos chave, como o ensino formal e a censura, foram feitos por meios
cautelosos e “ecléticos”:
Predomina em quase todos os casos o meio termo, a cautela diante das
motivações excessivas, o receio do desconhecido que o seja em
demasia. Essa evidencia em todos terrenos: quanto às ideias, aos
livros, aos cursos, aos professores e, em última análise, quanto à
análise filosófica que se deveria imprimir ao processo secularizador
como um todo.28
Para Falcon, dessa forma, não se propunha no período pombalino uma supressão
pura e simples da hegemonia eclesiástica, o que, para o autor, “demandaria não apenas
simples reformas, e sim, uma revolução”. Defendia-se uma reorientação ou uma
redefinição da mesma hegemonia, capaz de abrir espaço às novas formas de
pensamento. Isso viria a implicar, na prática, “uma profunda mudança na própria
organização institucional da cultura e seus aparelhos respectivos”.29 Uma demonstração
desse “ecletismo”, segundo Falcon, foram as reformas da Inquisição, “uma peça
formidável para articular o projeto secularizador com compromissos e ideias
tradicionais”, pois, assim:
Exorcizam-se, de uma só vez, os velhos [jesuítas e aspectos arcaicos
da mentalidade lusitana, como os milenarismos] e novos [como o
jansenismo, francesias, libertinagem, etc.] deletérios. Tratava-se de
fazer do temido tribunal um instrumento secular, estatal, de defesa da
ordem e da ideologia dominante contra os desafios e os perigos das
novas ideias, heresias de um novo tipo, suscetíveis também de pôr em
perigo o trono lusitano.30
Falcon, em sua análise, não está focado somente no apontamento de possíveis
incoerências entre os compromissos tradicionais da monarquia portuguesa com a adoção
de ideias vindas do Além-Pirineus, nem se restringe a defender que disso se desenvolva
algum tipo de determinismo para um fracasso desse sistema visto como eclético. No seu
28
FALCON, Francisco Calazans. A Época Pombalina: Política Econômica e Monarquia Ilustrada. 2ª
edição. São Paulo: Editora Ática, 1993. p. 431.
29
Ibidem, p. 424.
30
Ibidem, p. 442.
33
entendimento, o ecletismo que há no Iluminismo português existe na articulação do
“ímpeto secularizador” das reformas pombalinas com a permanência e os compromissos
com estruturas tradicionais, nos âmbitos institucionais, culturais e religiosas.
Uma concepção eclética das Luzes portuguesas aparece também no trabalho de
Fernando Antônio Novais. Em artigo sobre o referido contexto histórico, publicado nos
anos 1980, Novais aponta duas características centrais para se compreender as Luzes em
Portugal. Em primeiro lugar, haveria um descompasso entre "teoria” e “prática”.
Segundo o autor, ainda que as Reformas, propostas sob influência do Iluminismo,
tivessem começado cedo em Portugal (em 1750, com a ascensão de Pombal como
ministro plenipotenciário), o reino ibérico jamais se tornara grande centro gerador de
pensamento ilustrado. Ao contrário, na França, as reformas começaram tardiamente
(1774, com Luiz XVI, segundo o autor), mas o país, por excelência, tornou-se centro
irradiador de Luzes. Em segundo lugar, as Luzes portuguesas foram caracterizadas pela
“importação”, focada na figura do estrangeirado, que “respira os ares da modernidade” e
se propõe a arejar o reino e encontra resistência.31 Para entender-se as duas
características marcantes da Ilustração portuguesa – ou seja, a precocidade das reformas
e a importação de ideias –, o autor recorre a outros aspectos da história portuguesa da
Época Moderna: o isolamento cultural e o atraso econômico. A partir daí, discute a
profundidade das reformas e seus desdobramentos na colônia. Segundo Novais, a partir
do século XVII, Portugal e Espanha passaram a ser, cada vez mais, ultrapassados em
matéria econômica por países como França, Inglaterra e Holanda. Nesse contexto,
pensadores de ambos os reinos analisavam essa decadência em profundidade, buscando
suas razões e também procurando remédios. A busca pelas razões e pelas soluções dessa
decadência, segundo o autor, estrutura uma linguagem política que perpassa boa parte
das discussões das Luzes Ibéricas, tendo sua origem na época barroca. Assim:
Na medida em que o “atraso” era visto em relação à Europa de AlémPirineus, é claro que se entendia que, para explicá-lo, impunha-se a
mobilização de uma nova filosofia, dos países adiantados – daí o
caráter de importação de ideias, de atualização; e por outro lado, as
reformas eram vistas não apenas como a “promoção das Luzes”, mas
também como uma maneira de superar o atraso, tirar a diferença, e
portanto mais urgentes, donde a precocidade com que são atacadas.
Dadas essas particularidades, entende-se também o caráter moderado
da Ilustração portuguesa, seja no plano das ideias, seja na
31
NOVAIS, Fernando Antônio. Reformismo Ilustrado luso-brasileiro: alguns aspectos. Revista Brasileira
de História, v. 4, n. 77, p. 105–118, 1984. p. 105.
34
implementação política. O meio era resistente, havia que caminhar
com cuidado, ainda que com firmeza.32
A partir dessa corretíssima análise sobre a percepção do atraso ibérico pelos
pensadores do século XVIII e da formação do contexto de pensamento do qual o
reformismo pombalino fez parte, Novais constata que se desenham Luzes ecléticas em
Portugal. Tais Luzes desenvolvem-se plenamente a partir do último quartel do século
XVIII, no reinado de d. Maria I. Disso seriam exemplos as Memórias (1789) do italiano
Domenico Vandelli33, em um trecho em que o naturalista italiano destaca que “para ser
útil ao Reino, devem ser regulados por princípios deduzidos de uma boa Aritmética
Política, assim não se devem seguir sistemas sem antes examiná-los e confrontá-los com
as atuais circunstâncias da nação”.34 Nessa concepção sobre as Luzes portuguesas,
depreendem-se dois aspectos importantes que influenciaram vários trabalhos posteriores
sobre o tema. Primeiramente, que os sistemas importados do Além-Pirineus foram
trazidos de forma a se buscar uma recuperação, sobretudo econômica, do reino de
Portugal, em relação a essas nações que o superaram, havendo, assim, nas Luzes
portuguesas, um enfoque possível de se entender como utilitário. Um outro aspecto é
que o caráter moderado atribuído às Luzes e ao Reformismo Ilustrado portugueses
poderiam ser, em parte, explicável por esse ecletismo, visto que ele é um produto das
barreiras internas encontradas pelas ideias iluministas na sociedade e no Estado
portugueses. Tais barreiras teriam criado obstáculos para que ideias iluministas
florescessem em solo português ou luso-brasileiro, à maneira do que ocorrera nos
contextos além-pirenaicos. Além disso, teriam impedido também que vertentes mais
radicais da Ilustração pudessem ali circular e promover mudanças estruturais mais
contundentes.
Esse “ecletismo”, caracterizado por uma ampla adoção de sistemas distintos
visando ao desenvolvimento e à superação de um percebido atraso em relação ao AlémPirineus, de viés fortemente utilitário e que teria privilegiado o lado prático das ciências
e filosofia, em detrimento de suas vertentes mais políticas, aparece em diversos outros
32
Ibidem, p. 106.
Domenico Agostino Vandelli (1735-1816), naturalista italiano, lecionou desde 1764 em Portugal e foi
um dos fundadores do Jardim Botânico de Coimbra, sendo também seu primeiro diretor. Ficou conhecido
também por dirigir diversas “expedições filosóficas” no final do século XVIII. DOMINGUES, Ângela.
Para um melhor conhecimento dos domínios coloniais: a constituição de redes de informação no Império
Português em finais do Setecentos. Ler História, n. 39, p. 19–34, 2000; BOSCHI, Caio César. “Um hábil
naturalista”, Joaquim Veloso de Miranda. In: ________. Exercício de pesquisa histórica. Belo Horizonte:
Editora PUC Minas, 2011.p. 101-210.
34
NOVAIS, Fernando Antônio. Reformismo Ilustrado luso-brasileiro. Op. Cit. p. 109. Itálicos do autor.
33
35
trabalhos. Essa perspectiva é encontrada nas historiografias brasileira e portuguesa
sobre a segunda metade do século XVIII e início do século XIX. Um de seus expoentes
é Maria Odila da Silva Leite Dias, que analisou, no clássico Aspectos da Ilustração no
Brasil, um pragmatismo próprio de uma mentalidade reformista, hegemônica na Corte
portuguesa sob o Reformismo Ilustrado. Segundo a autora, esse pragmatismo buscou
adaptar a ciência produzida na Ilustração às realidades luso-brasileiras, produzindo
assim melhorias para a vida coletiva. Esse aspecto influenciou uma geração de
brasileiros e portugueses, os quais levaram para a produção científica e administração
pública toda uma mentalidade utilitarista e pragmática, associada a algum
conservadorismo no campo político.35
O trabalho de Maria Odila Dias influenciou fortemente vários outros. Um
exemplo é o de Lorelai Kury, que analisou uma série de mudanças no modelo colonial
português no século XVIII. Baseados em modelos inglês e francês, segundo a autora,
diversos agentes da Coroa portuguesa, no último quartel do Setecentos, buscaram
promover alterações no funcionamento da política lusitana de administração colonial.
Conforme essa perspectiva, a ciência e seu uso prático mobilizaram um aparato estatal
objetivando o aumento da produção agrícola e das demais atividades econômicas, bem
como a uma melhoria na eficiência do controle metropolitano na América portuguesa,
sem, no entanto, produzir mudanças mais significativas no campo da administração, das
sociabilidades, das instituições, da economia e da cultura.36
Já Rafael Bivar Marquese, discutindo, em perspectiva comparada, a montagem
da cafeicultura no Brasil e em Cuba, entre a última década do século XVIII e as duas
primeiras do XIX, também parece nortear seu trabalho a partir da definição de um
Iluminismo eclético nos casos português e luso-brasileiro. O autor analisou a recepção,
em Cuba e Brasil, de traduções, para o castelhano e português, respectivamente, do
manual The coffee planter of Saint Domingo (1798), de Pierre-Joseph Laborie, que
sistematizava todo o processo de plantio de café e administração das plantations, tal
como ocorriam na ilha de Santo Domingo antes da Revolução haitiana, ocorrida em
1791. A circulação da tradução do tratado em Cuba, conforme defende o autor, foi
maior do que no Brasil, o que se explicaria em razão do desinteresse das classes
senhoriais brasileiras pela obra. O livro, editado entre 1798 e 1806 pelo botânico
35
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Aspectos da Ilustração no Brasil. In: _______. A interiorização da
metrópole e outros estudos. 2 ed. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2009. p. 39-126.
36
KURY, Lorelai. Homens de ciência no Brasil: impérios coloniais e circulação de informações (17801810). História, Ciências, Saúde - Manguinhos, v. 11, n. suplemento 1, p. 109–129, 2004.
36
mineiro frei José Mariano da Conceição Veloso, suprimia o quarto capítulo da edição
original, que tratava, em linhas gerais, da teoria antilhana de administração de escravos.
Dialogando com Maria Odila da Silva Dias, o autor destaca o descaso da referida elite
colonial com as tentativas de modernização da produção agrícola empreendidas pela
Coroa portuguesa. Disso, ele conclui que a elevação da qualidade e quantidade da
produção cafeeira no Brasil deu-se de forma independente das tentativas reformistas
estatais, destacando, dentre elas, as traduções e distribuição dos manuais impressos pela
Tipografia do Arco do Cego, no início do século XIX.37
O “ecletismo” e “Luzes ecléticas” para o caso português aparecem nessas obras
com significado marcadamente utilitário e pragmático. Nelas, a ciência e filosofia alémpirenaica seriam importadas e apropriadas, adaptando-se com maior ou menor sucesso
às realidades luso-brasileiras, em função de um desenvolvimento e modernização, seja
da administração pública, seja da produção econômica. Nessa perspectiva de Ilustração,
em alguma medida, reforça-se também uma carga retrospectiva, uma vez que a
valorização de aspectos “úteis”, em detrimento de vertentes mais politizadas do
pensamento das Luzes, é destacada. Embora esses pontos levantados aqui escapem das
discussões e dos objetivos desses autores, essa perspectiva eclética sobre as Luzes, em
alguma medida, leva-nos a alguns problemas que se referem aos próprios modelos
explicativos sobre o Iluminismo. Dito de outra maneira, pensar nas Luzes portuguesas
como “ecléticas”, no sentido de serem uma espécie de “híbrido” entre as “novidades” do
pensamento das Luzes e o arcaísmo das estruturas ibéricas, traz o questionamento sobre
se houve um Iluminismo não eclético fora de Portugal. Se essa característica é uma
particularidade do caso português, seria de se inferir que houve algum contexto em que
as novas ideias do pensamento iluminista desenvolveram-se sem barreiras ou refrações
internas. É possível pensar, ainda, se o desejo ou a tentativa de aplicação das inovações
filosóficas e científicas, no plano concreto, seja em reformas institucionais, seja no
desenvolvimento material, teriam sido particularmente mais destacáveis em Portugal e
no mundo luso-brasileiro que em relação a outros contextos.
No que toca ao tema desta pesquisa, centrada nos processos de secularização e
na historicidade da tolerância religiosa no contexto das Luzes, fazê-lo à luz dos modelos
explicativos que apontam para as “Luzes ecléticas” poderia conduzir a conclusões, no
37
MARQUESE, Rafael de Bivar. A ilustração luso-brasileira e a circulação dos saberes escravistas
caribenhos: a montagem da cafeicultura brasileira em perspectiva comparada. História, Ciências e Saúde
- Manguinhos, v. 16, n. 4, p. 855–880, 2009.
37
mínimo, muito problemáticas. Um primeiro erro estaria em considerar como elemento
chave desse ecletismo luso-brasileiro o desenvolvimento de ideias iluministas em meios
e linguagens intrinsecamente religiosos e católicos, bem como sua coexistência. Tal
coexistência, por esse caminho, poderia vir a ser abordada como contraditória em si.
Para tanto, seria necessário endossar o pressuposto de que o Iluminismo e a religião se
incompatibilizam e negligenciar o fato de que diversos problemas e discussões, em
vários contextos das Luzes, partiram de debates religiosos, que, de alguma forma,
deram-lhes alguns contornos específicos, relacionados aos seus contextos respectivos.
Dessa maneira, ficariam de lado toda uma dimensão de ambiguidades e os
enfrentamentos presentes na relação entre a difusão das ideias das Luzes e suas
referências à religião em contexto determinados. Isso porque, nessa concepção, esses
aspectos cristãos-católicos, presentes nas mentalidades e estruturas dos espaços lusobrasileiros, são colocados, de forma um tanto simples, como permanências de algo
arcaico. Valores como a tolerância e a intolerância religiosas, com isso, ganham pouco
espaço para que sejam discutidos e historicizados. O resultado potencial disso seria
conceber a tolerância religiosa, dentro do contexto das Luzes no mundo luso-brasileiro,
como um mero ideal externo, que jamais se realizou. Ou ainda que tenha se realizado
somente de maneira parcial e utilitária, com grandes refrações e resistências, não
conduzindo a um “devir histórico” que tenha sido o “reflexo” de sistemas “puros”,
defensores da liberdade e tolerância religiosas, florescidos nos debates da Ilustração.
Antes de continuar essa discussão, faz-se necessária a análise de outro tipo adjetivação
comum sobre as Luzes portuguesas, a saber, a contida na expressão “Luzes católicas”.
1.4 Um Iluminismo Católico
Existe uma bibliografia relativamente ampla a respeito dos desenvolvimentos
das Luzes, nos seus múltiplos aspectos, nos contextos católicos. A obra de Ludovicus
Jacopus Rogier, por exemplo, aponta para a existência de um Iluminismo católico
restrito à Alemanha, algo contestado, anos depois da sua publicação, por Cândido dos
Santos.38 Na década anterior à do trabalho de Cândido dos Santos, Samuel J. Miller,
38
SANTOS, Cândido Dos. António Pereira de Figueiredo, Pombal e a Aufklärung. Ensaio sobre o
Regalismo e o Jansenismo em Portugal na 2 a metade do século XVIII. Revista De História das Ideias,
Porto, v. 4, n. 1, p. 167–203, 1982. p. 202. A obra em questão de Rogier é: ROGIER, Ludovicus Jacopus.
Le siècle des Lumières et la Révolution (1717-1800). In. __________, HAJJAR, Joseph; SAUVIGNY,
Guillaume de Bertier. La nouvelle histoire de l’Eglise. Paris: Édition du Seuil. vol. IV: Siècle des
Lumières, révolutions, restaurations, 1966. p. 9-233.
38
então professor de Boston College, já havia desenvolvido uma pesquisa extensa e de
grande fôlego sobre o mesmo Iluminismo católico – Catholic Enlightenment – em
Portugal. Seu enfoque foi, sobretudo, o conjunto das relações diplomáticas entre a
Coroa portuguesa e a Santa Sé de Roma entre os anos em que o reino ibérico esteve sob
o controle e Sebastião José de Carvalho e Melo, de 1750 a 1777. Na sua hipótese, o
ministro de d. José I, influenciado pelas Luzes e auxiliado por um corpo de pensadores
católicos e, em grande parte, também eclesiásticos, desenvolveu e colocou em prática
uma nova agenda política, elaborada em cima de um corpo doutrinário inédito. Ele
desenvolveu um tipo de regalismo, afirmando poderes régios em diversos pontos de
conflito de jurisdição civil e eclesiástica, em conexões com o episcopalismo, o
galicanismo e o jansenismo. Para Miller, analisando um conjunto de conflitos entre
Portugal e Roma no mencionado período, tal ingerência civil, tomada pela governação
pombalina sobre o poder eclesiástico, representou também um exercício inédito de
jurisdição do Estado sobre a Igreja em qualquer país católico até então, embora se
admita que conflitos jurisdicionais entre Igreja e monarquia católicas remontem a
períodos anteriores. Um exemplo seria a instituição do Real Padroado,39 ponto constante
de conflito entre esferas régias e eclesiásticas nos domínios portugueses desde o século
XVI. Porém, tais conflitos, segundo Miller, tomaram uma proporção nova sob Pombal,
ao se articularem as tentativas de avanço e centralização dos poderes civis com
tendências que visavam a “ilustrar” o Catolicismo. Tais tendências remetiam a alguns
debates iluministas, formando um projeto maior cujo objetivo era modernizar Portugal e
retirá-lo de um presumido atraso, ao qual a piedade barroca, a Companhia de Jesus e
correntes católicas mais favoráveis à autoridade pontifícia e da Sé romana, em
detrimento das “Igrejas nacionais”, estavam associadas. Este processo, conclui Miller,
mesmo após a queda do Marquês de Pombal e a ascensão de d. Maria I ao trono, não foi
revertido. Na conclusão do autor, tal caráter regalista – num sentido lato, de
hegemonização do poder civil sobre o eclesiástico – perdurou até, pelo menos, a década
39
Durante a Idade Moderna, o Real Padroado se constituiu como um elemento importante nos quadros
político-administrativo e político-religioso em Portugal. Por meio da bula Dudum pro parte, de 31 de
março de 1516, o papa Leão X concedeu o direito universal do padroado a todas às terras sujeitas ao
domínio da Coroa portuguesa. Ele consistia, grosso modo, numa série de acordos entre a Sé romana e a
Coroa portuguesa, confirmados por breves e bulas, nos quais eram delegados ao rei de Portugal o
exclusivo da organização e financiamento de atividades de natureza religiosa no país e nos domínios
ultramarinos. Através do padroado, o rei tinha autoridade para aceitar ou rejeitar bulas papais; escolher,
com a aprovação do papado, os representantes da Igreja no ultramar; erigir e autorizar a construção de
igrejas, catedrais, mosteiros, cemitérios e conventos, entre outras atribuições. Este assunto será retomado
mais adiante. MUNIZ, Pollyanna Gouveia Mendonça. Cruz e Coroa: Igreja, Estado e conflito de
jurisdições no Maranhão colonial. Revista Brasileira de História, vol. 32, nº 63, p. 39-58, 2012. p.40.
39
de 1830.40Especificamente sobre o regalismo e jansenismo, retomo a discussão mais à
frente. Aqui, importa destacar de que, há décadas, já tem sido apontada a ideia de que
nos diversos desenvolvimentos no contexto da Ilustração houve contornos próprios dos
países católicos. O tema tem sido objeto de importantes estudos e produção
historiográfica.
Porém, anteriormente aos trabalhos mencionados supra, foi publicada a obra já
clássica de Luís Cabral de Moncada, na qual, comumente, historiadores brasileiros e
portugueses observam a origem da expressão “Iluminismo Católico”. Logo no início de
seu trabalho sobre Luís Antônio Verney, Moncada observa a dificuldade em se pensar
no Iluminismo como uma unidade. Segundo o autor, “há, por assim dizer, vários
Iluminismos nos diversos países europeus, nos quais, sobre uma unidade mais profunda
de certas características comuns vieram instalar-se também muitas características
próprias”, provenientes de tradições e particularidades de cada contexto nacional. No
caso de países católicos, como Itália, Espanha e Portugal, “menos adiantados na
emancipação do pensamento moderno”, o Iluminismo “manifestou-se ele de uma
maneira diversa”, pois se viu “obrigado aí a pactuar com o Catolicismo”.41 Na leitura de
Flávio Rey de Carvalho, Cabral de Moncada procurou romper com a ideia monolítica
sobre o Iluminismo, com um objetivo de se abrir à historiografia para vislumbrar Luzes
com as feições católicas de Portugal. No entanto, o uso da expressão de maneira
generalizada acabou gerando uma nova forma de reducionismo interpretativo. Nas
palavras do autor:
A noção de “Iluminismo Católico” sofreu a mesma generalização
presente no conceito de Iluminismo: enquanto este consistiu em
modelo sintético de entendimento do pensamento europeu
setecentista, aquela passou a ser utilizada, erroneamente, da mesma
maneira, para referir-se às especificidades do caso português. Criou-se
um paradigma uniforme do multifacetado movimento ilustrado luso,
eclipsando a diferença e a variedade das opiniões lá existentes. Isso
reforça ainda mais a caricata oposição cultural entre Portugal e a
Europa, sendo o ambiente cultural luso reduzido a uma exceção à
regra, um mero contraponto à suposta postura geral anticristã do
Iluminismo.42
40
MILLER, Samuel J. Portugal and Rome c. 1748-1830. Aspects of the Catholic Enlightenment. Rome:
Università Gregoriana Editrice, 1978 (Miscellanea Historiae Pontificiae, Vol. 44).
41
MONCADA, Luís Cabral de Oliveira. Um “iluminista” português do século XVIII: Luís António
Verney. In: ____________. (Org.). Estudos de História do Direito: século XVIII – Iluminismo Católico:
Verney-Muratori. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1950, v. 3. p. 5-7.
42
CARVALHO, Flávio Rey de. Um iluminismo português? Op. Cit. p. 20-21.
40
Em outras palavras, a expressão “Luzes Católicas”, usada para se referir ao caso
do Iluminismo português, vem com uma carga pejorativa arraigada, por considerar que
o Catolicismo das Luzes portuguesas foi razão para seu atraso, em relação a outros
Iluminismos, nas suas essências, antirreligiosos ou anticlericais. Não ter rompido com a
Igreja de Roma, dessa forma, serve, em muitas análises, como uma espécie de mácula
que perpassa o contexto letrado lusitano no Setecentos e os seus pensadores, limitando
sobremaneira suas ideias.
Esse é o caso, por exemplo, da análise feita por Ana Lúcia Curado e Manuel
Curado, no prefácio das Cartas Italianas, traduzidas do latim e do italiano, e por eles
publicadas no ano de 2008. No início, os autores advertem sobre o conteúdo das cartas,
ao dizerem que os portugueses “gostam de contar de si mesmos a história fantasiosa de
como são um povo tolerante”, o que, segundo os mesmos, cairia por terra na leitura a
ser feita sobre a Questão Judaica, presente na carta VI do livro por eles traduzido e
editado, “em linhas de arrepiar”; depois da leitura do documento, continuam os autores,
“é difícil aceitar sem reservas o mito português da tolerância”. 43 Na mesma discussão
preliminar das cartas, ademais, os mesmos autores afirmam ser “difícil deixar de sorrir
perante a sua surpreendente atualidade”, referindo-se à abordagem de temas tais como:
a necessidade de se virem mestres estrangeiros para Portugal (enfrentando, assim, o
problema do isolamento cultural do país), ou questões como a da educação dos jovens,
número de filhos por cada família ou a relação da religião com a política. Além disso,
eles salientam:
Existe, porém, um tema em Verney que não convida ao sorriso. Nesta
correspondência não surge nenhuma alusão à hipótese de acabar com
a Inquisição. Fica bem a Verney propor o fim imediato dos hediondos
autos-de-fé. Não fez o mesmo a respeito da Inquisição, como
instituição. Verney parece acreditar que seria possível reformar o
monstro. Não se deu conta de que não há forma de fazer isso: os
monstros não se reformam – matam-se [itálico dos autores].44
A partir daí, do ponto de vista depreendido das Cartas Italianas, concluindo o
raciocínio, os autores observam que, para o oratoriano, “um mundo sem o Santo Ofício
é tão impensável quanto um mundo sem ordens militares e sem Catolicismo”. Eles
relacionam o tema da Carta VI com alguns presentes nas demais cartas (que serão
43
CURADO, Ana Lúcia; CURADO, Manuel. Prefácio. In: VERNEY, Luís Antônio. Cartas Italianas.
CURADO, Ana Lúcia; CURADO, Manuel. (org.). Lisboa: Sílabo, 2008, p. 9-29. p. 10.
44
Ibidem, p. 11.
41
analisadas mais à frente) e fazem uma primeira alusão a um Iluminismo Católico, do
qual o autor faria parte. Por fim, concluem que, Verney, apesar de:
A grande atualidade de muitos de seus conselhos para Portugal faz
com que apressadamente o consideremos com ideias utópicas para o
tempo. A ideia de reformar o que não pode ser reformado revela o
extraordinário realismo deste autor. [...] Verney enfatiza os direitos
dos acusados de se defenderem [referindo-se às propostas do
oratoriano de reformas da Inquisição] e inventaria alguns pormenores
da vida dos tribunais e das prisões que poderiam garantir esse direito.
Estas ideias são simpáticas para nós. O que temos dificuldade de
compreender é a inclusão de categorias como as de “sangue impuro”,
“prova de sangue” e de “Judaísmo” no processo judicial. É verdade
que Verney é do seu tempo e a História ainda não tinha mostrado com
força suficiente o absurdo de tais categorias.45
O tom ensaístico do prefácio em questão aspecto é um ponto a ser levado em
conta em relação às conclusões que apresenta. Possivelmente, uma análise de fôlego
maior conduziria os autores a direções distintas dos apontamentos que fizeram, embora
deva-se admitir que não eram estes seus objetivos no texto. Contudo, o modo como o
Catolicismo é colocado como barreira para o progresso das ideias do iluminista Verney,
ao longo do texto, constitui um aspecto que quero explicitar. O que se pode observar,
nos trechos citados, são algumas análises problemáticas, possivelmente relacionadas aos
“reducionismos interpretativos”, apontados por Flávio Rey Carvalho e mencionados
supra. Elas são produto do fato de historiadores partirem dessa concepção negativa e
generalista de um Iluminismo católico, como “incompleto”, em relação a outro,
“secular”. Esse problema vê-se logo quando Ana Lúcia Curado e Manuel Curado
afirmam que Verney “é do seu tempo”, e que a História, até então, não havia mostrado
suficientemente os absurdos de categorias como “pureza de sangue” ou da existência da
Inquisição. É da ordem do óbvio que Verney é um homem de seu tempo. Entretanto, ao
não precisarem em que Verney seria do “seu tempo”, os autores acabam não se detendo
mais profundamente em contextualizar tópicas, tais como as de reformar, ao invés de
suprimir-se a Inquisição, a “questão judaica” ou a historicidade dos estatutos de pureza
de sangue. Elas são elementos presentes no universo mental no qual Verney viveu,
afetado fortemente pelo Catolicismo – não redutível somente a fé católica, mas
correspondendo a um campo bastante complexo de doutrinas, debates e ideias, dentre
outros elementos, que conformam diversas dinâmicas organizativas do mundo, indo da
política à vida social, à justiça etc. Pelo contrário, os autores acabam por deixar a
impressão de que, no pensamento do oratoriano, uma modernidade propriamente dita
45
Ibidem, p. 12
42
somente apareceria se ele rompesse com essa religião, que organizava mentalmente
grande parte de sua concepção de mundo. Concretizando essa ruptura, talvez, se
tornasse um homem “à frente de seu tempo”. Essa concepção está na base de uma ideia
de Ilustração católica, que exprime um certo “realismo” calcado na conciliação com a
dita religião e suas implicações na coletividade, contrariamente ao ímpeto
revolucionário e antirreligioso que estaria presente em outros contextos das Luzes.
É bastante comum que essa forma de entender o Iluminismo católico português
seja reproduzida, muitas vezes sem reflexão aprofundada a respeito, por historiadores
não especialistas no tema, discutindo outros assuntos relacionados a contextos do
Setecentos. Isso se explica, é claro, porque não são objetivos centrais de tais trabalhos.
Tal concepção aparece em importante obra de Sônia Siqueira, quando analisa o
Regimento de 1774, da Inquisição de Portugal. A autora caracteriza as Luzes de
Portugal como “típica de países católicos”, onde, a partir da segunda metade do século
XVIII, procurou-se “limitar o poder jurisdicional da Igreja, defender o espirito laico,
renovar a atitude científica”, dentre outros objetivos, mas que ao mesmo tempo
“pactuou com o Catolicismo – não apenas fé, mas principalmente visão de mundo – e se
expressou em um reformismo e pedagogismo”. Assim, nesse contexto de Luzes
católicas, nos quais se inseriram, segundo a autora, Portugal e a Inquisição, o
“Iluminismo português não foi revolucionário, nem anti-histórico, nem irreligioso. É a
Ilustração de compromissos, de meios-tons, de moderações, própria do mundo ibérico,
que se transmudou em reformas”.46 As “Luzes de meios tons”, católicas e reformistas,
que estiveram juntas com uma concepção sobre um Iluminismo português marcado por
conservadorismo, também aparecem no artigo de Anita Waingort Novinsky a respeito
da perseguição a Antônio de Morais e Silva e outros estudantes luso-brasileiros, em que
se ressalta o compromisso com as estruturas católicas, sobretudo a Inquisição e seus
aparelhos de intolerância religiosa institucionalizada.47
Caio César Boschi, ao analisar a formação das elites coloniais mineiras na
segunda metade do século XVIII, também contrapõe o Iluminismo católico português a
outro Iluminismo irreligioso além-pirenaico, o francês. Boschi observa que, na
Universidade de Coimbra, após a Reforma de 1772, houve uma busca maior pelas
46
SIQUEIRA, Sônia Aparecida. Introdução: A disciplina da vida colonial: os Regimentos da Inquisição.
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, a. 157, nº. 392, jul. / set. p. 497-572, 1996. p. 504.
47
NOVINSKY, Anita Waingort. Estudantes brasileiros “afrancesados” na Universidade de Coimbra. A
perseguição de Antônio de Morais e Silva. In: COGGIOLA, Osvaldo (org.). A Revolução Francesa e seu
impacto na América Latina. São Paulo: Edusp, 1990. p. 357-371.
43
ciências naturais e estudos mais utilitários e imediatistas, nas escolhas dos estudantes
mineiros que foram para a dita universidade, contrariamente à tendência observada até a
década de 1760, quando predominava a busca pelo saber livresco e humanista, bem
próprio da educação jesuítica. Ao destacar, nesse processo, o temor que havia no
período a respeito das “leituras perniciosas”, além de conversações e mesmo
conspirações ou sedições decorrentes de um “relaxamento disciplinar que campeava a
universidade beiroa”, relaciona as reformas da Universidade a um projeto maior
pombalino. Para o autor:
Na dimensão pombalina de que era imperioso modernizar o país, não
havia lugar para a permanência da rigidez e do formalismo
aristotélico-escolástico no sistema de ensino português. Assim, talvez
a maior contribuição que essa tendência renovadora tenha trazido para
os estudantes dos cursos superiores conimbrenses foi a de introduzir e,
principalmente, estimular neles o estudo das ciências experimentais,
sem prejuízo da manutenção – apesar de em plano secundário – das
ciências jurídicas e teológicas. [...]. Nenhuma contradição há nisso,
pois é sempre oportuno lembrar que o pombalismo não se
incompatibilizou com a Igreja, mas sim com uma ordem religiosa
específica. Na realidade, muitas das propostas pombalinas têm sua
origem e devem seu êxito à estreita colaboração por ele recebida de
personalidades do clero e de congregações religiosas, o que explica o
caráter cristão e católico de que, opostamente à francesa, se revestiu a
Ilustração Portuguesa. [itálico do autor]48
No caso, apesar de tal concepção aparecer como um mero detalhe no trabalho
que analisa trajetórias e a formação de elites coloniais em Coimbra anteriormente ao
movimento da Inconfidência Mineira, o caráter católico com o qual se revestiu, segundo
Boschi, o Iluminismo português, está contraposto a outro, exemplificado no caso
francês, em que não se observa uma relação semelhante com o Catolicismo. Ainda que
consiga demonstrar aquilo a que se propôs no artigo – no caso, a complexa relação entre
a formação das ditas elites e trajetórias de indivíduos formados em Coimbra no contexto
político e administrativo mineiro no último quartel do século XVIII –, está presente
neste trabalho de Boschi a dicotomia, a meu ver equivocada, entre Luzes católicas
portuguesas e seu suposto correspondente, predominantemente irreligioso, no Além
Pirineus, neste caso, na França.
A concepção de Luzes católicas como um fator que tenha limitado Portugal a
atingir uma modernidade, estando esta última presente noutros Iluminismos
representados como mais amplamente irreligiosos e anticlericais, coloca nessa
48
BOSCHI, Caio César. A Universidade de Coimbra e a formação intelectual das elites mineiras
coloniais. Estudos Históricos (Rio de Janeiro), v. 4, n. 7, p. 100–111, 1991. p. 107.
44
concepção uma enorme carga pejorativa. Como exemplifiquei nos trabalhos
mencionados acima, isso gera importantes problemas de análise, como anacronismos ou
uma descontextualização das ideias e práticas presentes nos contextos intelectuais
português e luso-brasileiro. No entanto, para se enfrentar essa possibilidade de erro, não
se pode colocar de lado as especificidades dos contornos de um contexto historicamente
católico, como o português e o luso-brasileiro. Os lugares da religião, numa perspectiva
mais geral, e do Catolicismo, mais especificamente, nas Luzes, precisam ser
devidamente contextualizados e problematizados, a fim de se evitar problemas de
generalizações apressadas, falsas contraposições e qualificações pejorativas, como
Flavio Rey de Carvalho, em trecho supracitado, nos adverte. Ao generalizar uma
suposta postura geral irreligiosa do Iluminismo e superdimensioná-la, o historiador
incorre em múltiplos problemas. Isso acontece ao se desconsiderar que a religião, suas
linguagens, crenças, práticas, querelas e debates, tanto quanto ou mais que a Filosofia e
a ciências, formaram parte significativa daquilo que chamamos de Iluminismo.
A carga pejorativa das “Luzes católicas”, como já foi dito, remete, em última
instância, a uma concepção de Iluminismo como sendo, de forma mais ou menos
radical, antirreligioso. Segundo o historiador das ideias Stephen J. Barnett, em obra
recente, até os anos 1970, a caracterização da Ilustração foi mais usualmente aquela
pautada pela oposição entre razão e religião. Desde que muitos historiadores e
pensadores de outras áreas preferiram a fórmula de razão contra a Igreja, ainda que as
fontes indicassem que grande ou talvez a maior parte dos pensadores do contexto do
Iluminismo ainda sustentassem alguma crença em Deus, a esse problema articulavam-se
aspectos como sua hostilidade à Igreja ou sua sistemática associação ao deísmo.49
Tratava-se, segundo Barnett, de uma busca, no Iluminismo, pela origem de valores
ocidentais ancorados no princípio da razão, tais como a tolerância, o saber científico ou
princípios de igualdade e liberdade, o que, apesar de não ser uma busca equivocada,
provocou, segundo o autor, diversas distorções. Tais historiadores, em grande parte,
estavam sob a influência de Peter Gay – que, no subtítulo de um de seus livros, registra
The rise of modern paganism50, apresentando o Iluminismo como um novo período de
culto à razão, com o qual ele chega a comparar a Europa, sobretudo a França, a uma
nova Atenas Clássica.51 Por isso, segundo Barnett, muitas vezes exageram, por
49
BARNETT, Stephen J. The Enlightenment and religion. Op. Cit. p. 2.
GAY, Peter. The Enlightenment: the rise of modern paganism. Op. Cit.
51
Ibidem, p. 11.
50
45
exemplo, na dimensão e nas proporções do deísmo e do ateísmo, aproximando-se, sem
se dar conta, da argumentação de refratários das Luzes, contemporâneos aos
philosophes dos séculos XVII e XVIII. Para o autor, os historiadores, ao fazê-lo,
incorreram com frequência no que ele chama de “mito do deísmo”, segundo o qual,
ainda que com inconsistências graves nas fontes, afirma-se ter havido uma espécie de
“deísmo subterrâneo”, que sobreviveu e se difundiu em meio a estruturas conservadoras
e religiosas, de forma ampla, em toda a Europa.52 Além disso, Barnett demonstra o
quanto problemático é uma oposição, no seu entendimento, artificial, entre razão e
religião, aplicada ao contexto iluminista. Recorrendo ao método contextualista de
análise de História das Ideias,53 exemplifica, com vários autores e contextos da
Ilustração, o quanto é equivocado se retirar as ideias de um autor das Luzes de uma
dinâmica de debates, da qual participam, de forma ativa, as discussões sectárias,
dogmáticas e teológicas de várias Igrejas, correntes ou instituições religiosas. Ao se
analisarem, por exemplo, as teses de John Locke, sem observá-las dentro da dinâmica
em que elas se inserem, na qual debates com as ideias de sermonistas e teólogos
protestantes do final do século XVII tiveram grande importância, perde-se uma grande
parte dos contextos de produção, interlocução e circulação da ideias do pensador
britânico, privilegiando-se uma perspectiva que se restringe à procura da influência de
autor sobre autor do Iluminismo; o mesmo problema se verificaria se, ao se estudarem
pensadores católicos das Luzes na Itália, não se considerassem querelas teológicas,
como a dos Jansenistas contra os Regalistas.54
Contrapondo-se a essas distorções analíticas, Stephen J. Barnett propõe uma
reavaliação do lugar da religião nos estudos sobre o Iluminismo, destacando aí o
problema da tolerância religiosa. Segundo o autor, o enfoque exacerbado nos
argumentos dos philosophes induz a pelo menos dois tipos de erro. O primeiro está na
pouca contextualização que eles recebem, estudados por si mesmos e, muitas vezes, a
partir de concepções apriorísticas de tolerância. Dessa maneira, aspectos como a postura
anti-huguenote, que aparece claramente em alguns escritos de Voltaire, são tratados
mais como “incoerências” ou “incompletudes” do que como ideias perfeitamente
plausíveis do pensador, no seu contexto de enunciação. A análise desses “heróis” do
Iluminismo, a partir dessa perspectiva, desconsidera a complexidade e a
52
BARNETT, Stephen J. The Enlightenment and religion. Op. Cit. p. 11-12.
C.f. SKINNER, Quentin. Meaning and Understanding in the History of Ideas. Op. Cit.
54
BARNETT, Stephen J. The Enlightenment and religion. Op. Cit.p.48-49 e 168-171.
53
46
multidimensionalidade das interações entre política, religião, classe social, além da
própria limitação das fontes.55 O segundo erro, que anda em conjunto com o primeiro,
está em simplesmente se desconsiderar o desenvolvimento de valores como a tolerância
religiosa fora da république des lettres. Com isso, o resultado é dimensionar de forma
exagerada a influência de pensadores ou, no outro extremo, desconsiderar a experiência
concreta de diversos outros agentes na sociedade. Barnett exemplifica essa questão
apontando a influência, percebida e estudada pela historiografia, que as experiências
com as guerras de religião dos séculos XVI e XVII tiveram na formulação de políticas
de tolerância religiosa. Segundo ele, elas foram muito mais fortemente perceptíveis do
que as ideias dos grandes pensadores.56 Embora haja algumas ponderações a serem
feitas sobre o trabalho de Stephen J. Barnett, como, por exemplo, a referente à sua
concepção de esfera pública e à relação desta com o contexto das Luzes, sua aplicação
do método contextualista para analisar o lugar da religião no Iluminismo é importante
para se repensar, como um todo, as “Luzes Católicas”. Afinal, sua crítica metodológica
à forma de concepção do Iluminismo, muitas vezes encontrada na historiografia, que
opõe razão à religião, está no cerne da conotação pejorativa do termo.
Uma análise sobre a Ilustração em contextos como os ibéricos perde muito em
qualidade ao não considerar que os debates e ideias iluministas se dão dentro de um
contexto católico e que, dessa maneira, não podem ser vistos sem se colocar em
perspectiva a multiplicidade de interações entre o Catolicismo, suas discussões internas
e sectárias, e toda uma gama de concepções de política e sociedade, presentes no
contexto das monarquias ibéricas a partir de meados do século XVIII, mas com raízes
anteriores. Considerando todas essas possibilidades, torna-se possível fazer uma
contextualização mais ampla das ideias dos ilustrados portugueses. Assim, entendo as
Luzes Católicas mais como sendo um contorno específico que os debates das Luzes
adquiriram em países como Portugal, Espanha e suas colônias, bem como na Itália. Essa
especificidade oferece elementos e problemas distintos de contextos como os da
Alemanha ou da França. Em síntese, cumpre contextualizar as ideias dos autores, sem se
perder a dimensão de que problemas e diálogos de ideias perpassam limites presentes
nos respectivos contextos religiosos e dinâmicas locais.
Ulrich L. Lehner, em artigo cujo objetivo foi explicar o que é o “Iluminismo
Católico”, conforme o que indica a historiografia e sua análise de autores católicos do
55
56
Ibidem, p. 217.
Ibidem, p. 218.
47
contexto das Luzes, afirma que a expressão é usada, em seus trabalhos, como um
conceito heurístico. Ele descreve um fenômeno diverso, que tomou os intelectuais
católicos de meados do século XVIII até o início do século XIX, e que combinou várias
vertentes de pensamento e uma variedade de projetos, que foram implementados com
intuito de reformar o Catolicismo. Esta sua definição, no entanto, não implica uma
uniformidade interna nesse “movimento ou processo intelectual” e reconhece
plenamente “que o Iluminismo Católico foi expresso de diferentes maneiras durante
períodos e contextos distintos, e que, também, havia alguns indivíduos radicais que não
se encaixavam na categoria de reformadores”, dentro desse universo de pensadores
católicos das Luzes. Como um movimento de reforma eclesiástica, o Iluminismo
católico foi uma tentativa apologética de defender os dogmas essenciais do cristianismo
católico pela explicação de sua racionalidade, segundo a terminologia corrente na maior
parte do século XVIII, e também pela reconciliação do Catolicismo com a cultura
moderna (por exemplo, através da aceitação de novas teorias econômicas, científicas e
de pensamento jurídico). O Iluminismo Católico, conclui Lehner, estava em diálogo
com a cultura contemporânea, não somente pelo desenvolvimento de uma nova
aproximação hermenêutica com o Concílio de Trento ou com as ideias jansenistas, mas
também pela implementação de alguns dos valores globais do processo do Iluminismo
europeu nas vertentes do pensamento católico. Tais vertentes tentaram “renovar” e
“reformar” a sociedade como um todo, e assim, conclui, merecem “verdadeiramente o
rótulo de Iluminismo”.57
João Adolfo Hansen questiona os problemas analíticos de se pensar o
Iluminismo por definições totalizantes, a exemplo de “‘iluminismo’ como pensamento
leigo e anticlerical, ateu ou agnóstico”, entendimento que levaria a concluir que
expressões como Iluminismo católico ou Ilustração católica seriam incongruentes.
Segundo o autor, torna-se problemático analisar o Iluminismo a partir de definições
apriorísticas, dedutivas e fechadas, “supondo um sentido único para a história [da
Ilustração] que já estivesse sendo realizado então em lugares ‘modernos”, como a
França”, em contraposição a “lugares supostamente atrasados, como Portugal, onde as
ideias iluministas não teriam lugar”.58 A partir dessas considerações e de uma análise
historiográfica e teórica a respeito das Luzes em Portugal e na América portuguesa
LEHNER, Ulrich L. What is “Catholic Enlightenment”? History Compass, v. 8, n. 2, p. 166–178, 2010.
p. 166-167.
58
HANSEN, João Adolfo. Ilustração católica, pastoral árcade & civilização. Oficina da Inconfidência,
Ouro Preto, v. 4, n. 3, p. 11-47, dez. 2004. p.14-15.
57
48
colonial, o autor define o Iluminismo católico português, usual para se referir ao tempo
das reformas pombalinas, como sendo um contexto de
[...] coexistência de práticas e princípios excludentes e mesmo
contraditórios, como inovação e tradicionalismo, ateísmo e religião,
empirismo e escolástica, liberdade democrática e subordinação
absolutista, sugerindo a impossibilidade de definir unitariamente a
cultura luso-brasileira de então ou de estudá-la como totalidade prévia
positivamente dada.59
A análise de Hansen, a partir daí, aproxima-se parcialmente da de Lehner, ao se
pensar, no geral, um Iluminismo católico marcado pela óbvia permanência do próprio
Catolicismo, além de princípios políticos e ideológicos que lhes eram internos, dentro
de um processo de modernização. Assim, numa abordagem específica sobre o contexto
luso-brasileiro, ao analisar a produção dos poetas árcades da segunda metade do século
XVIII, Hansen observa essas aparentes contradições nas permanências de uma política
católica, existente desde o século XVI, com a modernização, projetada pelo escol
pombalino, que estabeleceu contornos específicos para todo aquele contexto intelectual.
O autor observa esses contornos, por exemplo, na obra de Tomás Antônio Gonzaga, que
valoriza o meio termo entre o plebeísmo e o hermetismo, afastando-se de ambos para se
parecer ao leitor com uma linguagem elegante, terna, clara, fácil e urbana. Com isso,
figurou os ideais civis e civilizatórios da Ilustração católica portuguesa, marcada, de um
lado, por um pedagogismo e dirigismo cultural de um discurso “oficial” hegemônico e
modernizador da Coroa e, de outro, pela reafirmação de hierarquias e princípios
vincados na tradição católica.60
Já a concepção de Iluminismo Católico adotada por Lehner é bem distinta da
criticada por Flávio Rey de Carvalho, por não se contrapor a um tipo-ideal secularizado
de Iluminismo e, assim, adquirir carga pejorativa. Na verdade, ela contribui para se
pensar um modelo explicativo a respeito do desenvolvimento do Ilustração dentro de
um universo católico, levando-se em conta os contextos de enunciação dos autores
católicos das Luzes. Criticando Jonathan I. Israel, Lehner questiona a concepção por
aquele defendida de que um Iluminismo Católico possa ser visto somente como uma
forma de “anti-Iluminismo”, ou ainda como apenas uma “Ilustração moderada”. No seu
entendimento, trata-se de uma dinâmica de desenvolvimento de um contexto intelectual
que seria simplificada em demasia se resumida a uma mera refração de vertentes mais
59
Ibidem, p. 14.
HANSEN, João Adolfo. As Liras de Gonzaga: entre retórica e valor de troca. Via Atlântica, v. 1, p. 40–
53, 1997.
60
49
radicais das Luzes. Dessa maneira, o autor concorda com Stephen J. Barnett, ao
entender que, para se analisar adequadamente o Iluminismo católico, deve-se levar em
consideração não somente o diálogo de pensadores católicos das Luzes com vertentes
mais “globais” do Iluminismo, mas, sobretudo, as posições e os debates desses
ilustrados no interior de um contexto intelectual católico. Nesse contexto, entre o final
do século XVII e XVIII, havia, por exemplo, acirrados debates e disputas entre diversos
pensadores e publicações em torno de temas, tais como o Jansenismo, o Febronismo ou
o antijesuitismo, bem como a relação dos cleros nacionais com Roma. A isso, se soma o
fato de muitos desses debates se darem dentro de uma dinâmica, importante de ser
considerada, existente entre as diversas ordens dos cleros secular e regular e destes, por
sua vez, com as Coroas. Reduzindo tais características e realidades internas dos
contextos católicos a resistências e desvios, pura e simplesmente, do ideário “universal”
das Luzes, uma contextualização mais ampla e substantiva do Iluminismo católico em
sua realidade histórica é fortemente prejudicada.61
De maneira distinta dos autores supracitados, Cândido dos Santos parte de
estudos clássicos sobre o josefismo de meados do século XVIII para elaborar sua
discussão acerca do Iluminismo católico. Segundo ele, o josefismo foi um “movimento
de renovação” marcado “pela renovação da liturgia, pelo abandono de formas populares
de devoção, pelo sentido histórico” e “pelo gosto da história eclesiástica, pela oposição
ao escolasticismo,” bem como “pela austeridade moral e recusa do probabilismo, pela
predileção das línguas vulgares, pela crítica do estilo barroco de pregação”, dentre
outras características. A partir dessa compreensão, o autor levanta a hipótese de ter
havido algo similar no contexto intelectual português do mesmo período. Esses aspectos
do josefismo, segundo o autor, são vistos nos argumentos de pensadores das Luzes
portuguesas, tais como Antônio Pereira de Figueiredo, frei Manuel do Cenáculo, d.
61
É importante frisar que a crítica de Ulrich L. Lehner à abordagem de Jonathan I. Israel sobre o
Iluminismo católico parte de um aspecto comum nos trabalhos de ambos. Para criticar a concepção de
uma Ilustração católica, que subjaz à tese central de um “Iluminismo Radical” de Jonathan I. Israel (para
quem a expressão corresponderia às correntes mais moderadas), Lehner acaba indicando haver debates,
do que ele chama de Iluminismo Católico, anteriores a seu recorte temporal, que se inicia no século
XVIII. Israel, que ele critica – a meu ver, corretamente, nesse ponto –, indica que essas vertentes católicas
já existiriam no final do século XVII, mesmo século em que Lehner identifica, por exemplo, as raízes do
antijesuitismo, aspecto fundamental de sua forma de conceber os desenvolvimentos da Ilustração nos
países católicos. De certa maneira, assim, a crítica de Lehner se vale do próprio alargamento das balizas
temporais das Luzes, central à análise histórica de Israel. Algumas dessas questões serão retomadas mais
à frente, já que o intuito aqui não e detalhá-las, e sim construir um modelo de explicação sobre Luzes e
sua relação com o Catolicismo, a fim de discutir mais a fundo as Luzes portuguesas e luso-brasileiras.
LEHNER, Ulrich L. What is “Catholic Enlightenment”? Op. Cit. p. 167; ISRAEL, Jonathan I. Iluminismo
Radical: a filosofia e a construção da modernidade (1650-1750). Trad. Claudio Blanc. São Paulo: Editora
Masdras, 2009.
50
Gaspar de Bragança, dentre outros. Tais pensadores, segundo ele, formaram uma
“república das letras” em Portugal a partir de meados do século XVIII. Com grande
apelo para uma ampla reforma do pensamento, objetivavam libertar Portugal de um
atraso, por eles percebido em relação às nações do Além Pirineus. A esse movimento
em Portugal, o autor chama de Iluminismo Católico.
Assim, alguns aspectos deste movimento – regalista em política,
jansenista em moral, progressista na cultura, anti-Aristóteles e antiescolástica – estão presentes em Portugal. Regalista, jansenista e
progressista. Não, porém, antirreligioso, como na França. É, talvez,
anticlerical. Com certeza, anti-jesuíta. Como quase todas as Ordens
religiosas e uma parte dos bispos portugueses.62
Esse Iluminismo Católico, em Portugal, ainda de acordo com Cândido dos
Santos, articulou um ímpeto reformista, tocante à sociedade e à religião, com a
construção de um ideal religioso que se distingue tanto da irreligião, identificada por
esses pensadores católicos em vertentes diversas do Iluminismo, quanto de uma
religiosidade extremamente exteriorizada, identificada com o barroco e personificada na
ação da Companhia de Jesus, vista como contaminada por fanatismo e superstição.
De forma similar à caracterização feita do Iluminismo Católico por Ulrich L.
Lehner, Cândido dos Santos aponta para um desenvolvimento particular do que
aconteceu em Portugal, sobretudo a partir das reformas pombalinas. Em Portugal, um
ideal de Catolicismo modernizado norteou o ímpeto reformista tocante a toda a vida
pública. A isso, o autor soma a percepção de que essas reformas seriam feitas por e a
partir das ideias dessa república das letras católica, à qual se somava a ambição de
superar-se um presumido atraso. Cândido dos Santos ainda indica haver três grandes
matrizes nesse desenvolvimento da cultura letrada no contexto das Luzes, em Portugal e
nos demais reinos católicos: uma, flamenga e alemã, cujo grande centro era a
Universidade de Louvain, donde saíram pensadores como Zeger Bernard Van Espen,
bastante lido por Antônio Pereira de Figueiredo; outra, francesa, da qual destaca a
circulação de ideias de autores como Claude Fleury entre a intelectualidade católica
portuguesa; e, por fim, a italiana, da qual destaca a obra de Antônio Genovese, que
influenciou fortemente a obra de Luís Antônio Verney.63
62
SANTOS, Cândido dos. Matrizes Do Iluminismo Católico da Época Pombalina. In. RIBEIRO DA
SILVA, Francisco, CRUZ, Maria Antonieta. RIBEIRO, J. Martins, OSSWALD, Helena (org.). Estudos
em Homenagem a Luís Antônio de Oliveira Ramos. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto,
2004, p. 949–956, 2004. Vol. 3. p. 952.
63
Ibidem, p. 953-956.
51
A apresentação, apenas panorâmica, feita por Cândido Santos, a respeito de
matrizes de um Iluminismo Católico português, e as discussões feitas por Barnett e
Lehner indicam algumas possibilidades para se analisar a Ilustração portuguesa,
sobretudo levando em consideração o lugar do Catolicismo em seu interior. Por um
lado, deve-se evitar a generalização e a conotação pejorativa, muitas vezes presente em
uma concepção específica de “Luzes católicas” e ancorada na oposição entre razão e
religião, em que à segunda confere-se uma espécie de “contaminação” de um processo
marcadamente secular, que seria o Iluminismo. Por sua vez, evitar o caráter pejorativo
também implica (re) pensar o lugar da religião no contexto das Luzes portuguesas,
sobretudo, o Catolicismo e suas diversas querelas e debates internos. A partir disso,
podemos considerar, aqui, a hipótese de que, na Ilustração portuguesa e nos seus
desdobramentos no espaço luso-brasileiro, a república das letras, formada por uma
sociabilidade católica mais ou menos próxima à Coroa e por parte dos críticos mais
radicais do status quo cristão católico no período, os chamados libertinos, tenha feito
parte de um complexo e multifacetado campo de disputas de legitimidade no plano
religioso, com diversas colorações políticas.
1.5 A Ilustração e as novas abordagens historiográficas
Até aqui, examinei alguns problemas resultantes de modelos explicativos sobre o
Iluminismo que, por serem um tanto excludentes na sua constituição, calcados em
realidades específicas, trazem em si, ao mesmo tempo, pretensões generalizantes a partir
da exclusão de outras realidades. De maneiras distintas, eles afetam negativamente os
estudos sobre os casos das Luzes portuguesas e luso-brasileiras e, num âmbito mais
geral, sobre o lugar da religião nos estudos sobre as Luzes. A suposta homogeneidade
da Ilustração, concebida como uma espécie de construção artificial de intelectuais para
intelectuais, recorrendo à já citada crítica de Emília Viotti da Costa, no geral, conduz a
uma série de conclusões bastante estreitas sobre a geografia e cronologia das Luzes,
identificadas com a França e o século XVIII respectivamente e, em alguma medida,
com espaços e contextos circunscritos nas historiografias nacionais. Esses modelos
tendem a circunscrever questões como a secularização, a tolerância religiosa e o próprio
lugar do religioso nas Luzes – aqui, reiterando parte das críticas de Stephen J. Barnett, a
despeito de toda a complexidade dos debates e disputas em torno do religioso – dentro
de balizas de um “paganismo moderno”, na terminologia de Peter Gay. Nesse
52
“paganismo moderno”, vê-se um Iluminismo concebido como deísta ou ateísta e
contendo um processo contínuo de secularização. Por conseguinte, o que se desvia de
tais traços seria descartado ou teria alguma marca pejorativa. A possibilidade de se
generalizar tal forma de explicar a religião no contexto das Luzes, em si, constitui um
problema. Assim, diante das dificuldades em se estudar os diversos contextos europeus
e não europeus das Luzes a partir do emprego desses modelos, tornou-se necessária a
sua revisão.
Uma crítica importante, que marcou fortemente a historiografia sobre a
Ilustração e que impactou críticas posteriores e reelaborações de seus recortes
geográfico e temporal, tornando-os mais abrangentes de forma a abarcar os diversos
contextos culturais que compuseram as Luzes, foi feita pelo historiador italiano Franco
Venturi, em Utopia e Reforma no Iluminismo (1971). A obra é marcada, conforme
assinala Modesto Florenzano, seu tradutor para a língua portuguesa, por uma dupla
abordagem do Iluminismo, envolvendo, de um lado, seu sentido cosmopolita e, de
outro, sua contrapartida, o “patriotismo”. Com este último termo, entendem-se os
conjuntos de elementos locais, nacionais e transnacionais, bem como as particularidades
dos múltiplos contextos culturais, cada qual a seu modo, participante do mundo das
Luzes.64 Destaco dois pontos centrais de sua tese, muito importantes para a consecução
de um dos objetivos aqui propostos, qual seja, o de se pensar o contexto de Portugal e
da América portuguesa no Iluminismo.
O primeiro ponto é o argumento central de seu segundo capítulo, “Os
republicanos ingleses”, segundo o qual o que desencadeou a Ilustração foi um conjunto
de ideias nascidas na Inglaterra, no contexto da Revolução Inglesa. Segundo Venturi, a
cosmopolitização de valores políticos da commonwealth, no conjunto da formação de
uma matriz inglesa de um republicanismo da Idade Moderna, esteve na gênese da
difusão de debates iluministas por toda a Europa. O que se convencionou chamar de
“republicanismo inglês”, conforme explica Alberto R. G. Barros, refere-se a um
conjunto bastante amplo de ideias relacionadas aos valores e princípios republicanos,
defendidos por publicistas e pensadores ingleses, entre os séculos XVI e XVII. Eles,
segundo o autor, manifestaram-se de forma mais clara nas primeiras décadas do século
XVII, no interior dos movimentos de protesto contra a dinastia dos Stuarts e, de modo
ainda mais evidente, no desenrolar das guerras civis entre 1642 e 1651. Ainda que,
64
FLORENZANO, Modesto. Apresentação. In: VENTURI, Franco. Utopia e Reforma no Iluminismo
[1971]. Trad. Modesto Florenzano. Bauru, SP. EDUSC. 2003. p. 7-26. p. 17-18.
53
como projeto político, o republicanismo inglês tenha fracassado com a restauração da
monarquia em 1660, Barros conclui que, como linguagem política, foi recebido na
Europa continental e fora do Velho Continente, por meio de pensadores como John
Toland, John Locke, John Milton e Algernon Sidney. Dessa maneira, os princípios que
os republicanos ingleses defenderam, como a crítica à tirania, a defesa de formas
participativas de se governar para o bem comum, a tolerância civil e o direito de
resistência foram amplamente discutidos e apropriados, por exemplo, nas revoluções
dos Estados Unidos e no estabelecimento da República Francesa.65
Elementos da linguagem política dos levellers, formados e radicalizados na
resistência contra os Stuarts e na Guerra Civil inglesa, foram difundidos no contexto
inglês, sobretudo por meio de panfletos. Nessas publicações, questões como a exaltação
da liberdade e do livre pensamento, da tolerância religiosa, além de aspectos do que
viria a ser o deísmo e o panteísmo ingleses, segundo Venturi, espalharam-se pela
Europa entre o último quartel do século XVII e a primeira metade do XVIII. Isso se deu
por meios como a francomaçonaria, os cafés, as academias de ciências, as universidades
ou mesmo dos diversos contatos de publicistas ingleses e de outras partes da GrãBretanha com pensadores de França, Alemanha, Itália e de outras regiões. O autor ainda
afirma que, apesar de haver vários estudos que tentam aproximar a revolução puritana
de movimentos coevos, como as várias revoltas ocorridas no continente europeu em
meados do século XVII, a Revolução Inglesa “não suscitou uma onda ideológica que
acompanha outras e posteriores revoluções europeias”, mas “as ideias dos levellers
foram certamente conhecidas”, sendo difundidas “na forma filosófica que lhe foi dada
por John Toland e Anthony Collins” (no caso, quando se apresentaram como deísmo,
como panteísmo, como livre pensamento, como exaltação da liberdade inglesa, até
mesmo como maçonaria). Conclui Venturi que:
Somente assim as ideias dos levellers e dos republicanos clássicos da
Inglaterra do século XVII tornaram-se cosmopolitas e puderam se
enraizar na França, na Alemanha, na Itália, agindo como um poderoso
fermento sobre toda a Europa do nascente Iluminismo. “La religion” e
“le gouvernement”, como dizia Diderot. Os dois termos eram para ele
inseparáveis. A polêmica filosófica e política não podiam nem deviam
ser divididas. Entre um e outro desses dois polos estava também o
pensamento deísta inglês, a primeira ideologia que da Grã-Bretanha
saiu para dominar o continente.66
65
BARROS, Alberto R. G. A matriz inglesa. In: Matrizes do republicanismo. BIGNOTO, Newton (org.).
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013. p. 127-174.
66
VENTURI, Franco. Utopia e Reforma no Iluminismo [1971]. Trad. Modesto Florenzano. Bauru, SP.
EDUSC, 2003. p. 104-105.
54
Venturi demonstra essa tese analisando os vários diálogos de autores ingleses,
como os mencionados Collins e Toland, em diversos lugares da Europa, onde, de
acordo com sua análise, formaram-se diversos núcleos de irradiação de debates críticos
à religião e à política, mais ou menos tributários das linguagens presentes na defesa dos
mencionados valores difundidos no discurso político do processo da Revolução inglesa.
A exaltação da liberdade de pensamento, da tolerância religiosa e do equilíbrio entre
poderes como forma de garantir a liberdade e combater as tiranias – tema que norteou
grande parte dos debates sobre a constituição inglesa e sua monarquia constitucional ao
longo de todo o século XVIII – foram, assim, difundidos e sedimentados nos vários
contextos do pensamento europeu do Setecentos.67 Apesar de alguns problemas nessa
concepção, que retomo mais à frente, trata-se de uma ideia distinta do modelo
tradicional da Inglaterra como precursora das Luzes por meio das ideias de John Locke,
uma vez que, no centro dessa análise de Venturi, estão valores político-religiosos
formados entre os levellers e difundidos na sua forma filosófica a partir de diversos
lugares e sociabilidades, não apenas na influência de autores sobre outros. Trata-se de
uma leitura sobre o contexto das Luzes que as toma como mais multifacetadas e
diversas em relação às sínteses discutidas no primeiro subtítulo deste capítulo.
Bernard Bailyn, em obra clássica que, apesar de não abordar propriamente a
origem do Iluminismo, é importante à discussão aqui proposta no que defende haver
uma ligação entre a mesma literatura panfletária supracitada e ações políticas que
desencadearam os processos que culminaram na Independência dos Estados Unidos, em
1776. Essa conexão, conforme o autor, se encontra na linguagem política que surgiu
com os levellers, remetendo, novamente, a panfletos da Revolução Inglesa. Ela formouse ao longo de uma “guerra literária” contra as diversas formas de opressão atribuídas,
sobretudo, à dinastia dos Stuart (1603-1714), e que isso perpassou tanto as camadas
letradas da população, como as médias. Com isso, se influenciou, de alguma maneira, o
curso das decisões políticas tomadas e formou-se um ideário que foi relido e revisitado
pelos revolucionários estadunidenses entre as décadas de 1760 e 1770. Ainda que de
maneira indireta, o autor constrói uma perspectiva de Iluminismo em que linguagens
políticas se constituíram na articulação entre as ideias dos philosophes, como
Montesquieu e Voltaire, com tradições anteriores. Nesse processo, memória, valores
67
C.f. Ibidem, p. 99-138.
55
políticos, religiosos e culturais, enraizados nas várias camadas da sociedade, e uma
herança do vocabulário republicano da Revolução inglesa conjugaram-se.68
Um segundo ponto a se destacar é a relação que Franco Venturi observou e
analisou entre as conjunturas econômicas, mais ou menos gerais na Europa, e as
Reformas políticas e sociais no Setecentos. Aqui, Venturi partiu da análise de CamilleErnest Labrousse sobre a economia francesa do século XVIII, em obra publicada no
início da década de 1930. Nela, Labrousse faz uma análise serial de dados sobre preços
de alimentos e manufaturas, rendimentos (incluindo o aumento inflacionário das rendas
de terras), além de análises quantitativas sobre atrasos salariais ao longo do século e
uma outra, mais qualitativa, sobre conflitos de classe no período pré-revolucionário. A
partir daí, traça um panorama geral sobre a economia francesa no século XVIII,
concluindo que houve um quadro de crescimento no primeiro quartel do século,
sucedido por uma depressão após a década de 1730, havendo depois uma retomada na
década de 1740, seguida de uma expansão que durou até, aproximadamente, a década de
1770. Segundo o autor, depois dessa última expansão, seguiu-se um período de altas e
baixas até a Revolução de 1789.69 Com sua análise sobre as variações de preço, rendas e
de outros elementos que atestam crescimento ou depressões econômicas no século
XVIII, Labrousse chega às “curvas da economia” francesa. Venturi, por sua vez,
propõe-se a discutir se tais considerações do referido historiador francês aplicam-se ao
restante do continente europeu e, em caso afirmativo, em que medida o são. Venturi
considera que, ao menos em linhas gerais, o quadro francês pode ser aplicado ao
restante da Europa, com alguns limites. No período das Luzes, a percepção da realidade
econômica serve como um elemento comum entre os diversos contextos locais e
relaciona-se com as diversas ideias que surgiram no período, no sentido de se reformar
as sociedades, instituições e Estados.
A partir daí, Venturi apresenta diversos autores do período cujas produções
visaram principalmente à resolução de problemas da vida pública, tais como os que se
relacionavam ao quadro econômico, não somente da França, mas também da Península
Ibérica, Itália, Europa Central, dentre outros espaços. Assim, por mais que as obras
divirjam muito entre si, ao discutirem problemas concretos das realidades específicas
dos diversos países onde foram produzidas, há algo em comum que as liga, que as
68
C.F. BAILYN, Bernard. As origens ideológicas da Revolução Americana [1967]. Trad. Cleide
Rapucci. Bauru: EDUSC, 2003. Edição ampliada. p. 23-68.
69
LABROUSSE, Camille-Ernest. Esquisse du mouvement des prix et des revenus en France au XVIIIe
siècle. 2 vols. Paris: Dalloz, 1932.
56
entrelaça com uma situação geral, que é o quadro econômico europeu.70 É nesse
contexto que surgiu a Encyclopédie, entre o final da década de 1740 e a de 1750 – e ela
tem uma importância central na concepção de Venturi sobre o Iluminismo. Isso porque,
conforme explica o autor, o ambiente intelectual formado em torno dela e a sua
circulação na Europa serviram para espalhar ideias iluministas em todo o continente,
com um sucesso bem maior do que o dos panfletos ou polêmicas sobre a religião ou
política. Isso se deve ao fato de que a divulgação das artes e das ciências feita pela
Encyclopédie auxiliou na difusão de uma linguagem comum para se pensar os
problemas concretos a partir de noções secularizadas de felicidade, utilidade, bem
comum, dentre outras, apropriadas e pensadas nos diversos contextos europeus, em uma
República das Letras cosmopolita e transnacional que ali se formava e se consolidava.
Criaram-se, assim, as condições para o que ele chamou de uma “Primavera das Luzes”,
contexto em que os filósofos formaram uma espécie de “partido” autônomo, cujo ideal
era o de assumir a dianteira nas mudanças sociais. O “despotismo esclarecido”, as
academias de ciências espalhadas pela Europa e nas colônias das Américas, bem como
as lojas maçônicas e universidades foram, segundo Venturi, espaços da formação de
uma opinião pública ilustrada, que abalou as estruturas do Antigo Regime entre o início
da segunda metade do século XVIII e a Revolução de 1789. Paradoxalmente, dessa
“Primavera das Luzes”, estava excluída a Inglaterra, berço dos valores que, pela sua
concepção, estavam no cerne do nascimento e da difusão do Iluminismo. O motivo
disso é que, embora o Venturi ressalte a importância de alguns autores como Samuel
Richardson e Thomas Paine, não se formou em terras inglesas um “partido dos
filósofos”, entendido aqui como pensadores (filósofos ou não) engajados em ações e
mudanças concretas na sociedade, a exemplo do que se formou na França ou em
Portugal, Espanha, Rússia e Áustria, com o “despotismo ilustrado”. Digo
paradoxalmente por se considerar que, segundo a tese de Venturi, o “não engajamento”
dos pensadores ingleses nesse período se deveu ao fato de a Revolução Inglesa já ter
acontecido no final do século XVII. No caso inglês, a monarquia constitucional
estabelecida com a Revolução, conclui o autor, revestiu de maneira bastante diversa a
natureza das disputas sobre valores como liberdade, igualdade e tolerância, em
comparação com as linhas gerais observáveis na Europa continental.71
70
71
VENTURI, Franco. Utopia e Reforma no Iluminismo. Op. Cit. p. 221-222.
Ibidem, p. 226-246.
57
Destaco esses dois pontos da tese de Franco Venturi por notar neles,
primeiramente, uma abordagem, por um lado, dupla, do geral e do particular e, por
outro, que não coloca as diferentes realidades em nenhuma escala hierárquica. As
Luzes, dessa maneira, são concebidas como um movimento de se pensar problemas,
gerais e locais, com linguagens cosmopolitas que as articulam. Assim, o Iluminismo não
está restrito às narrativas das historiografias nacionais, e os debates iluministas,
observados na sua dimensão prática e utilitária, articulam-se com preocupações mais
universalizantes, que não se excluem mutuamente, mas se completam. Embora seja uma
abordagem, ainda, bastante centralizada na figura dos filósofos, Venturi apresenta uma
leitura extremamente sofisticada sobre a diversidade interna do Iluminismo e, até
mesmo, uma fluidez em relação às balizas cronológicas e geográficas tradicionais.
Apesar de a gênese da Ilustração, da forma como a analisa, estar na linguagem política
dos levellers, sua concepção não está ancorada na ideia de haver um centro de
irradiação de um ideário específico: pelo contrário, ainda que identificasse um lugar e
um contexto em que valores fundamentais dos debates iluministas tomaram forma, a
maneira como eles se difundiram num primeiro momento e, num segundo, foram
apropriados e reformulados, dando forma a debates e projetos políticos, sociais e
religiosos,
é
diversa
e
multifocalizada.
Enciclopedistas,
libertinos,
déspotas
esclarecidos, iluministas católicos ou protestantes, maçons e muitos outros agentes,
dessa maneira, fazem parte de um contexto em que as disputas, de natureza universalista
e cosmopolita, sobre valores, tais como a liberdade e a tolerância, articulam-se com
questões que remetem a realidades particulares e mais estritas.
É importante ressaltar que as críticas de Franco Venturi foram marcantes para a
historiografia do Iluminismo. Mas, posteriormente, outras gerações de trabalhos
contribuíram para críticas aos modelos explicativos tradicionais sobre o contexto das
Luzes, sobretudo a respeito de suas balizas temporais e cronológicas. A partir da década
de 1970, nesse sentido, houve uma importante revisão historiográfica sobre o contexto
das Luzes, advinda sobretudo das historiografias estadunidense e britânica. Dentre as
diversas publicações, destaca-se a obra de Dorinda Outram. Segundo a autora, foi
justamente a partir da mencionada década que historiadores se dedicaram mais
fortemente ao estudo social das ideias, procurando descobrir a maneira como elas e os
conhecimentos surgidos no contexto da Ilustração foram difundidos, acolhidos,
ressignificados e apropriados na sociedade, tendo em vista seu impacto nas várias
regiões do globo, assim como nas várias camadas sociais. Em um de seus trabalhos
58
mais conhecidos, a historiadora sustenta que as discussões em torno do significado do
termo Iluminismo, iniciadas no século XVIII nas obras de Mendelssohn e Kant,
permanecem até hoje sem esmorecimento. Nesses autores contemporâneos ao contexto
das Luzes, diferentemente do que aconteceu em algumas sínteses do século XX, o
significado do termo associou-se mais fortemente à ideia de “processo” do que à de
“projeto acabado”. Assim, ao invés de pensar o Iluminismo como finalizado – ideia
dificilmente sustentável, vista a enormidade de contradições e de incongruências
existentes entre todos os agentes envolvidos nesse contexto intelectual –, a autora
propõe-se a pensá-lo como uma “série de problemas e debates, revestido sob formas e
aspectos particulares, conforme os diferentes contextos nacional e cultural”. Isso
tornaria a imagem do contexto das Luzes mais complexa, “pois suas ideias não seriam
mais mapeadas de cima, por um olhar distante, mas consideradas como encravadas nas
sociedades, emolduradas por elas”. Assim, o Iluminismo não seria apenas um conceito
que fracassou na tentativa de englobar várias realidades complexas e contraditórias
entre si, mas “como uma cápsula contendo conjuntos de debates, tensões e
preocupações”.72
Robert Darnton também apontou uma multiplicidade de núcleos de difusão do
Iluminismo. Segundo o autor, foi em Paris, a partir de salões, academias e teatros, que o
philosophe se definiu como “tipo social”, ganhando um público amplo dentro de classes
médias letradas. Seus debates, críticos ao poder e à religião, foram marcados não pela
coesão de ideias, mas pelo engagement, ou seja, um ímpeto de “colocar suas ideias em
uso, persuadir, propagar e transformar o mundo ao redor”, e que formou seu ethos na
Paris da primeira metade do século XVIII. O philosophe, além disso, está na origem do
que a contemporaneidade chama de “intelectual”. Daí o autor indaga:
Mas e o caráter cosmopolita do Iluminismo? E os grandes pensadores
de fora de Paris e mesmo das fronteiras da França? Embora eu
considere Paris a capital da República das Letras no século XVIII,
concordo que o Iluminismo se difundiu a partir de muitos pontos:
Edimburgo, Nápoles, Halle, Amsterdã, Genebra, Berlim, Milão,
Lisboa, Londres e até mesmo Filadélfia. Cada cidade tinha seus
filósofos, muitos dos quais [se] correspondiam com os philosophes, e
alguns deles até os superaram.73
Alinhado com a mencionada historiografia anglo-saxã sobre as Luzes, Darnton
contribui para se analisar tal contexto para além das historiografias nacionais,
72
OUTRAM, Dorinda. The Enlightenment. Op. Cit., p. 1-13.
DARNTON, Robert. Os dentes falsos de George Washington. Um guia não convencional para o século
XVIII. Trad. José Geraldo Couto. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 21,
73
59
dialogando com as discussões já mencionadas de Dorinda Outram e Franco Venturi, que
privilegiam uma visão ampliada a respeito da cultura letrada da Ilustração. Além disso,
sobre a difusão de ideias do Iluminismo, Darnton defende que ela não se deu de forma
vertical, dos philosophes para o vulgo, mas também foi acompanhada pela difusão de
boemias literárias no século XVIII. Demonstra, assim, que houve no referido período
uma diversidade de mecanismos de engajamento por meio das ideias, apresentadas e
debatidas nos espaços públicos nos mais variados estratos sociais, e também sob
diversos suportes de circulação.74
Outro questionamento para se pensar a Ilustração além dos limites impostos
pelas chamadas “histórias nacionais” encontra-se no trabalho de Jonathan Israel. Já no
prefácio de seu livro, sobre as vertentes mais radicais do mencionado contexto, ele
chama a atenção para o fato de que “nos últimos anos (...) tornou-se comum afirmar que
não há apenas um Iluminismo”, mas “toda uma constelação de ‘famílias de iluministas’
relacionados”, que se agrupam em contextos nacionais. O que o autor argumenta é que
há uma maneira alternativa de se abordar as Luzes, superando os estudos que
apreendem um “fenômeno tão internacional e pan-europeu” circunscrevendo-o no
contexto de uma história nacional.75
Segundo Flávio Rey de Carvalho, que analisou o Iluminismo português à luz dos
modelos teóricos e metodológicos da referida historiografia anglófona sobre o tema:
Essa guinada historiográfica desequilibrou, gradualmente, a coerência
interna da síntese Iluminista, até então bastante aceita entre os
historiadores, de modo que a balança da consciência histórica
começou a pender em favor da sua reavaliação. Assim, as pesquisas
acerca do Iluminismo, até então focadas na imagem homogênea,
harmônica, coesa e unilateral das Luzes, passaram a considerar a
pluralidade de nuances com as quais o ideário iluminista se
manifestou nos diferentes contextos cultural e geográfico.76
Existem, claro, outras críticas aos modelos tradicionais de análise sobre o
Iluminismo. Como foi anteriormente apresentado, Stephen J. Barnett, a partir de marcos
teóricos da história das ideias, tributários da Escola de Cambridge, critica modelos que
centralizam demais suas análises no desenvolvimento e nas influências das ideias dos
philosophes. Ele defende que as ideias dos últimos devem ser contextualizadas,
74
____________. Boemia literária e revolução. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Companhia das
Letras, 1987; ___________. Poesia e polícia: redes de comunicação na Paris do século XVIII. Trad.
Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
75
ISRAEL, Jonathan. Iluminismo Radical. Op. Cit. p. 7-8.
76
CARVALHO, Flávio Rey de. Revisitando o Iluminismo: contribuições para o estudo do caso
português. Revista Tempo de Conquista, v. 5, p. 1-14, 2009. p. 6.
60
levando-se em conta diferentes elementos, tais como a inserção de tais pensadores nas
querelas religiosas, seus pertencimentos de classe e estamento e, ainda, suas
experiências e memórias concretas. Roger Chartier, por sua vez, de alguma maneira liga
as origens do Iluminismo a um processo de dessacralização cujas raízes remetem ao
final do século XVII e se desenvolvem ao longo do XVIII. Para o autor francês, a
dessacralização do mundo que marca o final do Antigo Regime – e que, de alguma
maneira, faz parte daquilo que tradicionalmente se denomina “crise do pensamento
europeu”, que não pode jamais ser confundida com uma descristianização – foi um
processo em que se consolidou uma relação menos reverente do público com as
autoridades, fossem religiosas, políticas ou intelectuais. Essas relações do público,
mesmo que, por vezes em conformidade com ideias conservadoras, implicaram a
ampliação e a difusão de uma nova atitude perante o mundo e as instituições, que
acabou por tornar possível uma série de ações mais críticas e livres de laços de
obediência. A produção dos philosophes e a circulação de suas ideias por meio dos
livros é, nessa concepção, menos central para o processo do Iluminismo do que o
surgimento de novas concepções de mundo.77
Em vias de conclusão, voltando os olhos para Portugal e considerando a revisão
historiográfica e teórico-metodológica feita até aqui, ressalto que obras de pensadores
como Luís Antônio Verney, Antônio Nunes Ribeiro Sanches ou Francisco de Melo
Franco podem ser melhor entendidas à luz de uma historiografia que pense a cultura das
Luzes a partir de perspectivas mais multifacetadas. Isso por permitir entendê-las como
plenamente em diálogo com todo um campo de debates do contexto do Iluminismo.
Soma-se a isso todo um campo de análises que se abre ao se adotar uma concepção
sobre as Luzes que permita cotejar argumentos e trajetórias desses autores com
elementos mais variados que as ideias centrais dos philosophes. Essa maneira de pensar
o contexto abre, sobretudo, um caminho fundamental a uma análise e contextualização
adequadas da Ilustração no mundo luso-brasileiro, pois articula perspectivas mais gerais
do contexto com outras que realçam suas particularidades. Assim, a procura por uma
forma de encadear a discussão crítica das grandes sínteses, somada à releitura sobre
pontos como o ecletismo e as balizas católicas das Luzes luso-brasileiras,
complementando-se, lança possibilidades importantes de interpretação das fontes do
período. Essa busca é essencial para que se faça uma contextualização mais robusta,
77
CHARTIER, Roger. As origens culturais da Revolução Francesa. Trad. George Schlesinger. São
Paulo: Editora Unesp, 2009. p. 143-148.
61
capaz de oferecer chaves mais adequadas que as dadas pelos modelos de explicação
tradicionais sobre as Luzes, no que toca às condições e aos lugares de enunciação e de
interlocução de ideias desses autores e outros contemporâneos. Por isso, nesta tese, fiz
uma opção por modelos que não centralizam o Iluminismo nas discussões dos filósofos
e em suas influências sobre outros contemporâneos ou sucessores. Além disso, opto por
englobar concepções multinucleadas a respeito do surgimento e difusão das Luzes,
questionando suas balizas geográficas e cronológicas tradicionais. Todo esse esforço se
justifica pelo objetivo de pensar a relação entre a defesa da tolerância religiosa e um
“ímpeto secularizador” no interior de um Iluminismo português e luso-brasileiro, a
partir de meados do século XVIII. No caso, cumpre pensar sobre tais temas sem incorrer
em problemas oriundos de uma compreensão das fontes calcada em “mitos de
secularização”, em prescrições ou teleologias, que fazem tábua rasa da complexidade
das sociabilidades e interlocuções dos diversos agentes dessas Luzes católicas, mas não
somente elas, mas da própria complexidade das interações entre elementos
secularizados e/ou irreligiosos com os intrinsecamente religiosos nos debates
iluministas.
Não se deve deixar de ressaltar, no entanto, que o próprio Iluminismo português
e luso-brasileiro teve diversidades internas. Elas serão analisadas nesta tese, que tem
como uma de suas hipóteses que muitas das discussões sobre a religião e seu lugar na
vida social e nas instituições– que marcaram as obras de pensadores luso-brasileiros,
como alguns já mencionados neste capítulo – fizeram parte de um conjunto complexo
de disputas por uma hegemonia no campo religioso, construída discursivamente e, em
parte, aplicadas nos reformismo pombalino e pós-pombalino. Entretanto, também houve
espaços para vertentes mais radicais, em que a defesa de uma tolerância religiosa mais
ampla, forte anticlericalismo e críticas mais contundentes à Igreja e à monarquia
fizeram-se ouvir. Dito isso, a própria tolerância religiosa como tema histórico precisa
ser discutida, dialogando com alguns pontos até aqui analisados sobre formas de
abordar e conceber o Iluminismo e sua relação com o religioso. Advirto que esta
discussão será retomada ao longo de toda a tese.
1.6 A Tolerância religiosa, do Renascimento ao Iluminismo católico
Até aqui, o objetivo foi o problematizar os marcos teóricos e a historiografia a
respeito do Iluminismo, de maneira a tornar possível discuti-los para além de duas
62
limitações bastante comuns: a primeira, ligada à sua geografia e a segunda, relativa ao
lugar da religião no pensamento das Luzes, o que toca diretamente no tema central desta
tese, a tolerância religiosa. Quanto à primeira limitação, convém insistir na importância
de se conceber uma Ilustração para além de uma centralidade na França ou mesmo de
uma Europa Além-Pirenaica. Esse alargamento geográfico possibilitará analisar as
particularidades dos desenvolvimentos das Luzes nos contextos da Europa católica e,
consequentemente, em Portugal e no espaço luso-brasileiro. Já quanto à segunda
limitação, não menos importante, relativa à questão religiosa, é essencial admitir que, no
contexto luso-brasileiro, houve contornos específicos e tributários de uma hegemonia
cristã-católica. Assim como pode-se falar que houve um Iluminismo católico com uma
vertente tipicamente ibérica, a importante tópica da tolerância religiosa também teve
desenvolvimentos particulares no dito contexto. Um caminho fundamental para se
discutir tal tópica passa, necessariamente, por repensar o próprio espaço do religioso no
contexto das Luzes, superando-se a leitura de uma Ilustração ideal como
intrinsecamente secularista e laica, o que não corresponde a uma realidade histórica
demonstrável nas fontes. Como tem sido amplamente confirmado pela historiografia – e
já foi discutido nesta tese –, a religião esteve presente nos debates iluministas.
Concepções irreligiosas ou que defendiam, em diferentes medidas, uma superação do
religioso, foram partes de um campo de discussão mais amplo e diverso, que incluiu
desde tendências mais conservadoras (refratárias à tolerância a grupos religiosos
minoritários, por exemplo), até correntes que pretendiam reformar e “modernizar” as
religiões instituídas, disputando, no campo das ideias e também no político, as
formulações e as práticas a respeito da tolerância. O fato é que as disputas sobre esse
tema ultrapassaram – e muito – as sociabilidades dos filósofos, e mesmo estes tiveram
suas ideias formuladas dentro de realidades muito diversas, não circunscritas somente a
espaços como universidades e academias, que merecem a devida contextualização antes
deste trabalho prosseguir.
O tema da tolerância religiosa, é preciso esclarecer aqui, apesar de adquirir
formulações um tanto originais nas Luzes, como uma relativamente vasta historiografia
demonstra, é tributário de debates que as extrapolam no tempo e espaço. Certamente,
também, não depende unicamente de formulações teológico-filosóficas de contextos
letrados, muito pelo contrário. E, no caso dos seus desenvolvimentos na Europa católica
e nas colônias desses países, torna-se imprescindível pensar nas especificidades dentro
das quais foram delimitados. Assim como muitos outros temas e tópicos, a tolerância
63
religiosa também foi pensada de muitas formas e disputada por muitos agentes, de
modos e com interesses diversos, estabelecendo correntes e tendências mais ou menos
claras.
Para se chegar a essas mencionadas tendências, que se referem a algumas linhas
gerais dos debates sobre a tolerância religiosa no contexto luso-brasileiro, é importante
trazer aqui uma breve problematização sobre esse tema como objeto de análise
histórica. Antes, cumpre trazer à discussão dois pressupostos fundamentais desta tese. O
primeiro foi corretamente posto pela historiadora portuguesa Isabel Maria Ribeiro
Mendes Drumond Braga: a de que não podemos transpor para o passado os conceitos da
atualidade, tal qual o ideal liberal democrático de tolerância. “Tolerância, respeito pela
diferença e tantas outras práticas desejáveis no presente não constituíam preocupações
fundamentais no passado, nem entre católicos nem entre protestantes”, ao menos não
nos termos contemporâneos, segundo a pesquisadora. Para ela:
A tolerância na Época Moderna, ou melhor o seu gérmen, será visível
por exemplo, nos acordos entre países católicos e países protestantes,
no quadro das negociações diplomáticas, assegurando aos estrangeiros
oriundos de espaços reformados, a liberdade de consciência e o
exercício da religião dentro das casas e das embarcações. O mesmo
era concedido aos católicos nos países protestantes. No caso
português, esses acordos foram estabelecidos no período pós 1640, no
âmbito do reconhecimento da Restauração.78
Dois problemas na afirmativa acima podem ser tomados como pontos de partida
para uma análise da tolerância religiosa como objeto historiográfico. Além do
pressuposto mencionado – segundo o qual procurar-se pela tolerância religiosa no
sentido contemporâneo na Idade Moderna seria procurar pelo inexistente –, pode-se
entender que traçar uma “genealogia” dessa mesma tolerância, partindo da modernidade
até se constituir aquilo que entendemos que ela é hoje em dia, seria um caminho
metodologicamente inadequado, tendente ao anacronismo. Por isso, é importante frisar,
como segundo pressuposto, que a tolerância religiosa – e também outras formas de
tolerância no trato com diferenças –, não tem uma espécie de desenvolvimento linear,
que seria parte de um processo civilizatório no qual se progride permanentemente rumo
a sociedades mais tolerantes, concepção que a experiência prática e a própria história
78
MATTOS, Yllan de. A Inquisição na Época Moderna e as problemáticas em torno da intolerância
religiosa – Entrevista com a Profa. Dra. Isabel Maria Ribeiro Mendes Drumond Braga (Universidade de
Lisboa). Revista Temporalidades. Edição 22, V. 8, N. 3, p. 523-528 (set./dez.2016). p.527-528.
64
não confirmam.79 Em grande medida, trata-se de uma armadilha na qual o historiador
sobre este tema pode cair, sobretudo partindo de concepções como as que foram
discutidas e criticadas nesta tese até aqui, concepções estas que tendem a reforçar a
linearidade criticada e reproduzir problemas dela oriundos. Por exemplo, ao se partir de
uma concepção de Luzes como opostas à religião e ao religioso, a classificação de tom
pejorativo de “Luzes católicas”, ou “de compromisso” com estruturas católicas,
pensadas para o caso português, convida o historiador ao entendimento de que a
tolerância religiosa, no referido contexto, foi uma questão, se não inexistente,
completamente marginal. Mais do que isso, teria por desdobramento uma fadada não
realização futura de uma tolerância liberal, tida como fundamento cultural indispensável
às democracias contemporâneas.80 A tolerância e seu oposto inseparável, a intolerância,
devem ser entendidas em seu devido tempo e contexto, afastando-se do anacronismo de
se projetar nas realidades da Idade Moderna e do contexto das Luzes esses temas sob as
roupagens da atualidade. Mais que isso, deve-se abrir possibilidades teóricas para se
pensar que o trato com o outro, o diferente em matéria religiosa, é diverso e
polissêmico, e que sua formulação, aceitação, difusão e desenvolvimentos, nas ações na
vida coletiva, foram e ainda são objetos de disputa permanente.
A tolerância religiosa, num sentido mais lato, denotando a forma de se
resolverem (ou, na medida do possível, se administrarem) as diferenças entre indivíduos
e grupos distintos de confissões diferentes, sob a mesma autoridade e território, como
mostra a historiografia, aparece nos tratados teológicos, políticos, morais e filosóficos
desde muito antes daquilo que convencionamos chamar de “Modernidade”. Fernando
Catroga, por exemplo, observa, numa análise etimológica do termo “tolerância”, que há
uma ambiguidade que lhe é inerente e que perpassa as formulações críticas sobre a
tolerância na história do pensamento ocidental de longuíssima permanência. Nela,
juntamente com um sentido passivo de “tolerar” como “suportar” ou “carregar consigo”
79
É importante destacar, por exemplo, os diversos pensadores que, em algum momento, atribuíram
episódios e contextos de intolerância da contemporaneidade, ao longo do século XX, às ideias do
Iluminismo. Trata-se de uma gama diversa de autores, que envolve desde o papa João Paulo II, passando
pelo poeta T.S. Elliot, além dos famosos ensaios de Adorno e Horkheimer e a Mimesis, de Auerbach. O
pensador búlgaro Tzetan Todorov, em uma brilhante síntese sobre as Luzes, dedicou um capítulo a
respeito dessas rejeições ao ideário iluminista. TODOROV, Tzvetan. O Espírito das Luzes. Trad. Mônica
Cristina Corrêa. São Paulo: Ed. Barcarrolla, 2008. p. 31-46.
80
A tolerância religiosa como base da diversidade cultural, defendida como elemento fundamental das
democracias liberais, ao menos no plano ideal e com origem na Ilustração, é um tema discutido por
Habermas, ainda que não com o anacronismo criticado aqui. HABERMAS, Jürgen. A tolerância religiosa
como precursora de direitos culturais. In: ________________. Entre o naturalismo e religião: estudos
filosóficos. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007. p. 279-300.
65
algo indesejável, existe sentido ativo de admitir algum tipo de diferença em nome de
algo maior, como a paz civil, que aparece nos múltiplos e diversos debates e disputas
em torno da tolerância religiosa e que, posteriormente, estará no cerne das formulações
filosófico-teológicas que separam paz pública e o bem governar do governo das almas e
da salvação, assim como sobre a separação entre a religião da ética. 81 Nesse ponto,
Catroga se aproxima de concepções teóricas sobre a tolerância que apontam para sua
polissemia como conceito, que sobrevive na Modernidade. É, por exemplo, a
formulação de Jürgen Habermas a respeito do tema. Analisando o significado de
tolerância no século XVI, em diversos dicionários ocidentais, Habermas observa que o
termo tolerância toma de empréstimo do latim e do francês, após as Reformas, um
significado “inicialmente (...) mais restrito de uma transigência com outras confissões
religiosas”. Porém, no “decorrer dos séculos XVI e XVII, a tolerância religiosa passa a
ser um conceito de direito”, uma vez que “Governos redigem documentos de tolerância
que impõem aos funcionários e a uma população ortodoxa um comportamento tolerante
no trato com minorias religiosas”.82 Assim, nas línguas ocidentais, é verificável a
distinção entre “tolerância”, como “virtude moral, disposição de comportamento” etc., e
“tolerância”, como ato jurídico de tolerar o que é considerado, em princípio, ruim. No
Vocabulário Português e Latino, Rafael Bluteau, 1728, no verbete “Tolerância”, ela é
definida como:
Comumente o mesmo que paciência. Segundo os Jurisconsultos é a
permissão de coisas não lícitas, sem castigo a quem as comete, porém,
sem concessão, nem dispensação a elas. & assim que em muitas partes
são toleradas as mulheres Damas (prostitutas), ainda que seja ilícita a
Arte meretrícia. Também às vezes Tolerância é uma certa
conveniência, ou dissimulação de coisas não permitidas (itálico do
texto original).83
No Diccionario italiano, e portuguez, extrahido dos melhores lexicógrafos.., de
Joaquim José da Costa e Sá, publicado em 1773, mantém-se o significado de tolerância
81
CATROGA, Fernando. Entre deuses e césares: secularização, laicidade e religião civil. Coimbra:
Almendina, 2010. 2ª ed. p. 66.
82
HABERMAS, Jürgen. A tolerância religiosa como precursora de direitos culturais. Op. Cit. p. 279.
83
BLUTEAU, Rafael. [1638-1734]. Vocabulario Portuguez & Latino, Aulico, Anatomico, Architectonico,
Bellico, Botanico, Brasilico, Comico, Critico, Chimico, Dogmatico, etc. autorizado com exemplos dos
melhores escriptores portuguezes e latinos, e oferecido a el-rey de Portugal D. João V. Coimbra: Colégio
da Artes da Cia de Jesus, 1712-1728. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712. A ordem
em que foram publicadas as diversas partes da obra é a seguinte: os tomos I (letra A) e II (letras B e C)
foram publicados em 1712, os tomo III (letras (letras D e E), IV (F e G) e V (H e J) em 1713, o tomo VI
(letras K, L, M e ), em 1716, o tomo VII (letras O e P), em 1720, o tomo VIII (letras K, R e S), em 1720,
o tomo IX (letras T, U, V, X e Z. Todos os volumes disponíveis em: < http://www.brasiliana.usp.br/>
Acessado em set./ 2017. p. 189.
66
como sendo “paciência, sofrimento, pelo qual se sofre, e se dissimula alguma coisa;
ação de tolerar” e o significado de “tolerar” como sendo “sofrer, levar com paciência,
suportar, padecer, dissimular, disfarçar”. Ao mesmo tempo, inclui-se o significado de
“tolerantismo” como “seita, doutrina dos tolerantes,”84significado análogo ao utilizado
na documentação censória e inquisitorial (o que será analisado a partir do Capítulo 3).
Significado similar observa-se em o Espírito das Leis (1748), no qual Montesquieu
afirma que, assim que se permite que exista mais de uma religião em um mesmo
contexto, o Estado deve criar leis para que elas “aturem” umas às outras, mantendo a
paz pública; o filósofo afirma, categoricamente, que, ao pensarem sobre a tolerância
religiosa, as autoridades devem partir do princípio de que “somos aqui políticos, não
teólogos, e mesmo para teólogos há uma diferença entre tolerar uma religião e a
aprovar”.85 Ou seja, a questão da verdade, em matéria religiosa, fica colocada não como
assunto de interesse do Estado, que deveria lidar com a paz pública como objetivo. Se é
possível observar alguma similaridade entre os significados de tolerância, na obra do
ilustrado francês e nos dicionários portugueses, certamente ela será a percepção de que
tolerar, no entendimento em debate na cultura letrada das Luzes, passa longe de uma
diluição de diferenças ou aceitação absoluta, como verdadeiras, de diferentes
concepções sobre o cristianismo.
Assim, analisando, sobretudo, textos de pensadores do século XVIII, Habermas
conclui que o conceito de tolerância, formado nesse século, assenta-se em três bases
específicas: recusa, aceitação e repulsão. Para ele, as normas de tolerância surgem
diante da recusa mútua de convicções e práticas, na base de motivos subjetivos, ainda
que não haja expectativa racional para resolver o dissenso original. A partir dessa base,
só se pode pensar a tolerância em um contexto em que indivíduos ou grupos tenham
princípios que, racionalmente expostos e aceitos no espaço coletivo, possuam alguma
rejeição prévia e racionalizada, e. g., um católico acreditar que a doutrina protestante é
falsa e vice-versa, expondo argumentos teológicos aceitos dentro de uma sociedade
politicamente organizada como legítimos. O princípio da aceitação, por outro lado,
84
SÁ, Joaquim José da Costa e. Diccionario italiano, e portuguez, extrahido dos melhores lexicógrafos,
como de Antonini, de Veneroni, de Facciolati, de Franciosini, do diccionario da Crusca, e do da
Universidade de Turim, e dividido em duas partes: Na primeira parte se comprehendem as palavras, as
frases mais elegantes, e difficeis, os modos de fallar, os proverbios, e os termos facultativos de todas as
Artes e Sciencias: Na segunda parte se contém os nomes proprios dos homens illustres, das principais
cidades, villas, castellos, montes, rios &c... / Joaquim José da Costa e Sá Lisbonense. - Lisboa: na Regia
Officina Typografica, 1773. - 2 vol. p. 682.
85
MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat [1748]. Do Espírito das leis. Tradução, introdução e
notas: Edson Bini. Bauru, SP: EDIPRO, 2004. Série Clássicos, p. 482-483.
67
indica que, para haver tolerância, pressupõe-se que, uma vez existente a recusa, torna-se
necessário haver algum princípio “neutro”, aceito pelos grupos que se recusam
mutuamente, de maneira a possibilitar sua convivência, de forma pluralista e pacífica.
Por exemplo, num caso hipotético em que um grupo católico rejeita a crença protestante
e vice-versa, é necessário existir um argumento aceito, ainda que não absolutamente,
por ambos, para que, na mesma sociedade, os dois grupos entendam que existem
espaços e regras em que cada um pode professar sua confissão e que há um benefício
mútuo nesse acordo. Por fim, o princípio da repulsão, significa como o Estado, formado
no contexto de uma sociedade pluralista, administra as múltiplas repulsões de
identidades e campos definidos dos diversos grupos sociais na esfera pública – i. e.
como ele, o Estado, se sai no “teste” sobre sua “neutralidade”, tanto política, mas,
sobretudo, confessional, em relação às confissões que se rejeitam e aceitam regras
mínimas de convivência. Isso aconteceria, por exemplo, diante de uma situação em que
o Estado teria de lidar com manifestações protestantes, num contexto de maioria
católica, e vice-versa.86
É importante ter em conta que tais considerações de Habermas partem de
pressupostos formulados em estudos referentes a realidades da Europa a partir do século
XVI. Trata-se do grande conjunto de investigações sobre os chamados processos de
confessionalização, coevos ao estabelecimento das monarquias absolutistas e às
Reformas protestante e católica do início da Idade Moderna. Tais processos, segundo
quase um consenso na historiografia, ocorreram de maneira mais aguda nas monarquias
protestantes, mas também se fizeram ver de maneira muito substancial nas católicas. Os
processos de confessionalização corresponderam a uma “territorialização das Igrejas”,
pela qual houve tentativas incisivas de se buscar fortes distinções dogmáticas entre uma
Igreja ou denominação e outra. Eles aconteceram, em grande parte, como resposta às
rupturas no interior da cristandade europeia depois das Reformas.
Os processos de confessionalização tiveram, internamente, um caráter
universalizador, mas também identitário e particularista, que se complementaram: foi
universalizador porque partia da premissa do orbis cristianum, isto é, de um universo
cristão que abrangeria toda a pretensa universalidade da Revelação para toda a
humanidade, que deveria aceita-la por verdade; era particularista, pois, com a cisão da
cristandade, o “outro” em matéria religiosa fora transportado de fora para dentro da
86
HABERMAS, Jürgen. A tolerância religiosa como precursora de direitos culturais. Op. Cit. p. 286-289.
68
própria cristandade. Se até o século XVI, esse “outro” era demarcável por meio da
geografia – fora da Europa –, da religião – o Judaísmo e o Islã, sobretudo – e de fatores
étnico raciais que permeavam tais distinções, com a confessionalização surgiu a
necessidade de se forjar as diferenças de identidade em termos de definições
doutrinárias e interpretações da Revelação, – que por mais variadas que fossem, sempre
eram tidas por aqueles que se confessavam a elas por universais e certas – das Escrituras
e da tradição cristã europeia.
Tornou-se comum no início da Idade Moderna, em consequência de tal
processo, uma revalorização das pregações e dos sermões, além das polêmicas
religiosas – que compreendiam a um gênero literário que compreendia textos que
tinham finalidade de refutar matérias teológicas e confessionais de outros, sempre em
busca de uma “verdade” – e de publicações de natureza pedagógica, como os
catecismos. Se até a maior parte da Idade Média, os documentos doutrinais da Igreja se
ocupavam com a resolução de questões doutrinárias oriundas da lide com alguma
heresia, as querelas religiosas pós-Reformas trouxeram a necessidade de publicações de
textos de natureza mais sintética e em formato de fórmulas, nas quais se notavam os
mencionados aspectos particulares e universalizantes – que foram conhecidos como
“confissões”. Rui Luís Rodrigues entende que, em tais escritos, o fiel é informado pela
confissão aprendida a partir de rigorosa catequese. Essas obras e “fórmulas”, bem como
outros documentos doutrinários, permitiriam ao leitor “reconhecer-se como cristão” de
uma determinada Igreja “e ganhar clareza quanto aos equívocos de todos os demais”
sistemas religiosos, cristãos sobretudo. Dessa forma, a “confissão tornava-se para ele”,
o fiel, “a expressão de seu compromisso” com a Igreja que seguia e com sua
comunidade, muitas vezes identificada com a própria monarquia nacional e com um
território em particular. Todavia, tais processos de confessionalização não podem ser
entendidos como meras apropriações utilitárias das Igrejas para o fortalecimento das
monarquias e autoridades nacionais que surgiam no limiar da Modernidade. Na verdade,
tratam-se de processos político-religiosos diversos, multifacetados e que não surgiram,
necessariamente, da agência das autoridades civis.87 A confissão religiosa teve um
importante atrelamento com o poder temporal, não necessariamente determinado por
ele. Tanto a primeira quanto o segundo foram importantes para a construção identitária
87
RODRIGUES, Rui Luís. Entre o dito e o maldito: humanismo erasmiano, ortodoxia e heresia nos
processos de confessionalização do Ocidente. 1530-1685. [Tese: doutorado em História] São Paulo:
Programa de pós-graduação em História Social- FFLCH/USP. 2012. p. 372-374 e p. 443-452.
69
que compôs um conjunto que conectava a fidelidade à uma autoridade temporal (as
monarquias nacionais) com a fidelidade religiosa (confessional, ligada a uma Igreja
“universal”) e o pertencimento a um território específico. Paolo Prodi, sobre esta
questão, entende que o produto desse processo de confessionalização foi a construção
do arquétipo de um fiel que era membro dessa “Igreja territorial” não somente por
nascimento ou pelo vínculo do batismo, mas também e sobretudo por uma adesão
pessoal, constantemente ensinada e reafirmada, tornando-se, com isso, um voto de
fidelidade.88
Assim como Habermas, para delimitar o que entende por um conceito de
tolerância, Paul Ricoeur parte de contextos em que se formaram e se superaram as ditas
monarquias confessionais. O historiador e filósofo francês, também analisando o
mesmo conceito de tolerância, observa que sua formação, ao menos no seu sentido
contemporâneo, deu-se a partir de uma reorganização do Estado sobre bases formadas
nas Luzes. Esse sentido de tolerância, conforme analisa o autor, formou-se a partir do
desgaste do que ele chama de um tipo ideal, no sentido weberiano da expressão, de
“uma fé, uma lei, um rei”, formado no final da Idade Média e consolidado ao longo da
Idade Moderna. Nele, o político pede ao religioso e o religioso, especificamente o
eclesiástico, pede ao político: o primeiro pede ao segundo a unção, ou seja, sua
sacralidade e, em troca, dá-lhe a sanção do braço secular. Estabelece-se, assim, uma
“relação instrumental cruzada” entre ambos, pela qual uma instituição recebe da outra
aquilo que lhe falta. Por sua vez, no plano teológico, a ideia de unidade de fé se
estabelece como evidente, sendo que protestantes e católicos se juntam na mesma
convicção de que não há lugar para várias religiões dentro do mesmo espaço político,
nem várias convicções religiosas dentro do mesmo espaço religioso. Tentativas como o
Édito de Nantes (1598), usadas pragmaticamente, sem ter verdadeiramente
comprometido o tipo ideal da relação entre Estado e religião, constituído no plano das
justificações políticas e teológicas, nesse sentido, foram somente anomalias. Essas
distinções e o comprometimento dessas justificações passam a ser feitas somente a
partir da Revolução Francesa, ainda que sobrevivendo de maneira residual
posteriormente.89 A dissolução progressiva desse tipo ideal de organização de Estado,
baseada na fórmula “um rei, uma fé, uma lei”, continua Ricoeur, dá-se quando ocorre a
88
PRODI, Paolo. Uma história da justiça: do pluralismo dos foros ao dualismo moderno entre
consciência e direito. Trad. Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 237-238.
89
RICOEUR, Paul. Tolerância, intolerância, intolerável. In: _______________. Em Torno ao Político.
São Paulo: Edições Loyola, 1995, p. 174-190. p. 176-177.
70
separação entre as justificações políticas e as justificações teológicas da intolerância,
distinção dentro da qual dá para intercalar, com os planos institucionais, os das
mentalidades, tradições culturais, dentre outros. Nos séculos passados no Ocidente
cristão, situando-se primeiramente num plano institucional, no qual se cruzam a unção
eclesiástica e a sanção política, observam-se dois fenômenos que dão à noção de
tolerância seu sinal negativo de abstenção: o primeiro, a perda da unção eclesiástica
pelo poder político (e, logo, sua dessacralização) e, o segundo, a perda da sanção do
braço secular pela instituição eclesiástica (ou seja, sua perda de poder de coerção física).
A partir daí, constrói-se o tipo-ideal de organização social contemporânea, do qual
procede a noção de tolerância pautada na ideia de uma abstenção de se exigir a
interdição do diferente em matéria religiosa, assim como se prescinde da unção religiosa
do político. Seria o Estado laico, do qual o Estado de direito procede. Assim, conclui
Ricoeur, a abstenção do Estado em interditar assuntos de natureza religiosa, ou de
opinião, correntes de pensamento, comportamentos, entre outros, cria um espaço de
onde surgem noções de liberdade específicas e plurais. Assim, da tolerância, antes de
sinal negativo (não se pode interditar algo), decorre outra noção de sinal positivo: devese afirmar determinada liberdade, que se torna fundamento ideal dos modelos de
sociedade contemporânea.90
Dessa maneira, Habermas e Ricoeur buscam no Iluminismo, em especial numa
cultura letrada francesa, mas também nas inglesa e alemã – sobretudo, o primeiro autor
–, os fundamentos da tolerância. Segundo ambos, tais fundamentos triunfarão, ao menos
como ideais, nas democracias liberais contemporâneas, a partir do momento em que elas
superam um ideário, presente nas monarquias nacionais da Europa ao longo da Idade
Moderna, em decorrência da confessionalização, das guerras de religião e de outros
processos. Como foi analisado no início deste capítulo, trata-se de uma concepção
bastante corrente nas grandes sínteses sobre as Luzes, como as de Ernest Cassirer, Peter
Gay e Paul Hazard. Embora, a meu ver, as conclusões dos autores citados não estejam
incorretas, deve se sublinhar, primeiramente, que tais eles pretendem chegar a uma
discussão sobre o conceito liberal e democrático da tolerância. Apesar de destacarem a
fluidez e a polissemia do conceito, acabam por privilegiar o que se pode considerar
como algumas linhas hegemônicas das Luzes, em detrimento de outras intepretações
importantes, no que toca à discussão sobre a tolerância. Essas leituras conduzem à
90
Ibidem, p. 177-179.
71
seguinte questão: em que medida as concepções de filósofos franceses e ingleses podem
ser generalizadas para o restante da Europa e para outros espaços fora dela? Outra
questão é se a tolerância foi e é pensada a partir de bases distintas de uma dada cultura
letrada e de determinados círculos de filósofos, ou, dito de outra forma, se mesmo as
formulações destes não interagem, de alguma maneira, com tópicos e interlocutores
distantes de suas academias e círculos eruditos. Retomo esses pontos mais à frente.
As formulações sobre a tolerância religiosa na Idade Moderna entrelaçam muitos
princípios e muitos bases éticas, teológicas e filosóficas. Ainda que a historiografia
estude com mais afinco o tema a partir do século XVI, conforme demonstra Alan
Lavine, muitos dos princípios tomados pelos defensores da tolerância religiosa
renascentistas – ou ao menos defensores de um tratamento mais pacífico com as
minorias religiosas consideradas heréticas ou cismáticas – são encontrados desde a
Antiguidade Romana. Portanto, tais princípios foram retomados, reinterpretados e
relidos. Nos primórdios do cristianismo, segundo o autor, já existiam os argumentos da
separação do poder secular em relação ao eclesiástico, baseada na interpretação do
Novo Testamento (“Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, Mt, 14-2236). Havia, também, uma tolerância baseada na falibilidade humana, segundo a qual
somente Deus é capaz de julgar em matéria de fé e que aparece nas cartas de São
Paulo.91 Isso foi retomado por pensadores, tais como São Cipriano e Orígenes. Um
outro argumento baseia-se na própria natureza da crença em si e define que, se alguém
for forçado a crer, não teria uma fé verdadeira. Tal argumento aparece nas Etimologias
(século VII) de santo Isidoro de Sevilha, além de outro, baseado nos princípios de amor
e na caridade cristãos, também apropriado de leituras bíblicas. Segundo tal argumento,
seria preciso dirigir-se aos fracos e rústicos com amor, e não com violência.
Reinterpretou-se tal princípio de modo a incluir também os descrentes e hereges. É
importante evidenciar que tais argumentos tornaram-se lugares comuns em diversos
documentos da Idade Moderna.92 Henri Kamen igualmente observa que textos que
91
Por exemplo, na passagem da primeira carta aos Coríntios. Há passagens que foram interpretadas ao
longo das Idades Média e Moderna, segundo Alan Lavine, como argumentos em favor da superioridade
de um julgamento divino em relação ao do “mundo”. “Examine-se, pois, o homem a si mesmo, e assim
coma deste pão e beba deste cálice. (...) Por causa disto há entre vós muitos fracos e doentes, e muitos que
dormem. Porque, se nós nos julgássemos a nós mesmos, não seríamos julgados. Mas, quando somos
julgados, somos repreendidos pelo Senhor, para não sermos condenados com o mundo (1 Cor, 11: 28 e
30-32)”. Disponível em Bíblia Online. < https://www.bibliaonline.com.br/acf/1co/11>. Acessado em
mai./2018. Acerca da discussão de Alan Lavine, ver próxima nota.
92
LEVINE, Alan. Introduction: the prehistory of the toleration and varieties of skepticism. In:
__________. (ed.). Early modern skepticism and the origin of toleration: application of Political theory
(series editor). New York, Oxford, Lanham, Boulder: Lexington Books.1999, p. 1-10. p. 9-10.
72
vieram a compor a Bíblia foram utilizados largamente desde o século IV nas
controvérsias sobre como lidar, em termos doutrinais, com aqueles membros
transviados da Igreja primitiva, assim como o proceder quanto à conversão de pagãos e,
também, sobre a relação entre a fé cristã e as autoridades civis.93
O historiador jesuíta Giacomo Martina, escrevendo sobre a história da Igreja
católica, também destaca tais controvérsias e um fundamento, na Antiguidade tardoromana, de argumentos favoráveis e contrários à tolerância religiosa. Para ele, dentro e
fora dos limites de Roma antiga, a religião era cingida de elementos cultuais e, mesmo
que aberta à convivência com os cultos de origem estrangeira, formava um todo
inseparável de características étnicas e culturais locais, de forma que era natural que o
chefe de Estado se tornasse a suprema autoridade religiosa. Dessa maneira, uma das
principais razões para a perseguição ao Cristianismo primitivo foi a dificuldade dessa
religião reconhecer um imperador como chefe religioso. A partir daí, foram os cristãos
os primeiros a reivindicar alguma liberdade de consciência e a pleitear uma não
ingerência do Estado nos assuntos religiosos, o que leva o autor a afirmar, de forma um
tanto apologética e anacrônica, que:
“(...) foi o cristianismo que pela primeira vez afirmou vitoriosamente a
liberdade de consciência e a verdadeira laicidade do Estado, negandolhe o direito de impor uma religião e vincular consciências, ou seja,
noutros termos, foi o primeiro a introduzir a distinção entre religião e
política, Estado e Igreja”.94
No entanto, prossegue Martina, essa ingerência do político sobre o religioso foi
retomada quando começaram as perseguições de natureza religiosa, com os imperadores
impondo a religião aos povos. As conversões forçadas e o uso do poder secular para
punir heresias e buscar um integrismo religioso foram um “passo atrás” em relação à
“conquista” de 313, o Édito de Constantinopla. Segundo a avaliação do autor:
Em conjunto, o pensamento cristão dos primeiros séculos oscila entre
dois polos opostos: ainda que os apologistas defendessem a liberdade
de consciência, especialmente quando o poder imperial supõe uma
ameaça contra a Igreja, antes ou depois do ano 313, outros invocam o
apoio do braço secular e não apenas para a administração temporal do
Estado cristão, mas para a repressão da heresia. Já aparece desde então
a ambiguidade que, posteriormente, será jogada na cara dos
93
KAMEN, Henry. O amanhecer da tolerância. Trad. Alexandre Pinheiro Torres. Porto: Editorial Inova,
1968. p. 13-16.
94
MARTINA, Giacommo. La Iglesia, de Lutero a nuestros días. Volumen II: Época del Absolutismo. Lo
tradujo al castellano: Joaquin L. Ortega. Madrid: Ediciones Cristiandad, 1974. p. 133.
73
pensadores cristãos de reclamar a liberdade quando estão em minoria
e negá-la aos demais uma vez que foram feitos como maioria.95
A despeito dos anacronismos postos por Martina a respeito da tolerância
religiosa, algumas das informações colocadas são precisamente confirmadas pela
historiografia. De fato, o cerne de alguns dos argumentos favoráveis e contrários à
tolerância religiosa, que são retomados por autores renascentistas, encontra-se na
Antiguidade. Mais do que isso – e este é um ponto que será retomado mais à frente e ao
longo de outras partes desta tese –, a história do Cristianismo e a interpretação das
Escrituras Sagradas forneceram, em contextos diversos, material para formulações em
favor da tolerância religiosa. É o que mostram alguns trabalhos que se debruçam sobre o
referido tema a partir da Era das Reformas e do limiar da Idade Moderna. Para Fernando
Catroga, um dos autores de referência sobre essa questão, a faceta crítico-reflexiva do
conceito de tolerância foi formada na Modernidade, pois ela surgiu em função de
responder a novos desafios impostos pela situação religiosa que a Europa conheceu a
partir do Renascimento e das Reformas religiosas, no século XVI. E um dos ângulos a
partir dos quais essas formulações do conceito de tolerância surgiu foi a hermenêutica
bíblica. Assim, por exemplo, a tolerância, na obra de Pierre Bayle, de acordo com
Catroga, surgira de uma secularização da doutrina protestante, sobretudo calvinista, do
livre-arbítrio, segundo a qual a sinceridade da convicção e a sua construção em cima da
razão são superiores à sua veracidade ou erro. “Para o perseguido francês”, segundo
Catroga, “a consciência constituía o único critério, pelo que a concretização da
universalidade da luz natural teria de passar pelo particularismo da luz interior”. Sem
admitir que verdade e erro não existem, equiparando-os, Bayle defende a tolerância ao
“erro sincero”. A verdadeira religião, segundo Bayle, somente existia na persuasão
interior da alma perante Deus, e não de se seguir o dogma, que, para ele, afastava o
indivíduo da verdade.96
As rupturas no seio da cristandade europeia no século XVI, além da conquista da
América e das novidades trazidas para a ciência com Kepler, Copérnico, Giordano
Bruno, dentre outros fatos, fizeram parte de uma série de desafios de ordem política,
Original: “En conjunto, el pensamiento cristiano de los primeros siglos oscila entre dos polos opuestos:
mientras que los apologetas defienden la libertad de conciencia, especialmente cuando el poder imperial
supone una amenaza contra la Iglesia, antes o después del año 313, otros invocan el apoyo del brazo
secular y no sólo para la administración temporal del Estado cristiano, sino para la represión de la herejía.
Ya aparece desde entonces la ambigüedad que posteriormente se les echará en cara a los pensadores
cristianos de reclamar la libertad cuando están en minoría y de negársela a los demás una vez que se han
hecho con la mayoría”. Ibidem, p. 135.
96
CATROGA, Fernando. Entre deuses e césares. Op. Cit. 77-78.
95
74
filosófica e teológica: sem a unidade na pretensa universalidade da Igreja Católica
Apostólica Romana, a convivência entre pessoas e grupos que professassem credos
distintos, sob a mesma autoridade civil, passou a ser um problema mais urgente e
amplamente discutido, quadro que foi potencializado e muitíssimo agravado pelas
posteriores guerras de religião. Sobre estas últimas, Reinhart Koselleck afirma que o
Estado moderno chegou ao pleno desenvolvimento por meio da busca de superá-las.
Para ele, as guerras religiosas na Alemanha e na França, no século XVI, fizeram
necessária a busca de alternativas que as eliminassem, envolvendo formulações de
natureza religiosa e política. Em distintos Estados nacionais, depois de 30 anos de
sangrentos conflitos entre grupos religiosos, as monarquias foram capazes de perceber
que poderiam fazer do princípio de igualdade religiosa a base para a paz. Isso foi
recebido com horror pelos setores mais ortodoxos dos partidos religiosos.97 Colocava-se
em xeque, assim, ou no mínimo problematizava-se, a base filosófica em que se
associava, a partir de princípios políticos e teológicos, a sedição à quebra do integrismo
religioso sob a mesma autoridade civil. Segundo Catroga, esse princípio – que associou,
durante séculos, na Europa, a tolerância com a dissidência religiosa face à crença
consagrada como oficial nos Estados nacionais – foi o responsável direto por uma
territorialização das crenças religiosas. Tal territorialização, por sua vez, “veio a
desenhar a geografia confessional da Europa”, formando “um mosaico que estará na
base das versões regionais (e, posteriormente, nacionais) do que se impunha à
homogeneidade política e religiosa”. Se trata do princípio extra ecclesiam nulla sallus –
cujas raízes estão no século IX, remontando à formação do próprio conceito de
cristandade –, atualizado dentro da realidade das guerras religiosas da Era do
Renascimento. Somado a todo um quadro maior de crises, tais princípios tornaram-se a
base da fórmula político-teológica cujus regio, ejus religio. Esse princípio, a partir do
século XVII, ficou bem sintetizado na fórmula une foi, une loi, un roi, segundo o qual a
divisão religiosa implicava também a divisão política. Com isso, o combate às divisões
religiosas tinha, ao mesmo tempo, função salvífica e de sociabilidade.98
A Era das Reformas, assim, conheceu uma formulação político-teológica do
conceito de tolerância que admitia, em alguma medida, a existência de algum nível de
dissidência religiosa, em nome da concórdia e da unidade do Estado nacional, ainda que
97
KOSELLECK, Reinhard. Futuro e passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de
Janeiro: Contraponto Editora PUC-Rio, 2006. p. 27.
98
CATROGA, Fernando. Entre deuses e césares. Op. Cit. p. 68-69.
75
fossem estranhas ao pensamento do período quaisquer formulações que admitissem
algum nível de verdade nos credos não oficiais. Esta é a conclusão de Mario Turchetti,
em sua análise sobre os debates e formulações contemporâneas ao Édito de Nantes, de
1598, pelo qual se autorizou a existência de algumas Igrejas protestantes, em nome da
paz civil. O autor, a partir de um texto anônimo de 1599, De la concorde de l’État,
concluiu que os éditos de pacificação, com destaque ao de Nantes, foram resultados do
triunfo do projeto do partido católico moderado dos politiques, que defendia a
“concórdia” religiosa como um mecanismo para se reestabelecer a unidade do reino,
que era, em si, um bem fundamental que garantiria a sua grandeza perante aos demais,
tal como era a unidade religiosa. A garantia da grandeza do Estado possibilitaria
restaurá-lo da miséria das guerras e, assim, criar condições para que se reestabelecesse
futuramente a unidade da Igreja. De fato, segundo Turchetti, constituiu-se no período
uma nova formulação segundo a qual a unidade do reino é mais urgente do que a da
Igreja.99 Configurou-se aí uma nova hierarquia entre política e religião, em que a
primeira determinou algumas liberdades e certa tolerância com relação à segunda, em
função de se manter a paz civil e de se conservar o Estado.100
A superação ou, ao menos, uma problematização de tais princípios, em função
de se contornar as guerras religiosas em nome da paz civil – situação sobre a qual
existem divergências a respeito da pertinência de considerá-las como uma experiência
válida de tolerância ou não –,101 fez o século XVI conhecer a tolerância religiosa como
TURCHETTI, Mario. L’arrière-plan politique de l’édit de Nantes, avec un aperçude l’anonyme De la
concorde de l’Estat. Par l’observation des Edicts de Pacification (1599). In: GRANDJEAN, Michel;
ROUSSEL, Roussel (éd): Coexister dans l’intolérance. L’Édit de Nantes (1598). Genève: Labor et Fides,
1998. p.93-114.
100
KOSELLECK, Reinhart. Futuro e passado. Op. Cit. p. 28.
101
A historiadora Catarina da Costa D’Amaral faz críticas importantes ao trabalho de Mario Turchetti, no
que diz respeito à conclusão segundo a qual a experiência com os éditos de tolerância do século XVI não
se configurou como de tolerância propriamente dita, mas, sim, de uma concórdia entre grupos que não se
concebiam como legítimos e que, sob justificativas político-teológicas, formularam razões para se
contornar as guerras. Catarina da Costa Amaral, em sua tese de doutorado, critica essas conclusões de
Turchetti em três aspectos importantes. Em primeiro lugar, ela não concorda com a consideração do autor
suíço de que os éditos do final do XVI não significaram uma experiência verdadeira de tolerância
religiosa, já que não trataram de um reconhecimento da legitimidade da existência de mais de uma
confissão debaixo de uma mesma autoridade monárquica. Embora temporária, diz Catarina D’Amaral, a
dualidade foi reconhecida e legitimada pelo édito real. Assim, continua, no século XVI, desenvolveu-se
uma dinâmica sobre a convivência entre confissões religiosas diversas, visando à paz social e ao bem
comum. Em segundo lugar, a autora defende que o debate conceitual travado por partidários da tolerância
e da concórdia deu-se a posteriori, e não no contexto de produção das fontes nas quais se encontram as
discussões sobre o Édito de Nantes. Tal debate tem sua principal relevância não para se compreender as
noções de tolerância do período, mas para o debate bibliográfico e o posicionamento do historiador sobre
ele. E, em terceiro lugar, a autora critica as conclusões obtidas sob a perspectiva metodológica adotada
por Turchetti, tomando-as como produto de uma análise semântica sujeita às imprecisões devido à escrita
das línguas vernáculas no período analisado, o que faria a análise assumir contornos ainda mais
99
76
uma espécie de conceito teológico-jurídico e teológico-político. Segundo esse conceito,
em nome de algum bem maior, a autoridade abre mão do integrismo religioso de forma
ampla: sob seus domínios, ele assumiria uma forma relativa ou que fosse restrita a
sociabilidades e locais específicos. Essa forma de tolerância serviu de fundamento para
que as autoridades lusitanas permitissem que protestantes comerciassem, dentro de
rígidos limites estabelecidos, com portugueses, além de poderem viver por algum tempo
em terras lusitanas.102 Ela também esteve por trás dos éditos de paz que vieram a pôr
fim às guerras de religião, dos próprios modos como eles foram pensados e debatidos.103
Conforme Habermas, tal definição jurídica da tolerância predominou no pensamento
europeu até, pelo menos, o contexto do Iluminismo.104
Em paralelo à conceituação político-jurídica e teológica de tolerância religiosa,
noutros campos do pensamento, desenvolveram-se argumentos a respeito do imperativo
ético-teológico da convivência entre confissões distintas. Esse desenvolvimento
realizou-se sob a pena de pensadores diversos, tais como Thomas Morus, Erasmo de
Roterdã, Pico de Mirandola, dentre muitos outros. Em linhas gerais, esses pensadores
defendiam uma espécie “credo mínimo”, que seria capaz de minimizar as diferenças
confessionais e possibilitar a convivência de crenças distintas. Sua base estava num
relativismo renascentista e num ceticismo fundamental da ideia de tolerância
quinhentista e seiscentista. Ressaltavam-se, sobretudo, a necessidade de um diálogo
complexos. Completando sua análise, a citada historiadora afirma que essa busca pela origem da
conceituação de tolerância pode limitar a leitura e as conclusões do historiador, levando-o a anacronismos
e teleologias. AMARAL, Catarina Costa d’. A invenção da tolerância: política e guerras de religião na
França do século XVI. Tese (Doutorado em História) – Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro, 2008. p. 16-17.
102
Sobre as permissões dadas a “hereges” em Portugal, após as Reformas, há alguns trabalhos
interessantes a respeito. Jorge Martins Ribeiro, por exemplo, diz que, “nos inícios do século XVII,
cónegos e professores das Universidades de Coimbra e Évora manifestaram as suas opiniões acerca do
modo como os protestantes deveriam ser tratados. Um herético não poderia ser punido pela Igreja até se
provar ser um impenitente obstinado. Deste modo, um inglês ‘herético’ que nunca tivesse sido instruído
na verdadeira fé, como não conhecia as verdades religiosas, não poderia ser considerado como tal.
Contudo, se a Inquisição aprisionasse um inglês culto, particularmente se este tivesse conhecimentos de
latim, podia ser entregue ao braço secular, incorrendo, deste modo, na pena de morte”. Ou seja, no caso,
defendia-se que a permissão de se viver sob autoridade católica e constante vigilância inquisitorial, sendo
protestante, no caso dos ingleses, implicava a obediência a regras específicas que, ainda que dificultassem
fortemente sua existência e profissão de sua crença, não a impossibilitariam, na prática. Ainda que
predominasse a intolerância, foram dadas algumas permissões a anglicanos, sobretudo ligadas aos vários
tratados de amizade e comércio entre Inglaterra e Portugal. RIBEIRO, Jorge Martins. O anglicanismo em
Portugal do século XVII ao XIX. In: POLONIA, Amélia; RIBEIRO, Jorge Martins; RAMOS, Luís A. de
Oliveira. Estudos em homenagem a João Francisco Marques. Porto: Faculdade de Letras da U. Porto
(FLUP), 1ª edição, p. 337-353. 2001.p. 339.
103
Como o Édito de Nantes (1598), a Paz de Augsburgo (1555), entre outros tratados no contexto das
guerras religiosas.
104
HABERMAS, Jürgen. A tolerância religiosa como precursora de direitos culturais. Op. Cit. p. 279280.
77
interconfessional e, mais ou menos explicitamente, o próprio questionamento da
legitimidade de se ser portador – seja no caso de instituições ou de indivíduos – de uma
verdade em matéria de fé. É o que demonstra Adam Levine, em sua análise da obra do
pensador francês Michel de Montaigne. Para ele, enquanto no século XVI a tolerância
religiosa era, por muitos autores, justificada com base nos direitos dos potenciais
vítimas da intolerância, Montaigne fazia um caminho inverso: sua tolerância é baseada
no “não direito”. O humanista francês apela ao interesse próprio, ao entendimento e ao
indivíduo para basear seu princípio de tolerância. A tolerância defendida por Montaigne
não é baseada na autonegação, mas em certo tipo de autoconhecimento fenomenológico.
Ela é completamente baseada em sua visão do bem humano como tributário da
autoexploração dos sentidos, de um ceticismo de raiz moderna que não surge a partir de
questões religiosas ou metafísicas, mas de sua percepção das necessidades humanas.
Assim, todos, vivendo em sociedade, reivindicam para si algo que eles não são de
verdade: príncipes reivindicam a grandiosidade; letrados, a sabedoria; padres, o
conhecimento da revelação divina; e os europeus, serem a quintessência da humanidade,
dentre outros. Mais que isso, Montaigne questiona a crueldade que esses desejos geram.
Para converter hereges, expandir a grandeza ou legitimar sua posse da sabedoria,
empreendem-se guerras. Os líderes religiosos, príncipes, letrados, dentre outros, assim,
liderariam o vulgo com um discurso cínico, já que precisam de mãos para guerrear e
fazem uso da credulidade das pessoas para o conseguir. Tudo decorre da inabilidade,
inerente ao homem, de distinguir a aparência e a convenção da verdade. Na análise de
Levine, o Cristianismo e a inclinação humana à imaginação, para Montaigne, são a
essência dessa arrogância do homem que o afasta de sua verdadeira natureza. A religião
revelada seria um produto dessa combinação, em que o homem projeta a si mesmo
como um deus imaginado, criado à sua própria forma. O homem, assim, coloca-se na
posição de criador do universo. Além disso, a despeito das necessidades naturais –
comer, beber, manter relações sexuais, dentre outras –, a imaginação e a arrogância
humana levam-no a perverter essas necessidades, transformando-as em voluptuosidade
ou convenções diversas que o levam à infelicidade. O homem civilizado, para ele, vive
em função do supérfluo, do futuro incerto, e nunca do presente. Mas, ao invés de pregar
o ascetismo e uma autonegação individual – impossíveis, para ele, devido à
impossibilidade de o homem retornar ao estado dos povos primitivos ou dos animais –,
a operação de Montaigne dá-se no sentido de revelar um homem que estaria imerso nas
mentiras (underlies man), cuja imagem teria implicação importante para se pensar em
78
instituições mais moderadas e tolerantes. A ideia de tolerância, de Montaigne, dessa
maneira, segundo Levine, é baseada na desconstrução das certezas dogmáticas e na
universalização da condição humana, naturalmente limitada, em termos de se alcançar
conhecimentos verdadeiros fora de seu self.105
Além desse ceticismo renascentista, um ponto importante, a partir do qual as
discussões sobre a tolerância ganharam evidência da Idade Moderna. foi a respeito do
tratamento com minorias religiosas e com as dissidências das crenças oficiais. A
pertinência do uso da violência, como meio de corrigir os erros de religião, foi um ponto
que mobilizou um campo bastante vasto de argumentos, discutidos pela historiografia.
Erasmo de Roterdã, comumente, aparece em diversos trabalhos como um dos grandes
defensores da tolerância religiosa. Vários autores observam haver um fio condutor em
sua obra, que seria o desejo de instauração da paz. Luiz Paulo Rouanet, por exemplo, ao
analisar os conceitos de paz, justiça e tolerância na contemporaneidade, faz uma
discussão de ideias de diversos autores e, sobre o tema da “paz”, parte da obra A
Consultatio de bello Turcis inferindo (1530), do mencionado humanista dos Países
Baixos. Trata-se de uma obra de Erasmo que teve origem numa consulta feita pelo
jurista Johann Rink, no início do século XVI, sobre a pertinência de uma guerra contra
os turcos. A este ponto, o pensador neerlandês defendia o direito da cristandade de se
defender, mas sob o princípio de uma “guerra justa”, segundo a qual uma ação bélica
somente poderia ser legítima se fosse defensiva e seguindo limites de paz e justiça,
vetando-se, por exemplo, que a cristandade guerreasse contra os turcos como pretexto
para pilhagens e outros crimes. A reflexão, publicada por Rouanet no ano de 2001,
serviu de arcabouço para uma reflexão e crítica do autor quanto às ações dos Estados
Unidos da América contra o Afeganistão, justificadas pelos atentados de 11 de setembro
do mesmo ano. Rouanet definiu o pensador neerlandês como “um dos maiores pacifistas
da história, a um tal ponto que erasmismo se tornou quase sinônimo no século XVI, de
uma atitude tolerante e pacifista, ou irenista”.106
Johan Huizinga, em consagrada obra sobre Erasmo, afirma que suas ideias
tiveram um enorme significado para objetivos de paz e tolerância, por ter sido, entre
outras coisas, o primeiro enunciador da crença na educação visando à perfectibilidade
LEVINE, Alan. Skepticism, self, and toleration in Montaigne’s Political Thought. In: __________.
(ed.). Early modern skepticism and the origin of toleration: application of Political theory (series editor).
New York, Oxford, Lanham, Boulder: Lexington Books, 1999. p. 51-70
106
ROUANET, Luiz Paulo. Paz, justiça e tolerância no mundo contemporâneo. Revista de História- USP.
145 (2001), p. 151-163. Em especial o primeiro subitem, p. 152-155.
105
79
humana, que se realizaria na obtenção de formas de sociabilidade em que reinassem a
benevolência, a paz e a tolerância. Além disso, seus pensamentos e convicções seriam
uma espécie de “anúncio” de ideais de tolerância dos séculos posteriores, sobretudo nas
Luzes. Assim, Huizinga afirma que o humanista neerlandês influenciou diversas
correntes dos séculos XVI, XVII e XVIII, já que nomes como Rousseau e Herder, em
várias de suas obras, retomaram o princípio erasmiano de que a educação moral e a
tolerância seriam bases do progresso humano.107 Enunciado similar, associando a obra
do autor do Elogio à loucura (1509) com formulações posteriores de tolerância e
pacifismo, veio do historiador brasileiro Ivan Lins, que ainda viu na obra do neerlandês
a defesa de uma reforma ampla no Catolicismo, baseada num ceticismo humanista.108
Henri Kamen, por sua vez, destaca a importância de Erasmo de Roterdã no uso
da hermenêutica bíblica como forma de mobilizar argumentos pro-tolerância, já no
início da Idade Moderna,109 ao passo que Mario Turchetti vê nas suas formulações um
ideal de concórdia, sintetizado no termo grego Sygkatabasis, segundo o qual a paz entre
dissidências religiosas seria um primeiro passo para a futura realização da reunião das
diversas Igrejas em uma só, não configurando, em si, o princípio da tolerância, do qual
se depreende alguma aceitação da legitimidade da diferença.110 Dessas perspectivas, a
despeito de algumas de suas falhas – como a teleologia de se considerar que, da obra de
Erasmo de Roterdã, produziu-se o que seria, séculos à frente, uma defesa da paz e da
tolerância religiosa –, é fundamental depreender-se que o problema com o outro, em
matéria religiosa, apresenta-se como permanente, e as soluções que o pensamento
ocidental buscou para isso têm sua diversidade e temporalidades próprias. Assim, não é
estranho que pensadores diversos buscassem justificações para suas defesas próprias da
tolerância em elementos de origens diversas, tais como as interpretações da Bíblia e
autores da Antiguidade Clássica, mobilizando argumentos cuja legitimidade era
reconhecida, algo fundamental em contextos de conflito, em que posições em defesa da
tolerância eram, costumeiramente, minoritárias.111
107
HUIZINGA, Johan. Erasmus and the Age of Reformation. Ed. Harper Torchbook. London, 1957. E
book. Produced by John Hagerson, Juliet Sutherland, David King, and the Online Distributed
Proofreading Team at http://www.pgdp.net. p. 191-193.
108
LINS, Ivan. Erasmo, a renascença e o humanismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.
109
KAMEN, Henry. O amanhecer da tolerância. Op. Cit. p. 26-31.
110
TURCHETTI, Mario. Une question mal posée: Érasme et la tolérance. L’idée de Sygkatabasis.
Bibliothèque d’Humanisme et Renaissance. Genève, 53 (2), 1991. p. 379-395.
111
Uma discussão interessante nesse sentido está em Stephen J. Barnett, a respeito do que ele chama de
“problema da influência” na análise da História das Ideias. Segundo ele, existem alguns problemas
metodológicos sérios em trabalhos de muitos historiadores nos quais se encontra alguma “influência” de
algum autor sobre outro. Em diversas vezes, ela não é demonstrada de maneira suficiente. Por exemplo,
80
No caso ibérico, a questão sobre o tratamento com minorias religiosas foi um
vasto campo de embates por toda a Idade Moderna. A Ibéria, como a historiografia já
tem demonstrado, apesar de não estar alheia aos pontos de discussão colocados até aqui,
comuns a todo o contexto europeu, veio a desenvolvê-la com diversas particularidades.
Merecem destaque dois aspectos fundamentais, no que toca à análise histórica sobre a
tolerância religiosa na Idade Moderna: o primeiro concerne ao tratamento a ser
dispensado a judeus e a cristãos novos, enquanto o segundo versa também sobre a
legitimidade dos tribunais do Santo Ofício. No caso de Portugal, do início da
Modernidade até as Luzes, com variantes diversas ao longo dos séculos, essas questões
aparecem com alguma frequência, o que se verifica nas fontes e também em vários
estudos já realizados sobre tais temáticas. Além disso, algumas formas de tolerância
religiosa enraizadas na cultura popular têm sido bastante discutidas na historiografia
sobre esse tema na Europa católica moderna. Como foi dito acima, no ponto das
discussões sobre as teses de tolerância de Habermas e Ricoeur, é necessário considerar
as inúmeras matrizes da ideia de tolerância religiosa, o que vai além das formulações
filosófico-teológicas dos círculos letrados, sem, contudo, prescindir delas. No contexto
luso-brasileiro do século XVIII, nas formulações a respeito da tolerância religiosa, há de
se considerar, pelo menos, três matrizes importantes, que dialogam umas com as outras.
Há uma tradição, que remete à cultura popular, formada ao longo dos séculos de
convivência na Península Ibérica entre cristãos, judeus e muçulmanos e também a
alguns aspectos específicos da religiosidade ibérica, que formam uma espécie de
“tolerantismo popular”. Juntamente com eles, há um campo bastante multifacetado e
citações de um autor sobre outros podem significar muitas coisas, e não necessariamente uma influência.
Elas podem indicar, por exemplo, que determinado autor recorreu a alguma obra reconhecida como
argumento de autoridade em algum contexto. Isso, segundo Barnett, torna-se um problema para a História
das Ideias quando implica recorrentes demonstrações lacunares e precárias a respeito de algum autor ter
sido influenciado por outro e que, na medida em que se repetem, tornam-se “verdades”, embora jamais
tenham sido devidamente sustentadas nas fontes. Na verdade, conclui o autor, as supostas influências
encontradas por muitos autores nada mais fazem que reproduzir como verdade algumas leituras de
determinadas obras feitas por seus contemporâneos, muitos deles, inclusive, com perspectivas
antagônicas a eles. Tal perspectiva, afirma Barnett, nada mais é que uma tentativa de reconstituição
retroativa de ideias de autores, sempre em cima de fontes que não sustentam tais conclusões e, mais que
isso, que isolam o autor de seu próprio tempo histórico, desconsiderando elementos que poderiam ter
interferido na sua obra, que extrapolam as leituras de outros letrados de seu tempo ou anteriores, que vão
de suas experiências de vida até sua inserção social. Nesta tese, essa crítica metodológica é fundamental,
tendo-se em vista o zelo no sentido de se evitarem, por exemplo, inferências categóricas de supostas
“influências” de autores importantes do contexto das Luzes, tais como Locke, Voltaire e Rousseau, nos
escritos dos luso-brasileiros, fiando-se apenas em uma proximidade de argumentos – identificável a
posteriori, pelo historiador –, ou na evidência do contato, seja dos letrados das Luzes luso-brasileiras, seja
dos libertinos que caíram nas malhas inquisitoriais, com os livros desses mesmos autores. Este assunto
será levantado, novamente, nos capítulos 2 e 3 desta tese. BARNETT, Stephen J. The Enlightenment and
religion. Op. Cit. p. 22-26.
81
amplo de debates e disputas dentro do pensamento cristão-católico do Iluminismo. Tais
discussões foram feitas sobre as bulas, a Inquisição, as censuras, e embates entre ordens
religiosas e a monarquia católica, remetendo a uma tentativa dos próprios católicos de
formularem uma variante própria do conceito de tolerância que fosse aplicável a seus
contextos. Por fim, não menos importante, os debates e apropriações das várias
correntes do pensamento iluminista se entrelaçam nessas formulações.
A historiadora Maria Guadalupe Pedrero Sanches demonstra que houve, ao
longo da ocupação muçulmana na Península Ibérica, entre o século VIII e as Guerras de
Reconquista, uma relativa paz entre judeus, muçulmanos e cristãos sob domínio
islâmico. A historiadora citada, é bem verdade, combate idealizações sobre a tolerância
civil-religiosa reinante entre tais credos no referido contexto. Ao fim desse período de
paz – que esteve em constante declínio desde o século XIII –, na Idade Moderna, após
as guerras de Reconquista da Península Ibérica, houve a intensificação das hostilidades
entre católicos e minorias religiosas que ali permaneceram. Os tribunais do Santo
Ofício, reintroduzidos em 1478, em Castela, foram um desdobramento mais agudo de
um longo processo de violência, que se sucedeu a um longo período de convivência
relativamente tolerante entre cristãos, muçulmanos e judeus.112 Porém, tais formulações
sobre um tratamento pacífico com minorias religiosas já existiam no pensamento ibérico
desde muito antes, como, por exemplo, demonstra o medievalista Sérgio Alberto
Feldman em sua análise sobre a obra de Isidoro de Sevilha, do século VII. De acordo
ele, Isidoro de Sevilha, na obra Historiae, dedicada ao monarca visigodo Sisebuto,
apesar de não criticar o projeto de conversão dos judeus em si, censura sua conversão
forçada ao Catolicismo, já que o uso da força para esse fim, segundo Isidoro, era, além
de ineficaz, contrário ao que determinavam os ensinamentos do Cristianismo.113
Juntamente com esses estudos, há também outros trabalhos que indicam haver, seja nos
debates de uma elite letrada, formada por teólogos, diplomatas, pensadores e nos
diversos escritos políticos, seja na cultura popular, alguma permanência na cultura
ibérica de alguma tolerância no trato com a diferença religiosa.114
112
Sobre esse assunto, ver a primeira parte da obra: KAMEN, Henry. La Inquisición española: una
revisión histórica. Barcelona: Editorial Crítica, 1999; PEDRERO-SÁNCHEZ, Maria Guadalupe.
Os judeus na Espanha. Editora Giordano, 1994.
113
FELDMAN, Sérgio Alberto. Isidoro de Sevilha e o rei Sisebuto: a conversão dos judeus no reino
Visigótico. Revista Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. 13 (2), p. 97-115, 2013. p. 112.
114
KAMEN, Henri. Toleration and dissent in sixteenth-century Spain: The alternative tradition. Sixteenth
Century Journal, vol. 19, nº. 1, p. 3-23 (Spring, 1988); SCHWARTZ, Stuart. Cada um na sua lei:
tolerância religiosa: salvação no mundo atlântico ibérico. São Paulo/Bauru: Companhia das Letras/Edusc,
2009.
82
A respeito, especificamente, da minoria judaica, desde o século XVI até o
XVIII, observa-se uma constância do tema sobre a legitimidade ou não de sua coerção e
vigilância. Uma crítica famosa à violência usada contra os judeus no limiar da Idade
Moderna portuguesa veio na Crônica do felicíssimo rei Dom Manuel, feita por Damião
de Gois. No capítulo CII, da primeira parte da crônica, o poeta humanista narra com
tons de reprovação o massacre acontecido em Lisboa, em 1506, contra os cristãosnovos, que começou num episódio em que “um frade no mosteiro de São Domingos, em
uma capela chamada de Jesus”, dizia ter visto um sinal milagroso num crucifixo, que foi
posto em dúvida por um cristão-novo, que dizia que aquilo “parecia apenas uma candeia
acesa” ao lado do referido objeto. Incitados pelos frades, “alguns homens baixos”,
tiraram o cristão-novo da capela pelos cabelos e o mataram, queimando o corpo no
Rossio, em seguida. Assim, “essa turma de maus homens & frades, que sem temor de
Deus andavam pelas ruas concitando o povo a esta tamanha crueldade” contra os
cristãos-novos, continuou o massacre movido por “portugueses encarniçados neste tão
feio e inumano negócio (...) por ódio e malquerença a Cristãos, para se vingarem deles,
[e] davam a entender aos estrangeiros que eram Cristãos-novos, e nas ruas ou em suas
casas os iam assaltar e os maltratavam”.115 Há tópicas, nessa obra, que foram
constantes, embora com grandes variantes no tempo, em que a violência contra judeus e
outras minorias religiosas é associada a uma forma negativa de se seguir o Catolicismo,
existente tanto no meio de leigos como do clero.
A repressão inquisitorial aos judeus também foi um tópico de longa duração e
que perpassou discussões a respeito da tolerância religiosa. Por exemplo, a ideia da
Inquisição como “fábrica de judeus” – já que sua vigilância constante aos cristãos-novos
e os métodos investigativos dos tribunais do Santo Ofício fariam com que verdadeiros
católicos fossem condenados por confessar culpas imaginárias, forçados pelos
inquisidores – apareceu em pensadores portugueses bastante separados no tempo e
espaço, tais como o padre Antônio Vieira, no século XVII, e Luís Antônio Verney e
Antônio Nunes Ribeiro Sanches, pensadores iluministas do XVIII, embora se devam
registrar as diferenças substanciais existentes nas suas abordagens.116 A polêmica sobre
115
GOIS, Damião de. Chronica do Felicissimo Rei Dom Emanuel composta per Damiam de Goes,
Diuidida em quatro partes... - Em Lisboa: em casa de Francisco Correa, 1566-1567. p. 228-229.
Disponível em: <http://purl.pt/14704> . Aceso em: set. 2017.
116
MARCOCCI, Giuseppe e PAIVA, José Pedro. História da Inquisição portuguesa: 1536-1821. 1ª
edição. Lisboa: A Esfera dos Livros, editora, 2013. p. 196-209; RÊGO, Raul. Prefácio. In: RIBEIRO
SANCHES, Antônio Nunes. Christãos velhos e christãos novos em Portugal: origem da denominação.
83
se a Inquisição perseguia, efetivamente, pessoas e grupos de indivíduos que
conservavam ou potencialmente praticavam ou conheciam alguma crença judaica, ou se
as mesmas perseguições se davam em cima de um judaísmo imaginário, teve seus ecos
na historiografia, na querela entre Antônio José Saraiva, defensor do segundo ponto, e
Israel Salvator Révah, do primeiro.117 Também foram bastante importantes as diversas
associações feitas entre a repressão inquisitorial aos cristãos-novos e judeus e a
decadência econômica portuguesa. Possivelmente, a crítica mais conhecida neste
sentido foi a do padre Antônio Vieira. A historiografia mostra que Vieira propõe um
novo tratamento aos cristãos-novos, alegando a necessidade de cooptar seu capital
financeiro para dinamizar a economia portuguesa. Como evidencia Adriana Romeiro,
nos textos do referido jesuíta relativos ao Quinto Império, os judeus têm um papel de
destaque, embora seu raciocínio, nesse sentido, não seja meramente utilitário. Seu
argumento é essencialmente religioso, ainda que tocante a temática econômica, na
medida em que na Idade Moderna tais esferas não fossem absolutamente separadas. Sua
narrativa, ainda, remete à própria origem da nação portuguesa. Trata-se de uma espécie
de sentimento filossemítico, que perpassaria o pensamento luso-brasileiro ao longo do
século XVII, com impacto direto nas discussões sobre a tolerância religiosa, bem como
nas críticas ao Santo Ofício, que foi suspenso entre 1675 e 1681.118 Assim, há um
equívoco em se entender que tal argumento seja meramente utilitário ou que revele uma
hierarquia entre o econômico e o religioso nos escritos de Vieira. Um raciocínio com
alguma semelhança com o do notório jesuíta aparece, décadas depois da morte de
Vieira, sob a pena do diplomata d. Luís da Cunha, no seu Testamento Político. Nessa
obra, que será mais detidamente analisada no Capítulo 2 desta tese, vê-se que a
distinção entre cristãos novos e cristãos velhos se converteu em uma “sangria” para
Portugal, arruinando sua agricultura e indústria. As raízes dessa distinção remetem ao
fim da Idade Média e sua plena consolidação se deu, na sociedade portuguesa, entre
Lisboa: Herdeiros de Raul Rêgo e Editora Sá da Costa, 2010. p. 10; VERNEY, Luís Antônio. Cartas
Italianas. Op. Cit. p. 105.
117
Nesta tese, não farei uma análise profunda a respeito dessa polêmica. Sobre este assunto, ver:
ROWLAND, Robert. Inquisição, intolerância e exclusão. Ler História, 33, p. 9-22 (1997). p. 15-16. Na
sexta edição do ensaio Inquisição e cristãos-novos, de Antônio José Saraiva, publicada em 1994, há um
anexo com entrevistas de Saraiva e Israel Salvator Révah, além de algumas publicações de ambos em que
essa polêmica fica bem sintetizada. Trata-se de entrevistas, artigos em jornais e outras publicações nas
quais a discussão sobre as teses do “judaísmo imaginário”, criado pela Inquisição portuguesa, e a de um
potencial “judaísmo subterrâneo”, que aflorava, em alguns momentos, em reação às perseguições, pode
ser vista em alguns detalhes. SARAIVA, Antônio José. Inquisição e cristãos-novos. Lisboa: Editorial
Estampa, 1994. 6ª edição. p. 211-292.
118
ROMEIRO, Adriana. Um visionário na corte de D. João V: revolta e milenarismo nas Minas Gerais.
Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001. p. 132-134.
84
meados do XVII até a primeira metade do XVIII.119 Ela também se tornou um objeto de
crítica, em grande parte associado ao debate sobre a tolerância, uma vez que foi tomada,
por alguns autores, como a responsável por diferentes problemas, desde corromper
princípios cristãos até introduzir uma espécie de sedição entre os súditos da monarquia
católica.
As diversas críticas ao Santo Oficio também foram, de alguma forma, contínuas
entre sua fundação e extinção. Segundo Francisco Bethencourt, a perseguição aos
cristãos-novos, principal foco de atividade e motivo explícito da fundação dos tribunais
de Portugal e Espanha, suscitou desde o início alguma oposição, inclusive de alguns
setores de cristãos-velhos. Tratava-se de alguma resistência, estruturada em movimentos
de pressão junto ao Papa, com ideias e objetivos bastante precisos, os quais serão
encontrados posteriormente nos opositores da Inquisição. Na Espanha, essas pressões
existiram desde o final do século XV, antes e pouco depois da fundação do tribunal de
Castela, em 1478, evidenciando fortemente a defesa de uma imagem da ação
inquisitorial como arbitrária. Os primeiros protestos foram apresentados muito
rapidamente ao Papa, e a pressão foi forte o bastante para que se criasse uma
regulamentação interna do Santo Ofício após seu período inicial de terror. Essa imagem
de ação arbitrária difundiu-se na Europa em decorrência das expulsões dos judeus e
cristãos-novos de Portugal e Espanha ao longo do século XVI. Ela se relaciona, por
exemplo, à sublevação ocorrida em Nápoles contra a tentativa de se implantar um
tribunal sob controle do Santo Ofício espanhol. O papel dessa contra-imagem da
Inquisição, difundida por toda Europa, continua Bethencourt, é também importante nas
mobilizações dos Países Baixos, também contra possível implementação desses
tribunais, a partir de boatos e relatos sobre as formas e estilos do Santo Ofício,
difundidos por descendentes de judeus dessa região, vindos da Península Ibérica.120
Bethencourt também lembra que, entre os séculos XVI e XIX, essa oposição ao
Santo Ofício produziu uma vasta literatura. Segundo ele, publicações polêmicas contra a
Inquisição acolheram algumas ideias já formuladas nas petições e relações dos cristãosnovos. Ela também introduziu temas novos e, sobretudo, conseguiu grande difusão
graças à tipografia. Uma campanha sistemática – que não era possível no caso dos
cristãos-novos, por conta de sua situação religiosa marginal, além de preconceitos
119
OLIVAL, Fernanda. Rigor e interesses: os estatutos de limpeza de sangue em Portugal. Cadernos de
Estudos Sefarditas, Universidade de Lisboa: nº 4, p. 151-182, 2004. p. 154.
120
BETHENCOURT, Francisco. História das inquisições: Portugal, Espanha e Itália. Séculos XV-XIX.
São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 338-340.
85
étnicos – teve grande amplitude, sobretudo, devido às publicações produzidas por
protestantes. Eles estavam no centro das polêmicas religiosas da Época Moderna,
participando de forma mais ativa dos processos de mudança de valores. “Mas a dialética
do conflito de imagens sobre a Inquisição”, conclui Bethencourt, “não pode ser
compreendida em toda a sua extensão sem referências, por um lado, às respostas dadas
pelo tribunal em seu trabalho de legitimação e, por outro, à diferenciação progressiva da
opinião no campo católico”.121 Em suma, sintetizando as tendências gerais das
formulações polêmicas contra os tribunais da Inquisição na Idade Moderna:
A formulação dos novos valores fez-se, assim, por oposição à imagem
da Inquisição: em primeiro lugar a liberdade de consciência, noção
que emerge durante a segunda metade do século XVI; em seguida a
tolerância, durante as últimas décadas do século XVII. Ao longo do
século XVIII e do início do século XIX pudemos seguir, do lado
protestante, o desenvolvimento desses temas, o enraizamento das
memórias dos ex-presos e das narrativas dos dissidentes do tribunal, a
autonomia progressiva da historiografia sobre a Inquisição em face
dos envolvimentos polêmicos mais visíveis, segundo a sólida tradição
das principais publicações de Reginaldus Montanus e de Van
Limborch.122
Tanto as questões sobre os cristãos-novos e judeus como as a respeito da
Inquisição serão retomadas no próximo capítulo. As relações entre as representações pró
e contra os mesmos tribunais de fé e a defesa da tolerância religiosa serão analisadas
mais a fundo no Capítulo 3 desta tese. Mas é importante, ao menos, mencionar tais
pontos aqui. Isso porque muitas das formulações em defesa da tolerância religiosa, no
período focalizado nesta tese, apresentam características que remetem a tópicas já
existentes no contexto luso-brasileiro fazia séculos e em muitos âmbitos. Em suma,
muitas das formulações, que serão analisadas ao longo desde trabalho, ainda que feitas
no século XVIII e dialogando com problemas dele, não prescindem de bases que
remetem aos séculos anteriores. Ainda que, no começo deste capítulo, tenham sido
levantados e analisados alguns problemas com as sínteses historiográficas sobre as
Luzes, uma delas, recente, servirá para delimitar de forma mais clara esse problema.
Trata-se do ensaio O Espírito das Luzes, do recentemente falecido pensador búlgaro
Tzvetan Todorov. No ensaio, logo nas suas primeiras linhas, Todorov deixa claro seus
objetivos gerais, que são o de recorrer à Ilustração como forma de pensar as bases
intelectuais e morais da Modernidade, em um mundo pós-utopias. Ele define que “quis,
assim, sem desviar o olhar de nossa época, destacar as grandes linhas do pensamento
121
122
Ibidem, p. 354-355.
Ibidem, p. 354.
86
das Luzes, num vaivém constante entre passado e presente”.123 Não se trata de um
retorno, por ele mesmo, ao passado, uma vez que seria um anacronismo buscar soluções
para a contemporaneidade nas ideias das Luzes. O mesmo aconteceria ao atribuir chaves
de leitura, a partir dos escritos dos pensadores iluministas, para a contemporaneidade,
pois os contextos desses autores e de suas obras, de fato, por mais universalistas que se
pretendessem, não teriam como se propor a resolver problemas que não os de suas
respectivas épocas, dentro dos limites nos quais tais obras foram pensadas e
sistematizadas. A questão é que, no contexto que, em alguma medida, confere uma
identidade ao que chamamos de Modernidade e, em última análise, também se coloca
como elemento constituinte do que nós somos como sociedade, o ensaio de Todorov
propõe-se a fazer esse movimento a fim de repensar uma gama de relações entre
passado e presente. Seu objetivo é refletir sobre a origem e a formação de valores que a
contemporaneidade viria a cristalizar como ideais de sociabilidade. Nesse ponto, sua
obra possui alguma similaridade com as discussões anteriormente mencionadas
referentes aos trabalhos de Habermas e de Ricoeur, a respeito da tolerância nas
democracias liberais.
A partir daí, antes de se debruçar sobre temas específicos, Todorov recorre a
uma formulação geral que marca a sua concepção sobre as Luzes do século XVIII. Para
ele, as ideias que caracterizam o Iluminismo não surgiram no Setecentos, mas contêm
reelaborações de valores mais longevos, advindos da Antiguidade, do Medievo e do
Renascimento. Relidos, reelaborados e reorganizados, sob as Luzes, tais valores
ganharam formas inéditas. Além disso, segundo Todorov, é na Ilustração que valores
como a tolerância, liberdade e igualdade foram articulados de maneira mais fortemente
voltada para a mudança na realidade. Trata-se, para ele, de um contexto de múltiplos
dissensos e disputas, muito mais que consensos. Porém, em seu interior, pode-se
encontrar um fio condutor calcado em três ideias chave: a autonomia, a finalidade
humana de nossos atos e, enfim, a universalidade.124 Assim, por vias diversas e em meio
a muitas elaborações divergentes e disputas intensas, os pensadores iluministas
tenderam, por caminhos divergentes e muitas vezes opostos, a privilegiar a escolha
humana ao invés da obediência aos dogmas, submetendo toda ordem, natural e
sobrenatural, às mesmas leis. Eles, ao assim procederem, entendiam e consolidavam a
necessidade de que as decisões humanas fossem, cada vez mais, autônomas, moral e
123
124
TODOROV, Tzvetan. Espírito das Luzes. Op. Cit. p. 10.
Ibidem, p. 11-14.
87
eticamente, não sendo tuteladas por nenhuma autoridade. O questionamento da tutela,
de natureza religiosa, à qual a humanidade estava submetida até as Luzes, orienta o
pensamento para o presente, mutável, e para o futuro, melhor que o hoje, e não ao
passado, lugar da autoridade pautada na ancestralidade. As ações e as representações de
mundo são assim “desencantadas”, perdendo espaço a magia e a revelação, em
privilégio da ação humana. “À certeza da Luz descida do alto substituir-se-á a
pluralidade de luzes que se difundem de pessoa para pessoa”, sintetiza Todorov.125
Dessa maneira, a exigência de autonomia é levada ao espaço coletivo, e seu
efeito mais visível é a separação do teológico do político. A própria ciência, produzida
autonomamente pelos pensadores das Luzes, adquire força política ao se associar ao
despotismo esclarecido e outras vertentes, segundo Todorov. O conceito de soberania,
existente, pelo menos, desde o medievo, é reelaborado de forma a se reconhecer nele
um poder emanado do povo, da vontade geral, por um lado, e também do indivíduo, em
relação à organização social estabelecida.
Todos os setores da sociedade tendem a se tornar laicos, ainda que os
indivíduos permaneçam crentes. Esse programa concerne não somente
ao poder político, mas também à justiça: o delito, dano causado à
sociedade, é o único a ser reprimido, e deve ser diferenciado do
pecado, falta moral para com uma tradição. Também a escola, destinase a ser subtraída ao poder eclesiástico para se tornar um lugar de
propagação das Luzes, aberta a todos, portanto gratuita, e ao mesmo
tempo obrigatória para todos. E assim a imprensa periódica, que passa
a ser o lugar do debate público. Também a economia deve ser liberada
das obrigações arbitrárias e permitir a livre circulação dos bens; deve
fundar-se sobre o valor do trabalho e do esforço individual, em vez de
encher-se de privilégios e de hierarquias vindos do passado. O lugar
mais apropriado para todas essas mutações é a cidade grande, que
favorece a liberdade dos indivíduos e lhes dá ao mesmo tempo a
oportunidade de se encontrar e debater em comum.126
Com todas as limitações que uma síntese como esta possui, considerando
também seu caráter ensaístico e seu objetivo que é pensar as bases éticas e intelectuais
da contemporaneidade ocidental, dela é possível depreender alguns pontos importantes
para se entenderem o Iluminismo católico e também suas particularidades no contexto
luso-brasileiro e, mais especificamente, as discussões referentes à tolerância religiosa.
Isso porque Todorov, no dito ensaio, ao invés de buscar na Ilustração um princípio de
valores que se desenvolveriam, a partir dela, de forma linear, até o presente, propõe um
modelo teórico para se pensar esse contexto de forma diacrônica. Pensa-o de maneira a
125
126
Ibidem, p. 17.
Ibidem, p. 19-20.
88
se entender que alguns valores, amplamente identificados com os pensadores
iluministas, tiveram sua elaboração a partir de muitas outras influências, que não se
limitam, somente, aos círculos dos philosophes. No caso do contexto analisado nesta
tese, é difícil, por exemplo, dissociar a tolerância religiosa, defendida por alguns
letrados que publicaram dentro e fora de Portugal, ou a defendida pelos libertinos, que
foram perseguidos pela Inquisição, sem localizá-las numa dinâmica de circularidade de
ideias. Nessa dinâmica, pontos formulados por nomes como Voltaire e Rousseau se
misturavam às disputas teológicas e políticas do contexto católico, com a experiência
cultural e religiosa com “hereges” e muitos outros elementos.
É importante salientar, aqui, dois pontos específicos, para se pensar as Luzes no
contexto luso-brasileiro, relacionando-as com os pressupostos colocados no ensaio de
Todorov. O primeiro é que a vertente católica do Iluminismo também elaborou sínteses
de tópicas de séculos anteriores, retomou-as e as problematizou de formas inéditas até
então, transformando-as em ações na vida coletiva. É fundamental, também, levar-se em
conta que o diálogo desses autores com pensadores da Europa setentrional foi constante.
Na verdade, os luso-brasileiros, muitas vezes, entravam em disputas com esses autores
estrangeiros a respeito de pontos relativos à religião, política, trato com minorias
religiosas e muitos outros. Todavia, como ressalta Stephen J, Barnett,127 é necessário
entender que, muitas vezes, tais pensadores estão ocupados com querelas que envolvem
interlocutores internos, inseridos em seu próprio contexto político e religioso, dentro de
uma linguagem própria dela e com aparatos conceituais e teóricos, problemas e
pressupostos disponíveis nesses espaços específicos de discussão. Isso é importante,
inclusive, para se entender que as elaborações sobre a tolerância religiosa também
trazem consigo elementos similares aos apontados em estudos, como os de Carlo
Ginzburg e Adriana Romeiro, sobre a existência de algum nível de tolerantismo de base
popular. A memória sobre os conflitos de religião e sobre seus efeitos para o bem
comum, ou sobre a própria legitimidade da liberdade religiosa, sob o ponto de vista
teológico cristão-católico, traz elementos pertinentes às formulações sobre a tolerância
religiosa e que extrapolam, em muito, os pontos de discussão restritos a uma cultura
erudita “laica”.128 Dito isso, o segundo ponto fica mais claro: no contexto católico, no
127
BARNETT, Stephen J. The Enlightenment and religion. Op. Cit. p. 45-80.
Ibidem, p. 168-200 e 215-221; GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de
um moleiro preso pela Inquisição. Trad. Maria Betânia Amoroso. São Paulo: Cia das Letras, 2006;
ROMEIRO, Adriana. Todos os caminhos levam para o céu: relações entre a cultura popular e erudita no
Brasil no século XVI. Dissertação de mestrado. Campinas, 1991.
128
89
século XVIII, a partir de aparatos que vão de matrizes tolerantistas populares até
embates teológicos e político-filosóficos próprios daquele contexto, em diálogo com
realidades que lhe são exteriores, o Iluminismo produziu e disputou, num cenário maior
de dissensos das Luzes, as definições de tolerância religiosa. Além disso, esse
iluminismo católico participou de embates concernentes a esta questão, como o combate
ao fanatismo e aos abusos nas perseguições às dissidências religiosas. Em meados do
século XVIII, a tolerância religiosa já era um tópico importante da cultura letrada.
Diferentes autores, tais como Locke, Bayle e muitos outros, debruçaram-se sobre o tema
e produziram uma considerável literatura sobre ele, com repercussões nos debates
intelectuais, filosóficos, teológicos e políticos desenvolvidos em toda a Europa e em
alguns lugares fora dela. A tolerância religiosa, a essa altura, já se colocava como uma
espécie de imperativo civilizatório, e os pensadores da Europa católica não se furtaram a
uma verdadeira batalha por definições referentes a ela. Ou ainda, buscaram espaço nessa
disputa em função de afastarem do pensamento católico a pecha, ali já reprovável, de
intolerante. Tornou-se necessário inserir-se, nessa discussão, a origem de um ideal de
“tolerância cristã”, que, segundo Juan Pablo Domínguez, começou a se estender entre os
católicos, especialmente entre aqueles setores que clamavam por uma Igreja menos
sujeita ao papado, “por uma piedade mais austera, uma teologia menos escolástica e
uma moral mais próxima do espírito do Evangelho, fortemente influenciada pelo
febronismo e pelo jansenismo”. Quanto ao último termo, convém ressaltar a
necessidade de levar-se em consideração seu uso, que é controverso e bastante genérico.
Na pluralidade de teologias católicas do Setecentos, muitas vezes, reuniam-se, sob esse
termo, tendências regalistas e outras consideradas “não alinhadas”.129 No geral, segundo
o mesmo autor, no contexto das Luzes, diante da afirmação crescente da tolerância
religiosa como uma virtude moral imprescindível para se alinhar à modernidade
iluminista e aos ideais de bom governo, mesmo entre aqueles defensores da punição da
heresia, havia a necessidade de se livrar da deformidade da intolerância e de se
formularem definições de tolerância propriamente católicas. Nessas formulações, a
defesa de um Catolicismo dissociado de “vícios” – tais como o exteriorismo barroco e
as práticas consideradas supersticiosas –, a associação entre alguma tolerância e o
crescimento demográfico e desenvolvimento econômico e, também, a necessidade de se
reformar, ou mesmo abolirem-se as Inquisições, conjugaram-se com a defesa de um
129
DOMÍNGUEZ, Juan Pablo. Reformismo cristiano y tolerancia en España a finales del siglo XVIII.
Hispania Sacra, v. LXV, n. Extra II, p. 113–172, 2013. p. 116-117 e 120-121.
90
Catolicismo mais subordinado à autoridade civil, visando ao bem comum. Segundo tal
perspectiva, a essa mesma autoridade, sob sua égide, em nome da paz pública, cabia
tolerar ou não minorias religiosas.130 No caso português e luso-brasileiro, isso se faz ver
de diversas formas nas obras de autores como d. Luiz da Cunha, Basílio da Gama, Luís
Antônio Verney, Antônio Ribeiro Sanches ou, até mesmo, nos escritos do próprio
Sebastião José de Carvalho e Mello. O objetivo do próximo capítulo será analisar, mais
a fundo, estes pontos.
130
Ibidem, p. 137-139.
91
Capítulo 2 – A secularização, a tolerância e a cultura letrada
sob o pombalismo
“Não vistes a impressão, que os ateístas
Das suas doutas vozes receberam?
Como os mais sábios Chinas, e os Deístas
A os seus altos clamores atenderam?
E como os Libertinos revogaram
As confusas ideias, que aprovaram?
Agora vai buscar do Turco Império
O mais esclarecido magistério
Para também rende-lo: do Hebraísmo
Procurará o indômito aforismo
Para voltar-lhe os ritos: conjecturo
Que senão intentais embaraça-lo,
Daqui a pouco tempo algum vassalo
O Abismo não terá, em que se veja
Contra a luz Evangélica da Igreja
Prosseguir a soberba tirania
Da nossa antiga, infausta monarquia”
(Francisco de Pina e de Sá e de Melo, O
Triumpho da Religião, p. 202).
No capítulo anterior, buscou-se discutir os modelos teóricos tradicionais sobre o
Iluminismo e qual é o lugar ocupado pela religião no interior deles. A partir daí, tornouse possível analisar algumas das implicações desses modelos para se compreender as
Luzes no mundo luso-brasileiro e, ao mesmo tempo, repensar, com base na
historiografia, os contornos que lhes foram dados pelo Catolicismo nesse contexto
social, cultural e intelectual. Ficou claro que uma secularização idealizada, parte
integrante de um modelo explicativo pautado num “Iluminismo único”, de matriz
francesa, em que a religião e cultura católicas e/ou própria religião em si são vistos
como evidências de atraso, trazem obstáculos aos estudos sobre a Ilustração no referido
contexto. A historiografia demonstra um curso particular de desenvolvimentos das
ideias iluministas dentro dos contextos católicos, com demandas e debates distintos,
ainda que com pontos diversos em comum com o sucedido, por exemplo, na Inglaterra
ou na França. Compreender essas especificidades contextuais das Luzes, escapando da
oposição entre “modernidade” e “atraso”, repita-se, é fundamental nesta tese. Se
partíssemos de modelos tradicionais de interpretação sobre as Luzes, como já foi dito, a
92
análise do processo de secularização e da defesa da tolerância religiosa, a partir da
segunda metade do século XVIII, seus múltiplos agentes e perspectivas, no mundo lusobrasileiro, conduziria à mera negação de sua existência. Ou, num cenário mais otimista,
levaria a concluir-se que a secularização e a defesa da tolerância religiosa, dentro do
recorte espacial e temporal supracitado, resumiram-se a fatos isolados e descarnados de
contexto, ou, ainda, a algo que se limitou a ideias importadas, reproduzidas
mecanicamente. Noutras palavras, seria analisar um tema ou pela sua negativa, ou por
sua presumida inexpressividade ou fracasso. A leitura das fontes traz respostas muito
mais complexas do que essas conclusões baseadas em modelos interpretativos estreitos.
A negação da existência de um processo de secularização ou apenas a
reafirmação de sua incompletude, tomando como referência outros contextos, sobretudo
a Europa setentrional, vai de encontro ao que grande parte da historiografia demonstra a
respeito de um contexto de mudanças do status da Igreja católica na vida pública no
contexto luso-brasileiro a partir de meados do século XVIII. Idêntica conclusão vale
quanto à relação da Igreja com a Coroa e as suas instituições, além da importância dos
cleros regular e secular no interior destas. A hipótese que vai nortear este capítulo é de
que tais mudanças, somadas a novas leituras acerca do papel própria religião na vida e
nos espaços públicos, marcaram, a partir da segunda metade do século XVIII, a
constituição de um espaço de disputas em torno do religioso, no mundo luso-brasileiro.
Além disso, cumpre ressaltar que algumas dessas leituras possuíam raízes anteriores.
Essas disputas envolveram vários grupos sociais, abarcando desde as elites letradas
ligadas à Coroa até as camadas médias e populares da sociedade. Cada um desses
setores, possuía expectativas e percepções próprias sobre as ideias de modernidade que
ali circulavam. Aqui, o objetivo é demonstrar como formulações sobre a tolerância
religiosa estiveram inseridas nesse campo de disputas.
Essa primeira hipótese sobre a defesa da tolerância religiosa nas Luzes no
mundo luso-brasileiro, em suas articulações com um processo de secularização do
mesmo contexto, pode ser complementada por outras. Por um lado, o ideal de defesa da
unidade entre a Coroa e a Igreja foi reforçado, e instituições como os vários órgãos de
censura e a Inquisição foram preservados, ainda que readequados a novos projetos de
Estado. Por outro, muitas das reformas propostas na esfera pública foram apresentadas
por seus proponentes de modo mais ou menos coevo com tópicos do Iluminismo a
respeito da tolerância, mesmo que com diversas ambiguidades. Uma dessas
ambiguidades é explicável, ainda que em parte, pelo envolvimento de alguns desses
93
agentes nos mencionados projetos de Estado. Dito de outra maneira, em meados do
século XVIII, no mundo luso-brasileiro, as formulações sobre a tolerância religiosa
foram balizadas pelo Iluminismo católico e por seus diversos debates, por
sociabilidades específicas e também por percepções sobre a necessidade de reformas, de
todos os âmbitos, em Portugal e suas colônias. Procurou-se um ideal de pureza de fé
conjugando-o com um combate à superstição, ao fanatismo e à ignorância. Isso tinha
correlações com as ideias e os debates das Luzes e, ao mesmo tempo, com um substrato
cultural existente na Península Ibérica e colônias, e que lhes eram muito anteriores. Essa
relação entre um substrato cultural ibérico, que remonta séculos anteriores ao XVIII,
que serviu como aparato importante no que toca a constituição de filtros para se
interpretar tópicas da Ilustração, formular problemas e críticas tocantes a diversos
aspectos culturais e religiosos do Catolicismo, será um pressuposto importante neste
capítulo. Registre-se que perspectiva similar encontra-se em trabalhos de Luiz Carlos
Villalta e Anita W. Novinsky, cujos objetivos eram distintos dos desta tese.1 Aqui, o
objetivo é demonstrar, em termos mais gerais, como esses processos deram-se dentro da
cultura letrada, muitas vezes patrocinada ou apoiadora do projeto reformista de
Sebastião José de Carvalho e Melo, ministro de d. José I, mais conhecido pelos títulos
que recebeu do soberano, de Conde de Oeiras e, posteriormente, de Marquês de Pombal.
Sua figura foi central em todo esse processo de reformas.
Para tanto, serão analisadas obras de vários pensadores portugueses e lusobrasileiros, da época pombalina e pouco anteriores a ela. Nessa análise, serão
priorizadas algumas tópicas, tais como a presunção de um atraso de Portugal em relação
às “nações cultas” da Europa, o antijesuitismo e as críticas gerais ao clero regular, além
de um dirigismo cultural, no sentido de se modernizar as mentalidades. Essas tópicas
fizeram-se presentes em muitas publicações, cujos autores estavam mais ou menos
alinhados ao reformismo pombalino. Tais obras indicam possibilidades para
compreender-se e contextualizar o processo secularizador no referido período, e,
ademais, para discutir como a questão da tolerância religiosa perpassou os debates de
então. No geral, as fontes indicam haver no Iluminismo católico português e lusobrasileiro uma dupla rejeição, tanto às correntes mais radicais das Luzes como aos
aspectos considerados sinais de atraso, a saber, o fanatismo e os milenarismos. Trata-se,
NOVINSKY, Anita. Estudantes brasileiros “afrancesados” na Universidade de Coimbra. Op. Cit. p.
357-371, especialmente, em relação aos pontos destacados, p. 357-359 e p. 365-366; VILLALTA, Luiz
Carlos. Reformismo Ilustrado, censura e práticas de leitura: os usos do livro na América Portuguesa.
Tese (doutorado em história). São Paulo: FFLCH-USP,1999, USP- 1999. p. 441-442.
1
94
como analisa Luiz Carlos Villalta, de características que constituíram um eixo comum
da orientação reformista ilustrada, que marcaram a ação das autoridades portuguesas a
partir de 1750. Tal orientação “conjugava a realização de modificações com a
preservação da ordem monárquica, da religião católica e moral cristãs”.2 Essas
diretrizes, marcantes na Ilustração lusa, aparecem bem claramente, ainda segundo o
mesmo autor, no parecer do frei Inácio de São Caetano, censor da Real Mesa Censória,
a respeito do livro Afeição a Maria Santíssima, datado de 1769, do qual se depreende
uma importante inflexão a respeito do papel social da religião, conforme era entendido
pelo regular. No parecer citado, o censor refutava, ao mesmo tempo, a irreligião e a
superstição. Ele afirmava:
A sólida e verdadeira piedade, conclui-se, opunha-se igualmente à
libertinagem, que levaria a extremos a “impiedade do coração” e a
“indevoção”, assim como se dava com a superstição, já que para esta
concorria a falta de Luzes, da regulação: e aqui de novo se vê a
indissociabilidade necessária da revelação e da razão, posto que, sem a
primeira, não há devoção e, sem a última, inexiste regulação.3
O ideal regulado de religião, oposto à irreligião, por um lado, e ao fanatismo e
superstição, por outro, constitui-se como uma chave de leitura fundamental ao objetivo
de entender os pontos tocantes à defesa de alguma tolerância religiosa no contexto
português e luso-brasileiro. Tal relevância advém, sobretudo, de se tomar como
pressuposto que o mesmo ideal esteve na base de formulações sobre uma tolerância
propriamente católica no contexto das Luzes. As discussões referentes aos modos de se
converter “heréticos” ou à existência de legitimidade, ou não, de se punir minorias
religiosas ou dissidências, abriram alguns caminhos, em alguns níveis, para se
considerar a questão da tolerância. Esse processo articulou teorias regalistas, tópicas da
Ilustração, uma longa tradição humanística católica ibérica e pontos já presentes dentro
de uma vasta literatura polêmica religiosa. Entre elas, pode-se mencionar críticas ao
atraso, econômico e cultural ibéricos que, muitas vezes, na pena de diversos críticos, foi
associado à intolerância religiosa, sobretudo à Inquisição. Não se pode perder de vista,
no entanto, que uma série de fatores limitou tais debates, tais como a censura, a
mencionada ameaça inquisitorial e as várias limitações à presença de minorias
VILLALTA, Luiz Carlos. As imagens, o Antigo Regime e a “Revolução” no mundo luso-brasileiro (c.
1750-1812). Escritos|Quatro. Fundação Casa Rui Barbosa. Ano 4, n. 4, p. 117-168, 2010. p.119.
3
Ibidem, p. 121.
2
95
religiosas.4 Dentro de um projeto de sociedade que conjuga um “ímpeto secularizador”
com um ideal de uma “sã teologia” (termo recorrente nas fontes), que define uma fé
católica moderada e racionalizada segundo a razão iluminista, é possível analisar-se
como a tolerância religiosa foi pensada. É possível, além disso, evidenciar suas
particularidades, problemas e idiossincrasias, ou ainda como ela participou, direta e
indiretamente, das disputas travadas no campo religioso. Isso é fundamental para o
entendimento do processo secularizador ocorrido no mundo luso-brasileiro no contexto
do Iluminismo, em especial no período pombalino, para além de modelos
homogeneizantes. Isso, ademais, permite compreender as especificidades desse
processo no contexto referido.
2.1 A incipiente esfera pública e as Luzes católicas no mundo lusobrasileiro
Esta tese concentra-se no recorte temporal que se compreende como o período
do Reformismo Ilustrado, que abrange os reinados de d. José I (1750-1777), d. Maria I
(1777-1816) e d. João VI (1816-1826). No caso do último soberano, vai-se desde o
período em que ele governou como regente de fato, isto é, a partir de 1792. Daí a opção
de localizar o recorte desta tese no contexto das Luzes no mundo luso-brasileiro.
Todavia, em alguns momentos do trabalho, serão feitos recuos. Isso se justifica porque,
para se entender o processo do desenvolvimento do Iluminismo em Portugal e no
mundo luso-brasileiro como um todo, é necessário remontar, pelo menos, ao reinado de
d. João V (1706-1750). A historiografia mostra que o pensamento científico, as
discussões a respeito de uma modernização cultural ou a disputa de “antigos e
modernos” já eram uma realidade na cultura letrada portuguesa anteriormente ao
chamado Reformismo Ilustrado. É o que aparece em trabalho recente, que contou com
uma importante reflexão transdisciplinar, envolvendo História, Diplomacia, Cartografia
e outras ciências, de Júnia Ferreira Furtado. A autora analisou alguns contatos entre o
diplomata d. Luís da Cunha (a ser focalizado neste capítulo) com o cartógrafo JeanBaptiste Bourguignon D’Anville. A partir de tais contatos, Júnia Furtado mapeia e
analisa uma rede ampla e complexa que conectou uma gama vasta de pensadores
franceses e portugueses na primeira metade do Setecentos. Com base nesse mapeamento
4
Esta discussão é o argumento central de um artigo de Juan Pablo Domínguez, sobre o contexto do
reformismo bourbônico, na Espanha, no século XVIII. Vejo algumas similaridades com o caso lusobrasileiro, e espero demonstrar ao longo da argumentação neste capítulo. DOMÍNGUEZ, Juan Pablo.
Reformismo cristiano y tolerancia en España a finales del siglo XVIII. Op. Cit. p. 129-138.
96
e também numa análise rigorosa dessas redes, Júnia Furtado constrói uma série de
reflexões sobre a historicidade e características das Luzes no mundo luso-brasileiro. A
autora sublinha os diversos projetos de modernização do reino português, marcantes nas
visões de mundo que caracterizaram os embates diplomáticos e as proposições
geopolíticas, culturais e econômicas, presentes nos escritos do próprio d. Luís da Cunha
e de outros letrados, constituindo sua visão de conjunto do império luso. Além disso,
destaca que tais letrados marcaram-se por um nível substantivo de cosmopolitismo,
envolvendo redes de de sociabilidade. Tais redes integraram pensadores de várias partes
da Europa, bem como academias de ciências e círculos letrados diversos, que floresciam
em toda a Europa no período.5
Segundo Júnia Furtado, na primeira metade do Setecentos, já existia uma
considerável inserção de letrados portugueses nos diversos circuitos de circulação de
ideias e debates. Tais circuitos, em grande medida, identificam-se à expansão do
Iluminismo pela Europa. Mais do que isso, ela mostra que houve, no império português,
desenvolvimentos das Luzes anteriores a 1750, conclusão que se aproxima de
importante historiografia sobre o período. Um bom exemplo nesse sentido é o trabalho
de Ivan Teixeira, que explica que, no “âmbito da cultura portuguesa”, a chegada das
Luzes “antecedeu as mudanças políticas” que marcaram o pombalismo na segunda
metade do século XVIII. Já no reinado de d. João V, continua o autor, “vinha-se
promovendo uma renovação no pensamento de Portugal”, observada nas academias,
laboratórios, traduções e edições importantes. No campo das ciências, essa renovação
corresponde à adoção do método cartesiano e da física newtoniana, ao passo que, na
filosofia, equivale à superação da Neoescolástica em favor do experimentalismo inglês.
Nas letras, observa-se a mesma renovação na assimilação da poética de Boileau e na
“censura generalizada à poesia seiscentista, sobretudo sua vertente gongórica”.6
Já Luiz Carlos Villalta afirma que o panorama intelectual e científico português
marcou-se por certa ambiguidade, incorporando as inovações que surgiram e, ao mesmo
tempo, acomodando-as aos ditames religiosos católicos. Essa situação foi sofrendo uma
ruptura paulatina, mas não total, ao longo da segunda metade do século XVIII. Por um
lado, para a incorporação das novidades, colaborou o realismo característico dos
portugueses; por outro, a formação Neoescolástica onipresente em Portugal frenava uma
5
FURTADO, Júnia F. Oráculos da geografia iluminista: Dom Luís da Cunha e Jean Baptiste
Bourguignon D'Anville na construção da cartografia do Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.
6
TEIXEIRA, Ivan. Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica: Basílio da Gama e a poética do encômio.
São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999. p. 23.
97
incorporação que suscitasse fortes rupturas. O próprio desenvolvimento das Luzes em
Portugal, valorizando uma concepção de mundo na qual a razão e a observação tinham
lugar central, favoreceu, ainda que indiretamente, o florescimento de formulações
heterodoxas, que afrontavam a moral católica e iam de encontro às prescrições morais,
políticas e religiosas da monarquia absoluta portuguesa.7 Mesmo a formação
Neoescolástica onipresente, apesar de ter constituído um “obstáculo epistemológico”
para a incorporação de novidades nos diversos campos da cultura letrada em Portugal, já
que “travara o ímpeto da curiosidade e [a] experimentação científica” portugueses, não
impediu de forma completa o surgimento de pensadores e correntes de divulgadores de
novidades em voga no restante da Europa em terras lusas. Segundo José Sebastião da
Silva Dias, se a opção predominante em Portugal era pela Escolástica, ela não era feita
por desconhecimento completo das demais ou mero isolamento, mas por a julgarem
superior às demais.8 Márcia Moisés Ribeiro, por sua vez, defende que um realismo foi
característico do pensamento luso, um tanto preso a uma espécie de “ceticismo”, que os
levava a “priorizar a ação em detrimento da especulação”, apegando-se menos à
imaginação do que a perspectivas mais práticas e materiais da realidade que, às vezes,
convergia com leituras muito literais dela. Sob essa condição, os portugueses jamais
perseguiram, com a mesma intensidade que países protestantes do norte da Europa,
feiticeiros e bruxas.9
Tendo em vista que Portugal não esteve absolutamente isolado, em termos de
circulação de ideias e da cultura do restante da Europa, podemos dizer que o país, bem
como a parte predominantemente católica ao sul do continente, viveu, à sua maneira e
apesar de algumas barreiras já mencionadas, a crise do pensamento europeu, que
marcou o Iluminismo. No caso de Portugal, como afirma Jonathan Israel, em seu
Iluminismo Radical:
A partir da década de 1680, a difusão do Cartesianismo,
Malebranchismo e outras correntes da Nova Filosofia geraram (sic)
uma profunda comoção intelectual na Espanha e Portugal seguida por
um processo de renovação esporádica, culminando por volta da
década de 1750 no surgimento de uma forma de Iluminismo
caracteristicamente ibérica. Este processo tumultuado transformou não
apenas o debate filosófico, mas todo o tecido da medicina, ciência e
7
VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do livro no mundo luso-brasileiro sob as Luzes: reformas, censura e
contestações. Belo Horizonte: Editora Fino Traço, 2015. p. 125.
8
DIAS, José Sebastião da Silva. Portugal e a cultura europeia. Lisboa: Biblos, 1988, volume XXVII. p.
203-498.
9
RIBEIRO, Márcia Moisés. Exorcistas e demônios: demonologia e exorcismos no mundo luso-brasileiro.
Rio de Janeiro: Campus, 2003. p. 30-33.
98
educação superior ibéricas e teve ramificações maiores também na
América espanhola e no Brasil. 10
Assim, na Península Ibérica, segundo a tese de Israel, houve também a formação
de um tipo próprio de Iluminismo, que remete ao final do século XVII e à primeira
metade do XVIII, em que tendências modernas da “Nova Filosofia” circulavam em
diversos locais de sociabilidade da cultura letrada e cujo “ápice” teria se dado a partir de
1750. Portugal e Espanha, apesar das representações sobre seu atraso e isolamento em
relação às “nações cultas” dos Além Pirineus, amplamente difundidas na Europa e
presentes nas obras de seus principais pensadores, estiveram a par da produção e
circulação de ideias do Iluminismo. Não somente as consumiram, mas também deramlhes contornos próprios. Ainda conforme Israel, “esse movimento intelectual ibérico
sempre esteve intimamente ligado a um fenômeno maior que compreendeu toda a
Europa, com exceção da Grã-Bretanha”. Ele formava, de fato, “parte integral de uma
disputa de cinco lados pela supremacia no campo letrado, que compreendia, no século
XVIII, realidades que englobavam também o pensamento científico, teológico e
político”. Tratava-se, segundo o autor, de uma disputa por hegemonia na cultura letrada
entre
os
aristotélicos,
os
neocartesianos,
o
Leibnizianismo-wolfianismo,
o
Newtonianismo e as correntes mais radicais do Iluminismo.11
Ricardo de Oliveira, assim como Jonathan Israel, também concorda com a
importância dos debates em torno das ideias de Descartes e Malebranches, na primeira
metade do século XVIII. Tais ideias fizeram-se presentes nas discussões das academias
portuguesas e foram importantes na constituição de um Iluminismo em Portugal e
também no Brasil colonial. O autor ressalta, porém, que na cultura letrada portuguesa
houve ambiguidades e entraves, no curso de um processo longo de mudanças, iniciado a
partir de meados do século anterior. Oliveira explica que, seguindo uma tendência
contrarreformista, surgida no século XVI e intensificada durante os anos da União
Ibérica (1580-1640), em Portugal houve “forças a determinarem o fechamento do
mundo luso a determinadas dimensões da modernidade”. Porém, a partir da segunda
metade do século XVII, mudanças estruturais ocorreram na sociedade e nas elites
portuguesas, e também na sua cultura letrada. Isso trouxe circunstâncias novas para
Portugal, quase todas ditadas pelo movimento de Restauração, a partir de 1640. Essas
circunstâncias, em grande medida, podem ser explicadas pelo crescimento do “fluxo de
10
11
ISRAEL, Jonathan I. Iluminismo Radical. Op. Cit. p. 577.
Ibidem, p. 577-590.
99
militares, diplomatas, artistas, intelectuais e comerciantes a Lisboa”, que trouxe,
“mesmo que de forma clandestina e descontínua, livros e ideias que se passavam na
Europa para além da Península”. Com isso, Portugal foi “reinserido” em alguma medida
no circuito dos debates, que passaram pela “querela entre os antigos e os modernos”,
existente no mundo letrado desde o século XVI, “em que os frágeis representantes do
segundo grupo digladiaram-se com a hegemonia da escolástica aristotélico-tomista”.
Esse embate de antigos contra modernos estabeleceu, segundo o autor, uma “república
das letras” em Portugal, sobretudo no círculo de letrados que se reuniam em torno da
casa do quarto Conde da Ericeira, d. Francisco Xavier de Meneses.12 Berty Biron
também destaca a importância das conferências na Sala Acadêmica do Palácio da
Anunciada, do mencionado Conde da Ericeira. Foi nesse momento que, de acordo com
a autora, “chega a Portugal esse fluxo renovador” do Iluminismo europeu, “que instaura
um cosmopolitismo de ideias, uma circulação de saberes científicos, literários e
históricos” do século XVIII. Berty Biron, assim como Fernando Novais, citado no
primeiro capítulo, reforça o ponto de que, “apesar de não ter sido um dos principais
geradores do pensamento ilustrado, Portugal é um dos primeiros países a iniciar as
reformas”. Assim, continua a autora, “d. João V tem o cuidado de escolher assessores
para promover a transição do pensamento conservador português para o pensamento
‘iluminado’ dos enciclopedistas”.13
O próprio quarto Conde da Ericeira, autor da Henriqueida (1741),14 é visto por
parte da historiografia como uma espécie de “precursor” do Iluminismo em Portugal,
tanto por estabelecer um núcleo de sociabilidade ilustrada, do qual fizeram parte nomes
como o padre Raphael Bluteau, como também por inaugurar um modelo análogo ao de
um mecenas na produção científica e cultural ilustrada, como será analisado mais à
12
OLIVEIRA, Ricardo de. Sob o alpendre da razão: dilemas da ilustração em Portugal na primeira
metade do século XVIII. Revista Universidade Rural: Série Ciências Humanas, Seropédica, RJ: EDUR,
v. 29, n. 1, p. 81–95, 2007. p. 84.
13
BIRON, Berty R. R. Considerações acerca do iluminismo luso-brasileiro. RCL | Convergência Lusíada,
v. julho-dez., n. 32, p. 181–191, 2014. p. 181-183. O artigo mencionado de Fernando Novais, citado no
primeiro capítulo é: NOVAIS, Fernando Antônio. Reformismo ilustrado luso-brasileiro: alguns aspectos.
Op. Cit.
14
Henriqueida: poema heroico, com advertencias preliminares das regras da poesia epica, argumentos,
e notas, publicado em 1741 por Francisco Xavier de Menezes (1673-1743), em Lisboa, na Oficina de
Antônio Isidoro da Fonseca. Segundo Berty Biron, trata-se de uma obra importante, pois sintetiza o
espírito da produção da Academia Real de História que, apesar de sua atividade ser “predominante (...)
literária e filológica”, alia a essa produção a “indagação e o exame de matérias científicas”. No caso da
Henriqueida, segundo ela, “o Conde da Ericeira não só escreveu um poema épico, mas se preocupou em
acrescentar-lhe notas de caráter científico”. Percebem-se na obra, como explica a autora, a prevalência
“da poética de Boileau e a censura ao gongorismo que vigorava no século XVII”, perfeitamente alinhada
com as tendências do mundo das letras do Iluminismo. Ibidem. p. 182.
100
frente. Esse modelo foi importante para que se possa entender o comportamento, nesse
campo, do próprio Marquês de Pombal. Segundo Rolando Morel Pinto, o patrocínio das
“conferências discretas e eruditas”, realizadas em seu palácio e a fundação da Academia
Portuguesa, em 1717, da qual se originou a Academia Real de História, se devem a
ele.15 Formou-se, assim, um ambiente cultural, em alguma medida, afinado com o
discurso científico mais moderno, que se ambientava nas universidades, academias e
outras sociabilidades ilustradas no Além-Pirineus.
Ricardo de Oliveira analisa evidências nesse sentido, na produção do padre
Raphael Bluteau, também frequentador das audiências no palácio do quarto Conde da
Ericeira, como já foi dito acima. Segundo o autor, na sua monumental obra
Vocabullario Portuguêz & Latino (1712),16 “há um conjunto de vocábulos que por si só
pertencem à maneira coeva através da qual se pode perceber o diálogo de setores da
intelectualidade portuguesa com as chamadas ideias ilustradas”. Dito de outra forma,
Oliveira conclui que o Vocabullario permite observar, no campo da linguagem, aspectos
importantes das Luzes na cultura letrada de Portugal, como a exaltação do progresso e
das ciências, bem como incursões na querela de antigos contra modernos, em prol dos
últimos. Assim, analisando, por exemplo, a definição de Bluteau do termo “ciência”, ele
percebe que a experiência e demonstração aparecem como aspectos centrais. O ilustrado
francês, além disso, vale- se de um vocabulário acorde com obras de grandes nomes da
ciência Moderna, além de constantes menções à importância desta ciência experimental
para o bem comum em todos os âmbitos.17 Cotejando as definições de Bluteau com
proposições referentes a pensadores portugueses contemporâneos a ele e presentes nos
mesmos círculos de sociabilidade, Oliveira aponta, ainda, “para certa divinização da
ciência” nos debates da Ilustração portuguesa na primeira metade do XVIII. Esta, ainda
segundo o autor, é explicável como sendo parte de uma “adequação do conhecimento
científico ao imaginário que se relaciona à ideia de mistério e fantasia, conforme
inúmeros folhetos que passaram a circular em Lisboa no período”, indicadores de “certa
dimensão da recepção em Portugal das ideias modernas”.18 Além disso, o autor destaca
a difusão das Luzes em meio às ordens religiosas, que, mesmo notadamente articuladas
com o status quo, internamente a seus debates e produções, desenvolveram inúmeras
15
PINTO, Rolando Morel. História da língua portuguesa. IV. Século XVIII. São Paulo: Ática, 1988. p. 9.
BLUTEAU, Rafael. [1638-1734]. Vocabulario Portuguez & Latino. Op.Cit. Todos os volumes
disponíveis em: < http://www.brasiliana.usp.br/> . Acessado em fev. 2017.
17
OLIVEIRA, Ricardo de. Sob o alpendre da razão. Op. Cit. p.86.
18
Ibidem, p. 88.
16
101
discussões afinadas com a ciência iluminista. Sobressaíram-se os trabalhos dos jesuítas
Domingos Capassi, João Baptista Carboni e Eusébio da Veiga, no que diz respeito ao
desenvolvimento, no Colégio de Santo Antão, dos estudos astronômicos, matemáticos e
geográficos, fortemente incentivados por d. João V. O mesmo se pode dizer a respeito
da importância de Teodoro de Almeida e dos oratorianos no desenvolvimento da cultura
científica no Portugal da primeira metade do Setecentos. Oliveira, dessa forma, conclui
que, em Portugal, na primeira metade do século XVIII, mesmo “sob o medo e o terror
disseminados pela autoridade inquisitorial”, havia a “convergência de ideias modernas e
a discussão de questões [a elas] relacionadas”.19
Sentia-se, em Portugal e em diversos outros lugares do mundo luso-brasileiro,
ainda que de maneira localizada e em menores proporções que no norte da Europa, o
surgimento do que se veio a chamar de uma opinião pública, típica do Iluminismo, algo
que será discutido de forma mais aprofundada mais à frente. Aqui, importa localizar
que, aplicando diretamente a categoria ou tangenciando-a, a historiografia sobre o
período analisou o surgimento de uma esfera de opinião livre e crítica ao status quo em
contextos específicos de Portugal e do Brasil colonial. Berenice Cavalcante, por
exemplo, explica como surgiu o que ela denominou clima de opinião, marcante no
contexto intelectual iluminista, nas elites letradas luso-brasileiras, ao longo do século
XVIII. A autora define como clima de opinião iluminista uma forma peculiar para se
usar a inteligência, um tipo especial de lógica marcante em seus debates.
De forma resumida o que definiria o clima de opinião no século
XVIII, e a sua identificação com o século das Luzes, seria o privilégio
concedido à filosofia como porta de entrada ao mundo do
conhecimento; a utilização de um vocabulário cujas palavras-chave
seriam natureza, lei natural, razão, sentimento, humanidade e
perfectibilidade, e uma peculiar relação entre fé e razão na recusa de
todo conhecimento revelado.20
Esse clima de opinião, ainda segundo a autora, formou-se em paralelo com a
constituição das monarquias absolutistas, nos séculos XVI e XVII, quando se
redefiniram as noções de esferas pública e privada, sendo a primeira o espaço de
exercício do poder, atributo exclusivo do monarca, e a segunda, um espaço de liberdade
de consciência, que pautou a sociabilidade dos salões, academias, sociedades literárias e
clubes, “animados pela arte da conversação, pela curiosidade científica e pela
19
Ibidem, p.86-89.
CAVALCANTE, Berenice. Os “letrados” da sociedade colonial: as academias e a cultura do
Iluminismo no final do século XVIII. Acervo- Revista do Arquivo Nacional, v. 8, n. 1–2, p. 53–66, 1995.
p. 54.
20
102
apreciação estética”. Nessas instâncias privadas, os súditos vivenciaram a experiência
da liberdade de opinião e da igualdade no plano das ideias, formando bases sobre as
quais, segundo a autora, seriam “erigidas a utopia de uma nova sociedade que
reinstaurasse a harmonia entre os cidadãos”.21 Constituiu-se, dessa maneira, nos meios
letrados do mundo luso-brasileiro, nas academias literárias brasileiras, entre o primeiro
quartel e o final do século XVIII, um ethos iluminista. Seus aspectos são vistos no
cultivo da polidez, na produção e na fruição das belles lettres, na arte da conversação,
nos valores da vida civilizada dos salões, entre outros. Ainda que tenha havido grandes
diferenças entre os debates nesses meios de sociabilidades letradas, em Portugal, na
América portuguesa ou mesmo nos mais diversos pontos da Europa, a autora chama a
atenção para uma relação específica com o conhecimento e com as letras que, de
alguma maneira, os integrava.
Não se pode perder de vista, porém, como observa Ana Cristina Araújo, talvez
em concordância com a análise de Berenice Cavalcanti, que “nesses certames eruditos,
o entretenimento cultural, predominantemente masculino, conserva quase intactas as
marcas do gosto e da afetação retórica típicas do barroco”, isto é, “ao lado de discursos
eminentemente favoráveis às teses modernas, havia a presença de um código social em
que se procurava ao máximo preservar postulados socialmente hegemônicos”.22 Esse
clima de opinião, analisado por Berenice Cavalcanti, remete à opinião pública, que,
mesmo que em proporções limitadas, teve seu desenvolvimento em Portugal e no
mundo luso-brasileiro ao longo do século XVIII.
Talvez quem a tenha sistematizado e ficado mais conhecido por sua análise da
opinião pública como categoria histórica foi Jürgen Habermas. Para o autor, opinião
pública foi um produto de uma longa mudança estrutural, ligada à constituição da
“esfera pública”, ao longo da Idade Moderna. A esfera pública habermasiana, segundo a
maioria dos estudos sobre ela, além do próprio autor, possui uma dimensão dupla. Uma
delas é sociológica-filosófica, enquanto outra, é histórica. Esta última acompanhou um
processo de mudança estrutural, que se deu em paralelo à constituição dos Estados
Nacionais e ao desenvolvimento do capitalismo, após o fim da Idade Média. Segundo
Habermas, na medida em que os espaços de exercício do poder vão se consolidando
como um domínio exclusivo do monarca e seus conselheiros, o mercado se constituiu
21
Ibidem. Loc. Cit.
ARAÚJO, Ana Cristina. A Cultura das Luzes em Portugal. Lisboa: Livros Horizonte – col. Temas e
Problemas, 2003. p. 23.
22
103
com um espaço de uma ascendente burguesia. Somam-se a isso o aumento do público
leitor e a expansão da produção de escritos – viáveis após o advento da imprensa de
Gutemberg –, tais como livros, revistas, jornais, bem como o próprio o progressivo
aumento de tipografias ao longo da Idade Moderna. A profusão de espaços de
sociabilidades burguesas e o crescimento da produção de escritos formaram um
processo que tornou possível uma considerável difusão de bibliotecas, salões de leitura,
academias de ciências, lojas maçônicas, dentre outros, onde se constituiu uma esfera
pública literária, que promovia significativas mudanças nos hábitos de leitura. Com
isso, ler-se intensivamente poucas obras tradicionais perdia espaço para um consumo
maior de escritos, que proporcionava – e também era produto de – um cada vez maior
fluxo de publicações.23 Nesses espaços, progressivamente, os debates começaram a se
ocupar de assuntos de interesse geral e tomar lugares externos à sua sociabilidade,
impactando no coletivo. Eles se diferenciaram relativamente da “república das letras”
tradicional, erudita e enredada nas sociabilidades cortesãs do Antigo Regime,
constituindo fóruns de discussão e uso livre da crítica acessível ao público. É importante
salientar que este público não se confunde com o povo, pois designava, a rigor, um
público leitor que mobilizava alguns capitais – culturais, sociais e de recursos materiais
– que possibilitassem o acesso a tais fóruns.24 Assim, na Alemanha, na França e na
Inglaterra do Setecentos – em ritmos e de formas diferenciadas –, sobretudo entre as
classes burguesas citadinas, multiplicaram-se esses espaços de discussão crítica,
relativamente igualitários. Em tais espaços, todo argumento poderia, através da razão,
ser comprovado ou não, tendo somente a mesma razão iluminista como crivo,
independentemente das hierarquias constituintes das sociabilidades do Antigo Regime.
Formou-se e estruturou-se, na modernidade, a “esfera pública”, que era formada por um
público leitor crítico, e constituiu-se da formação de espaços de discussão de assuntos
de interesse comum, por pessoas privadas no uso público da razão. A característica
central dos debates dessa “esfera pública” habermasiana seria a noção de “opinião
pública”, que, segundo Habermas, baseia-se na capacidade inerente do homem de
racionalização. Por isso, segundo o autor, as “opiniões”, racionalizadas e publicizadas a
partir de tais fóruns, passaram a exercer algum poder político, na medida em que o
próprio exercício da política torna-se objeto desse tipo de racionalização. Com isso, o
23
HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da
sociedade burguesa. Trad. Flávio R. Kothe. Rio de Janeiro: editora Tempo Brasileiro, 1984. Biblioteca
Tempo Universitário, 76. p. 38-41.
24
Ibidem, p. 43.
104
exercício do poder por outras vias era colocado no campo da tirania e do arbítrio,
criando-se, assim, um ideal de “neutralização” do poder sob a razão iluminista. Num
primeiro momento, este processo contribuiu para pressionar politicamente e degradar
algumas estruturas caras do Antigo Regime, como suas hierarquizações, típicas de uma
sociedade estamental, e os dogmatismos. Num segundo, essa opinião pública, conforme
Habermas, constituiu o próprio exercício do poder, na medida que esse público passaria
a formar uma esfera representativa, na qual poderes, como os do monarca ou da
nobreza, são progressivamente reduzidos à esfera privada – e seu uso no interesse
coletivo, ao arbítrio, tirania e autoritarismo –, e o poder legítimo passa a ser pautado
pela racionalização, possível somente com o uso público da razão em espaços onde isso
se pode dar por meio de deliberação e uso de argumentos.25
Já Mona Ozouf, com uma argumentação que, em partes, concorda com a
construção de Habermas, refere-se à formação da opinião pública no século XVIII como
um processo complexo, que envolve de fenômenos literários e culturais, conjugados
com mudanças sociais significativas, nas quais o próprio significado do termo “opinião”
ganha novo significado. O termo deixa de ser somente entendido como oposição à
verdade, segundo máxima platônica, passando a designar um corpo amplo e
heterogêneo de máximas difusas, confusas e díspares, “constituindo uma torrente
inexorável e uma força irresistível baseada no sentimento, que se torna uma força que
reina no mundo”.26 Essa opinião pública viria a se constituir em uma difusão da
consciência de haver uma espécie de “autoridade imaginária”, ancorada na razão
iluminista, que naturalmente triunfaria, em algum momento da história, diante do
arbítrio dos interesses particulares ou de ideias tomadas com base na irracionalidade – a
rigor, sobretudo, as autoridades monárquica e eclesiástica. Surgiu, assim, no século
XVIII, uma percepção ambígua. De um lado, houve instâncias em que ela se manifestou
por excelência, como a cultura letrada e os parlements franceses, que teriam a função de
esclarecer o vulgo com a razão e, assim, conduzir a “torrente inexorável” e heterogênea
da opinião pública para o bem comum. Essa concepção de “bem comum”, para o qual
os fóruns de opinião pública deveriam conduzir o vulgo, possuía alguma semelhança
com valores de Antigo Regime, pois entendia-se que a submissão a uma autoridade para
o bem geral poderia ser benéfica, com a diferença de que essa submissão haveria de ser
25
Ibidem, p. 98-101.
OZOUF, Mona. Le concept d’opinion publique au XVIIIe siècle. Sociologie de la communication, v. 1,
n. 1, p. 349-365, 1997. p. 351
26
105
alcança por meio da persuasão racional dos argumentos, e não da força, e sua autoridade
estaria encravada na autoridade da razão ilustrada, na qual se chega pelo debate e pela
crítica, e não pela religião revelada ou pela vontade do monarca. De outro lado, surgiu a
ideia de que a mesma opinião pública seria impossível de ser conduzida e que não
haveria garantias de que o julgamento racional prevaleceria diante das diversas
opiniões.27
A forma como Habermas e Mona Ozouf abordam a opinião pública precisa ser
analisada com cuidado. É preciso, primeiramente, matizar essa categoria para o contexto
lusófono do Setecentos, não a aplicando pura e simplesmente às fontes que serão
utilizadas. É preciso considerar, em primeiro lugar, que tal conceito não é unânime em
termos de tratamento pela historiografia. As críticas ao conceito, aqui, servem de um
contraponto teórico-metodológico. Uma crítica bastante polêmica foi feita por Stephen
J. Barnett a respeito dessa abordagem habermasiana. Em conformidade com seu
argumento central, já discutido no Capítulo 1 desta tese – de que boa parte da
historiografia sobre o Iluminismo se pauta por “mitos de modernidade”, como o de
“luzes laicas” ou “luzes deístas” –, a opinião pública, conforme estruturada por Jürgen
Habermas e Mona Ozouf, representaria, em alguma medida, a reprodução de um desses
“mitos”. O mesmo se poderia dizer a respeito da instrumentalização dessa categoria
feita Chartier, em sua análise sobre a formação da opinião pública no contexto anterior à
Revolução Francesa,28 Segundo Barnett, não houve um “surgimento da esfera pública
ou da opinião pública no século XVIII”, conforme esquematizado pelos três autores
supracitados. O que acontece, de acordo com o historiador britânico, é que tanto
Habermas, como Ozouf e Chartier se equivocaram ao, também, incorrerem no erro
motivado pela busca por raízes da modernidade no Iluminismo. Assim, Barnett diz que
Jürgen Habermas, com o objetivo de “mapear as origens da modernidade secular”, na
sua concepção de esfera pública “tendia a ignorar ou minimizar o conteúdo políticoreligioso tradicional da esfera pública emergente, e desproporcionalmente, destacar os
elementos seculares modernos”.29 Barnett, então, conclui que esta opinião pública é
anterior ao século das Luzes, pois
Quando os historiadores descrevem as grandes batalhas de impressos
de propaganda religiosa dos séculos XVI e XVII, elas só podem
descrever tentativas de criar e / ou expressar a opinião pública.30
27
Ibidem.
CHARTIER, Roger. As origens culturais da Revolução Francesa. Op. cit.
29
BARNETT, Stephen J. Enlightenment and religion. Op. Cit. p.72.
30
Tradução minha. Ibidem, p. 73.
28
106
Assim, para Barnett, opinião pública e esfera pública seriam realidades que
existem antes do século das Luzes. Elas designam realidades que envolvem mudanças
sociais e de pensamento com participação de múltiplos agentes, de variados estratos
sociais, não somente os filósofos e não os tendo como “guias”. Eis, nesse ponto, outra
crítica de Barnett à construção feita por Habermas e outros autores supracitados às
referidas categorias: para o historiador britânico, Habermas se vale de uma construção
sobre a esfera pública das Luzes que a identifica “com apenas um grupo, a burguesia” e,
esta última, identificada com filósofos e uma intelectualidade “secular”. Presta-se,
assim, continua Barnett, pouca ou nenhuma atenção aos conflitos e embates de natureza
político-religiosa e, acrescenta que, essa concepção de esfera pública apresenta-se como
funcional ao oferecer uma solução a respeito da relação teleológica entre Iluminismo e
Revolução Francesa.31
A crítica que Stephen J. Barnett fez aos referidos autores que trabalharam com o
tema da opinião pública no Setecentos, contudo, merece alguns reparos. Em primeiro
lugar, é importante dizer que nem Habermas, nem Mona Ozouf, estruturaram seu
conceito de opinião pública como algo produzido verticalmente, dos filósofos para
vulgo. Ambos entendem haver uma dinâmica sociológica na construção de uma esfera
pública no século XVIII, e que ela envolve a formação de sociabilidades muito mais
complexas que a simples reprodução de argumentos dos philosophes. De formas
distintas, tanto Habermas como Mona Ozouf constroem uma ideia de opinião pública
mais fortemente estruturada no uso da razão e da crítica, surgida em espaços privados
no século das Luzes e que, progressivamente, tomam o espaço público. Ozouf, por
exemplo, demonstra a importância de eventos literários entre as décadas de 1740, como
a efervescência das publicações vindas das academias literárias e científicas francesas,
no sentido de se criar e difundir uma “utopia de igualdade”, advinda desses espaços de
sociabilidade. Assim, construiu-se a legitimidade desse grupo formado por letrados e
pelas camadas médias da população no papel de instruir, tanto o vulgo quanto o poder
político – ainda que, ao menos no campo do discurso – a partir de ideais
universalizantes, oposto aos particularismos, associados às autoridades, tais como o
clero e o monarca.32 A estruturação e historicização da esfera pública feita por
Habermas, conforme explica Jorge Adriano Lubenow, deriva-se do desenvolvimento de
31
32
Ibidem, p. 207.
OZOUF, Mona. Le concept d’opinion publique au XVIIIe siècle. Op. Cit. p. 354.
107
um ethos liberal, desde a primeira metade do século XVIII até o século XIX, cuja
análise é enfatizada na Inglaterra, França e Alemanha, sob o discurso de que o uso da
razão, feito nessas assembleias privadas, ao tomar o espaço público, neutralizaria e
racionalizaria o exercício do poder em si, em todas as suas formas. Analisando as
próprias autocríticas que Jürgen Habermas fez de seu modelo explicativo de opinião
pública entre os anos 1970 e 1990, Lubelow observa que um dos objetivos da
construção histórica feita pelo pensador alemão é o de entender como essa esfera
pública liberal decaiu progressivamente, sobretudo a partir do século XX. Isso por ela
ter sido manipulada e dominada por meios de comunicação, permeados por interesses
particulares, políticos e econômicos, que os utilizam para se legitimar. 33 O que importa,
aqui, é mencionar que ambos autores, ao contrário da crítica feita por Barnett, mostram
o que há de “moderno” na sua conceituação de opinião pública e a localizam
historicamente, sobretudo no sentido de que ela caracteriza uma “utopia de
igualitarismo”, surgida em espaços específicos de sociabilidade, e que constrói uma
relação bem específica com autoridades tradicionais. Além disso, ela se organiza mais
em torno da formação de um ethos específico que, propriamente, é tributário das ideias
de filósofos e de outros pensadores. Além disso, ainda que esta opinião pública se
identifique contrariamente aos dogmatismos das religiões instituídas, ela é coeva à
formação de formas mais críticas de se lidar com o clero e instituições religiosas,
bastante identificadas com as sociabilidades das Luzes, que não propriamente
culminaram numa cultura “laica” ou rupturas mais substantivas com a religião.
Em segundo lugar, é importante sublinhar a historicidade do conceito. Em sua
obra, Barnett não vai a fundo, no sentido de demonstrar haver em contextos anteriores
uma opinião pública estruturada tal como os autores criticados por ele demonstram
haver no Setecentos. O autor, como foi mencionado acima, restringe-se a demonstrar –
com clareza, inclusive – que houve usos diversos da razão nos espaços coletivos, sobre
temas de interesse geral, nos contextos anteriores às Luzes, o que explica somente uma
parte de suas críticas. Ficou faltando exatamente a particularidade que Habermas e
outros autores identificaram no XVIII, a estruturação desse uso da razão em conjunto
com as sociabilidades das camadas médias ou burguesas da população. Roger Chartier,
por exemplo, dialogando com Habermas, oferece uma explicação bastante substantiva a
33
LUBENOW, Jorge Adriano. A categoria de esfera pública em Jürgen Habermas: para uma
reconstrução da autocrítica. Cadernos de Ética e Filosofia Política, v. 10, n. 1, p. 103–123, 2007. p. 104108.
108
respeito da historicidade dessa opinião pública, identificada com a Ilustração. O
historiador francês volta-se para o que compreende como um processo de
dessacralização do mundo que, segundo ele, marca o final do Antigo Regime. Para
Chartier, tal dessacralização não correspondeu a uma absorção das ideias dos
philosophes pela sua simples leitura. Foi um conjunto complexo de mudanças sociais e
culturais, que desde o final do século XVII envolveu significativas transformações na
França: das práticas de leitura, das sociabilidades, da relação dos vários estratos sociais
com o monarca e com instituições régias e eclesiásticas, como o clero, a Igreja e a
aristocracia. Nesse processo, consolidou-se uma relação menos reverente do público
com as autoridades constituídas. Mesmo que, por vezes em conformidade com ideias
conservadoras, esse mesmo público adotou uma nova atitude perante o mundo e as
instituições, o que acabou por tornar possível uma série de ações mais críticas e livres
dos laços de obediência. Assim, a dessacralização, conclui Chartier, relaciona-se com
uma mudança da chamada opinião pública, própria do XVIII, e que antecedeu a
Revolução de 1789 e marcou em grande parte suas origens culturais.34
Em terceiro lugar, é fundamental retomar a ideia de que esse ethos, formado ao
longo dessa mudança estrutural, segundo Habermas, Ozouf e Chartier, forma um
público que não pode ser confundido com povo: no caso, os indivíduos privados que
levavam a público essas discussões formadas em espaço privado, usando a razão, só
tinham acesso a esses espaços mediante a posse de determinados recursos, sobretudo
econômicos e culturais, de maneira que esse “público” se manteve limitado.35 É
importante frisar, no entanto, que o acesso a esse “público” foi objeto de disputas,
tornando-o uma categoria dinâmica e não estanque. Levando isso em conta, observo que
Stephen J. Barnett não demonstra, na sua crítica a Habermas e aos demais autores que
localizam a formação da opinião pública na Ilustração, haver algo análogo em contextos
anteriores. Os fatores de diferenciação, por exemplo, desse público, tanto em relação ao
vulgo, como em relação a uma cultura letrada tradicional, demarcada por Habermas
como característica desse processo que o autor localiza no XVIII, não é devidamente
considerada por Barnett. Em síntese, Barnett identifica um problema metodológico nas
análises de vários autores que entendem haver uma particularidade nesse tipo de uso
público da razão no Setecentos, sob a categoria opinião pública. No entanto, ele não
demonstra de maneira substantiva como eles aparecem nos trabalhos criticados. Mais
34
35
CHARTIER, Roger. Origens culturais da revolução francesa. Op. Cit. p. 143-148.
HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Op. Cit. p. 155-168.
109
que isso, a própria pré-existência de estruturas análogas, elemento que endossaria sua
principal crítica à forma como Habermas, Ozouf e Chartier entendem a opinião pública
das Luzes – de que não passaria de um “mito de modernidade –, é apenas mencionada.
É necessário, todavia, sublinhar um mérito importante das críticas de Barnett a
formulações clássicas sobre o conceito de opinião pública. Trata-se, no caso, de um
afastamento da perspectiva habermasiana que associa o surgimento, estruturação e
organização da opinião pública com uma classe burguesa. Barnett, por meio da chave
do “mito da secularização” pela qual critica Habermas, chama a atenção para a
existência dentro dessa opinião pública da Idade Moderna da importância de debates
que tinham interlocutores e temas intimamente ligados à religião, como as polêmicas
religiosas, querelas doutrinárias, debates a respeito de bulas e outros documentos
eclesiásticos e sobre matérias teológicas, entre outros. Com isso, também, o autor
britânico questiona a associação do ethos burguês moderno com a estruturação da esfera
pública, que é depreendida da leitura habermasiana. Outros atores e círculos não
propriamente pertencentes a modos de vida relacionados a uma classe burguesa
participavam ativamente, segundo Barnett, dos círculos de debate e produção de ideias
que caracterizou a formação da esfera pública.
A asserção polêmica de Stephen J. Barnett sobre a formulação habermasiana de
opinião pública, ainda que não se sustente e apresente problemas importantes, adverte
quanto a um problema metodológico recorrente ao se estudar a Ilustração, mencionado
no Capítulo 1: uma ideia tomada a priori de modernidade pode induzir o historiador a
erros. A instrumentalização da categoria opinião pública para analisar as Luzes no
contexto lusófono do XVIII pede um cuidado semelhante. Entendendo-a como
característica das sociedades modernas – é importante lembrar que Habermas objetivou,
com o estudo no qual o conceito de “opinião pública” foi formulado, entender
mecanismos presentes nas estruturas políticas das democracias liberais –, há aqui um
duplo risco: o primeiro, de se aplicar o conceito tal como o pensador alemão o formulou
estudando contextos de países da Europa setentrional, desconsiderando características
próprias de Portugal e da Europa católica, de maneira um tanto mecânica; um segundo é
que, no afã de se evitar o primeiro tipo de problema, simplesmente se coloque de lado a
instrumentalização do conceito de “opinião pública” para o contexto lusófono, numa
operação mais ou menos análoga ao que já se faz, tradicionalmente, quando se negam
desenvolvimentos do Iluminismo no contexto português – dito de outra forma, afirmarse que não existiu uma “esfera pública” no contexto luso.
110
Uma forma de se precaver em relação a esse problema é, primeiramente,
admitir-se que essa opinião pública se manifestou em escala menor em Portugal do que
no Além Pirineus. A inexistência de uma imprensa significativa e, como se sabe, a
vivência sob a vigilância da censura e da Inquisição contribuíram para tanto.
Acrescentam-se a tais elementos a proximidade de diversos círculos de letrados à Coroa
e ao Marquês de Pombal, e seu alinhamento ao projeto político-religioso pombalino, o
que leva a matizar a sua influência no espaço público e na política, conforme
particularidades do contexto. Isso será analisado mais à frente, neste capítulo. Por sua
vez, como já foi dito acima, esse público não era estanque, havendo outros agentes a
buscar tomar parte deste “clima de opinião”. Entre os que o disputavam no espaço
público, estavam os heterodoxos, que representaram vertentes mais radicais das Luzes
em Portugal e na América portuguesa e que tiveram espaço nessa esfera pública. Tais
sujeitos serão abordados ao longo dos próximos capítulos.
Voltando à questão da opinião pública em Portugal e no Brasil no Iluminismo,
de acordo com Ana Cristina Araújo, apesar da censura e da atuação inquisitorial, no
contexto intelectual português, a partir de meados do século XVIII, havia uma
“República das Letras”, composta por círculos de letrados, formada geralmente por
“sinceros entusiastas” que “se encarregavam de divulgar e de discutir novidades
filosóficas vindas do estrangeiro”. Para eles, conforme explica a autora, “as proibições
impostas pela censura funcionavam mais como acicate e menos como obstáculo”, já que
“conheciam bem os meandros dos circuitos ilegais de comercialização do livro
estrangeiro e podiam beneficiar (...) mediante licença régia, do privilégio de aceder à
leitura de obras defesas”.36
Outro elemento importante, apontado por João Adolfo Hansen ao analisar de
forma pontual a arquitetura do século XVIII no Iluminismo católico luso-brasileiro,
com destaque para a poesia, é que o “público”, à época, não é “como nas sociedades de
classes contemporâneas, o espaço democrático de manifestação de livre concorrência
liberal”, onde, ao menos formalmente, os indivíduos possuem autonomia de cidadãos
livres
“que
fazem
valer
seus
direitos
particulares
como
opinião
pública
constitucionalmente constituída”. O “público” aparece definido como manifestação e
representação do “bem comum” do Estado, constituído pela concórdia e pela
36
ARAÚJO, Ana Cristina. O filósofo solitário e a esfera pública das Luzes. In. RIBEIRO DA SILVA,
Francisco, CRUZ, Maria Antonieta. RIBEIRO, J. Martins, OSSWALD, Helena (org.). Estudos em
Homenagem a Luís Antônio de Oliveira Ramos. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto,
2004, p. 197-210. Vol. 1. p. 202.
111
subordinação livre de seus estamentos.37 E sobretudo quanto aos letrados, membros
dessa “república das Letras” formada em Portugal e Brasil no século XVIII, o autor
lembra que não se tratava de escritores no sentido moderno, formado após o
Romantismo, mas de letrados inseridos em uma estrutura clientelar, que reproduzia
laços tradicionais de dependência. O corporativismo dessa “política católica” tradicional
se via nos paratextos das obras – prefácios, exórdios, cartas dedicatórias, poemasepígrafe –, onde, “prestando vassalagem, os letrados esperam ser cooptados pelo poder,
quando as dedicam aos poderosos” (ver Figuras 1 e 2).38 Trata-se de detalhes das obras
que servem de indícios significativos acerta da inserção de muitos dos letrados das
Luzes católicas em Portugal e no Brasil, que muitas vezes eram membros da
administração estatal, funcionários da Coroa ou assíduos frequentadores dos salões da
nobreza com todo um projeto político-cultural que estava em questão, em meados do
século XVIII.
37
38
HANSEN, João Adolfo. Ilustração católica, pastoral árcade & civilização. Op. Cit. p. 25
Ibidem, p. 27 e p. 31-32.
112
Figura 1 - Contracapa da Dedução Cronológica e Analítica, de José Seabra da Silva. Primeiro volume,
de 3. Disponível em Biblioteca Nacional de Portugal. BNL < http://purl.pt/12183/3/>. Acessado em
jun./2018.
113
Figura 2 - Contracapa do poema épico-polêmico Triumpho da Religião, de Francisco de Pina e de Sá e
de
Mello.
Digitalizado
por
Google
Books
e
disponível
em:
<
https://books.google.com.br/books?id=gqRbAAAAcAAJ&hl=ptBR&authuser=0&pg=PP1#v=onepage&q&f=false>. Acessado em jun./2018.
No caso do pombalismo, há de se ressaltar ainda a política de cooptação desses
letrados por uma espécie de mecenato, visando-se seja à exaltação da modernidade
introduzida por Pombal no Reino e colônias, seja sua instrumentalização na propaganda
antijesuítica.39 Ressalto que essa “opinião pública letrada”, em grande parte próxima da
Coroa e alinhada com o reformismo pombalino, não constituiu o único lugar de
formação de uma opinião pública no contexto luso-brasileiro. Os “libertinos”, maçons,
39
TEIXEIRA, Ivan. Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica. Op. Cit. p. 67-130.
114
estudantes, livres pensadores, dentre outros formadores de outros núcleos difusores e
formadores de ideias mais radicais das Luzes, também ali figuravam. É importante,
também, salientar que não houve linearidade nas trajetórias desses letrados, nem mesmo
nos mais envolvidos na governação pombalina. Um exemplo claro é o de José Seabra da
Silva, que assinou a Dedução Cronológica e Analítica (1767), uma das obras mais
importantes em termos de conferir sustentação histórica e teórica ao discurso e às ações
anti-jesuíticas do ministro de d. José I. Seu envolvimento com o reformismo e
fidelidade ao Marquês de Pombal não impediram sua demissão e seu desterro em 1774,
seguidos de sua prisão.40 Algo similar aconteceu com Francisco de Pina e de Sá e de
Melo, importante letrado luso da segunda metade do século XVIII, também alinhado
com o reformismo pombalino. Suas boas relações pessoais, políticas e literárias com o
ministro plenipotenciário não o livraram de passar seis meses na Cadeia da Portagem,
entre dezembro de 1762 e junho de 1763.41
Dessa maneira, formou-se em Portugal e no Brasil – neste último, em menor
medida, ainda que não possa ser desconsiderada –, um Iluminismo com contornos
próprios, em consonância com o desenvolvimento de uma “República das Letras” nas
academias literárias e científicas surgidas na primeira metade do século XVIII e também
com as ordens religiosas. Nelas, um clima de opinião e um ethos iluminista se formaram
na cultura letrada e entre seus membros, relacionados por sociabilidades ilustradas.
Vários desses sujeitos eram clérigos e aristocratas, mas entre eles houve pessoas de
outras origens e laços de pertencimento. Nessas sociabilidades, viu-se a formação de
uma vertente católica do Iluminismo, orientada, em grande parte, pela percepção de
uma necessidade de modernização. Essa modernização tinha como alvos tanto a Coroa e
a administração pública, como a economia, a cultura e as mentalidades. Além disso,
envolveu um processo de secularização, não identificado com uma eliminação da
religião do espaço público. Este ponto será tratado no próximo subitem.
2.2 O campo religioso, a secularização e o regalismo pombalino
40
José
Seabra
da
Silva.
Portugal:
Dicionário
histórico.
Disponível
em:
http://www.arqnet.pt/dicionario/seabrasilvaj.html. Acessado em jul./2018.
41
Francisco de Pina e de Sá e de Melo. Projeto Vercial – Universidade do Minho. Disponível em:
http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/pmelo.htm . Acessado em jul./2018.
115
“Secularizar”, grosso modo, remete a um declínio da religião em termos de
importância na vida comum. De acordo com o que explica o sociólogo Peter Berger, a
secularização é um processo “pelo qual setores da sociedade e da cultura são subtraídos
à dominação das instituições e símbolos religiosos”.42 É necessário, todavia, mencionar
que, em termos de conceito político, a secularização não é um sinônimo de “laicização”.
Enquanto o termo secularização alude aos significados de perda de parte do controle
social e institucional por parte da Igreja, laicização refere-se à neutralização do Estado e
das suas instituições em matéria religiosa.43 É importante marcar a diferença desses dois
conceitos com a finalidade de se evitar, ao longo deste capítulo, subestimar o processo
de secularização do Reformismo Ilustrado, concebendo-o como não realizado na sua
plenitude devido a uma laicização inconclusa ou inexistente. Há uma longa literatura a
respeito desses termos, bem como sobre sua relação com a modernidade. Para os
objetivos deste trabalho, neste momento, a abordagem será limitada ao debate mais
atualizado, pensando propriamente na construção de modelos explicativos e na
aplicabilidade deles em Portugal e no contexto luso-brasileiro.
Um autor que faz essa discussão é Fernando Catroga. Para ele, em Portugal e
nos demais países católicos do Sul da Europa – e, por extensão, suas ex-colônias na
América –, o processo secularizador da instância da ordem política e sua afirmação
como laicidade são inseparáveis da herança regalista, presente no Iluminismo católico.
Para se entender o processo de secularização nas Luzes católicas no contexto luso, é
fundamental uma compreensão substantiva do que significa o regalismo, o que será
discutido mais à frente, ainda neste subtítulo. Importa aqui, no momento, a este respeito,
ressaltar que, em Portugal, tal processo secularizador e de fundo regalista teve “a sua
primeira medida mais espetacular na expulsão dos jesuítas”, decretada pelo Marques de
Pombal em 1759. A partir de então, “ganhou curso, sobretudo nas elites políticas e
intelectuais, um sentimento antijesuítico”, que, virá a combinar com um
anticongreganismo mais geral, culminando com a extinção das ordens religiosas em
1834. Segundo Catroga, trata-se de um processo que tinha como pretensão “refundar a
nação ou reaportuguesar Portugal”, em face de um “internacionalismo” da Igreja
Católica. Para tanto, exigia-se a destruição de alguns dos alicerces culturais e sociais
42
BERGER, Peter L. O Dossel Sagrado elementos para uma teoria sociológica da religião. Trad. José
Carlos Barcelos. São Paulo: Ed. Paulinas, 1985 (coleção História e Religião: 2). p. 119.
43
RANQUETAT Jr., Cesar. A laicidade, laicismo e secularização: definindo e esclarecendo conceitos.
Revista Sociais e Humanas, Santa Maria (RS), v. 21, nº 1, p. 67-75. 2008.
116
que sustentavam o Antigo Regime.44 No mesmo livro, Catroga faz uma análise das
categorias secularização, laicização e religião civil, construindo uma ideia geral a seu
respeito e a seus processos, num âmbito geral, antes de analisar casos específicos, que
são o da França, Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos, além dos países católicos da
Europa meridional (Portugal, Espanha e Itália). Aqui não interessa analisar de forma
pormenorizada cada um dos casos, mas, sim, aspectos gerais, principalmente sobre a
secularização e, posteriormente, sobre a laicização. Quanto ao primeiro termo, Catroga
faz uma longa discussão historiográfica e teórica, de forma a identificar uma linha de
análises que remete a uma tradição sociológica, que remonta aos séculos XIX e XX, e
que consegue grande alcance e influência. Tal linha caracteriza-se por um tom “otimista
e prescritivo”, baseado na ideia de que a fundação do que chamamos de modernidade –
e de aspectos a ela inerentes, tais como a urbanização e a burocratização de todas as
instâncias da vida e seus marcos históricos, como a Revolução Industrial, que iriam,
necessariamente, diluir a religião ou diminuir gradativamente sua importância fora dos
espaços exclusivamente confessionais. Essa linha análise tem sido posta em causa, até
mesmo por alguns pensadores que compartilharam, em algum momento, a ideia do
“regresso do religioso”, segundo o qual a contemporaneidade estaria experimentando
uma volta de um pensamento místico, visível nos fundamentalismos que recrudescem
entre o final do século XX e o início do século XXI.45 O autor deixa claro haver alguns
problemas nessa tradição e, diante disso, uma necessidade de atualização dos debates
em torno da secularização. Catroga, apesar da abordagem original, não inova nesse
debate, que ocupa lugar importante nas discussões acadêmicas de diversas áreas do
conhecimento a respeito dos processos de secularização.
Esses debates ocorrem, sobretudo no campo da sociologia, em especial nos
estudos sobre religião, em que a ideia de uma irreversível e linear perda de importância
do religioso na vida social, marcante em várias teorias sobre a secularização e
laicização, é fortemente criticada. Como explica José de Jesús Legorreta Zepeda, a
análise da secularização por este viés tem origem no século XIX e se consolidou na
primeira metade do século XX. No entanto, sobretudo a partir da década de 1970,
diversas críticas a essa forma de abordagem passaram a ser feitas. Ele analisa, por
exemplo, correntes da sociologia em que “as abordagens” sobre a secularização “que
procuram reduzir ou eliminar a religião (com suas instituições, crenças e práticas) da
44
45
CATROGA, Fernando. Entre deuses e césares. Op. Cit. p. 360.
Ibidem, p. 15-35
117
vida social moderna fazem referência mais a uma ideologia – o secularismo – do que a
uma teoria social”.46 De acordo com Zepeda:
Nesse mesmo sentido, o peculiar conceito evolutivo e teleológico da
secularização tem sido criticado por seus pressupostos históricos: se
com o avanço da modernidade a religião tende a decrescer, isto faria
supor que em algum momento do passado existiu algo como “a idade
da fé”. Porém, uma análise histórica mais detalhada mostrará quão
longe estiveram outras sociedades de ser algo mais que religiosas.47
Além disso, o autor aponta para críticas que incidem sobre “a seu inegável
caráter etnocêntrico, que tende a identificar a rota do fenômeno religioso ocorrido na
Europa ocidental como caminho paradigmático pelo qual deverão transitar as outras
sociedades”, deixando de lado experiências históricas de modernização “em que a
religião teve grande vitalidade, como no caso dos Estados Unidos, da América Latina e
da Ásia”.48 Um exemplo de crítica às teses de secularização e laicização sob essa
perspectiva aparece num relativamente recente debate entre o pensador Jürgen
Habermas e o então cardeal Joseph Raztinger, que posteriormente tornou-se o papa
Bento XVI (2004-2013) e atualmente é “papa emérito”. Retomando uma questão
colocada por Habermas, em que lhe foi perguntado a respeito da necessidade de uma
possível “correção de rumos” da racionalidade ocidental, Ratzinger, antes de admitir
que a religião deve ser purificada de “patologias altamente perigosas” através do uso da
razão – aqui, partindo de sua definição cristianizada, segundo a qual essa razão seria
produto da reflexão crítica aliada à “luz divina” –, conclui que também a razão ocidental
deve considerar corrigir seus rumos. Ela, em sua pretensão universalista, prescindiu de
noções como as de tradição, religião e de pluralismo cultural, caindo num eurocentrismo
e tornando-se altamente destrutiva. Assim, Ratzinger conclui que a racionalidade laica
europeia, por mais que pareça evidente a quem foi educado no estilo ocidental europeu,
não é compreensível para a toda a ratio e encontra limites em seu intento de se fazer
inteligível. Ela está ligada a determinados ethea e âmbitos culturais e não é
reproduzível, em conjunto, a toda a humanidade. Noutras palavras, o teólogo, ex-cardeal
e papa emérito diz que não existe fórmula universal racional ou ética religiosa na qual
46
ZEPEDA, José de Jesús Legorreta. Secularização ou ressacralização? O debate sociológico
contemporâneo sobre a teoria da secularização. Revista Brasileira de Ciências Sociais. V. 25, nº 73, p.
129-178. Junho/2010. Trad. Paula Carpenter. p. 131.
47
Ibidem, p.132.
48
Ibidem, Loc. Cit.
118
possam todos estarem de acordo. E de forma análoga, uma “ética mundial”, baseada
numa ideia secular e laica ocidental, segue sendo somente uma abstração.49
Há, ainda, autores que negam a validade do próprio conceito de secularização,
com base em análises em que se considera não haver mudanças significativas a respeito
das dinâmicas da religião na sociedade que sustentem as teses clássicas a respeito do seu
declínio na modernidade. Segundo esta negação, as teses que apontam para a
secularização e modernização estariam mais baseadas em mitos a respeito desta última e
da emancipação do homem face à religião, ou da existência de uma suposta “era da fé”
que antecedeu a própria modernidade e, também, como mencionado no parágrafo
anterior, de uma universalização artificial de processos surgidos da Europa setentrional
e central para contextos de diferentes tradições religiosas e mesmo não cristãs,
desconsiderando realidades históricas concretas. Um trabalho importante de síntese
dessa discussão está no ensaio cujo sugestivo título é Secularization, R.I.P. (“Rest in
Peace”, descanse em paz), de Rodney Stark, um dos mais importantes críticos das teses
clássicas sobre a secularização, e defensor de sua negação.50
Questões como as que aparecem no debate entre Ratzinger e Habermas, bem
como as que Catroga e Zepeda levantam nos seus respectivos estudos sobre o tema da
secularização, apontam para limites da forma prognóstica de se pensá-lo como
universal, projetando-o a todos os contextos, ou ainda em relação a uma suposta
inevitabilidade de sua realização, decorrente da Modernidade. Com efeito, ele é,
efetivamente, Ocidental, e a realidade histórica indica haver rumos incertos em tais
processos.
Catroga, ainda que não com a pretensão de invalidar as tais “teses prognósticas e
prescritivas sobre o processo de secularização”, propõe-se a atualizar esses debates. A
secularização e os processos que levam a ela, longe de significarem um “fim da
história” –
em que a Modernidade avançaria sobre as religiões e as afastariam
progressivamente da cena pública, conduzindo para uma inevitável laicização, ou,
ainda, numa outra abordagem, apenas aparentemente contrária, de que esse fim seria
interrompido por um “retorno ao religioso” –,51 são pensados de maneira distinta. No
modelo analítico construído por Catroga, os processos de secularização são variáveis no
49
RATZINGER, Joseph; HABERMAS, Jürgen. Dialéctica de la secularización: sobre la razón e la
religión [2005]. Trad. Isabel Blanco e Pablo Largo. (Edição Kindle). Madrid: Ediciones Encuentro 2006.
Edição Kindle. Posição: 547-613.
50
STARK, Rodney. Secularization, R.I.P. Sociology of religion, v. 60, n. 3, p. 249-273, 1999.
51
CATROGA, Fernando. Entre deuses e césares. Op. Cit. p. 43.
119
tempo e espaço, e possuem ritmos diversos e descontínuos, ainda que em determinados
momentos sejam motivados por perspectivas universalizantes a respeito das relações
entre a religião e a vida pública. Noutras palavras, ainda que tais processos não sejam
homogêneos e “inevitáveis” conforme o curso da modernidade, existem alguns
elementos em comum entre eles. Com isso, as flutuações, em termos de evidência e
importância do religioso na política e vida em comum, também não são reduzidas a
particularismos presentes em cada contexto específico. Explica o autor, por exemplo,
que “se toda laicidade é uma secularização, nem toda a secularização se realizou como
laicidade”, embora “ambas se distinguem do campo religioso também não se poderá
olvidar” que “seu uso (e abuso) social e político as revestiu de alguma sacralidade”.52
Dito isso, fica claro que os modelos explicativos que buscam explicar a perda de
centralidade do religioso nas instituições, vida e espaços públicos, além das
representações de mundo – comumente, definido sob a chave conceitual da
secularização –, buscam enfrentar dois problemas fundamentais. Um primeiro,
localizado na sua abordagem fatalista, otimista e prescritiva, baseado num “mito de
modernidade”, no qual, com o avanço dessa mesma “modernidade”, a religião perderia
seu papel de centralidade de maneira progressiva e contínua. Pode se pensar num
desdobramento deste primeiro problema, pela sua “outra face”, que está no “retorno do
religioso”, ou no não cumprimento da promessa de modernidade do avanço da
secularização. Segundo tal ideia, problemas como o fanatismo, fundamentalismo ou
interpretações místicas e religiosas sobre o mundo representariam, a rigor, um
“retrocesso” ou uma espécie de retorno a realidades anteriores aos processos de
modernização. Um segundo problema, não menos importante, é configurado numa
interpretação etapista da mesma secularização, dentro da qual o produto dela seria,
necessariamente, uma laicização segundo conceitua-se o termo nas democracias liberais
contemporâneas, o que de fato não corresponde a uma verdade verificável na História.
No caso português, considerando-se o processo de secularização que marca o reinado de
d. José I, sob o Marquês de Pombal, a partir de 1750, com raízes anteriores, mas
acirrado, alguns desses pontos acima devem ser rigorosamente observados.
Primeiramente, esse processo deve ser observado de acordo com dinâmicas próprias e
coevo a disputas, expectativas e objetivos muito próprios do Setecentos. É necessário,
assim, evitar “atenuá-lo” a partir de uma análise teleológica, pensada a partir da
52
Ibidem, p. 46.
120
realização ou não de um Estado laico posterior a tal contexto. Por sua vez, a relação
entre a Coroa e a Igreja, com seus diversos abalos no referido contexto, que fizeram
parte de um complexo processo secularizador, deve ser compreendida na variedade e
multiplicidade de suas dinâmicas. A participação de eclesiásticos na sua execução e
fundamentação doutrinal e teórica, ou ainda as diversas inserções de elementos
religiosos no próprio processo secularizador do Iluminismo católico português sob o
pombalismo devem ser tomados não por contradições ou paradoxos, simplesmente, mas
como aspectos constantes a esta secularização. Por este viés, faz-se possível entender
um elemento-chave do ímpeto secularizador português no XVIII: o regalismo. Mais que
isso, conduz a entendê-lo de acordo com sua complexidade, que envolve diacronias,
flutuações e permanências nas instituições e vida pública, e mesmo incursões do poder
civil sobre aspectos mais identificados com o religioso.
João Seabra chama a atenção para a impossibilidade de se compreender a
política eclesiástica de Pombal sem se levar em conta um quadro mais amplo de relação
entre as monarquias católicas e Roma, no século XVIII. Afirma que é certo que “não se
pode entender o pombalismo religioso fora do contexto da derivação geral das
monarquias católicas, na segunda metade” do Setecentos, “para o estabelecimento da
supremacia régia sobre a Igreja, que se chamou galicanismo na França, febronianismo”
ou febronismo “na Alemanha, josefismo na Áustria, e em geral se designa por
regalismo”.53 Cândido dos Santos entende o regalismo de maneira um tanto similar.
Para ele, o termo “regalismo” se define como um termo lato, variável, mas que cobre
sensivelmente uma mesma realidade de tentativas diretas ou indiretas de afirmação dos
direitos do Estado sobre a Igreja nas monarquias católicas da Idade Moderna. 54 Porém,
Santos e Seabra, assim como diversos outros autores, entendem que a tendência de
avanços de jurisdição do poder civil sobre o eclesiástico, ainda que com características
mais gerais, englobam cruzamentos complexos de elementos dos mais variados, que vão
de doutrinas e tradições políticas a interpretações teológicas muito diversas, que
remontam a vários contextos da Idade Moderna. Na França, por exemplo, Cândido dos
Santos lembra que tal questão remonta ao galicanismo, que tem raízes no século XV e
teve importantes desdobramentos no século XVII. Neste último, no conhecido
galicanismo episcopal ou episcopalismo, advogou-se em favor do primado dos bispos e
53
SEABRA, João. A teologia ao serviço da política religiosa de Pombal: episcopalismo e concepção do
primado romano na Tentativa Teológica do padre Antônio Pereira de Figueiredo. Lusitania Sacra, [s. l.],
v. 7, n. 2a, p. 359–402, 1995. p. 360.
54
SANTOS, Cândido Dos. António Pereira de Figueiredo, Pombal e a Aufklärung. Op. Cit. p. 170.
121
do que fora decidido nos concílios em relação à autoridade papal; houve
desdobramentos no plano doutrinal e jurisdicional, tanto na França, como em países
como Alemanha e Áustria, nesse sentido, até o século XVIII.55 A questão do primado
dos bispos, em algumas matérias, em relação ao Papa, fez parte do cerne da
argumentação do padre José Clemente (1698-1798), no Portugal da primeira metade do
século XVIII, anteriormente ao pombalismo, segundo trabalho de Zília Osório de
Castro.56
Voltando ao desenvolvimento sobre a questão da jurisdição papal no século
XVII, na Alemanha elaborou-se um corpo doutrinário nesse sentido, tributário da
publicação De Statu Ecclesiae et legitima potestate Romani Pontificis liber singularis,
em 1763, do escolar de Lovain, Nicolaus von Honthein (1701-1790), que assinou a obra
como Justinus Febronius. Tal obra foi importante no que toca à sustentação teórica das
ações que defendiam a primazia do poder civil em detrimento do eclesiástico, e da
autoridade dos bispos e “Igrejas nacionais” em relação à Santa Sé. O febronismo, como
ficou genericamente conhecido tal corpo de ideias, era contra todo um sistema de
governo eclesiástico análogo ao monárquico, pois definia que o supremo poder da Igreja
pertence à comunidade dos católicos e que apenas seu uso pertencente ao Papa.
Portanto, cabia ao Papa subordinar-se à comunidade, o que faz desaparecer seu primado
de jurisdição. Para Justino Febronius, o primado do Papa não viria de Jesus Cristo, mas
de São Pedro e, a rigor, seria um contrato social entre o corpo de fiéis, como
comunidade que delegava poder ao pontífice. Assim, essa mesma comunidade poderia,
legitimamente, revogar o poder papal. Sua obra foi bastante difundida na Europa, tendo
sido mandada traduzir e publicar pelo próprio Marquês de Pombal, tendo um de seus
leitores mais notórios o padre Antônio Pereira de Figueiredo. 57
Voltando a Portugal, alguns dos conflitos jurisdicionais entre Igreja e Coroa de
Portugal com a questão do Padroado Régio.58Charles Boxer, em estudo fundamental a
respeito do padroado, observou que concessões do papado à Ordem de Cristo desde
1456, tendo o padroado origem medieval, envolvendo uma série de regalias concedidas
55
Ibidem. p. 168.
CASTRO, Zília Osório. Antecedentes do regalismo pombalino. In: POLÓNIA, Amélia, RIBEIRO;
Jorge Martins, RAMOS; Luís A. Oliveira (Coord.). Estudos em Homenagem a João Francisco Marques.
Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2001. pp. 321-332.
57
SANTOS, Cândido Dos. António Pereira de Figueiredo, Pombal e a Aufklärung. Op. Cit. p.169 e
p.178.
58
Uma explicação breve sobre o Padroado Régio se encontra na nota 39, do Capítulo 1.
56
122
aos monarcas pelo papado.59 Pelo padroado, o rei tinha autoridade para aceitar ou
rejeitar bulas papais, escolher, com aprovação do pontífice, representantes da Igreja,
além de uma série de outras atribuições. Entretanto, mesmo que o padroado conferisse
ao rei prerrogativas de interferir em assuntos eclesiásticos, a relação Estado e Igreja,
desde o século XVI, esteve passível de conflitos de jurisdição. Houve, ao longo de toda
a Idade Moderna, diversas contendas entre eclesiásticos, reclamando suas imunidades, e
seculares, apelando à soberania régia, em conflitos de natureza religiosa e política,
dentro de Portugal e colônias.60 Debates e conflitos sobre limites de jurisdições da
Igreja e da Coroa estiveram longe de serem exclusivos de Portugal. Dentro desse quadro
de conflitos, Cândido dos Santos observa haver grande contribuição para a justificação
teórica do primado da autoridade régia sobre a eclesiástica em escrito de Gabriel Pereira
de Castro, intitulada De manu regia, colocada no Índice de livros defesos em outubro de
1640, pouco tempo após ser publicado.61 De toda maneira, incursões da Coroa sobre a
jurisdição papal e eclesiástica já aconteciam em Portugal na primeira metade do século
XVIII, como demonstrou estudo acima citado de Zília Osório de Castro, e eram também
afirmados no plano simbólico e cerimonial, em liturgias ligadas à corte de d. João V e
ao próprio monarca, de acordo com o que mostra estudo a este respeito de Ana Cristina
Araújo.62 Na Colônia, Aldair Carlos Rodrigues demonstra haver impactos deste
processo de afirmação do poder régio sobre o eclesiástico e da jurisdição da Coroa sobre
a papal nas atribuições dos bispos, quanto a nomeações de eclesiásticos, na medida em
que a Coroa aumentou ainda mais seu controle de provimento de cargos em função de
sua orientação regalista.63
Em síntese, o regalismo pombalino se define como a supremacia do poder civil
sobre o eclesiástico, que decorre da alteração de uma prática jurisdicional comumente
seguida ou de princípios geralmente aceites, sem haver uma uniformidade na
argumentação com a qual ele é legitimado. O regalismo pombalino caracteriza-se, dessa
maneira, pelo seu caráter doutrinário, decorrente de uma teoria específica de poder,
sacralizadora da soberania e identificadora do seu âmbito de jurisdição. A reforma da
Igreja e a reforma do Estado tornaram-se, no pombalismo, partes integrantes do mesmo
59
BOXER, C. R. A Igreja e a Expansão Ibérica (1440-1770). Lisboa: Edições 70, 1981. p. 98-100.
MUNIZ, Pollyanna Gouveia Mendonça. Cruz e Coroa: Igreja, Estado e conflito de jurisdições no
Maranhão colonial. Op. Cit. p. 39-42.
61
SANTOS, Cândido Dos. António Pereira de Figueiredo, Pombal e a Aufklärung. Op. Cit. p. 171.
62
ARAÚJO, Ana Cristina. Ritualidade e Poder na Corte de D. João V - A génese simbólica do regalismo
político. Revista História das Ideias, v. 22, n. 04, p. 175–207, 2001.
63
RODRIGUES, Aldair Carlos. Igreja e Inquisição no Brasil: agentes, carreiras e mecanismos de
promoção social – século XVIII. São Paulo: Alameda, 2014. p.78-79
60
123
processo, pois o poder temporal e o espiritual eram vistos como esferas sobrepostas,
ambas submetidas ao poder régio.64 O regalismo pombalino implicava a anulação do
poder papal como poder que se contrapunha ao poder régio, tanto na ordem externa
como na interna. Para tanto, o poder dos bispos e do clero, regular e secular, e o
alinhamento deles ao reformismo pombalino, fizeram-se fundamentais, o que explica,
em grande parte, as perseguições a alguns setores e ordens, como os jesuítas, que
representassem tendências contrárias a esse curso de ações.65
O regalismo pombalino representou um marco do processo secularizador no
Iluminismo católico de Portugal. Isso porque sua construção, em grande medida,
transformou em ação, em esferas das mais diversas, uma disputa por parte da autoridade
poder civil, pelo que se denomina campo religioso. Ele se deu dentro de processos
similares aos analisados por Roberto Di Stefano, sobre a Ibero-América no “longo
século XIX” – denominação que o autor toma de empréstimo de Eric Hobsbawm, mas
que, em seu trabalho, é adaptada à realidade ibero-americana, tendo seu início recuado
aos reformismos pombalino e bourbônico, a partir da segunda metade do Setecentos.66
Di Stefano indicou que as formas de contestação religiosas surgidas ao final do Antigo
Regime guardaram estreita relação com o processo de secularização. Tal processo
afetou, de maneira direta e indireta, desde o século XVIII, a vida coletiva de toda da
sociedade ocidental. No entanto, a relação entre dissidência e secularização é complexa,
não sendo a dissidência mero produto da secularização, da mesma maneira que não se
pode explicar a primeira sem se considerar sua influência. Para Di Stefano, as formas de
contestação religiosa do Antigo Regime desenvolveram-se internamente a um campo
religioso, possuindo o que ele explica como um “duplo sentido religioso”: em primeiro
lugar, um sentido mais evidente, por se tratar de críticas à religião, ao menos no plano
institucional; em segundo, tais dissidências e críticas se guiaram pelo capital simbólico
64
CASTRO, Zília Osório. Antecedentes do regalismo pombalino. Op. Cit. p. 321-332. p.322-326.
Ibidem, p. 330.
66
O “longo século XIX” é o recorte abordado pela consagradíssima trilogia de Eric Hobsbawn, entre o
fim do Antigo Regime, com a Revolução Francesa de 1789, e a I Grande Guerra, em 1914 (
HOBSBAWM, Eric. A era das revoluções: 1789-1848. Trad. Maria Tereza Lopes Teixeira, Marcos
Penchel. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 2015; ____________. A era do capital: 1848-1875. Trad. Luciano
Costa Neto. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 2015; __________. A era dos impérios. Trad. Sieni Maria
Campos e Yolanda Steidel de Toledo. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 1988). Pode-se dizer que Roberto Di
Stefano fez uma pequena adaptação dessa expressão para a Ibero-América, embora algumas ressalvas
possam ser feitas. Por exemplo, as reformas pombalinas e bourbônicas, para o mundo ibérico, podem
significar marcos de surgimento da modernidade ou do processo secularizador, mas tiveram significados
e impactos bem distintos da Revolução de 1789. De toda maneira, a expressão também explica alguma
continuidade entre o processo secularizador, que o autor indica surgir nesse contexto, e as diversas outras
manifestações de anticatolicismo e anticlericalismo que marcaram movimentos republicanos e
independentistas argentinos no século XIX.
65
124
religioso, que envolveu questões tocantes à salvação da alma, sacramentos, dogmas,
mandamentos, princípios morais e éticos religiosos, trato com a própria e com outras
dissidências, dentre uma ampla gama de elementos.67
A perspectiva de secularização como um processo longo, descontínuo e
diacrônico, adotada por Catroga e que se afasta de modelos prognósticos e prescritivos,
assim como a tese de Di Stefano a respeito da dissidência religiosa, tomada não como
antirreligião, mas como um aspecto de disputa por bens simbólicos, interna a uma
dinâmica religiosa, articulam-se, como mencionado acima, com a categoria de campo
religioso, formulada por Pierre Bourdieu. Segundo Bourdieu, esse campo religioso
remete a uma divisão social do trabalho, em que se destaca da sociedade um grupo de
indivíduos, portadores de determinado capital cultural e simbólico, que se apresentam
como detentores e controladores de uma verdade religiosa, e que se organizam de forma
a administrar o que chama de “bens religiosos” e “bens de salvação”. Entre esses bens,
incluem-se ritos diversos, práticas religiosas, interpretação autorizada e legítima das
escrituras etc., observando-se uma moralização paulatina dessas práticas a partir da
constituição desse grupo, que forma uma espécie de “corpo sacerdotal”. A ideia do
autor, com a categoria de campo religioso, é de pensar a religião como linguagem,
comunicação e meio de estruturação de um sistema que engloba um universo específico
de princípios éticos e morais, ideias e organizações sociais (descritas na metáfora do
“círculo mágico”), que envolvem indivíduos e grupos em determinados contextos.68
Bourdieu chega a tal categoria articulando posições clássicas sobre a religião de autores
como Marx, Weber e Durkheim, de forma que tais construções de fatos e linguagens
religiosos não impliquem simplismos, como o automatismo de “cair de círculo em
círculo”, ou que sejam simplesmente isolados das demais estruturas sociais, como a
política ou a econômica.69
Por sua vez, a gênese do campo religioso, segundo Bourdieu, não se reduz a
meros desenvolvimentos das transformações sociais e econômicas. O campo religioso
estrutura-se de maneira relativamente autônoma. Dele fazem parte três conjuntos de
fatores: primeiramente, a constituição de um corpo sacerdotal, que integra uma elite de
uma sociedade, onde há uma divisão de trabalho intelectual e material, juntamente com
67
STEFANO, Roberto Di. Disidencia religiosa y secularización en el siglo XIX iberoamericano:
cuestiones conceptuales y metodológicas. Projeto História, São Paulo, n 37, p. 157-178. 2008. p.158-159.
68
BOURDIEU, Pierre. Gênese e estrutura do campo religioso. In: ________. A Economia das trocas
simbólicas. Trad. Sérgio Miceli. São Paulo: Editora Perspectiva, 1974. p. 27.
69
Ibidem, 27-28.
125
a própria consolidação do campo sacerdotal no papel de distribuir, gerir e reproduzir
bens religiosos; em segundo lugar, a atuação de um corpo leigo, na difusão e
sedimentação ética dos valores religiosos, ajudando a se consolidar a hierarquia social
interna ao campo religioso no que toca ao acesso a verdades e mistérios e à
administração dos bens religiosos; e em terceiro lugar, pensando nesses dois
movimentos combinados em um determinado contexto, desenvolve-se uma dinâmica
em que se consolida um corpo que que monopoliza o capital religioso, juntamente com
uma fundamentação ética desse monopólio, aceita amplamente. Com isso, constitui-se
uma hegemonia em relação ao capital religioso e uma hierarquização social em torno de
quem o detém, e com isso se tende a repelir os “novos”, vistos como profanos, em
oposição ao referido corpo sacerdotal, ou ainda hereges, blasfemos ou feiticeiros,
quando disputam com esse mesmo corpo sacerdotal a administração desses bens de
salvação em grupos restritos ou num corpo social mais amplo.70 Assim, é fundamental
frisar que, ainda que o campo religioso constitua uma estrutura relativamente autônoma,
porém não dissociada completamente de realidades políticas e materiais num
determinado contexto histórico, ele comporta tensões e disputas internas. Tais tensões e
embates se desenvolvem, em geral, entre os detentores legítimos do monopólio dos bens
de salvação, formado por sacerdotes, que são geralmente o grupo dominante, e os
outsiders, grupos dominados, na maioria das vezes, formados por aqueles que são
rejeitados e repelidos por esse corpo de sacerdotes e que, de alguma maneira, colocam a
legitimidade do monopólio do religioso em disputa.
Articulando a categoria de campo religioso, de Bourdieu, à perspectiva de
secularização de Catroga e à ideia de dissidência religiosa como aspecto de uma disputa
interna dentro do mesmo campo religioso, conforme defende Di Stefano, com a
problemática em torno do processo secularizador e do regalismo do Reformismo
Ilustrado português, antecipo agora algumas considerações, que desenvolverei mais a
fundo ao longo deste capítulo. A primeira é que, ainda que não seja adequado pensar as
políticas do Reformismo Ilustrado tocantes à religião e ao clero como “dissidência”, é
possível compreendê-las como elementos de uma secularização das instituições, como
uma disputa específica dentro de um campo religioso. Isso porque, nesse processo
secularizador, coexistiu uma tentativa de se reformar as mentalidades e o próprio Estado
e suas instituições, sob um ideal de religião racionalizado, segundo princípios
70
Ibidem, 38-45 e 57-65.
126
iluministas, com um combate contra agentes identificados com um “anti-projeto do
Reformismo pombalino”, o que incluía parte dos cleros regular e secular, em especial a
Companhia de Jesus e, nesse sentido, toda uma hegemonia eclesiástica, vista em
instituições que iam da censura à educação formal. Não se tratou de um movimento
antirreligioso, uma vez que houve um ideal específico de religião, que ocupou um lugar
central dentro de um projeto reformista, que tocava a todos os setores da sociedade, da
política, da economia e da administração pública, marcado por um amplo dirigismo
cultural por parte do poder régio. No processo secularizador que teve lugar na Ilustração
em Portugal e no Brasil colonial, observou-se essa forte disputa pelo controle e
hegemonia dos aparelhos culturais de toda a sociedade entre a Coroa e a clerezia. Podese pensar em uma sistemática tentativa de submissão das Igrejas nacionais e ordens
religiosas à Coroa, elemento presente no Iluminismo Católico e, no caso de Portugal,
com forte influência do josefismo austríaco, como confirmam Ana Cristina Araújo e
Cândido dos Santos.71
Francisco Bethencourt lembra a conexão entre o processo de secularização em
Portugal e a tendência geral de centralização estatal que marcou o reformismo levado a
cabo por Sebastião José de Carvalho e Mello entre 1750 e 1777. As reformas
introduziram significativas mudanças na administração pública, na educação, na
economia, no comércio marítimo, no desenvolvimento urbano e nas relações entre a
Coroa e Igreja católica. Quanto a estas últimas, segundo o autor, houve uma “afirmação
de poder do Estado perante a Igreja”, o que “implicou um conflito aberto com os
jesuítas que resultou em sua expulsão de Portugal e colônias em 1759”.72 Segundo
Bethencourt, de um lado, é preciso considerar os limites da Ilustração católica
portuguesa, “muito mais em diálogo com os modelos italiano e austríaco que com os
modelos britânico e francês”, e que isso implicou uma aparente contradição entre as
decisões e reformas modernizantes de Pombal e um “conservadorismo estrutural do
Antigo Regime português”. Porém, de outro lado, deve-se ter em vista que as políticas
de Pombal “abriram caminho para a criação de uma cultura política secularizada”.73
71
ARAÚJO, Ana Cristina. Dirigismo cultural e formação das elites no pombalismo. In: _______. O
Marquês de Pombal e a Universidade. 2a edição. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2014.
p. 16–48. p. 24; SANTOS, Cândido. Matrizes do Iluminismo Católico da Época Pombalina. Op. Cit.
p.952.
72
BETHENCOURT, Francisco. Enlightened Reform in Portugal and Brazil. In: PAQUETE, Gabriel
(org.) Enlightened Reform in Southern Europe and its Atlantic Colonies: c. 1750–1830. p. 41-46.
Cambridge: Ashgate e-book, 2009. p. 41.
73
Ibidem, p. 42-43.
127
Francisco Calazans Falcon fala de um “ímpeto secularizador, regalista e
centralista do Estado no Reformismo pombalino”, frisando também a afirmação de
poder da Coroa perante as instituições tradicionalmente ligadas à Igreja e ao clero. O
autor menciona que o alvo efetivo da Coroa nunca foi a Igreja, tomada no sentido de
instituição religiosa, mas sim “a dominância do aparelho religioso” sobre “os demais
aparelhos ideológicos”, somada à presença direta do clero na política. Não se propunha
a supressão pura e simples da hegemonia eclesiástica. Isso, segundo Falcon,
“demandaria não apenas simples reformas, e sim, uma revolução ” – o que leva a inferir
que o autor partiu de uma definição distinta da que tem sido adotada nesta tese quanto à
secularização e aos processos secularizadores, em sua interpretação, pautados por uma
noção de diluição e eliminação progressiva do religioso na vida pública. Ainda segundo
o mesmo autor, objetivou-se “uma reorientação ou uma redefinição da mesma
hegemonia, capaz de abrir espaço às novas formas de pensamento”, o que viria a
implicar, na prática, “uma profunda mudança na própria organização institucional da
cultura e seus aparelhos respectivos”74.
Luís Cabral de Moncada chama a atenção para um elemento fundamental no
sentido de se entender o processo secularizador em Portugal, que é o fato de ele não ter
prescindido da própria Igreja ou da religião, mas tê-lo, em alguma medida,
instrumentalizado. Segundo Cabral de Moncada, o regalismo português se caracterizou
por um projeto centralizador e de reformas que foram empreendidas verticalmente.
Tratou-se de uma modernização vinda de “cima” e que teve no Estado o principal
agente. Segundo ele, essa instrumentalização da Igreja por parte da Coroa “foi uma
astúcia do Estado para se poder tornar, ele próprio, divino no domínio político,
acabando por prescindir do religioso, e se separar dele quando já dele não precisava”.
Dentro de uma concepção político-religiosa de uma Igreja intrumentum regni, o
regalismo não foi “outra coisa senão o primeiro passo de uma tentativa no sentido da
emancipação do ‘político’ em frente do ‘religioso’, conservando aquele por usurpar a
dignidade ética deste, para à custa dela fundar depois a sua própria, num domínio
espiritual autônomo”.75
Em específico sobre a relação entre a Coroa e a Igreja sob Pombal, Laurinda
Abreu observa que o reformismo pombalino não se afasta muito daqueles
implementados na Áustria, Nápoles, Alemanha ou na Espanha de Carlos III, “modelo
74
75
FALCON, Francisco Calazans. A Época Pombalina. Op.Cit. p.424-425.
MONCADA, Luís Cabral de Oliveira. Um “iluminista” português do século XVIII. Op. Cit. p. 65-95.
128
sobre o qual se construía o poder dos Estados Ilustrados” e “acomodava-se mal com
práticas ultramontanas e com excessos de autonomia, multiplicidade de privilégios e de
imunidades de que gozavam o clero e as instituições religiosas”. Segundo a autora,
naquele contexto político europeu, o relacionamento entre a autoridade secular e a
Igreja pautava-se pela afirmação de um regalismo crescente e uma consequente
diminuição ou eliminação de poderes concorrentes. Pombal, na concepção da autora,
estava plenamente de acordo com tendências de outras monarquias europeias do
período, o que implica, segundo ela, que “reduzir a sua intervenção a um mero
fenômeno de importação”, conducente a um reformismo desligado da tradição católica
portuguesa, “sem consequências estruturais” significativas, é “um exercício desajustado
em relação à verdade dos fatos, que os documentos confirmam”.76 Dessa maneira,
Laurinda de Abreu vê, no conjunto das ações do Marquês de Pombal, uma coerência
com outros modelos políticos de reformas orientadas pelo Iluminismo, encontrados nos
países católicos.
Uma perspectiva bastante diferente é a adotada por Nuno Gonçalo Monteiro,
para quem “os modelos políticos de Pombal, de acordo com o que o próprio afirmou e
boa parte dos seus contemporâneos constataram, foram experiências ‘absolutistas’ do
século XVII”, e, assim, “Pombal viu-se e foi visto como um político do Barroco em
pleno século das Luzes”.77 Dois dos principais pontos que Monteiro utiliza para
sustentar seu argumento são as constantes comparações, presentes e analisadas na
documentação, feitas entre Pombal e o cardeal de Richelieu, conhecido primeiroministro do rei Luís XIII, da França, entre 1628 e 1642, por contemporâneos e pelo
próprio Pombal, bem como algumas características do comportamento de Sebastião
José de Carvalho e Mello, comuns, segundo Monteiro, com a figura o valido
seiscentista.78 A tese de Monteiro, no entanto, apresenta algumas inconsistências que
precisam ser levadas em conta. A começar que, como já foi discutido acima, a partir de
trabalhos como os de Berenice Cavalcanti e Ana Cristina Araújo, alguns hábitos de
Corte mantidos nas sociabilidades ilustradas em Portugal não eram conflitantes com a
76
ABREU, Laurinda. As relações entre o Estado e a Igreja em Portugal, na segunda metade do século
XVIII - o impacto da legislação pombalina sobre as estruturas eclesiásticas. In. FARIA, Isabel Leal de;
BRAGA, Isabel Drumond (orgs). Problematizar a História: Estudos de História Moderna em
Homenagem a Maria do Rosário Themudo Barata. Lisboa: Caleidoscópio, 2007. p. 644-673. p. 647.
77
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. D. José: na sombra de Pombal. Lisboa: Círculo de Leitores, 2006. p. 244.
78
Ibidem, p. 245-248, p. 230-231. Uma síntese dos argumentos sobre as características de valido de
Pombal está na resenha feita, da mesma obra, por Antônio Manuel Hespanha. HESPANHA, António
Manuel. A note on two recent books on the patterns of Portuguese politics in the 18th century. E-journal
of Portuguese History, v. 5, n. 2, p. 42-50, 2007. p. 44.
129
circulação de ideias e com o desenvolvimento das Luzes no contexto luso-brasileiro,
sendo, no caso, uma de suas ambiguidades marcantes. Monteiro, inclusive, admite que
Pombal, “obcecado por pôr Portugal a par das ‘nações mais polidas da Europa’ e
contemporâneo das elites das Luzes”, compartilhou com elas inimigos em comum, tais
como o poder civil da Igreja e os jesuítas, e “foi buscar nelas algumas fontes de
inspiração”, embora conclua que, ainda assim, “Pombal não foi um filho das Luzes”,
reforçando as comparações a Richelieu e outros ministros cuja imagem se associa ao
absolutismo.79 A análise de Nuno Monteiro sobre Pombal, especificamente, e sobre o
Iluminismo, no geral, pode ser bem sintetizada na compreensão que o autor toma como
uma espécie de pressuposto de sua asserção, a de que a Ilustração seria incompatível
com o absolutismo. Por um lado, o autor exclui dos processos das Luzes realidades
como os “despotismos esclarecidos” e desdobramentos relativos a eles, como o
regalismo, o josefismo austríaco, entre outros. Por outro, Nuno Monteiro acaba por
indiretamente valorizar uma perspectiva de Luzes como um conjunto de críticas
profundas ao Antigo Regime como um todo, da monarquia absolutista e da hegemonia
religiosa e cultural que o clero católico ainda exercia no interior da sociedade.
Depreendo que dessa compreensão das Luzes, sua concepção como plenas implicaria
pensar que elas advogariam, também no seu conjunto, a necessidade de urgentes
reformas políticas, educacionais e sociais, e que teriam por ápice a Revolução Francesa
de 1789, ou um movimento hipotético que lhe fosse similar. Trata-se de uma
perspectiva que, ainda que válida e respaldada por trabalhos clássicos sobre a Ilustração,
impacta significativamente sua análise sobre o Iluminismo como fenômeno histórico
noutros contextos que não o francês.80 O foco de Monteiro incide fortemente na ideia de
ruptura necessária com o antigo e, por isso, sua análise sobre Pombal sustenta-se nas
continuidades e nos contatos com ideias e práticas sociais e políticas identificadas como
típicas do Antigo Regime.
Entretanto, as características apontadas por Monteiro a Pombal, ao invés de
reforçarem que ele não seria um “filho das Luzes”, acabam somente por indicar
características próprias de um Iluminismo português, com suas ambiguidades e
particularidades. Para reconhecê-las, torna-se fundamental levar em consideração a
historiografia sobre o Iluminismo, que reviu sua cronologia para além do século XVIII,
79
Ibidem, Loc. Cit.
SOARES, Luiz Carlos. A Albion revisitada no século XVIII: novas perspectivas para os estudos sobre
a ilustração inglesa. Tempo (Rio de Janeiro), n. 16, p. 175-206, 2004, p. 175-178 e p.184.
80
130
e sua geografia, para além da ideia de uma irradiação a partir da França, abarcando
dinâmicas locais em diálogo com contextos mais gerais tocantes à Europa. Cumpre
reconhecer as peculiaridades, matizá-las e, ao mesmo tempo, buscar similaridades com
outros contextos do Iluminismo. Antonio Cesar de Almeida Santos, citando Ulrich Im
Hof, por exemplo, sustenta que Pombal “não se constituiu em ‘uma singularidade única’
para aquele período”, referindo-se à sua posição em relação a d. José I, “um rei que,
conforme a crônica, preferia a caça e a música aos negócios de Estado e que reinou à
‘sombra do valido’, Sebastião José de Carvalho e Melo”. Com a exceção de quatro
“grandes monarcas”, que “quiseram governar de uma forma eficiente e não através de
seus ministros” – Frederico II, da Prússia, Maria Tereza e José II, da Áustria e Catarina
II, da Rússia –, “a maior parte dos soberanos (...) vivia bem longe dos assuntos
governativos e dos povos que eram supostos governar, mas sempre apoiados numa
tradição inabalável de fidelidade e dedicação”.81
Quanto às comparações com os validos do século XVII, sobretudo com o cardeal
Richelieu, registradas na documentação escrita, muitas vezes por citações, pode-se
entendê-las como demonstrações a respeito das influências de modelos políticos dos
ministros seiscentistas sobre a forma de atuar de Pombal e que possuem pontos
questionáveis. Na crítica metodológica que Stephen J. Barnett faz a trabalhos clássicos e
recentes sobre o Iluminismo, o autor adverte que muitas vezes os historiadores utilizam
como prova de haver influência de um autor ou pensador sobre o outro somente citações
ou comparações de ideias colocadas em seus escritos, o que, segundo ele, são evidências
problemáticas, que por si mesmas nada provam. O mesmo se poderia afirmar quanto a
comparações críticas feitas externamente, no caso, do Conde de Oeiras, com o arquétipo
do valido seiscentista, conforme seus adversários faziam e foi mencionado por
Monteiro. Voltando brevemente ao argumento de Barnett sobre o “problema da
influência”, em matéria de História das Ideias, o autor indica, por exemplo, que a
abundância de citações de pensadores clássicos greco-romanos ou renascentistas, nas
obras de autores iluministas, pode indicar uma gama bastante variada de informações –
tais como o uso de determinados autores como argumento de autoridade, um
comportamento “pedante” de um autor desejoso de demonstrar erudição dentro de uma
sociabilidade cortesã, ou ainda o simples fato de quem escreve conhecer o outro e sua
obra. A influência, propriamente, na qual se possa perceber e se verificar na
81
SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Luzes em Portugal: do terremoto à inauguração da estátua
equestre do Reformador. Topoi (Rio de Janeiro), v. 12, n. 22, p. 75–95, jun. 2011. p. 85
131
documentação um peso significativo em matéria intelectual, religiosa ou política de um
pensador em relação a outro e uma apropriação e reelaboração de suas ideias, precisaria
de um maior número de elementos que a comprovem.82 Partindo dessa crítica
metodológica, não é descartável, por exemplo, que as comparações de Pombal com o
cardeal de Richelieu possam ter sido retóricas – para se exaltar ou criticar o ministro
português –, ou as menções, que o próprio Pombal fez ao cardeal francês, mencionadas
por Monteiro, tenham sido um recurso de autoridade para a defesa de algum argumento,
considerando-se a própria importância simbólica da figura do ministro de Luís XIII na
Idade Moderna e em contexto absolutista. A análise de Monteiro sobre Pombal, lida da
forma como apresentada acima, remeteria às “mitologias” apontadas por Quentin
Skinner a respeito das concepções clássicas de histórias das ideias, sobretudo aquela a
que ele se refere como “mitologia da coerência”. Nela, conforme o autor britânico
explica, o historiador, por vezes, converte observações dispersas em “doutrinas”, que o
autor, obra ou personalidade analisado jamais enunciou. A decorrência disso é ver
alguma “falha” em termos de enunciação, quando ela se desvia de um todo coerente,
absolutamente consistente, construído a priori, pelo próprio historiador em questão.83
Monteiro, ao considerar Pombal incongruente com as Luzes e ao atrelar sua figura à
suposta ou real referência nos validos seiscentistas, sobretudo Richelieu, questionou a
própria inserção de Pombal no contexto intelectual e político-religioso que viveu, que
foi o do Iluminismo. Tal ponto de vista de Monteiro, insista-se, decorre de uma
construção apriorística e teleológica sobre as Luzes, problemática na tarefa de abarcar
as incoerências e descontinuidades próprias de qualquer contexto. Enfim, certamente,
seria de esperar-se que uma figura ambígua como Sebastião José de Carvalho e Mello as
portasse, no contexto das Luzes e buscando desenvolver um projeto reformista e
modernizador em Portugal.
Voltando ao processo de secularização em Portugal durante o Reformismo
Ilustrado, a historiografia tem analisado diversos pontos da política reformista de
Pombal coevos. Laurinda Abreu sintetiza as ações pombalinas com a Igreja da seguinte
forma:
No que à Igreja concerne, o projeto de reforma pombalino reconstituise com relativa facilidade, sendo possível distinguir nele dois planos
complementares e sequenciais. O primeiro desenvolveu-se no sentido
da progressiva eliminação dos obstáculos que pudessem criar
82
83
BARNETT, Stephen J. The Enlightenment and religion. Op. Cit. p. 22-23
SKINNER, Quentin. Meaning and Understanding in the History of Ideas. Op. Cit. p. 16-22.
132
resistências à mudança. Definido o poder do Estado, os esforços
centram-se de seguida na implementação de condições que
contribuíssem para a rápida debilitação da Igreja e das estruturas
eclesiásticas. Enquadra-se no primeiro caso a (...) expulsão dos
jesuítas [1759] e do Núncio [Apostólico em Lisboa, Filippo
Acciaiuoli, em 1760] e o subsequente corte das relações diplomáticas
com a Santa Sé, que teve lugar em 1760. A criação de novas dioceses
e a reconfiguração do mapa eclesiástico do país, patrocínio da
publicação de obras claramente regalistas (...) a transferência da
censura das publicações e do ensino do pelouro da Igreja para o
Estado através da atribuição desta competência à Real Mesa Censória
[1768] e (...) a promulgação de legislação tendente à limitação das
prerrogativas da Igreja e do clero, inserem-se já no plano de ação
reformadora propriamente dita.84
Assim, a busca por se centralizar o poder na Coroa e se reajustar o status do
clero e da Igreja marcou o Iluminismo católico no mundo luso-brasileiro, redefinindo o
lugar da religião no espaço público e sua influência no campo político. Trata-se não de
uma laicização – que sequer estava posta em discussão no período –, mas da construção
de um projeto político-religioso bem claro da Coroa, tendo o Marquês de Pombal,
ministro de d. José I, à frente. Tal projeto marcava-se por um dirigismo do Estado em
relação aos demais agentes sociais, um apoio de uma elite letrada – parte significativa
dela financiada pela Coroa –, havendo uma disputa com defensores de reformas amplas,
em todos os âmbitos da sociedade e Estado, pelo campo religioso – evocando, aqui,
novamente, o conceito de Bourdieu. Pombal foi, segundo Kenneth Maxwell, o exemplo
mais extremo daquilo que a historiografia denomina comumente “despotismo
esclarecido’, em que o centralismo e certo autoritarismo na condução de reformas se
conjugaram com um projeto de modernização.85 Com o objetivo de se entender a
linguagem político-religiosa formada no seio dessa república das letras no mundo
lusófono, no bojo das reformas pombalinas, opto por analisar alguns tópicos presentes
em grande parte da produção literária feita nos domínios de Portugal ou fora deles,
pelos chamados “estrangeirados”. O mais recorrente desses tópicos, que é a presunção
de Portugal estar atrasado em relação às “nações cultas” da Europa, será o primeiro
deles.
2.3 Um reino atrasado, diante das “mais polidas nações da Europa”
84
ABREU, Laurinda. As relações entre o Estado e a Igreja em Portugal, na segunda metade do século
XVIII. Op. Cit. p. 648-649.
85
MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do Iluminismo. Trad. Antônio de Pádua Danesi.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. p. 2.
133
Nas fontes setecentistas, é comum observar referências a um Portugal atrasado
em relação às “nações cultas” da Europa, e esse tema ocupa lugar de destaque entre os
diversos “diagnósticos” sobre sua situação em diversos campos, da cultura à economia,
passando pela religião. Acertadamente, Flávio Rey de Carvalho assinala que a ideia de
um fatídico atraso português foi transmitida e reforçada por uma tradição literária,
filosófica e historiográfica oitocentista, que reforçou a percepção de uma modernidade
anômala no caso luso e europeu meridional. No entanto, o historiador peca ao afirmar
que as percepções de isolamento, atraso cultural e econômico, de estagnação e
decadência de Portugal, em particular, e do mundo ibérico, no geral, em relação ao
Além Pirineus “não conferiam com o que a grande maioria dos portugueses, à exceção
de uns poucos ‘estrangeirados’, sentiam acerca de si mesmos”, durante o Setecentos.86
Pelo contrário, a leitura dos escritos dos ilustrados portugueses e luso-brasileiros mostra
que esse tipo de representação não é somente comum, mas também denota uma visão
ampla que esses pensadores tinham a respeito de seu contexto, suas percepções de
mundo e mesmo alguns de seus alinhamentos religiosos e políticos.
Cumpre lembrar que o tema do atraso português e ibérico em relação às outras
partes da Europa não é uma novidade do século das Luzes, sendo parte de uma
linguagem política formada, sobretudo, no século anterior. Segundo Fernando Antônio
Novais, a partir do século XVII, Portugal e Espanha passaram a ser, cada vez mais,
ultrapassados economicamente por países como França, Inglaterra e Holanda.
Pensadores de ambos os países, como Sancho de Moncada, na Espanha, e Duarte
Ribeiro de Macedo, em Portugal, analisavam essa decadência em profundidade,
buscando suas razões e procurando remédios que a sanassem. A estrutura e a linguagem
das análises dessa questão, vindas da época barroca, estiveram no centro das
preocupações dos Iluministas, no século XVIII, as quais retomaram essas análises já
existentes à luz de debates novos.87 Ana Rosa Cloclet da Silva, por sua vez, observa a
formação de um vocabulário político em que a ideia do atraso português como pano de
fundo teve grande contribuição, envolvendo a ideia de um crescente “distanciamento da
pátria”, que marcou a trajetória de muitos diplomatas portugueses. Tal ideia adveio de
necessidades impostas após a Restauração, em 1640, em que se observou uma “antipropaganda” feita por toda Europa por judeus e cristãos-novos, dentre uma série de
outros motivos. Assim, surgiria a figura do “estrangeirado”. Este termo tem suas
86
87
CARVALHO, Flávio Rey de. Um iluminismo português? Op. Cit. p. 28.
NOVAIS, Fernando Antônio. Reformismo Ilustrado luso-brasileiro. Op. Cit. p. 106.
134
limitações, sobretudo por não englobar a heterogeneidade e as multifaces das vidas e
trajetórias desses letrados lusitanos cujos percursos deram-se nos principais países da
Europa. Além disso, contribuiu para a construção de uma narrativa que opunha os
problemas de uma “cultura castiça” e isolada portuguesa às dinâmicas do processo do
pensamento cosmopolita europeu. Tal oposição tomou proporções mais amplas, na
medida em que crescia a percepção do agravamento de uma condição periférica no
campo econômico e noutros, após as guerras contra os holandeses e os desfavoráveis
tratados feitos com os ingleses, sobretudo o de 1703.88
Outro apontamento importante a ser feito é o fato de que perceber um atraso,
diagnosticá-lo e oferecer soluções para ele por meio de publicações, muitas em tom
polêmico, remonta à tradição do arbitrismo. Este termo foi geralmente utilizado para se
referir a uma literatura reformista, que teve seu auge entre as últimas décadas do século
XVI e o final da primeira metade do XVII. Como arbitrismo definia-se uma estratégia
de se dirigir aos monarcas e/ou aos seus conselheiros através de escritos que propunham
soluções a partir dos arbítrios – que eram, na Idade Moderna ibérica, ações de caráter
fiscal de curto, médio e longo prazo para problemas de natureza econômica e fiscal,
bem como para as suas implicações sociais, e que não requeriam negociação com os
contribuintes – para problemas diversos da Coroa espanhola e colônias.89 Salvador
Albiñaga, em estudo sobre o tema, chama a atenção para uma riqueza crítica desse
gênero, que não pode ser resumido a defesas pragmáticas de reformas econômicas
visando sanar problemas imediatos. Os textos considerados arbitristas continham
leituras complexas conjunturais e sobre a história da Espanha, além de um caráter
relacional, em função da percepção do lugar do dito reino na Europa. Nas narrativas
arbitristas, ao tom decadentista –relacionado sobretudo a perdas de guerras contra outros
países europeus, mas também com a queda na extração aurífera nas colônias da América
– somavam-se ideias de progresso e superação da perda de hegemonia continental. Tais
ideias envolviam aspectos que iam desde leituras que entendiam que o mal procederia
88
SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Inventando a Nação: Intelectuais Ilustrados e Estadistas luso-brasileiros
no crepúsculo do Antigo Regime Português: 1750-1822. Tese (Doutorado em História). Campinas:
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas-Unicamp, 2000. p. 36-38. Um estudo importante a respeito dos
tratados diplomáticos portugueses na primeira metade do século XVIII foi publicado por Júnia Ferreira
Furtado. Especificamente a respeito do tratado de 1703, a autora destaca as críticas mordazes feitas por d.
Luís da Cunha, sobretudo no que toca às desvantagens comerciais lusitanas em relação aos ingleses.
FURTADO, Júnia Ferreira. Guerra, diplomacia e mapas: a Guerra de Sucessão espanhola, o Tratado de
Utrecht e a América portuguesa na cartografia de D’Anville. Topoi, v. 12, n. 23, p. 66-83. Jul.-dez. 2011,
p. 69.
89
DUBET, Anne. Los arbitristas entre discurso y acción política. Tiempos Modernos, vol. 4, nº 9, p. 1-14,
2003. p. 1-2.
135
da administração colonial até questões de fundo intrinsecamente religiosas. Com a
percepção dos avanços da ciência no século XVII, incluía-se no arbitrismo e na
percepção da decadência também uma ideia de atraso científico e cultural em relação às
demais nações europeias, sempre articulando-se um tom propositivo e reformista com
uma crítica da realidade ibérica. Assim, formou-se uma tradição de crítica política
própria do barroco ibérico, escritas em forma de memoriais, “diagnósticos” e outros dos
mais variados.90 Em estudo recente sobre a corrupção no império português, Adriana
Romeiro analisa algumas narrativas, entre elas a do Soldado Prático, na qual alguns
desses elementos aparecem claramente. Há uma ideia de “passado de ouro”, da época
das conquistas, de um presente de decadência, fruto do mau governo e da corrupção dos
governantes que estavam distantes dos olhos do monarca. Existe também a descrição,
como diagnóstico, de problemas pelos quais os domínios portugueses na Ásia passavam
e que, se não fossem sanados, os próprios domínios seriam perdidos.91
Em suma, com esse conjunto de análises feitas neste subcapítulo, busco reforçar
uma tese: no período das Luzes, as diversas e variadas leituras sobre os males que
recaíam sobre Portugal e causas da decadência portuguesa em relação às “mais polidas
nações da Europa”, valeram-se de tradições e vocabulários políticos muito anteriores ao
Iluminismo. Várias tópicas foram organizadas, apresentadas e difundidas de formas
distintas, com elementos próprios do século XVIII e bem articulados com as forças
políticas hegemônicas no período – a saber, reformismo pombalino, a partir de 1750,
embora não somente ele – e que dialogavam com discussões diversas de outros
contextos da Europa iluminista.
Essa situação evidencia-se, por exemplo, em carta datada de 2 de fevereiro de
1777, a terceira de um conjunto de dezessete atribuídas ao Marquês de Pombal,
originalmente escritas em inglês, organizadas e publicadas em 1822. Nelas, observa-se
uma série de lamentos sobre o estado de Portugal, à época em que Sebastião José de
Carvalho e Melo tornou-se ministro de d. José I. Ela começa em tom lamurioso pelo
estado da agricultura, “o primeiro objeto de atenção do Ministro”, que “antes não só
fornecia Trigo para o seu próprio consumo, mas igualmente supria a alguns outros
Países”. Naquele momento, no entanto, sobretudo após o “Tratado celebrado em
90
ALBIÑAGA, Salvador. Notas sobre decadencia y arbitrismo. Estudis, v. 20, p. 9-28, 1994.
Essa discussão, segundo Adriana Romeiro, aparece em Soldado Prático, texto escrito em dois
momentos, entre 1560 e 1570, de autoria de Diogo do Couto. Também há pontos similares em A arte de
furtar, texto publicado em 1652, em nome do padre Antônio Vieira, mas atribuída pela historiografia ao
jesuíta Manuel da Costa. ROMEIRO, Adriana. Corrupção e poder no Brasil: uma história, séculos XVI a
XVIII. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. p. 93-122 (ver, em especial, as p. 101 e 119).
91
136
Inglaterra em 1703, obrigando aquela Potência a tomar os Vinhos de Portugal em troca
de suas fazendas de lã”, Portugal abundava em vinho, mas carecia de gêneros básicos de
subsistência, como roupas e cereais. A carta segue, afirmando que é “opinião
geralmente recebida que é muito pequena a parte de Portugal que não seja capaz de
produzir alguma cousa”, e que grande parte de suas terras “daria [alg]um produto na
mão de um Povo industrioso está a cultivar”, e que os campos de Portugal “não estão
ainda nem mediocremente em bom estado de cultura, capaz, e igual a das outras partes
da Europa”.92 Complementa-se, dizendo que:
Não se deve alegar, que há uma natural falta no gênio dos Povos
Meridionais. Os anais de Portugal contradizem esta opinião; os Tirios,
e Cartagineses dão um exemplo do contrário, e devemos procurar a
causa mais depressa na natureza do governo, do que atribuí-las ao
defeito do clima [Grifos meus].93
Complementa-se o raciocínio ao se lamentar sobre o estado do povo português,
de maneira mais geral:
É estranho o mais que pode ser, que Portugal represente um estado
inteiramente de infância por não dizer de barbaridade no meio dos
mais polidos Estados da Europa. Com a perda de seu Comércio, os
Portugueses perderam o espírito da Indústria; perderam o
conhecimento das Artes, e exercícios da razão, e os princípios da Sã
Política.94
O que é notável nessa passagem são as percepções desoladoras sobre o estado do
Reino no início do reinado de d. José I, decorrentes, em partes, do Tratado de Methuen,
ou “Tratado de Panos e Vinhos”, celebrado com a Inglaterra em 1703, e que garantia
monopólios comerciais e alianças militares entre os dois países. Mas a causa da
“infância” de Portugal, em relação aos demais estados da Europa, é a falta de engenho
de seu povo, causadora de uma decadência que abrange a política, a indústria, o
comércio, o desenvolvimento das artes e ciências, além da agricultura, o que não pode
ser explicado pelo clima, mas pela “natureza do governo”. O tema aparece novamente
na carta VI, datada de 20 fevereiro de 1777. Nela, afirma-se primeiramente que Pombal,
no princípio do reinado de d. José I, como “Ministro amante da Pátria, pretendia
92
MELO, Sebastião José de Carvalho e [1699-1782]. Cartas e outras obras selectas do Marquez de
Pombal, Ministro e Secretario D’ Estado D’El Rei D, Joze I com epítome da vida deste Ministro e ornado
do seu retrato. Tomo II. Lisboa: Na Typ. De Desiderio Marques Leão, 1822. Digitalizado por Harvard
University, 2009. Disponível em: < https://catalog.hathitrust.org/Record/009721362>. Acessado em
mai./2018. p. 176-177.
93
Optei, nas citações extensas, a fim de facilitar a leitura, por atualizar a grafia das palavras, mas manter a
pontuação original. Ibidem, p. 178.
94
Ibidem, p. 178-179.
137
aumentar as comodidades de seu País, e equilibrá-lo o mais que fosse possível com as
outras Nações” e, para tanto, “empreendeu restaurar o espírito da Indústria, animando as
Artes, e Manufaturas”. Em seguida, diz-se que ele pôs diante de si o “exemplo da
Holanda, cujo clima não sendo favorável às Artes”, sobretudo pela pequena população e
seu território reduzido, com o que “este País tem sido tão mudado pela Indústria, que a
abundância veio suceder à geral carestia”. Conclui-se, logo depois, que: e “uma Nação
pobre em si mesma, em outro tempo tributária às mais, achava se agora em estado tal
que as outras contribuem para o aumento de sua prosperidade, e riqueza”.95
Um primeiro aspecto que chama a atenção na carta do Marquês de Pombal é que
o atraso português tem um referencial externo, qual seja, as nações que, segundo a parte
acima citada do artigo de Fernando Novais, superaram Portugal política e
economicamente desde o século XVII, marcadamente França, Holanda e Inglaterra.
Ideia similar aparece em carta enviada, em 1760, por Antônio Nunes Ribeiro Sanches e
publicada pelo Centro de Estudos Judaicos na Universidade da Beira Interior
recentemente. Nessa carta, o médico ilustrado português refere-se a uma obra sua,
também disponibilizada pelo mesmo centro, o Método para aprender e estudar a
Medicina, de 1759, livro em que Sanches discorre sobre como se deveria ensinar-se a
medicina, segundo o que havia de mais moderno em meados do século XVIII. Ele
ressalta, por exemplo, a necessidade de que a formação de um médico não seja tão
somente prática, mas também teórica, reforçada com o aprendizado da filosofia, das
humanidades, em especial no que refere à Grécia e Roma antigas, da filosofia racional e
moral, da física e também de ciências modernas, como a química. Além disso, à prática
médica, deveria ser aliada a leitura de Boeharve e outros médicos importantes do
período, o que implicaria também um aprendizado das línguas modernas e antigas.96
Voltando-se à carta escrita por Ribeiro Sanches, referindo-se a dita obra, remetida a
Joaquim Pedro de Abreu e datada de 1760, o ilustrado português começa ressaltando
haver proposto ao rei d. José I, com seu Método, no ano anterior, que enviasse
portugueses “capazes de aprender” às universidades estrangeiras e, quando voltassem,
ensinassem em Coimbra. Porém, afirma que alguns compatriotas rejeitaram sua
proposta por algo “quimérico e impraticável”, o que, aos seus olhos, não seria de
95
Ibidem, p. 180-181.
SANCHES, Antônio Nunes Ribeiro. Método para aprender e estudar a Medicina [1759]. CovilhãPortugal: Universidade da Beira Interior- Centro de Estudos Judaicos, 2003. Disponível em:
<http://www.estudosjudaicos.ubi.pt/rsanches_obras/metodo_aprender_estudar_med.pdf>.
Acessado
mar./2017.
96
138
espantar. E uma das justificativas para sua não surpresa é a afirmação de que sua
proposta, enviada ao monarca, não contém pensamento algum que tenha adquirido
quando estudou em Coimbra ou Salamanca, nem do que ele aprendeu praticando a
medicina por quatro anos na Guarda e em Benavente. Suas ideias, continua Sanches, são
baseadas no que ele aprendeu ao longo de trinta e quatro anos nas universidades de Pisa,
Montpellier e Leyde, nas escolas e hospitais da Rússia e de Londres e na
correspondência que teve com “Mrs. Vanswieten, Haller, Schreiber, Guntz e Gaubius,
tocante à verdadeira medicina, e como deve ensinar-se”. Por isso, “seria impossível que
se compreenda em Portugal o que se adquiriu em tão vários climas, e com tão diversas
pessoas”, ressaltando o isolamento e atraso de seus críticos e, também, do contexto
ibérico como um todo.97
Fica patente, no trecho analisado supra, o cosmopolitismo de Ribeiro Sanches.
Nada surpreendente dentro da trajetória do médico cristão novo português. Ele fez parte,
por exemplo, de várias academias ao longo de sua vida, sendo elas a Academia Real de
História de Lisboa, a Academia Imperial de Ciências de São Petersburgo, a Royal
Society de Londres, a Academia de Ciências de Paris, além da Societé Royale de
Médécine da França e da Sociedade de História Natural do Rio de Janeiro. 98 Foi o único
iluminista português a escrever na Enciclopèdie francesa, tendo também passagens
importantes em países como a Rússia, onde na década de 1740 iniciou relações com a
mencionada Academia Imperial de São Petersburgo, tendo assistido também como
médico diversos nobres da corte russa. Trata-se de uma trajetória rica em diversos
circuitos de produção de ciências e de conhecimento médico e de outras áreas, em
importantes centros da Europa. Essa ampla circulação não o impediu de manter sempre
os olhos sobre seu país natal, como demonstra, em análise bastante pormenorizada da
trajetória de Sanches, Julie Hamacher Liepkaln, em trabalho recente.99 Seu contato com
os circuitos de letrados ilustrados europeus e seu olhar para Portugal aparecem nas
observações que faz sobre o ensino da medicina no país. Tal quadro, identificado com
97
_____________________________. Carta a Joaquim Pedro de Abreu [1760]. Covilhã - Portugal:
Universidade da Beira Interior- Centro de Estudos Judaicos, 2003. Disponível em:
<http://www.estudosjudaicos.ubi.pt/rsanches_obras/carta_joaquim_abreu.pdf>. Acessado em: Março,
2017. p. 1.
98
Para uma análise mais pormenorizada sobre as redes de sociabilidade de Antônio Nunes Ribeiro
Sanches, bem como sua relação com as academias de ciências setecentistas, ver: DULAC, Georges.
Science et politique: les réseaux du Dr António Ribeiro Sanches (1699-1783). Cahiers du monde russe, v.
43, n. 2, p. 251-274, 2002.
99
LIEPKALN, Julie Hamacher. Saber médico e reformismo ilustrado: Antônio Nunes Ribeiro Sanches e
as políticas de saúde pública em Portugal (1750-1792). Dissertação (Mestrado em História). Campinas:
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas-UNICAMP, 2017. p.35-55.
139
as “nações polidas da Europa”, serve como contraponto ao estado português, a antítese
dele, nessa concepção.
Além de ter outras nações europeias como espelho para diagnosticar-se o atraso
luso, o passado de glórias de Portugal anteriores à União Ibérica, entre 1580 e 1640,
também aparece como ponto de referência. A morte de d. Sebastião, em 1578, e os
diversos percalços do reino em sua sucessão foram usados diversas vezes como marco
inicial da decadência lusitana, assim como a chegada dos jesuítas, algumas décadas
antes. É o que se faz ver nos principais documentos de propaganda anti-jesuítica do
pombalismo, como o Compêndio Histórico da Universidade de Coimbra, de 1771, e na
Dedução Cronológica e Analítica, de 1763. Neste último livro, na própria divisão de
capítulos de seu primeiro volume, observa-se a linearidade entre o passado de glórias, a
chegada dos jesuítas e sua instalação na Corte e o fim de uma era ilustrada para um
período de trevas. Na divisão II, são exaltadas as virtudes das letras e da monarquia
portuguesas até 1557, quando os jesuítas se introduziram na Corte de d. João III. A
partir daí, pelas suas maquinações para manipularem a mesma Corte e mesmo os
monarcas, vários abusos começam a ser introduzidos, como a estigmatização de
estrangeiros como hereges e um espírito de sedição entre os súditos de todos os estados,
tendo-se estabelecido, assim, um marco para seu crescente isolamento.100
Já no Compêndio, em que também são enumerados os “estragos” causados pelos
jesuítas na Universidade de Coimbra, afirma-se que a referida universidade foi uma das
mais ilustres de toda a Europa, responsável por enviar portugueses para as mais
destacadas universidades europeias e de também receber estudantes e professores delas.
No entanto, isso durou somente até 1555, época em que Coimbra começou a ser
“estragada pelos jesuítas”.101 A partir de então, ela foi contaminada por toda sorte de
vícios, vários deles causadores de prejuízos a todo Portugal. O primeiro “estratagema”
dos jesuítas – que, de acordo com o Compêndio, deformaram como um todo a cultura
portuguesa, suas letras e suas artes, produzindo um grande isolamento e arraigando
obscurantismo e fanatismo nos seus súditos – “foi pintar com cores negras e horrorosas
a todos os estrangeiros”. Com isso, separou-se Portugal do estrangeiro, “o que afundou
100
SILVA, José Seabra Da. Deducção cronologica e analytica parte primeira. 1. ed. Lisboa: Na Officina
de Miguel Menescal da Costa, Impressor do Santo Officio, por ordem, e com privilegio real, 1763. p. 428.
101
POMBAL, Marquês de; Junta de Providência Literária. Compêndio histórico da Universidade de
Coimbra no tempo da invasão dos denominados jesuítas e dos estragos feitos nas ciências, nos
professores e directores que a regiam pelas maquinações e publicações dos novos estatutos por eles
fabricados. [1771]. FRANCO, José Eduardo; PEREIRA, Sara Marques (orgs.). Porto: Campo das LetrasEditores, 2008. 1ª ed. p. 17-58 e p. 95.
140
o país na ignorância visto que mandar portugueses para fora de Portugal e trazer
professores de países estrangeiros foi sempre um meio importante para se desenvolver
as ciências e artes”.102 Além disso, em ambos os livros destaca-se o enraizamento nas
cortes de eclesiásticos que aconselhavam mal os monarcas, os manipulavam e
afastavam deles os bons súditos e ainda corrompiam as instituições régias, afastando-as
de seus propósitos originais. No preâmbulo do Regimento da Inquisição de Portugal, de
1774, por exemplo, fica claro que aquela reforma tinha a função de restaurar a
Inquisição, colocando-a no estado em que ela esteve até o reinado de d. João III,
submissa à Coroa e com “santos propósitos”, que se degeneraram pela ação do clero
regular – sobretudo os da Companhia de Jesus – entre o final do século XVI e a reforma
que, ali, aqueles ilustrados alinhados ao projeto pombalino apresentavam.103
É fundamental sustentar também que o atraso é percebido de maneira sistêmica
pelos ilustrados portugueses. Ele nunca se restringe, nos “diagnósticos”, a aspectos
únicos e determinantes. Comumente, entrelaça percepções a respeito da economia, da
cultura, da religião e outros pontos diversos, sem atribuir uma importância maior ou
menor a um ou outro. É o que se nota no Testamento Político, de d. Luís da Cunha.
Nessa obra, manuscrita no século XVIII – conhecida por conter alguns dos aspectos que
seriam levados a cabo no reformismo pombalino, e mesmo pela indicação, ao então
príncipe d. José, de Sebastião José de Carvalho e Melo para ministro –, percebe-se
também um olhar para Portugal sob o sinal do atraso, com questões similares às das
cartas atribuídas a Pombal. Após discorrer brevemente a respeito da importância de um
bom reinado, fazendo uma analogia entre a figura do monarca e a do pai de uma família,
o livro passa por assuntos diversos, tais como as funções reais na manutenção da justiça
e na provisão do desenvolvimento da economia, dentre outros temas. Depois, adverte
sobre alguns perigos que Portugal vivia, usando dessa mesma figura de linguagem. Por
exemplo, quando assinala que um “pai deve visitar suas terras para ver se elas são
cultivadas” e que, cumprindo o príncipe este dever com o reino quando for coroado,
veria muitas terras “usurpadas ao comum, outras incultas, muitíssimos caminhos
impraticáveis, de que resulta faltar o que elas podiam produzir”. Tal situação em grande
parte decorreria do fato de “terça parte de Portugal estar possuída pela Igreja, que não
102
Ibidem, p. 148.
DA CUNHA, d. João Cosme, cardeal. Introdução do Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos
Reinos de Portugal [1774]. In: SIQUEIRA, Sônia Aparecida. A disciplina da vida colonial: os
Regimentos da Inquisição. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro:
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a. 157, nº. 392, jul. / set. 1996. p. 885-972.
103
141
contribui para a despesa e segurança do Estado (...) pelos cabidos das dioceses, pelas
colegiadas, pelas abadias, pelas capelas, pelos conventos de frades e freiras”, mantendo
Portugal com vastas áreas improdutivas e despovoadas.104 A questão do despovoamento
causado pelo excesso de frades e freiras em Portugal é apontada pelo ex-diplomata
como uma das sangrias que mantém o país no atraso, e é um tema que retomarei de
forma mais detida mais adiante.
A partir daí, Luís da Cunha usa uma nova analogia, recorrendo à figura do
médico, que diagnosticaria o estado de Portugal como o de um doente à época em que
escrevia. O autor do Testamento Político diz que “é constante que não se pode curar
algum enfermo sem que o prudente médico observe o seu aspecto”, para se ter
“conhecimento da causa do mal, que o aflige”, o que significa “não só (...) remediar a
sua queixa, mas para prevenir o de que pode estar ameaçado”. E se um médico, nas suas
palavras, “examinar o aspecto, e conformidade de Portugal”, verá diversos males, dos
quais decorrem a debilidade em relação aos demais países da Europa, como França,
Inglaterra e Holanda. Tal situação de desigualdade de forças contribuiria também para a
submissão do Reino a tratados nocivos a seus interesses.105
O que aproxima a carta de 1777, do Marquês de Pombal, ao Testamento
Político, como se pode observar, é o fato de ambos os documentos examinarem as
possíveis razões de Portugal estar em decadência, referindo-se a alguma “enfermidade”,
que mantém o reino em estado de “infância” ou “barbarismo”, em relação às “mais
polidas nações da Europa”, situação essa explicável por ações humanas, propriamente
dos portugueses. Por isso, ela tinha “cura”, que se daria precisamente por ações
humanas, que eram, além de reformas, também um “bom governo”. E esse bem
governar passava por reformas econômicas, políticas, culturais e religiosas conjugadas
entre si. Noutras palavras, o atraso nunca era percebido somente como causado pelos
privilégios da clerezia ou pelo isolamento cultural, mas como efeitos que articulam
sempre mais de um desses aspectos. Esse atraso deveria ser superado em todos os
campos, da política até as letras e artes – aqui, no sentido de manufaturas e indústria –
passando pela cultura e sociedade. Ainda quanto ao Testamento Político, depreende-se
uma leitura mercantilista da realidade de Portugal. Segundo essa leitura, a Igreja e seus
privilégios – como as posses de terra e desvios de recursos humanos para as suas
104
CUNHA, Luís da. D. Testamento político, ou carta escrita pelo grande D. Luiz da Cunha ao Senhor
Rei D. José antes do seu governo [1748]. São Paulo: Alfa-Ômega, 1976. p. 41-42.
105
Ibidem, p. 43.
142
atividades – traziam prejuízos ao país. Disso, concluía-se que elementos religiosos
impediam Portugal de crescer na dimensão econômica de três modos possíveis: na
agricultura, em termos demográficos e no comércio, interno e internacional.106 Trata-se
de um raciocínio que guarda alguma proximidade com o que aparece em Do Espírito
das Leis (1748), de Montesquieu, sobre o despovoamento de um Estado e as leis
necessárias para que ele seja revertido. Para o iluminista francês, o despovoamento se
torna crônico devido a um “vício interior e um mau governo”, próprio de “países
assolados pelo despotismo”, onde o “clero, o príncipe, as cidades, os grandes, alguns
cidadãos principais se tornaram insensivelmente proprietários de toda a região, qual é
inculta”. Ele opunha, assim, o bem governar, necessário à felicidade dos povos, aos
privilégios e posses de terras por grupos que não as cultivavam, sendo, nesse sentido, o
povoamento sinal de uma boa administração –e, seu oposto, o despovoamento,
resultado de um mau governo.107
Ainda com relação ao atraso econômico, há referências à intolerância religiosa
como sua causadora ou potencializadora e, também, às políticas que incidissem sobre
ela de modo a reverter seus danos. Em texto não datado, o Marquês de Pombal, ao
indicar os “meios de se aumentar o pequeno Estado pela sua política, ou governo”,
reconhecia que “o comércio sempre está nos que professam diferente religião”, e que a
“liberdade de consciência” não era possível em Portugal, sem que se alterasse a
mentalidade portuguesa.108 D. Luís da Cunha, ainda no Testamento Político, na parte
em que critica a Inquisição como sendo uma das sangrias que impediam Portugal de
prosperar, atribui aos tribunais de fé alguns problemas, tais como o despovoamento do
Reino, a destruição da manufatura e do comércio e a má fama de Portugal no
estrangeiro. Diz d. Luís da Cunha que:
Da mesma sorte dissera que V. A. acharia certas boas povoações quási
(sic) desertas, como por exemplo na Beira Alta os grandes lugares da
Covilhã, Fundão e cidade da Guarda e de Lamego; em Trás-osMontes e cidade de Bragança, e destruídas as suas manufaturas. E se
V. A. preguntar a causa desta dissolução, não sei se alguma pessoa se
atreverá a dizer-lha com a liberdade que eu terei toda honra de fazê-lo;
e vem a ser que a Inquisição prendendo uns por crime de judaísmo e
106
CARVALHO JR., Eduardo Teixeira de. A ideia de atraso e o papel da educação na Modernização
portuguesa na segunda metade do século XVIII. e-hum Revista Científica das áreas de História, Letras,
Educação e Serviço Social do Centro Universitário de Belo Horizonte, v. 5, n. 2, p. 25–44, 2012. p. 31.
107
MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat. Do Espírito das leis. Op. Cit. p. 451.
108
BNP. COLEÇÃO POMBALINA (PBA). Códice 686, fls. 187-190, manuscrito autógrafo, sem data.
MELO, Sebastião José de Carvalho e. “Apontados sobre as matérias que devem constituir as regras do
Mecanismo Político”, fl. 190. Apud. SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Luzes em Portugal: do
terremoto à inauguração da estátua equestre do Reformador. Op. Cit. p. 87.
143
fazendo fugir outros para fora do reino com seus cabedais, por
temerem lhos confiscassem, se fossem presos, foi preciso que tais
manufaturas caíssem, porque os chamados cristãos-novos os
sustentavam e os seus obreiros, que nelas trabalhavam, eram em
grande número, foi necessário que se espalhassem e fossem viver em
outras partes e tomassem outros ofícios para ganharem o seu pão,
porque ninguém se quis deixar morrer de fome.109
A solução então proposta, diante de um quadro de dependência de Portugal, que
importa diversos produtos manufaturados de outros países, é que: “de sorte que para [as
manufaturas] se estabelecerem, é necessário que eu torne a falar dos judeus, dizendo
que lhes deve dar de um modo ou de outro, liberdade de religião e segurança para que
seus bens não sejam confiscados”, e assim “lhes será necessário empregá-los em
renovar e aumentar as sobreditas manufaturas”.110 Também com o fim de povoar os
domínios no Brasil sem, no entanto, despovoar Portugal, d. Luís da Cunha sugere a
permissão da entrada de estrangeiros na colônia da América “sem examinar qual seja a
sua religião, recomendando aos governadores todo bom acolhimento, e arbitrando-lhes a
porção de terra que quiserem cultivar”. Assim, afirmava que poderiam se casar, procriar
e povoar a colônia e em poucas gerações, “seus descendentes seriam bons portugueses e
bons católicos romanos em o caso que seus avós fossem protestantes, no que não acho
algum inconveniente (...)”. Isso, segundo ele, impactaria positivamente na retomada da
produção agrícola na colônia que, “depois do descobrimento das minas, tem diminuído
a cultura dos açúcares e tabaco, e por consequência o número dos navios que traziam
aqueles afeitos e dos marinheiros que o navegavam”.111
Nesse ponto, tanto d. Luís da Cunha como o Marquês de Pombal fazem a
relação entre a intolerância institucionalizada dos tribunais inquisitoriais e a decadência
comercial portuguesa, retomando um tema do século XVII, bastante notório nas ideias
do padre Antônio Vieira, que entendia haver uma ligação entre a decadência econômica
portuguesa e o tratamento desumano dado aos judeus. Seus argumentos, ao mesmo
tempo que apontavam a necessidade de se cooptar seus cabedais em prol do Reino,
destacavam o papel dos cristãos novos e judeus na realização do Quinto império.112 Isso
demonstra também a necessidade de se levar em conta que tais assuntos, como
economia e religião, não eram pensados de maneira absolutamente separada na Idade
Moderna. Yllan de Mattos, por sua vez, encontrou discussões de natureza político109
CUNHA. D. Luís da. Testamento Político. Op. Cit. p. 63-64.
Ibidem, p. 99.
111
Ibidem, p. 75.
112
ROMEIRO, Adriana. Um visionário na corte de D. João V. Op. Cit. p.133.
110
144
econômica desenvolvidas em uma literatura de polêmicas teológicas bem anteriores aos
escritos do padre Vieira e com críticas similares, que associam os tribunais do Santo
Ofício e a perseguição aos “hereges”, sobretudo judeus, à decadência econômica
ibérica. É o que observa na Alegación en favor de la Compañía de las Indias orientales
(1628), de Duarte Gomes Solis, oferecida ao rei Felipe IV, que apontava para a
necessidade de se extinguir a diferença entre cristãos velhos e cristãos novos, de
maneira que estes últimos pudessem voltar à Península Ibérica, com seus cabedais e
reanimar seu comércio, à maneira que acontecia na Holanda.113 Ele também chega a
conclusões similares ao analisar às críticas do padre Vieira à Inquisição portuguesa,
concordando haver nelas uma preocupação econômica e política assentada em
princípios ético-religioso e teológicos, problema que aparece nos textos do jesuíta desde
a década de 1640. Em tais textos, Vieira criticava vários aspectos. Um deles refere-se
aos interesses mundanos dos inquisidores, muitas vezes acusados de condenar hereges
apenas para confiscar seus bens ou por motivações distintas da preservação da religião.
Vieira articulava questões pragmáticas político-econômicas com outras de ordem
teológico-ética, pela chave da defesa da não perseguição a judeus e a hereges. Com isso,
além de reanimar-se a economia com seus cabedais, seria possível promover até mesmo
a expansão da fé católica em todos os domínios portugueses e no restante do mundo, na
medida em que se conduziria a um fortalecimento da monarquia católica portuguesa, de
suas defesas e de seu alcance.114
É importante salientar, ainda, que, em suas obras, autores importantes do
Iluminismo também abordaram a relação entre tolerância e desenvolvimento
econômico, sobretudo comercial. Certamente, o mais notório deles é Voltaire. Na sexta
de suas Lettres philosophiques, publicadas entre 1733 e 1734, o ilustrado francês
descreve a bolsa de Londres, exaltando o fato de lá se poder observar que “o judeu, o
maometano e o cristão tratam um com o outro como se fossem da mesma religião e só
chamam de infiel quem vai à bancarrota”. Para Voltaire, a tolerância religiosa, debaixo
da razão comercial, que é vantajosa a todos, torna possível o benefício de todos os
envolvidos nas relações sociais de comércio e a satisfação plena de seus interesses.115
113
MATTOS, Yllan de. A Inquisição contestada: críticos e críticas ao Santo Ofício português (16051681). Rio de Janeiro: Mauad: FAPERJ, 2014. p. 88-89.
114
Ibidem, p. 96-104.
115
Original: “Entrez dans la Bourse de Londres, cette place plus respectable que bien des cours; vous y
voyez rassemblés les députés de toutes les nations pour l’utilité des hommes. Là, le juif, le mahométan et
le chrétien traitent l’un avec l’autre comme s’ils étaient de la même religion, et ne donnent le nom
d’infidèles qu’à ceux qui font banqueroute; là, le presbytérien se fie à l’anabaptiste, et l’anglican reçoit la
145
Nesse ponto, vemos que, alguns dos diagnósticos do atraso português, ainda que
com foco principal na economia, trazem problemas que remetem a certas disputas
atinentes ao campo religioso, desenvolvidas pelas Luzes e anteriormente a estas. Nos
escritos de Pombal e Luís da Cunha, a tópica vieiriana (em que se associavam a
tolerância e o comércio) e a necessidade de se repensar a utilidade do clero regular e de
suas terras aparecem associadas a ideias econômicas e religiosas. Esses dois tipos de
ideias se misturam e são debatidos sob a linguagem iluminista. Por exemplo, sabe-se
que a relação entre diminuição da população e o mau governo, assim como a relação
contrária, entre bem governar e os aumentos populacionais e de riqueza, tiveram um
lugar de destaque nos debates sobre economia e política na primeira metade do século
XVIII, envolvendo autores como Rousseau, Montesquieu, Herbert e Hume. Alguns de
seus argumentos formaram um pano de fundo importante nos debates da escola da
fisiocracia, já depois de 1750.116 Da mesma maneira, também entre o final da primeira
metade e início da segunda metade do século XVIII, correntes iluministas italianas, que
tiveram Antonio Genovese como seu nome referencial em matéria de economia política,
defenderam princípios que articulavam o centralismo da economia no Estado e o
protecionismo, no interior de um reformismo cujo propósito era o de restaurar uma
economia considerada dependente (no caso desses autores, a de Nápoles). Tais
argumentos são próprios do mercantilismo, com fundamentos éticos e econômicos
próximos dos que defendia a fisiocracia, tais como a necessidade de aumentar o número
da população, limitar as posses de terras de quem não vivia do trabalho – os
eclesiásticos, por exemplo –, e a promoção da educação e de “atividades úteis” e não
“contemplativas”, como formas de promoção de progresso.117 Sabe-se (e é bastante
estudada) a influência de Genovese e da fisiocracia no pensamento econômico
português, sobretudo a partir da década de 1780. Porém, é bastante plausível que
promesse du quaker. Au sortir de ces pacifiques et libres assemblées, les uns vont à la synagogue, les
autres vont boire ; celui-ci va se faire baptiser dans une grande cuve au nom du Père par le Fils au SaintEsprit ; celui-là fait couper le prépuce de son fils et fait marmotter sur l’enfant des paroles hébraïques
qu’il n’entend point ; ces autres vont dans leur église attendre l’inspiration de Dieu, leur chapeau sur la
tête, et tous sont contents. S’il n’y avait en Angleterre qu’une religion, le despotisme serait à craindre ;
s’il y en avait deux, elles se couperaient la gorge ; mais il y en a trente, et elles vivent en paix et
heureuses.” VOLTAIRE, François Marie Arouet. Lettres Philosophiques. Sixième lettre: sur les
presbytériens. In: ____________. Lettres Philosophiques par M. de V. [1734] A Amsterdam: Chez E.
Lucas, au livre d’or. M.D.C.C.XXXIV. p. 47-48.
116
CHARBIT, Yves. L’échec politique d’une théorie économique: la physiocratie. Population (French
Edition)-Institut National d’Etudes Démographiques, v. 57, n. 6 (Nov-Dec), p. 849–878, 2002. p. 857858.
117
VAZ, Francisco António Lourenço. A difusão das ideias económicas de Antònio Genovesi em
Portugal. Cultura. Revista de História e Teoria das Ideias, v. XI, p. 553–576, 1999.
146
algumas dessas tópicas já circulassem muito antes dentro da cultura letrada portuguesa,
dada, por exemplo, a inserção de pensadores como Verney nos círculos intelectuais
italianos já na primeira metade do século XVIII, dentro do qual tanto o oratoriano
português quanto Muratori tiveram grande parte de suas respectivas formações
letradas.118
O mesmo se pode dizer da relação entre aumento populacional e migração com a
tolerância religiosa. Os fluxos de imigração e emigração, bem administrados em um
bom governo, aumentariam as riquezas dos Estados ao fomentar a agricultura, indústria
e comércio, pontos importantes abordados por Pombal e Luís da Cunha. Tal tópico
também tem importância em autores das Luzes desde o final do século XVII e
princípios do século XVIII, em grande parte, sendo relacionado às impressões sobre as
guerras de religião. São exemplos Voltaire e Quesnay (neste último caso, em seus
tratados sobre a fisiocracia).119 Foge ao objetivo desta tese demonstrar a influência
desses pensadores sobre os portugueses, em especial os autores analisados
118
Exemplo disso é o estudo feito por Breno F. L. Ferreira sobre Verney. Sobre a inserção do ilustrado
português na intelectualidade italiana, o autor analisou correspondências entre ele e Ludovico Antonio
Muratori, datadas entre 1745 e 1749. A formação intelectual de Verney, além disso, deu-se dentro do
mesmo contexto que a de Genovesi e é relativamente bem documentado o contato do oratoriano
português, sobretudo epistolar, com figuras como d. Luís da Cunha. FERREIRA, Breno Ferraz Leal.
Contra todos os inimigos: Luís António Verney: historiografia e método crítico. Dissertação (mestrado em
História). São Paulo: Programa de pós-graduação em História Social- FFLCH/USP. 2009. p. 74-83.Sobre
os trânsitos de Verney com a cultura letrada portuguesa, ver, sobretudo, a segunda parte da obra de
António Alberto Banha de Andrade, em especial o capítulo sobre sua influência na cultura letrada
portuguesa do Setecentos, mais a segunda parte em que constam correspondências com vários letrados
contemporâneos: ANDRADE, António Alberto Banha de. Vernei e a cultura de seu tempo. Coimbra:
Universidade de Coimbra, 1966. p. 233-296.
119
No caso de Voltaire, como explica Marcos Antônio Lopes, a relação entre tolerância e “bem governar”
dá-se, pelo menos, em duas frentes: em primeiro lugar, nos diversos elogios que o autor de Cândido faz
aos “partidários das seitas consentidas”, presentes, sobretudo, nos seus romances filosóficos. Para ele, “as
minorias religiosas podiam distinguir-se apenas pelas riquezas que produziam com o suor do próprio
rosto, por estarem afastadas dos cargos importantes, das dignidades e honrarias”. Eram, portanto, “úteis”,
no sentido de produzirem e trabalharem, não se apegando a privilégios restritos aos crentes que
professavam as religiões oficiais. Disso, decorria uma segunda relação feita por Voltaire, segundo Lopes,
no mesmo sentido: os privilégios acessíveis aos que professavam credos oficiais eram, em si, perniciosos
ao bem comum. É importante lembrar que um dos “privilégios” mais atacados por Voltaire era o acesso
às ordens religiosas, entendidas pelo pensador francês como parasitárias, por não trabalharem e serem
empecilhos para que seus adeptos procriassem, povoando os reinos e, assim, gerando “recursos humanos”
que viabilizassem sua defesa e produção econômica, essenciais ao bem comum. A relação entre bem
governar e tolerância religiosa, assim, reflete-se em aspectos como o crescimento demográfico e
econômico, permitindo às minorias que se “enobrecessem” pelo trabalho e negando-se a elas os vícios,
prejudiciais ao bem comum, acessíveis às maiorias. Em Quesnay, ideias similares encontram-se no seu
famoso Tableau Économique (1759), no periódico Ephémérides du citoyen (circulante entre 1765 e 1772)
e nos seus diversos verbetes na Encyclopédie. CHARBIT, Yves. L’échec politique d’une théorie
économique: la physiocratie. Op. Cit. p. 859 e p. 851-852; LOPES, Marcos Antônio. Brigadas do
antifanatismo: a invenção da tolerância religiosa. História (São Paulo), v. 29, n. 1, p. 24–39, 2010. p. 3435.
147
anteriormente. Todavia, destacar que tópicos dos debates iluministas são mobilizados e
apropriados para se ler a percebida decadência portuguesa.
Mais um ponto que articula bem as diversas percepções dos ilustrados sobre o
atraso português seria aquele que toca às artes, letras e ciências. Foram lembrados
constantemente por diversos pensadores o lastimável estado das letras e do
conhecimento em Portugal, e seu efeito nocivo em todos os demais campos. Um
documento importante a respeito é o conjunto das Cartas Italianas, de Verney. Trata-se
de um conjunto de dez cartas datadas e enviadas entre 1751 e 1766, escritas em Roma,
Livorno e Pisa, em línguas italiana e latina, a um destinatário anônimo. Foram
publicadas, pela primeira vez, por Luís Cabral de Moncada, na década de 1750. Para
este último autor, elas foram remetidas ao Ministro de Estado português em Roma,
Francisco Almada de Mendonça.120 Anos depois, Alberto Banha de Andrade defendeu
que elas foram enviadas ao secretário de negócios estrangeiros Aires de Sá e Melo.121
No entanto, Ana Lúcia Curado e Manuel Curado colocam em dúvida essas duas teses
sobre os destinatários das cartas, com base em críticas internas e externas aos
documentos.122 Na carta II, intitulada Diagnóstico cultural da vida intelectual dos
Portugueses, escrita em Roma e datada de 1 de janeiro de 1753, em resposta a outra que
o Barbadinho teria recebido em 8 de junho de 1752, Verney demonstra preocupação
com o estado da cultura em Portugal e, ao mesmo tempo, um certo desdém diante da
incultura de seus conterrâneos, sempre ressaltando seu isolamento e atraso em relação
ao universo letrado das demais nações. Logo de início, ao se referir à censura que sofreu
seu Aparato,123 Verney critica duramente seu censor por não entender sua obra, ao
dizer:
Que os Jesuítas nesse papel que escreveram contra a Recreação
Filosófica dos Filipinos introduzissem aquele parágrafo contra o meu
Aparato, não me admiro. Jesuíta de propósito e de consciência não foi
MONCADA, Luís Cabral de Oliveira. Um ‘iluminista’ português do século XVIII. Op. Cit.
ANDRADE, António Alberto Banha de. Vernei e a cultura de seu tempo. Op. Cit. p. XIII, p. 113, p.
223, p. 301-315.
122
C.f. CURADO, Ana Lúcia; CURADO, Manuel. Prefácio. In: VERNEY, Luís Antônio. Cartas
Italianas. Op. Cit. p. 12-13
123
De acordo com Eduardo Teixeira de Carvalho Junior, trata-se de uma obra escrita por Verney em
Latim e nunca publicada em português, intitulada Aloysii Antonii Verneii equitis Torquati archidiaconis
Eborensis Apparatus ad philosophiam et theologiam ad usum Lusitanorum adolescentium libri sex. A
obra teve um parecer favorável do Fr. Joannes De Luca Venetus, e nela há uma dedicatória ao rei d. José
I. O nome de Verney, como autor, aparece em latim: Aloysius Antonius Verneius. Ainda de acordo com
Carvalho Junior, a proposta da obra é apresentar a melhor forma de se fazer filosofia para que os
adolescentes portugueses pudessem usá-la com facilidade, como “um aparato”. Essa obra ainda não foi
analisada nesta pesquisa. CARVALHO JUNIOR, Eduardo Teixeira de. O método de Verney e o
Iluminismo em Portugal. Tese [Doutorado em História]. Curitiba: Setor de Ciências Humanas, Letras e
Artes. Universidade Federal do Paraná-UFPR. 2015. p. 43.
120
121
148
certamente. Seria algum Jesuitinha da mão furada que se mete a falar
no que não entende. E eu estou mijando para semelhantes censores,
dos quais faço tanto caso como da lama da rua. Mente o dito
Reverendíssimo em dizer que do Aparato foi borrado parte por
autoridade de quem podia, pois estão vivos e são os que o aprovaram,
ambos, em que nada se borrou. O homem não entendeu o que eu digo
na prefação. Mas caso que dissesse a verdade, ele mesmo se contradiz
no parágrafo, visto que, se em Roma, depois de o examinarem bem,
aprovaram o que se acha no livro, é certo que não lhe acharam
mordacidade infame, estilo desaforado, pena maledicentíssima.
Merece o homem que lhe dêem duas dúzias de açoites e não fale mais
nele em pena da sua ignorância [Os itálicos, exceto dos títulos de
obras, são do documento].124
Dois temas que aparecem nesse trecho são retomados na terceira parte da carta,
em que Verney responde a seu interlocutor, argumentando contra as proposições que
este teria registrado na carta anterior, de que a produção de letras e ciências de Portugal
é tão boa quanto a de outras nações: o Barbadinho diz, categoricamente que a
ignorância dos portugueses, por não entenderem e não interagirem com o que havia de
mais avançado no universo das ciências e letras na Europa –no qual Verney deixa claro
que estava perfeitamente inserido – e o isolamento, que cegava a percepção dos
lusitanos quanto a essa realidade, alimentavam-lhes a prepotência e rusticidade. Para
Verney, pensar que em Portugal se produzia uma cultura letrada tão rica quanto a das
“mais polidas nações da Europa” era irreal por diversos motivos. Primeiramente, porque
a “presunção que (...) lá [em Portugal] têm de lerem com toda a familiaridade os autores
franceses e italianos é falsa e sem o mínimo de fundamento porque os autores
[estrangeiros] que (...) lá conhecem são os dozinais”, no sentido de “que se escrevem e
se vendem às dúzias”, sendo de menor valor. Além disso, os melhores autores “não vão
para lá, ou porque muitos são proibidos por algumas razões, ou porque todos os
livreiros sabem de certo que lá não se compram”, sejam livros em língua latina ou
línguas modernas. Conclui que “é tão geral esta opinião entre os estrangeiros” que os
livreiros não perderiam o seu tempo em enviar livros a Portugal, “fundados no mau
êxito que têm experimentado”. E ainda que “mil vezes têm sucedido que o revisor
dominicano retém os livros por lhe parecer nocivos. E isto é público cá por fora”. 125 E,
dessa maneira, o que se via em Portugal, para Verney, era um crônico isolamento e um
quase barbarismo na produção das ciências e letras, da teologia à poesia, passando pela
124
VERNEY, Luís Antônio. Cartas Italianas. CURADO, Ana Lúcia; CURADO, Manuel (orgs.). Lisboa:
Edições Sílabo, 2008. p. 39-40
125
Ibidem, p. 46-47.
149
matemática e ciências naturais.126 Cumpre ressaltar que não se trata, aqui, de uma crítica
à censura literária em si, da qual Verney era partidário, como analiso mais adiante, mas
sim de entender que ela era atrasada. Seu atraso, segundo as impressões do oratoriano,
devia-se ao isolamento cultural português, sendo parte de um contexto culturalmente
arruinado e, ao mesmo tempo, contribuindo para reproduzi-lo. Um dos motivos que
ilustra esse quadro de isolamento, aponta Verney, é a inexistência em Portugal de
“jornais eruditos”, que dariam “notícias dos bons livros que saem nos ditos reinos [Itália
e Europa setentrional] e, muitas vezes, são críticos e dão juízo deles”. Argumenta que,
por meio dos ditos jornais, poderia se verificar a não circulação das mais importantes
obras publicadas na Europa e o parco conhecimento dos portugueses da cultura erudita
de outros reinos. E, mesmo que tais gazetas existissem em Portugal, seriam acometidas
por alguns vícios oriundos desse isolamento:
Além disso, a nação portuguesa tinha necessidade de um jornal
português. Mas que livros se refeririam nele? Quatro novenas e coisas
semelhantes. Coitadinho do jornalista se quisesse dar juízo das obras!
Seria satírico, herege, ímpio, ateu, e sairia logo uma sátira examinando
quem era seu avô e bisavô, e coisas semelhantes e injuriosas, e ia o
jornal com todos os diabos! E como essa gente não se pode emendar,
por isso digo que nunca poderá lustrar nem adiantar-se nos bons
estudos. Isso são cafres do Diabo que, por falta de notícias de livros,
vivem sepultados em uma incrível ignorância, e desta nasce a
presunção de serem doutos. Dessa presunção e soberba nasce também
a maledicência contra os autores que os querem alumiar [Grifos
meus].127
As gazetas e jornais, aos olhos de Verney, seriam benéficos para a circulação de
informações e ideias, contribuindo para arejar a cultura portuguesa. Mas eles foram
sistematicamente suprimidos no país entre 1768 e 1772.128 Além disso, teriam, na
avaliação do referido pensador iluminista, seus benefícios limitados pelos preconceitos
e obscurantismo arraigados em Portugal, sobretudo os evidenciados no perigo de serem
vítimas da perseguição e da censura de natureza religiosa, justificadas pelo medo da
impiedade e da heresia, que seriam supostamente as marcas da cultura moderna e
estrangeira. Efeitos disso, no diagnóstico de Verney, eram a presunção e arrogância de
letrados portugueses, vindas de seu atávico desconhecimento em relação aos autores de
fora e ao já mencionado receio contra eles. Verney, nessas cartas, de maneira similar ao
que se vê em obras aqui citadas, mais precisamente o Compêndio e a Dedução
126
Ibidem, p. 47-52.
Ibidem, p. 62-63
128
ARAÚJO, Ana Cristina. Modalidades de leitura das Luzes no tempo de Pombal. Separata da Revista
de História, v. X, p. 105–128, 1990. p. 124-125.
127
150
Cronológica, faz referência ao atraso português e ao próprio passado quinhentista.
Segundo ele, “alguns homens doutos que têm produzido a nossa nação floresceram
comumente no século XVI, em que era costume, ou virem cá aprender, ou irem lá
ensinar e comunicar as luzes das outras nações”, e que, “quando cessou esse costume,
acabou-se a nossa glória”.129
No século XVIII, a essa imagem de uma cultura atrasada, associava-se uma
literatura que representava Portugal, com algum exagero, como uma nação “exótica e
bárbara”. Antônio Cesar Almeida dos Santos constatou essa imagem em relatos de
viajantes que escreveram sobre Portugal do período, como César de Saussure e
Giuseppe Gorani. Além disso, a própria correspondência diplomática ajudou a espalhar
uma ideia sobre o “o estado de incivilidade (ou de barbárie) dos portugueses,
especialmente daqueles que ocupavam postos de governo”, pela Europa.130
Esses aspectos foram notados nas elites portuguesas por Antônio Nunes Ribeiro
Sanches. Em seu entendimento, eram produto de uma série de falhas na sua educação
(nas Cartas sobre a educação da mocidade, do referido autor, a educação das elites
lusas é apresentada como própria de tempos remotos). Para Sanches, a atualização da
forma de educar, ainda que de maneira desigual, todos os estratos da sociedade,
sobretudo as elites, era fundamental para uma renovação do reino. Segundo Sanches, tal
incivilidade era produto da degeneração que a fidalguia sofria, seguindo modelos
daquilo que chamou de uma “educação gótica”, de matriz medieval, própria de tempos
de guerras e conquistas. Esse tipo de educação, após algumas gerações sem guerras, faz
com que a fidalguia se acostume com o luxo, e, assim, toda a “virtude guerreira”
anterior se perdeu em uma “dissoluta vida cortesã”. Essa educação, feita a partir de uma
“constituição gótica”, de acordo com Sanches, possui duas grandes falhas das quais
decorrem inúmeros prejuízos aos portugueses: a primeira é que, quando a mocidade
nobre ou fidalga começou a receber a educação em suas casas em tempos de paz, a teve
das mãos de eclesiásticos, que a educaram somente nos mistérios da fé, formando
ignorantes quanto às suas obrigações de súdito; a segunda, envolve uma educação
doméstica, feita por amas e mulheres comuns, além de escravos, o que degenerou essa
mocidade, por não aprender a conviver entre iguais e não ser educada a desenvolver
senso de obediência e respeito. Sob tal situação, a consequência foi o desconhecimento
129
VERNEY, Luís Antônio. Cartas Italianas. Op. Cit. p. 53
SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Luzes em Portugal: do terremoto à inauguração da estátua
equestre do Reformador. Op. Cit. p. 80-81.
130
151
da subordinação como súdito e de valores da vida civil, assim como de qualquer noção
de bem comum.131
A arrogância de uma educação apartada de valores civis e um obscurantismo
vindo de um aprendizado cujo centro residia na religião, e não nas artes e nas ciências,
como nos apresenta Sanches nas referidas Cartas, confirmam a ideia de atraso citada
nas cartas de Verney e, ao mesmo tempo, o estereótipo do português como povo rude e
soturno. Tal estereótipo, frise-se, era muito disseminado na Europa, conforme mostra
Antônio Cesar Almeida dos Santos. Não se pode, no entanto, ler a constatação de
Verney ou de Sanches sobre o dito atraso como uma fatalidade inexorável e insuperável.
Pelo contrário, em ambos, pode-se perceber a reversibilidade do atraso e, mais que isso,
à época de Pombal, eles e outros ilustrados portugueses tinham a percepção de que o
contexto em que viviam era uma época de mudanças e de aceleração do presente,
compreensão que estava em consonância com o valor iluminista do progresso. Há
também algumas evidências da adesão, mais ou menos direta, de vários deles, ao que
podemos chamar de um projeto político, articulando seus diagnósticos com um corpo de
ideias políticas próprias do Iluminismo.
O que aqui é entendido como “acelerar a presente” parte da perspectiva de
Reinhard Koselleck sobre o tempo histórico. Para ele, trata-se, primeiramente, da perda
de uma percepção da história como magistra vitae, narrativa mestra da vida, assentada
na ideia de que passado, presente e futuro não possuíam distinções. Nessa história
mestra da vida, o objetivo era apresentar exemplos que poderiam e/ou deveriam ser
seguidos no presente, diante de uma perspectiva de futuro que tenderia a repetir, em
alguma medida, essas realidades de tempos anteriores. Porém, no Setecentos, segundo
Koselleck, há uma substantiva mudança na concepção desse tempo histórico, vincada na
ideia de progresso: o passado torna-se algo a ser superado, o presente a ser espaço da
ação humana no sentido de se acelerar a chegada de um futuro e, este último,
necessariamente melhor que o presente e passado. Com isso, alteram-se e diferenciamse substancialmente tais instâncias do tempo e da narrativa. Assim, explica Koselleck,
as categorias históricas “espaço de experiência” e “horizonte de expectativa” se
aproximam, o que marca o surgimento da modernidade. A primeira categoria denota,
grosso modo, o espaço de ação individual e coletivo, ao passo que a segunda remete à
131
SANCHES, Antônio Nunes Ribeiro. Cartas sobre a educação da mocidade. [1760]. Nova edição
revista e prefaciada pelo dr. Maximiano Lemos. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1922. Edição do
Kindle. Posições: 1923-1967.
152
percepção de um futuro possível, que será produto dessa ação humana, e que não repete
o presente e se articula aos ideais de progresso, presentes nos projetos reformistas e nas
utopias que marcaram o vocabulário político das Luzes.132 No caso de Ribeiro Sanches
e de outros ilustrados portugueses e luso-brasileiros, fica claro pela sua leitura que a
adesão ao reformismo pombalino e os seus diagnósticos sobre o atraso – não como algo
naturalizado, mas produto do mau governo dos povos e, assim, sendo algo reversível –
implicam também percepções de espaços de ação na realidade e, ainda, expectativas de
uma realidade futura melhor que a do agora.133
Sanches propunha uma secularização do ensino como modo de superar o atraso
português, já que, para ele, o controle sobre a educação há muito tinha passado dos
monarcas para os bispos, tornando-se uma educação eclesiástica, servindo ao longo dos
séculos apenas para aumentar o clero.134 Ao mesmo tempo, ele exaltava d. José I,
afirmando que “Somente S. Majestade Fidelíssima” “foi o primeiro entre os seus
Augustos Predecessores, que tomou a si aquele Jus da Majestade de ordenar que os seus
Súbditos aprendam de tal modo, que o ensino público possa utilizar os seus dilatados
Domínios”. Controlando esse ensino historicamente, os eclesiásticos “se desviaram de
suas funções dadas por Cristo e pela Igreja, que era de ensinar os preceitos católicos,
administrar sacramentos e educar segundo os costumes cristãos”. Com isso, nas
palavras de Sanches, com influência dos padres da Companhia de Jesus, formou-se uma
nação composta de pessoas que não eram educadas segundo aquilo que era útil ao bom
governo.135 Isso mudaria com um ensino secularizado, sob o controle da Coroa e que
seria direcionado para a vida civil e utilidade do reino.
132
KOSELLECK, Reinhard. Futuro e Passado. Op. Cit. p.305-328.
Aqui, cabe fazer menção ao debate historiográfico sobre se houve ou não um plano delineado
previamente para o que se chama de “pombalismo”. A discussão a respeito da existência de um “projeto”
ou de ações intuitivas e contingenciais que marcaram o período ocupa, segundo Antônio Cesar de
Almeida Santos, um lugar importante nos estudos históricos desde o século XIX. Ao longo desta
pesquisa, assim como autor citado e outros, como Ivan Teixeira, posiciono-me favoravelmente à ideia de
ter havido um projeto. As fontes e estudos como os aqui já citados, e outros que aparecem ao longo da
tese, a meu ver, demonstram de maneira robusta e substantiva, ainda que de formas distintas, a
pertinência de se afirmar que houve uma relativa coerência nas ações políticas no reinado de d. José I e na
governança do Marquês de Pombal, e um certo diálogo delas com ideias políticas circulantes no contexto
das Luzes, estabelecendo-se, de alguma maneira, uma espécie de corpo doutrinário próprio. SANTOS,
Antonio Cesar de Almeida. Luzes em Portugal: do terremoto à inauguração da estátua equestre do
Reformador. Op. Cit.; ____________. O “mecanismo político” pombalino e o povoamento da América
portuguesa na segunda metade do século XVIII. Revista de História Regional, v. 1, n. 15, p. 78–107,
2010; TEIXEIRA, Ivan. Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica. Op. Cit.
134
SANCHES, Antônio Nunes Ribeiro. Cartas sobre a educação da mocidade. Op. Cit. Posição: 170206.
135
Ibidem, posição: 404-410.
133
153
Aquele benigníssimo Alvará [de 28 de junho de 1759]136 nos dá a
conhecer que só a Educação da Mocidade, como deve ser, é o mais
efetivo e o mais necessário. Porque S. Majestade, que Deus guarde
com alta providência, considera que lhe são necessários Capitães para
a defesa; Conselheiros doutos e experimentados; como também
Juízes, Justiças, e Administradores das rendas Reais; e mais que tudo
na situação em que está hoje a Europa, Embaixadores, e Ministros
públicos, que conservem a harmonia de que necessitam os seus
Estados.137
Ribeiro Sanches exalta, dessa forma, d. José I e, ainda que não o citando
diretamente, o Marquês de Pombal, por terem criado em Portugal condições para,
através de escolas controladas pelo poder régio, “ensinar aos seus discípulos os
conhecimentos necessários para viver no Estado civil, ou para servir nos seus
cargos”.138 Segundo Ana Cristina Araújo, em análise sobre a referida obra de Sanches,
seu conceito de educação se alinha à ideia iluminista de que a promoção contínua do
gênero humano se realiza na e pela história. Entende a autora que tal ideia é correlata da
exigência de aplicação ao ensino dos valores e dos progressos realizados pela cultura
moderna, promovendo a utilidade pública e particular, ao atacar as imunidades dos
eclesiásticos e privilégios da nobreza, vistos por Sanches como impeditivos do
progresso de Portugal.139
Verney, em carta escrita em Livorno em 1765, apresenta sugestões sobre as
reformas dos tribunais da Inquisição, entre elogios a monarcas ilustrados, como o rei
Pedro, o Grande, da Rússia (por este ter conseguido grande sucesso em pouco tempo em
seu reinado ao ouvir “um bom amigo forasteiro que lhe vinha sugerindo coisas
uteis”),140 e também Carlos III, da Espanha. Ao fazê-las, ele demonstra duas
preocupações relativas à manutenção dos progressos de Portugal: a primeira era que os
jesuítas permanecessem longe da Corte; e a segunda, no caso, era a saúde e o avançar da
idade do Marquês de Pombal. No parecer de Verney, naquele ano, não haveria ninguém
à altura para substitui-lo em aconselhar a d. José I. Sua morte colocaria todos os
136
Alvará de 28 de junho de 1759, que suprimia as escolas jesuíticas de Portugal e de todas as suas
colônias.
137
SANCHES, Antônio Nunes Ribeiro. Cartas sobre a educação da mocidade. Op. Cit. Posição: 134140.
138
Ibidem, Posição: 243.
139
ARAÚJO, Ana Cristina. Cultura das Luzes em Portugal. Op. Cit. p. 51 e p. 60-61.
140
Ao se referir a vários conselheiros estrangeiros que Pedro, o Grande, teve em seu reinado, Verney faz
elogios à sabedoria do rei, de não somente acolher tais bons conselheiros estrangeiros como também de
de separá-los de aduladores, de quem recebia conselhos. Quando os conselhos fossem pertinentes e
sábios, o rei o “percebia logo” e, assim, os “executava sem nenhum cuidado, e sem ter vaidade de querer
ser o inventor” das ideias de seus sábios conselheiros, “porque isto é um ponto essencial para o
soberano”. A fonte não permite especificar a qual ou a quais dos “bons amigos forasteiros” do rei da
Rússia o oratoriano se refere. VERNEY, Luís Antônio. Cartas Italianas. Op. Cit. p. 101.
154
progressos a perder e o retorno jesuítico seria iminente. Ele compara a atuação de
Pombal à do “bom amigo forasteiro” de Pedro, o Grande.141 Há menção sobre a
“esperança suspendida”, em que estão os jesuítas, noutra carta de 1766, escrita em
Livorno, a respeito de que assim que “falecesse o senhor Conde [de Oeiras] (...) citando
para este fim o exemplo de Henrique IV, a pedido de Paulo V (...) que os fizeram
regressar depois de expulsos”, que também retornassem a Portugal.142
No épico O Uraguai, de Basílio da Gama, é narrada a história das guerras
guaraníticas, vencidas pelo irmão de Pombal, para tirar os índios da tirania dos padres
jesuítas. O tom elogioso ao pombalismo aparece já no início da obra, com um soneto
dedicado a Sebastião José de Carvalho e Melo. A exaltação do pombalismo, aqui, se
apresenta juntamente com uma ideia de que a corrupção e decadência das sociedades
indígenas e da própria colonização da América tiveram os jesuítas como culpados.143 O
índio aparece como figura central do poema, essencialmente antijesuítico. Isso
contraria, por exemplo, a obra do abade Raynal, que criticava a colonização portuguesa,
mas isentava dos seus vícios os “civilizados jesuítas” e a de outros pensadores
ilustrados, como Buffon, que caracterizavam negativamente a natureza americana e a
ela atribuíam aspectos negativos da realidade das Américas.144 O elogio ao ministro de
d. José I e à sua política, nessa obra, conforme análise bastante detalhada de Ivan
Teixeira, é um encômio alegórico. Com isso, na medida em que exalta o Marquês de
Pombal, Basílio da Gama acaba dando contornos a esses indígenas como sendo
acessórios de uma ficção planejada para elogiar.145
Nesse caso, o próprio rumo civilizatório da colonização, tratando-se
especificamente dos indígenas, teria sido corrigido com ações da política pombalina,
quando a causa do seu atraso fora extirpada, os jesuítas. Aqui – em concordância com
os que consideram equivocado ver em O Uraguai prenúncios de aspectos da literatura
brasileira oitocentista –,146 é preciso sustentar que na obra em questão são perceptíveis
141
Ibidem, p. 99-103.
Ibidem, p. 206.
143
GAMA, Basílio da. O Uraguai [1766]. Rio de Janeiro, Editora Record, 1998.
144
DOMINGUES, Beatriz. O papel dos jesuítas na Ilustração brasileira. História Unisinos, v. 14, n. 2, p.
135–147, 2010. p.142-143.
145
TEIXEIRA, Ivan. Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica. Op. Cit. p.494-196.
146
Eu me refiro, sobretudo, a dois artigos de João Adolfo Hansen, que trazem como questões de fundo,
cada qual à sua maneira, reflexões de caráter metodológico a respeito da leitura de textos coloniais.
Segundo o autor, eles precisam ser lidos conforme categorias e convenções próprias de seu tempo,
considerando sua inserção social, materialidade, práticas de leitura e as diversas conveniências estéticas
que, à época de sua escrita, estabeleceram as balizas dentro das quais o texto se insere. Há um equívoco
recorrente em se ler tais textos a partir de categorias pós-iluministas e românticas, que induzem os leitores
142
155
contornos marcadamente setecentistas e identificados com o Iluminismo católico
português. A eliminação de signos de corrupção faz parte do repertório de exaltação de
ideais de modernidade e civilidade. É importante lembrar que a ideia de que os jesuítas
representam um entrave para a “civilização” dos nativos das colônias aparece também
na documentação referente a Pombal.
Em uma “Resposta oficial escrita de ordem de s.m. fidelíssima pelo secretário de
estado Sebastião José de Carvalho e Melo, ao conde de Perrelada” – que era Francisco
Xavier de Mendonça Furtado, governador e capitão general do Estado do Grão-Pará e
Maranhão de 1751 a 1759 –, datada de outubro de 1754, esse assunto é apontado em
uma nota explicativa, logo em sua primeira página. Na resposta, é afirmado que o
referido governador “descobriu naquele tempo” que “os religiosos jesuítas, seguindo,
por uma parte o diabólico sistema de consulta, que o seu visitador Alexandre Valiguano
havia feito, e resoluto na China desde o ano de 1581”, com a finalidade de “arrogar a
sua sociedade”, a Companhia de Jesus, “a usurpação dos domínios ultramarinos deste
reino” de Portugal “pelo reprovado meio de conservar os habitantes dos ditos domínios
em uma crassíssima, e brutal ignorância”. No caso das “Missões do Pará”, em que,
segundo a carta e citando a Dedução Cronológica, o então governador teria descoberto
que os jesuítas estabeleceram uma lei para que ninguém nelas entrasse, “tinha quase
extinto os índios daqueles infelizes Estados”, pois “tratando-os como se fossem bestas
de serviço, ou irracionais (...) obrigando-os a abandonarem as mulheres, e filhos para
irem nove meses do ano para o mato” colher frutos em distâncias longas, para os
regulares as comerciarem, eles os submetiam a uma situação que acabava privando-os
de “todo o conhecimento de que tinham um rei, de quem eram vassalos, e de que
haviam homens civis”. Com isso, “ali não havia, nem podia haver ou propagação da fé,
ou comunicação das gentes, ou administração de justiça” ou qualquer coisa útil ao reino,
à religião ou ao Estado.
147
Tais argumentos são, em grande parte, iguais aos
apresentados na Relação Abreviada, importante documento a respeito da tese de uma
contemporâneos a anacronismos. No caso específico de O Uraguay, conforme analisado por Ivan
Teixeira, o poema, lido sem se considerar alguns dos aspectos mencionados anteriormente por Hansen,
acabaram por produzir no indianismo uma leitura da obra em que o índio foi interpretado como um
indício de um nativismo, na verdade inexistente naquele momento na literatura do Brasil colonial. Dessa
maneira verdade, o aspecto central obra, que é o elogio à política pombalina na América, é ignorado.
HANSEN, João Adolfo. Ilustração católica, pastoral árcade & civilização. Op. Cit. _____________.
Leituras Coloniais. In: ABREU, Marcia (Org.). Leitura, História e História da Leitura. 1. ed. Campinas,
Brasil: Mercado das Letras. FAPESP, Associação de Leitura do Brasil, 1999. p. 169–182; TEIXEIRA,
Ivan. Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica. Op. Cit. p. 507-520.
147
MELO, Sebastião José de Carvalho e [1699-1782]. Cartas e outras obras selectas do Marquez de
Pombal. Op. Cit. p. 244.
156
suposta conspiração jesuítica para usurpar domínios portugueses do monarca. 148 Não é
estranho, então, que essa compreensão dos jesuítas como responsáveis pelo atraso
português também nos domínios ultramarinos seja retomada numa obra elogiosa ao
pombalismo como O Uraguai, consoante à política do mecenato.
Enfim, nesta parte do capítulo desta tese, enfatizou-se que o atraso português e
ibérico aparece como um tópico constante nos escritos dos ilustrados portugueses e
luso-brasileiros, não como um fato natural, mas como algo reversível. É perceptível
também a ideia de que tais ilustrados vivem um período em que o referido atraso será ou
poderá ser superado. Para tanto, muitas reformas devem ser feitas, tocantes a todas as
instituições sociais. Quanto às respostas a que tais ilustrados chegam, é importante
destacar que seus temas centrais remetem a um processo de secularização, como a perda
de privilégios do clero e a secularização da educação, além do ataque ao clero regular,
sobretudo os jesuítas, vistos como contrários a valores iluministas, como a utilidade.
Destes, me ocupo no subtítulo seguinte.
2.4 A “Companhia dita de Jesus”, o clero regular e os antimodelos de
modernidade
Nos “diagnósticos” sobre o atraso português, não são raras as menções aos
jesuítas. Mas também são frequentes as direcionadas a outros membros do clero regular,
a seus privilégios e à forma como eles contribuíram para o enraizamento de
preconceitos, ignorância, isolamento e para a ruína econômica do reino de Portugal e
colônias. Modernizar significava, de todo modo, se não eliminá-los, ao menos redefinir
radicalmente seu lugar nas dinâmicas e instituições sociais. É falso, todavia, dizer que
tais críticas se resumem tão somente a um suposto curso natural e teleológico da
secularização (conforme abordagem já questionada neste capítulo), muito menos a
interesses muito específicos, como o de o Estado almejar expropriar alguns domínios
tradicionalmente vinculados aos eclesiásticos. Mais interessante a este trabalho é
perceber, no discurso antijesuítico, em especifico, e crítico ao clero regular, no geral, a
afirmação de determinados valores identificados com a modernidade que se desejava.
Pode-se organizá-los em pelo menos três vertentes: em primeiro lugar, uma associada à
148
Relaçaõ Abreviada da Republica que os religiosos jesuítas das Provincias de Portugal, e Hespanha,
estabeleceraõ nos Dominios Ultramarinos das duas Monarchias, e da Guerra, que nelles tem movido, e
sustentado contra os Exercitos Hespanhoes, e Portuguezes. Formada pelos regidos das Secretarias dos
dous respectivos Principes Comissarios, e Plenipotenciarios; e por outros Documentos authenticos.
Lisboa ?. 1757. s/a. 34 p.
157
adoção e à afirmação de sistemas considerados modernos, como o experimentalismo
inglês, que passava, necessariamente, pela rejeição à Escolástica; em segundo, outra,
que foi fortemente ligada a uma apropriação de sistemas modernos, como o empirismo,
ao campo religioso, que implica a formulação e adoção de um ideal regulado e ilustrado
de Catolicismo, oposto ao exteriorismo e às formas religiosas consideradas fanáticas e
supersticiosas, mas também à irreligião; e em terceiro, no processo próprio do
Iluminismo católico, ajustado à crescente secularização da ideia de bem comum, uma
vertente desse antijesuitismo aplicada à política e administração pública, da economia à
educação, centralizadas na Coroa e incompatíveis com os privilégios eclesiásticos. Tal
incompatibilidade foi conformada pelo regalismo, que se opunha ao jesuitismo, como
demonstra estudo de Zília Osório de Castro. Segundo a autora, na medida em que o
curso regalista do reformismo pombalino negou aos papas o poder temporal e reduziu a
Igreja somente ao que tocava à sua unidade doutrinal e dogmática, o jesuitismo,
identificado com tendências pró cúria romana, foi progressivamente colocado como
contrário ao reformismo. Mais que isso, os jesuítas foram tomados como possíveis
focos de sedição e como usurpadores de um poder temporal legítimo, também criado
pela Providência divina, que possuía a Coroa portuguesa, na concepção regalista.149
Pode-se pensar num quarto aspecto, que perpassa os três anteriores em alguma medida,
que é a tese de uma conspiração orquestrada pelos regulares, nomeadamente os jesuítas.
Tal ideia fez parte desse discurso político e perpassou algumas das concepções acima
citadas.
Sobre o primeiro ponto, o Verdadeiro Método de Estudar, de Verney, é um
exemplo paradigmático. Nele, há um “apelo à modernização de Portugal” através de
uma reforma do ensino. O livro posicionou-se contra os paradigmas educacionais
escolásticos, identificados com os jesuítas. Ao mesmo tempo, exprimiu uma defesa e
adesão parcial ao empirismo inglês, tributário de John Locke e de sua fundamental obra
Essay concerning human understanding (1690).150 Isso se nota, por exemplo, na Carta
VIII, sobre o método de se estudar a filosofia. Segundo a carta, os “maus métodos”
usados em Portugal, típicos da Escolástica, são baseados em se “excogitar sofismas, e
metafísicas obscuras”, que causam danos enormes aos estudos da “Medicina, Teologia,
149
CASTRO, Zília Osório de. Sob o signo da unidade: regalismo vs. jesuitismo. Brotéria, n. 169, p. 113134, 2009.
150
ARAÚJO, Ana Cristina. Cultura das Luzes em Portugal. Op. Cit. p. 55.
158
e mais Ciências”.151 Isso ocorre, pois, sendo a filosofia “o conhecimento das coisas que
há neste mundo e das nossas mesmas ações e o modo de as regular para conseguir seu
fim”,152 ela somente poderia ser efetivamente compreendida por meio de uma
sistematização de seus campos de conhecimento distintos, de forma a, organizadamente,
por meio da crítica e da experiência, se chegar à verdade. 153 Os jesuítas, pelo contrário,
somente faziam confundir a “doutrina revelada com as opiniões da Escola”, afirmando
verdades que Verney considerava absurdas, sustentando, por exemplo, “que os
Santíssimos Padres aprovassem profeticamente a Escolástica que se inventou alguns
séculos depois deles mortos”,154 numa alusão a dissociarem a sua filosofia do
conhecimento da história. Este é um ponto fundamental da crítica do Barbadinho à
filosofia Escolástica, aos inacianos e ao seu modo de ensinar: a história, sagrada ou
profana, serve a Verney como elemento articulador de matérias, como a Filosofia e a
Teologia, ao empirismo de matriz inglesa. No caso, a historicidade de seus fundamentos
e pressupostos é a forma metódica, para o oratoriano, de se verificar sua verdade e
alcançar seu conhecimento propriamente dito sobre ela.
Uma apropriação similar ao sistema de Locke também se nota sobre a Teologia,
na Carta XIV do Método. Nela, Verney contrapõe o método escolástico ao que ele
considera ideal, em que os estudos das teologias positiva, especulativa e outras
deveriam se valer das Histórias profana e eclesiástica, assim como do conhecimento das
línguas antigas e modernas. Sem tais conhecimentos, a crítica às escrituras sagradas era
incompleta. Sem esse empirismo aplicado à teologia, o que se produzia em Portugal
através do método jesuítico formava religiosos que só sabiam “opiniões da Escola”
(sendo “opinião”, aqui, entendida como contrário de “verdade”). Segundo Verney, os
formados nesse método antigo eram ridicularizados pelos “hereges” que conheciam a
Escritura através da crítica, possibilitada pela leitura direta e com suporte de outros
campos do saber sistematizados.155
151
VERNEY, Luís António. Verdadeiro metodo de estudar, para ser util à República, e à Igreja:
proporcionado ao estilo, e necesidade de Portugal exposto em varias cartas, escrito polo R.P.
Barbadinho do Congregasam de Italia ao R. P. Valensa : Na Oficina de Antonio Balle, 1746. Tomo 1.
p.276-277.
152
Ibidem, p. 282-283.
153
TEIXEIRA, Ivan. Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica. Op. Cit. p. 170-174.
154
VERNEY, Luís António. Verdadeiro metodo de estudar. Op. Cit. p. 281.
155
VERNEY, Luís António. Verdadeiro metodo de estudar, para ser util à República, e à Igreja:
proporcionado ao estilo, e necesidade de Portugal exposto em varias cartas, escrito polo R.P.
Barbadinho do Congregasam de Italia ao R. P. Valensa : Na Oficina de Antonio Balle, 1746. Tomo 2. p.
195-228.
159
No Compêndio histórico da Universidade de Coimbra, algumas ideias do
oratoriano são retomadas, como parte de um violento diagnóstico sobre o estado da dita
universidade no início da década de 1770, com um antijesuitismo ainda mais acentuado.
O texto defende uma mudança drástica no paradigma educativo da universidade
coimbrã. A reforma pombalina identificava tal modelo com o “jesuitismo pedagógico” e
este, com a Escolástica, “que teria feito mergulhar as letras e as ciências lusitanas numa
escuridão que urgia iluminar através de um processo reformista radical e depuratório
das causas recenseadas de tão devastadora decadência”.156 No preâmbulo do
Compêndio, dirigido diretamente ao rei d. José I, são definidos os objetivos da obra,
sendo o principal o de “eliminar a venenosa raiz Escolástica”, que “sepultou na
ignorância” todas as ciências “florentes” até à época da chegada dos inacianos em
Coimbra.157 Para concretizar a reforma, urgiria eliminar sistematicamente o que os
jesuítas instituíram nos estatutos da Universidade de Coimbra.
O que insta com tanto maior força, que nos sextos e sétimos estatutos,
que desde o ano de mil quinhentos e noventa e oito até agora
governaram a dita Universidade, não há coisa alguma que se possa
aproveitar para o objecto de reforma. Muito pelo contrário se contém
neles um doloso sistema de ignorância artificial e de impossibilidade
para se aprenderem as mesmas ciências, que se fingiu quererem-se
ensinar e uma oficina perniciosa, cujas máquinas ficaram desde então
sinistramente laborando para obstruírem todas as luzes naturais dos
felizes engenhos portugueses.158
A extirpação dos métodos escolásticos da Universidade de Coimbra, proposta no
Compêndio, por meio da mudança dos estatutos “contaminados pelos jesuítas”, ainda
que, à primeira vista, pareça ser apenas um ataque antijesuítico, contém, assim como se
vê no Verdadeiro Método, uma preferência pelos métodos ditos modernos. Trata-se de
uma referência sutil, mas de qualquer modo ela se faz presente. Por exemplo, o mesmo
valor dado à sistematização do saber, tributária do empirismo, e à valorização da
experiência (ambos os procedimentos, presentes em Verney e aplicados ao ensino da
teologia) pode ser visto entre os “estragos” feitos pelos inacianos em Coimbra. O ponto
central da decadência desses estudos na Universidade se deve à adoção da “Teologia
156
FRANCO, José Eduardo. A reforma pombalina da Universidade Portuguesa no quadro da reforma
anti-jesuítica da Educação. In: POMBAL, Marquês de; Junta de Providência Literária. Compêndio
histórico da Universidade de Coimbra no tempo da invasão dos denominados jesuítas e dos estragos
feitos nas ciências, nos professores e directores que a regiam pelas maquinações e publicações dos novos
estatutos por eles fabricados. [1771]. FRANCO, José Eduardo; PEREIRA, Sara Marques (orgs.). Porto:
Campo das Letras- Editores, 2008. 1ª ed. p. 17-58. p. 36.
157
POMBAL, Marquês de; Junta de Providência Literária. Compêndio histórico da Universidade de
Coimbra. Op. Cit. p. 101-102.
158
Loc. Cit.
160
Escolástica”, que “desprezava a lição da Escritura, Tradição, Concílios, História
Eclesiástica”. Por isso, a dita teologia escolástica fora sendo abandonada no século XVI,
“pois seu desprezo às fontes teológicas, da Filosofia, da História, das Línguas antigas e
modernas, e outras ciências a tornaram inapropriada para combater as heresias, bem
como instruir os povos na religião católica e também de reformar os costumes”.159
Não é fortuito que essa vertente do antijesuitismo, associada a essa tomada de
lado na disputa “antigos e modernos”, em clara adesão aos últimos, apareça fortemente
nas defesas de uma ampla reforma da educação. É importante observar que, no século
XVIII, essa ideia de reforma educacional articula-se com um contexto mais amplo, em
que a concepção de sociedade se alterava. Se, até então, predominava a ideia de
“sociedade” como grupo fechado de indivíduos em comum interesse, com as sociedades
maçônicas, tomava corpo a concepção de que o termo se referia à totalidade de uma
comunidade organizada, cujo comportamento coletivo obedecia a leis e características
próprias. Conceitos como “educação pública” e “saúde pública”, que ganharam
expressão na cultura letrada iluminista e na linguagem administrativa no Setecentos,
tiveram como pressuposto teórico a ideia de que o que se podia chamar de “sociedade”
era algo maior que um simples agrupamento de súditos do monarca, remetendo a um
corpo complexo de relações, que deveria ser percebido com características próprias.160
Em Portugal, muito do que foi produzido por letrados no sentido de se modernizar o
reino e suas colônias dialogava com esse processo de mudança de paradigma a respeito
de sociedade, sem, no caso, prescindir da organização e hierarquização próprias de uma
sociedade de Antigo Regime. Fundamental lembrar que o todo social, entendido como
análogo ao corpo humano, produziu realidades tomadas como entraves pelo regalismo
pombalino que buscou os superar através de reformas. Assim, a ideia de que a educação
poderia modelar todo um corpo social, corrente nas Luzes, foi pensada e formulada em
conformidade com os paradigmas de sociedade estamental, hierarquizada e organizada
segundo a qualidade de cada um. Sob essas linhas gerais, em Portugal, o propósito de
reformar a educação foi compreendido, por muitos letrados, como um caminho para a
sua modernização.161 Diante disso, a extirpação daqueles que eram identificados com o
159
Ibidem, p.174
ACUÑA, Álvaro Santana; CABRERA, Miguel Ángel. De la historia social a la historia de lo social.
Ayer: Revista de Historia Contemporánea. (62), p. 165-192. 2010; GIL, Enrique Perdiguero; PABLO,
Ángel Gonzáles de. Los valores morales de la higiene: el concepto de onanismo en Tissot y su tardía
penetración em España. In: Acta Hispanica ad Medicinae Scientiarumque Historiam Illustrandam. Vol.
10, p. 131- 162, 1990.
161
ARAÚJO, Ana Cristina. Cultura das Luzes em Portugal. Op. Cit. p. 53.
160
161
atraso desse campo, os jesuítas, era constantemente colocada no centro dos debates
identificados com as reformas das mentalidades, relacionando o funcionamento do
Reino à questão da educação. Mais que isso, “sociedade”, aplicado aos jesuítas, foi, em
alguma medida, associado progressivamente a algum tipo de sedição contra a Coroa.
Se o discurso antijesuítico indicava uma orientação da cultura letrada a
tendências vistas como modernas, como o empirismo inglês, também sinalizava para a
construção de um ideal de religião identificado com uma premissa fundamental do
Iluminismo católico, que era a de conciliar o dogma e a moral católicos com as referidas
tendências modernas do pensamento.162 Trata-se de articular as críticas aos jesuítas e ao
clero regular com um ideal regulado, segundo a razão ilustrada, de fé católica. Além
disso, tal operação envolvia também uma rejeição dupla, tanto à irreligião, ao ateísmo e
a formas religiosas como o deísmo e o que se entendia como a libertinagem, como
também às formas religiosas não reguladas, consideradas fanáticas e supersticiosas, ou
ainda identificadas a uma exteriorização barroca.163
Na carta do então Conde de Oeiras ao arcebispo de Braga, d. Gaspar de
Bragança, em 1768, vê-se uma preocupação do ministro com a propagação, por
clérigos, de uma religiosidade desajustada do referido ideal de Catolicismo. Nela, o
ministro adverte ao religioso que, sob seu arcebispado, “a perniciosa leitura de certos
livros espirituais, introduzida na cabeça das beatas por alguns frades ignorantes, tem
chegado a produzir grande número de fanáticos de um e outro sexo”.164 Lembra que o
bispo é vigilante na tarefa de extirpar frades, “pais espirituais de beatas, que ajuntam
congregações delas debaixo de sua direção”, e que em cada uma delas “estabelecem um
seminário de fanatismos e entusiasmos devotos”. Tais fanatismos e entusiasmos eram
fomentados pela leitura “do pernicioso livro de Alonso Rodrigues, das obras de soror
Maria de Lantígua, das fábulas espirituais da madre Agreda e da vida de soror Maria
Serio”, dentre outros livros semelhantes. Juntamente, lembra ao arcebispo sobre os
padres que incentivam pessoas a expelirem demônios, “levando após de si os outros
grandes séquitos de endemoninhados, que nesta corte e província se extinguiram”,
depois que essa prática tinha sido proibida e combatida, “de sorte que todos os
antecedentes demônios têm fugido para longe do cheiro da estopa da enxárcia velha,
Esse ponto já foi discutido no Capítulo 1.LEHNER, Ulrich L. What Is “Catholic Enlightenment”? Op.
Cit.; SANTOS, Cândido dos. Matrizes Do Iluminismo Católico da Época Pombalina. Op.cit.
163
VILLALTA, Luiz Carlos. As imagens, o Antigo Regime e a “Revolução” no mundo luso-brasileiro (c.
1750-1812). Op. Cit.
164
MELO, Sebastião José de Carvalho e. Cartas e outras obras selectas... Op. Cit. p. 95.
162
162
que ali se desfia, e do castigo que recebem os que não dão conta das tarefas que lhe são
arbitradas”.165
Luís Antônio Verney, em carta que continha propostas de reformas para a
Inquisição, faz observação semelhante às do ministro Sebastião José de Carvalho e
Melo, acima referidas. Defende, assim, a supressão de tipologias de crime de alçada
inquisitorial que considerem o pacto com o demônio. O motivo dessa supressão, de
acordo com oratoriano, seria que: “aquilo de pacto com o diabo, já se sabe que só se
pode acreditar em quatro padres e frades ignorantes”. Com ironia, diz, em conclusão,
que “observou-se que os diabos têm grande medo de países em que se sabe bem a
filosofia, medicina, lei e teologia, porque nunca se arriscam em tais lugares em fazer
pacto com nenhum homem”.166
Deve-se acrescentar que, em Portugal, a crítica ao clero regular como
despreparado e motor de superstição e excessos em matéria de religião com os povos
existe muito antes das Luzes, remontando a uma literatura quinhentista. Por exemplo,
no capítulo CII, da primeira parte da crônica Crônica do felicíssimo rei Dom Manuel, já
analisada brevemente no final do Capítulo 1 desta tese, o humanista português se refere
a uma “turma de maus homens & frades”, tomando-os como agitadores que deram
início ao pogrom de Lisboa, em 1506. Em carta ao monarca d. João III, o poeta Gil
Vicente menciona também a ignorância dos regulares, que atribuíram os tremores de
terra ocorridos então em Portugal à Providência divina, ao invés de tratá-los como
eventos normais no curso da natureza.167
Uma diferença de abordagem dos vícios do clero regular e, sobretudo, dos
jesuítas, no século das Luzes, é tributária do processo de secularização marcante no
período. Nesse momento, a crítica à falta de vocação, ao fanatismo e à pouca ou nula
utilidade dos frades e freiras para o bem geral arvora-se numa separação de atribuições
entre o poder civil e as religiões instituídas.168 Não se tratava, ressalte-se, de uma
165
Ibidem, p. 96.
VERNEY, Luís Antônio. Cartas Italianas. Op. Cit. p. 106.
167
C.f. MUNIZ, Márcio Ricardo Coelho. 1531: Gil Vicente, Judeus e a instauração da Inquisição em
Portugal. Contexto, Vitória, p. 95-108,v. 7. 2000.
168
Conforme analisa Fernando Catroga, algumas mudanças a respeito das concepções de tolerância
religiosa, entre o final do século XVII e o XVIII, são em grande medida tributárias dos debates em torno
da revogação do Édito de Nantes, na França, em 1685, e das querelas teológicas que marcaram o final da
Revolução Inglesa. Tais debates eram conhecidos, sobretudo, pelas obras de Pierre Bayle e John Locke.
Por caminhos distintos, a partir delas se formam pressupostos teóricos e políticos de uma
“desteologização” do político. Com isso, separa-se a ideia de bem comum, referente a assuntos terrenos,
reportados às atribuições do Estado, enquanto os assuntos tocantes à salvação ou a bens espirituais são
paulatinamente circunscritos no plano do particular, das Igrejas e ordens. Assim, constrói-se também a
166
163
relativização da ideia de uma única verdade dentro da Igreja Católica, mas de pensar-se
nisso como um filtro principal para o desenvolvimento dessas ideias em Portugal: são
questionados, por exemplo, os desvios das verdadeiras funções, no domínio do
espiritual, nos quais incorrem os regulares quando se misturam com assuntos seculares.
Essa é uma inferência que se pode fazer dos vários documentos que constam das
Observações Secretíssimas, do Marquês de Pombal, mais precisamente do Tratado em
que mostra que os religiosos, posto que em particular, ou em comum, não podem
possuir bens de raiz, que herdassem, ou possuíssem, por mais tempo que um ano e dia,
sem data. Para a matéria do título desse breve tratado, Sebastião José de Carvalho e
Melo apresenta quatro justificativas: o prejuízo que a Coroa experimentava pela perda
de sisas e vendas, que se perdiam para sempre quando bens de raiz passavam para
qualquer Religião – esta, entendida aqui, como ordem religiosa. Uma vez que esses
bens estivessem em mãos de regulares, os súditos e seculares, nessas terras, não
poderiam empregar sua força no estabelecimento de suas casas e atividades, como
agricultura e comércio, para a utilidade e proteção da monarquia. Impedindo-se a venda
dessas terras, por sua posse pelos regulares, o comércio cessava e o dinheiro não girava.
Por fim, “estando os bens” de raiz “no poder dos particulares”, no caso, ordens do clero
regular, “terão os diretos senhores aquelas utilidades resultantes dos laudêmios, pelas
vendas” desses bens de raiz “com as quais se ajudariam”.169 A partir daí, são expostas,
de forma breve e sucinta, as justificativas para a recomendação, em que incompatibiliza
a função do clero com o direito de seus membros à posse de bens, sobretudo, terras,
além de alguns outros importantes apontamentos.
A posse de terras, primeiramente, afasta, para Melo, os regulares de seu voto de
pobreza. Com elas, “se reputam como indignos, por se entregarem à glória de possuir
fundos e riquezas consideráveis, sem pagar os tributos necessários com que se gravam
os vassalos seculares”. Assim os regulares “se entregam à cobiça, que é o veneno da
caridade e companheira da violência”, e acrescenta que:
Desta perturbação e tenacidade das demandas, entre vassalos
monacais e seculares, resulta contra os regulares uma concludente
conjectura de corrupção dos costumes, à semelhança de Lúcifer, e
distração por inveja, soberba, honra e avareza, tudo contra os votos
que professaram, e certamente cessariam com a privação dos bens,
que são a causa destes males, dos quais entregando-se a Deus pelo
noção de que cabia ao poder civil uma ação no campo religioso somente naquilo que viria a intervir na
vida pública. CATROGA, Fernando. Entre deuses e césares. Op. Cit. p. 74-84 e p. 360.
169
MELO, Sebastião José de Carvalho e [1699-1782]. Memórias secretíssimas do marquês de Pombal e
outros escritos. Lisboa: Publicações Europa-América. Série Estudos e Documentos- 193, 1984. p. 54-55.
164
ingresso da Religião, ficam desapropriados com a perda do domínio, e
com a proibição de testar, posto que o Papa lha permita, carecendo de
licença do soberano.170
Dessa maneira, de acordo com o ministro de d. José I, quando os regulares
possuem acesso a bens, sobretudo de raiz, desviam-se de suas funções espirituais,
gerando perturbações e corrompendo seus verdadeiros propósitos, além infringirem a
soberania real e irem contra o bem comum. Isso não iria acontecer, prossegue Pombal,
“se os religiosos e monges só cuidassem na conservação de bens espirituais”. Dessa
maneira, “seu exemplo não provocaria tantos seculares, aos quais eles mesmos
inquietam, intrometidos em negociações profanas, perturbando a república com pleitos
injustos”, fazendo-os deixar de lado “os tesouros celestes, que unicamente devem
conservar conforme os seus estatutos, pela glória e riquezas deste mundo”.171
Em alguns pontos, as ideias de Pombal quanto aos regulares são idênticas às de
d. Luís da Cunha, no Testamento Político. Afinal, mesmo que seja imprescindível
considerar o tom cristão católico e a ausência de qualquer menção para, ao menos,
relativizar-se esse pertencimento religioso, ou mesmo quanto à atuação da Coroa nos
assuntos religiosos, é notável que o olhar de ambos sobre o clero regular pauta-se pela
diferença de atribuições das ordens e do clero em relação às da Coroa. O bem comum, a
sustentação e a proteção do Estado pertencem a este último, e a transposição desse
limite resulta em prejuízos, ou mesmo, usurpações. Esse aspecto é ressaltado, também,
na lei referente à expulsão dos regulares da “Companhia denominada de Jesus” de
Portugal e suas colônias, de 1759.172
No século das Luzes, frades e freiras são muitas vezes abordados como sendo
párias de um processo civilizatório pautado por valores como a utilidade, a preservação
do gênero humano e o antifanatismo. É exatamente isto que explica Marcos Antônio
Lopes, analisando o tema da luta contra o fanatismo e o surgimento da tolerância
religiosa na cultura letrada europeia, a partir da leitura de autores diversos, tais como
Erasmo de Roterdã, Montaigne, David Hume, Diderot, Jonathan Swift e Voltaire.
Conforme explica o autor, para muitos autores da Idade Moderna, no clero regular,
170
Ibidem, p. 58.
Ibidem, p. 57.
172
“(...) havendo por todos estes modos procurado que os sobreditos regulares [da Companhia de Jesus]
livres da contagiosa corrupção, com que os tinha contaminado a hidrópica sede dos governos profanos,
das aquisições de terras, e Estados, e dos interesses mercantis, servissem a Deus, e aproveitassem ao
próximo, como bons, e verdadeiros religiosos, e ministros da igreja de Deus”. Lei pela qual S.M. é
servido exterminar, proscrever, e mandar expulsar dos seus reinos, e domínios os regulares da
companhia denominada de Jesus, etc. In: MELO, Sebastião José de Carvalho e [1699-1782]. Cartas e
outras obras selectas.... Op. Cit. p. 75.
171
165
encontram-se elementos basilares do fanatismo: a presunção e o orgulho de serem
portadores de uma verdade absoluta, a obstinação de perseguir seus adversários e
imporem suas crenças e, consequentemente, o espírito de sedição e o sectarismo que os
acompanham, trazendo prejuízos para toda a vida em comum. A partir dessas ideias, no
século XVIII, pensadores do Iluminismo defendiam que se deveria “desfradar o
mundo”, isto é, extirpar deles o clero, sobretudo o regular, pois isto seria “fazer a obra
civilizadora de extirpação do fanatismo da face da terra”. Além disso, “essa cruzada
contra os frades será justificada pelo fato de que eles são criaturas hostis à sociedade,
porque são cadáveres que precisam ser ressuscitados para a vida e o trabalho
produtivo”.173
Por exemplo, Voltaire, ao pronunciar-se a respeito dos jesuítas, em seu
Dictionnaire Philosophique, mobiliza alguns desses pontos contra o clero regular, com
algumas especificidades. No verbete Jesuítas e orgulho, mais precisamente, o pensador
francês destaca a soberba arraigada nos inacianos, exposta no desprezo que
demonstravam a todas as universidades em que não se instalavam e aos livros que não
eram escritos por eles. Essa presunção de superioridade os levava a menosprezar outras
ordens e mesmo a desobedecer aos reis e bispos, não tendo diminuído tal
comportamento mesmo diante da certeza de sua expulsão da França, Espanha e das duas
Sicílias.174 Esse mesmo orgulho é destacado e ridicularizado no capítulo XIV de
Cândido, quando o protagonista e Cocambo, criado que a ele se juntou pouco antes dele
chegar ao Paraguai, em meio à Guerra das Missões, encontra o irmão de sua amada
Cunegundes. Cândido acreditava que ele teria morrido em uma batalha, mas, para a sua
surpresa, o personagem sobrevivera e se tornara jesuíta. A prepotência deste último já
aparece na sua caracterização. Na cena, só se permitiu que Cândido falasse quando disse
ser alemão, pois ali, por determinação do jesuíta, espanhóis não poderiam falar. Logo
em seguida, encontram-se em “uma espécie de salão de folhagens, cercado de uma linda
colunata de mármore verde de dourado”, decorado de “aviários que encerravam
papagaios, colibris, beija-flores (...) e todos os pássaros, dos mais raros”. Ali, foram
servidos de “um excelente almoço, em baixelas de ouro”, “enquanto os paraguaios
comiam canjica em escudelas de pau, ao ardor do sol”.175 E no Précis sur le siècle de
Louis XV, na parte que se refere a alguns eventos que aconteceram em Portugal, o
173
LOPES, Marcos Antônio. Brigadas do antifanatismo: a invenção da tolerância religiosa. Op. Cit. p. 34.
VOLTAIRE, François Marie Arouet. Dictionnaire Philosophique [1764]. Paris: Imprimerie de Cosse
et Gaultier-Laguionie. 1838. p. 638-639.
175
______________. Cândido ou o otimismo [1759]. s/c: Ed Ridendo Castigat Mores, 2002.p. 77.
174
166
ilustrado francês, primeiramente mostra indiferença à execução do padre inaciano
Gabriel Malagrida pela Inquisição, por este ter defendido que o terremoto de 1755 se
dera pela providência divina. Em seguida, atribui aos jesuítas a responsabilidade pelo
atentado contra d. José I, feito em 1758. Além de tomar a proposição de Malagrida por
supersticiosa e como razão para sua execução, soma-lhe uma rivalidade entre jesuítas e
dominicanos em relação ao controle da Inquisição e demonstração de bons serviços ao
rei. Descreve um cenário onde os jesuítas são apresentados, ainda, como “os
verdadeiros senhores de Portugal, mantendo-o, mais que outras nações, submetido ao
Papa”. Isso, em considerável medida, contribuía para deixar o país longe “das luzes que
esclareciam tantos Estados da Europa”; “outros povos (do restante do continente
“civilizado”) estavam no século dezoito, mas os portugueses pareciam viver no século
doze”.176 Tendo em vista a forte propaganda antijesuítica que marcou a política cultural
da governação pombalina, é possível se presumir que, na república das letras iluminista,
havia grande circularidade de argumentos, como os de Voltaire, contra os inacianos. A
Relação Abreviada, por exemplo, foi publicada, simultaneamente, em português
francês, alemão e inglês177, e, segundo Kenneth Maxwell, estima-se que foram
impressos mais de vinte mil exemplares da obra que, como já analisei neste capítulo,
acusa a Companhia de Jesus de manter os povos das colônias portuguesas na
ignorância, com o fim de controlá-los, além de responsabilizar estes regulares pelas
Guerras Guaraníticas, movidas com o fim de usurpar as terras da Coroa.178
Por fim, é importante mencionar um tópico que, nas Luzes portuguesas, é
constante no que se refere aos jesuítas, que é a ideia de uma conspiração. Trata-se de um
tópico que não tem uma presença tão significativa quanto o dos escritos contrários às
demais ordens ou ao clero regular, no geral. Nesse ponto, destacam-se a Dedução
Cronológica, o Compêndio e, sobretudo, a Relação Abreviada, como já foi dito,
segundo os quais os estragos dos jesuítas foram paulatinamente introduzidos pelos seus
estratagemas, por estratégias conspiratórias dos inacianos, chamados, comumente, de
“sócios”, a fim de penetrar nas Cortes, clero, universidades, administração do Reino e
das colônias, e em todas as estruturas da sociedade, com o propósito de controlar a
todos através de um domínio ideológico. Nas duas primeiras, no Compêndio e na
176
______________. Précis du siècle de Louis XV, par M. De Voltaire Servant de suite au siècle de Luis
XIV, du même Auteur. Tome second. [1769]. Géneve: De L’imprimerie des frères Mame, 1808. Book
digitized by Google from the library of the New York Public Library. Disponível em:
https://archive.org/details/prcisdusicledel01voltgoog. Acessado em jun./2018. p. 327-329.
177
TEIXEIRA, Ivan. Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica. Op. Cit. p. 65.
178
MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do Iluminismo. Op. Cit. p. 20.
167
Dedução Cronológica, há uma precisa localização temporal da introdução dos estragos,
entre sua chegada no reinado de d. João III, intensificando-se após a morte de d.
Sebastião e a União Ibérica, e conduzindo-se linearmente até a época de d. José I,
quando eles viriam a ser extirpados em nome de um projeto modernizador.
Verney comenta sobre a perseguição aos jesuítas, em carta de julho de 1765. O
Barbadinho compara a perseguição aos inacianos à feita aos arianos, no século IV, e a
vê de forma positiva, uma vez que eles, durante anos, fizeram com que vários
governantes os obedecessem como escravos, causando prejuízos aos reinos por suas
maquinações. Com elas, esvaziaram-se os reinos de bons homens e impediram-se
progressos das ciências, das artes e filosofia. Sobre os jesuítas, dizia Verney que:
Ora, privados os reinos daqueles grandes homens, que só eles podiam
abrir os olhos aos seus nacionais e introduzir, com o bom gosto da
ciência, o recto pensar, sem o qual na política, nem em nenhuma outra
matéria, se faz alguma coisa boa; e aterrorizados os outros, que os
podiam imitar, ficaram no campo os sócios [os jesuítas] triunfantes,
que mantinham todos na ignorância, para eles poderem reinar
sozinhos, como de facto reinaram, dando uma péssima educação aos
príncipes, só condizente à conveniência jesuítica. De maneira que é
um milagre se qualquer príncipe fez alguma coisa menos mal. Uma de
suas maquinações favoritas era inspirar aos príncipes o espírito de
desconfiança e perseguição, para lhes descrever qualquer novo
sentimento como herético e de os sócios aparecerem como únicos
protectores do Catolicismo. Se em França não fizeram mais, foi
porque aí existiam as contra-intrigas dos parlamentos, das
universidades mais iluminadas, dos prelados bem instruídos, que
rebatiam estes golpes. Mas naqueles países onde faltavam estas ajudas
e defensivas, tudo se sujeitava à artilharia.179
Assim, para Verney, os jesuítas escravizaram os príncipes, dominaram os povos
com ignorância, sempre através de conspirações e intrigas. Apenas não lograram êxito
onde houve resistência, o que não era o caso de Portugal até meados do XVIII. Portugal,
segundo o Barbadinho, tornara-se um reino tão afundado na ignorância que somente
expulsar os jesuítas não bastava. Os estragos dos inacianos eram um “mal crônico,
inveterado, que dificilmente se trata”. Não bastava expulsar os jesuítas dos domínios
portugueses. Fazia-se necessário reformar todas as mentalidades, “retirando os vícios
que eles inculcaram nas mentes”, a começar pelos príncipes, que deveriam ser cercados
por cada vez mais homens ilustrados, impedindo, assim, o retorno dos regulares da
Companhia de Jesus.180
179
180
VERNEY, Luís Antônio. Cartas Italianas. Op. Cit. p. 80.
Ibidem, p. 84.
168
Não são mencionadas, talvez convenientemente, conspirações das quais os
próprios jesuítas foram vítimas, como o caso do panfleto Monita Secreta.181 Acrescentese que é ponto pacífico, para a historiografia, o exagero, ao se incompatibilizar
completamente o pensamento dos inacianos com o que era moderno, seja no campo das
ciências ou da filosofia.182 A despeito disso, no Iluminismo, no caso luso-brasileiro, o
clero regular, no geral, e em específico, os jesuítas, constituíram “antimodelos” de
modernidade em campos variados, como o religioso, o econômico, político e outros,
sendo criticados fortemente na documentação apresentada até aqui. Por fim, a
Companhia de Jesus e os regulares no geral, como tópico discursivo, aparecem nos
escritos dos letrados do período pombalino. Em tais escritos, vê-se uma articulação
bastante significativa entre sua atuação em Portugal e a tópica do atraso, além da ideia
de uma forte repercussão de um conspiracionismo, particularismo e sectarismo,
contraposto ao ideal centralizador do regalismo.
A presunção de um atraso português e a construção de projetos para superá-lo,
com os modelos e antimodelos de modernidade que lhes eram correlatos, não
implicaram, todavia, qualquer forma de defesa da tolerância religiosa. Entretanto, esse
tema também esteve no espaço de debates da cultura letrada sob o ministério do
Marquês de Pombal, e é sobre essa questão que a próxima parte do capítulo irá tratar.
2.5 O Triumpho da Religião e o espaço para a tolerância religiosa
181
Trata-se do Monita Secreta Sociatatis Jesu, de datação imprecisa e cujo aparecimento mais antigo é do
ano de 1614, em Cracóvia. É amplamente aceito que o documento é uma falsificação, atribuída ao
superior geral da Companhia de Jesus, Claudio Acquaviva, em que são passadas instruções para que a
Companhia de Jesus aumentasse seu poder e sua influência. Dentre as estratégias que constam no
panfleto, estão o aliciamento de jovens promissores, de viúvas, dissuadidas de ter novo matrimônio e com
grande herança, o incentivo de uma atitude fingida de humildade perante monarcas e outros detentores de
poder político e riqueza, o desacreditar as demais ordens, além de penetrar e controlar as universidades e
seminários de toda a Europa. Não se sabe o autor, mas uma das hipóteses é que a Monita teria sido escrita
por um regular que fora expulso da ordem. Sabe-se, ainda, da grande repercussão do documento, com
diversas traduções publicadas do século XVII até o século XX. O’MALEY, John. The society of Jesus.
In: HSIA, R. P. (org.). A Companion to the Reformation Worlds. Malden, USA; Oxford, UK, Melbourne,
Aus: Blackwell Publishing, p. 223-236, 2004. p. 224.
182
Sobre a relação dos jesuítas com a ciência moderna, no século XVII, uma atualização importante do
debate se encontra no trabalho de Pietro Redondi, a respeito do contexto do pensamento letrado e
religioso à época da condenação de Galileu Galilei. De modo geral, conforme explica o autor, grande
parte do sucesso e da expansão da Companhia de Jesus e de seu reconhecimento como uma espécie de
“polícia tridentina”, na Idade Moderna, deve-se precisamente à capacidade da ordem de adaptação às
tendências modernas, ainda que a Ratio Studiorum servisse-lhe de arcabouço para circunscrevê-las de
acordo com o dogma católico. REDONDI, Pietro. Galileu Herético [1983]. Trad. Julia Mainardi. São
Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 319-322 e p. 133-136.
169
As reformas do Santo Ofício e da censura fizeram parte do processo
secularizador português. A discussão sobre tais reformas será feita de forma mais
pormenorizada no Capítulo 3 desta tese. Aqui, interessa analisar somente alguns
aspectos de tais reformas, que levaram Luís Cabral de Moncada a considerar que o que
as moveu foi o interesse de usar instrumentos de intolerância para promover a
tolerância. Trata-se de uma conclusão exagerada, uma vez que a Inquisição jamais foi
usada para promover a tolerância, bem como, além disso, na cultura letrada e na
linguagem política do pombalismo, essa defesa nunca se fez presente. Como pretendo
demonstrar aqui, todavia, a discussão sobre esse tópico importante do pensamento
iluminista estava presente, assumindo-se, então, uma posição refratária a se tolerar a
diferença religiosa. Tal posição encontrava-se articulada com alguns pressupostos
presentes nas defesas mais notórias da própria tolerância feitas no período.
Em Origem da denominação entre christãos-velhos e christãos-novos em
Portugal, Ribeiro Sanches faz um histórico do estabelecimento dessa distinção baseada
na origem judaica. Para ele, tal distinção teve origem no ódio de uma plebe contra
judeus e foi reproduzida pelos preconceitos nacionais, sem qualquer utilidade para a
Igreja e a república. Essa diferenciação, para o médico de Penamacor, era naturalmente
sediciosa e fazia com que os desvios religiosos se multiplicassem, ao invés de diminuílos. Isso se dava, sobretudo, devido ao segredo processual, que Sanches acusava de
favorecer a punição dos verdadeiros cristãos, induzindo-os, ainda que inocentes, a
confessar práticas heterodoxas à Inquisição. As pessoas ímpias, com maior contato com
os estilos inquisitoriais, por já terem sido presas ou por terem parentes ou amigos
próximos que caíram nas malhas do Santo Ofício, conseguiam administrar os
procedimentos de confissão e denúncia com maior eficácia, para satisfazer às
autoridades e, assim, escapavam. Além do fim da “sediciosa distinção”, o pensador
português propunha que fosse permitido que se fizessem em mesa somente confissões e
declarações de culpas, impedindo-se de denunciar até mesmo os cúmplices destas
últimas.183
Verney faz críticas um tanto semelhantes, em carta de 1765. Além de defender
alguns pontos similares aos do Ribeiro Sanches, apresenta, na verdade, diversos outros
que se aproximam muito das mudanças que vieram à luz com o Regimento de 1774. A
183
SANCHES, Antônio Nunes Ribeiro. Origem da denominação e christão-velho e christão novo em
Portugal [1748]. Transcrição e prefácio de Raul Rêgo (1913-2002). Lisboa: Ed. Sá da Costa, Coleção
Clássicos, 2010.
170
Inquisição, para Verney, “será sempre (...) um obstáculo terrível ao bom gosto das
ciências e ao progresso e à introdução de muitas outras coisas necessárias e úteis”.
Segundo o pensador, ela precisava ser urgentemente reformada, pois “com os presentes
regulamentos, se não se tomam as medidas justas para desenraizar as desordens”, que,
“após a morte do ministro [marquês de Pombal] e do rei [ d. José I], elas desenvolverse-ão imediatamente”.184 As dez medidas mudanças ao todo – que, mais à frente,
Verney propõe para a Inquisição – contêm alguns pontos, tais como: a supressão da
diferença entre cristãos velhos e cristãos novos, o fim do segredo processual e da
consideração da possessão demoníaca como evidência válida para delitos de feitiçaria.
Além disso, Verney propõe várias medidas que rechaçam as punições públicas, numa
condenação aos autos-de-fé e à publicação de listas de penitenciados. Ele defende o fim
da tortura e das penas violentas, e, inversamente, uma ampliação dos direitos de defesa
dos acusados de qualquer delito.185
Nessas cartas, ataca-se de forma veemente a Inquisição, associando-a ao
barbarismo de outros séculos anteriores e culpando-a pelo atraso cultural de Portugal e
pela recaída de grande infâmia para este país no estrangeiro, sem defender-se, contudo,
a supressão do tribunal, mas, apenas, sua reforma. Conforme a análise dessas cartas
feita por Cabral de Moncada, o oratoriano almejava uma forma de conquistar um
“despotismo intolerante”, com o qual “far-se-ia da intolerância instrumento e meio para
reabilitar uma ideia de tolerância”.186 Na leitura de Moncada, Verney acreditava que,
para se “realizar [a tolerância], era indispensável ilustrar, iluminar o espírito dos povos e
governos”. Por este motivo, ele não propunha a supressão da Inquisição ou a simples
retirada da censura das mãos de eclesiásticos, uma vez que considerava que os
preconceitos da nação, causados e reproduzidos por séculos de educação jesuítica e
excessivos privilégios clericais, aliados à baixa difusão da filosofia e ciência moderna,
exigiam uma intervenção mais direta de uma elite ilustrada, ligada à Coroa.187 Nas
palavras de Cabral de Moncada, o olhar de Verney sobre o Santo Ofício não “se
limitava no do filósofo”, sendo também o de um “político regalista”. Segundo
Moncada:
A concepção político-religiosa de uma Igreja intrumentum regni [o
Regalismo] não foi outra coisa senão o primeiro passo de uma
184
VERNEY, Luís Antônio. Cartas Italianas. Op. Cit. p. 102
Ibidem, p. 106-109.
186
MONCADA, Luís Cabral de Oliveira. Um “iluminista” português do século XVIII: Luís Antônio
Verney. Op. Cit. p. 74.
187
Ibidem, p. 93-95.
185
171
tentativa no sentido da emancipação do “político” em frente do
“religioso”, conservando aquele por usurpar a dignidade ética deste,
para à custa dela fundar depois a sua própria, num domínio espiritual
autônomo”.188
A leitura das fontes e dos debates historiográficos recentes, entretanto, não
confirmam a tese de Moncada de que houve um uso da intolerância para se alcançar a
tolerância. O autor não desenvolve, de maneira mais aprofundada, o que ele entende
sobre a tolerância que seria “reabilitada” –segundo suas palavras – pelo uso de alguma
intolerância. Possivelmente, trata-se de uma concepção a priori do próprio autor,
embora faltem informações no próprio texto que confirmem essa leitura. Porém, a sua
ideia da religião instrumentum regni, aponta não para uma busca por essa tolerância,
mas para um aspecto importante do pombalismo, a ser mencionado antes da análise
propriamente da tolerância religiosa nesse contexto. Trata-se do dirigismo cultural,
marcante na política do ministro de d. José I e com alguma continuidade ao longo de
todo o período do Reformismo Ilustrado. Esse dirigismo engloba, pelo menos, duas
frentes de ação da política pombalina, tocante aos campos da religião e a cultura, dentre
outros. A primeira, em concordância com as análises de Ivan Teixeira e Ana Cristina
Araújo, refere-se ao envolvimento de muitos letrados no projeto político do Marquês de
Pombal, por meio de mecenato e do encômio, à sua inserção em redes clientelares,
reunindo homens de letras mais ou menos alinhados às delimitações do discurso
“oficial”.189 Desenvolveu-se uma literatura elogiosa às ações do reinado josefino, por
meio da qual difundiram-se valores tornados hegemônicos naquele período. Ao mesmo
tempo, com contornos específicos, em consonância com o Iluminismo católico,
delimitam-se diversos aspectos estéticos e temáticos nas obras poéticas, literárias,
historiográficas, tratadísticas e outras.190 Já a segunda frente, aqui em concordância com
Moncada, pauta-se na ideia de que o atraso português seria vencido com um conjunto de
ações vindas “de cima”, com um poder exercido por homens ilustrados e ajustados com
um ideário iluminista católico. Esse ideário, por sua vez, contrapunha-se às forças que
simbolizavam o “antigo” (a saber, setores do clero, sobretudo os jesuítas), mas também
188
Ibidem, p. 65.
ARAÚJO, Ana Cristina. Dirigismo cultural e formação das elites no pombalismo. Op. Cit.;
TEIXEIRA, Ivan. Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica. Op. Cit. p. 67-130.
190
HANSEN, João Adolfo. Ilustração católica, pastoral árcade & civilização. Op. Cit. p. 15-16.
189
172
às outras vertentes do clero e da nobreza e, ainda, às variantes mais radicais do
Iluminismo.191
Em consonância com as linhas gerais do Iluminismo católico, já analisadas aqui,
os “prejuízos” nacionais seriam combatidos ajustando-se a verdade católica ao ideário
dos “modernos” – a saber, contrários à Escolástica, ao excesso de privilégios do clero e
da ingerência da Santa Sé romana. Esse ajustamento, inversamente, envolvia uma
apropriação de uma epistemologia tributária do empirismo inglês. Esse ideário, ao
mesmo tempo, era refratário à defesa da liberdade de consciência, aos relativismos de
base ético-teológica ou aos princípios irreligiosos irradiados de diversos pontos da
Europa desde meados do século XVII, marcantes nas Luzes. Assim, nessa cultura
letrada mais alinhada ao Reformismo Ilustrado no período pombalino, o espaço para a
defesa ampla da tolerância religiosa estava fechado, o que era identificado, justamente,
com as correntes iluministas mais radicais. Em nenhuma obra do período isso está tão
claro quanto no Triumpho da Religião, poema “épico-polêmico” – explicarei, mais à
frente, o que esta expressão define – escrito por Francisco de Pina e de Melo e
publicado em 1756.
É importante destacar algumas informações sobre o autor. Francisco de Pina de
Sá e de Melo nasceu na Vila de Montemor-o-Velho, a 7 de agosto de 1695. Da terra
natal, saiu apenas para frequentar a Universidade de Coimbra, além de breves passagens
pelo estrangeiro. Faleceu em sua cidade natal, com 78 anos, em 22 de outubro de 1773.
Era oriundo de uma família distinta, o que se comprova pela leitura dos frontispícios das
suas obras, onde registra sempre a sua condição de “Moço Fidalgo da Casa de Sua
Majestade Fidelíssima”. A respeito de sua formação letrada, conforme afirma Antônio
Manuel Esteves Joaquim, frequentou os cursos de Filosofia e de Cânones na
Universidade de Coimbra em duas ocasiões diferentes, sem, no entanto, ter concluído
nenhum deles. Ao longo da vida, foi um leitor incansável e um estudioso diligente,
como destacam alguns dos poucos historiadores que analisam sua obra ou sua
biografia.192 Adquiriu uma cultura notável em quase todos os ramos do saber e, como
191
É uma ideia bem visível na carta de Verney, já analisada, sobre a perseguição aos jesuítas. Verney
defendia que bons princípios, úteis para a liberdade e para o progresso das ciências e letras em Portugal,
para a reforma completa das mentalidades e para a extirpação dos preconceitos nacionais, teriam lugar
apenas com uma boa educação do príncipe, segundo o ideário moderno, e também cercando-o de uma
elite ilustrada, com o afastamento dos aduladores – os jesuítas, com seu espírito de sedição,
obscurantismo e despotismo. VERNEY, Luís Antônio. Cartas Italianas. Op. Cit. p. 83-84.
192
Um exemplo notável, de onde foram retiradas para esta tese algumas das informações sobre Pina de
Melo, é o famoso Dicionário Bibliográfico Português, de Inocêncio Francisco da Silva, continuado por
Brito Aranha. SILVA, Innocencio Francisco da, [1810-1876]. Diccionario Bibliographico Portuguez
173
explica Antônio Ferreira de Brito, foi beneficiado por breve pontifício para ler e guardar
sub clavi – ou seja, direito a posse e acesso, e não comércio e divulgação de – livros
proibidos.193 Pina e Melo foi sócio da Academia dos Aplicados, da Academia dos
Ocultos e da Academia Real de História e teve constante interlocução, sobretudo por
meio de cartas, com diversos ilustrados portugueses. Um deles foi Verney, como aponta
Alberto Banha de Andrade.194 Desempenhou, em seus derradeiros anos, a função de
qualificador, como censor do Desembargo do Paço, além de ter também passado alguns
anos na cadeia, acusado de inconfidência.195
Chamado “Corvo do Mondego” por Filinto Elísio, seu rival na famosa “Guerra
dos Poetas”, foi autor de Teatro da Eloquência ou Arte de Retórica (1766) e, sobretudo
por esta última obra, tornou-se um importante nome das belas letras da Arcádia
Lusitana, teorizando sobre diversas regras consoantes à escrita e à estética literárias do
chamado “Neoclássico”.196 Publicou também, em Lisboa, no ano de 1752, a Balança
Intellectual em que se pesava o merecimento do Verdadeiro Método de Estudar, em que
fazia críticas e exaltava méritos da obra de Verney, de 1748. Com o texto, discutiu,
carta a carta, o conteúdo do Verdadeiro Método do Barbadinho, de forma detalhada e
demonstrando enorme erudição. Maria José Moutinho dos Santos chama atenção para
as críticas de Pina e Melo às ideias de Verney sobre a educação de mulheres,197
enquanto Antônio Ferrão pondera que suas críticas e elogios à obra do oratoriano são
bem embasadas e demonstram grande leitura de autores modernos e antigos.198
Essa elogiada erudição não livrou Francisco de Pina e Melo de uma contundente
censura, assinada pelo frei Manuel do Cenáculo, pelo frei Inácio de São Caetano e pelo
frei Luiz do Monte Carmelo, aos 6 de outubro de 1768, a respeito de sua obra Epítome
Analytico, critico, e chronologico da Jurisdicção e Disciplina da Igreja, e das acções
(Tomo 03: Letras Fr-Jo). Lisboa: Imprensa Nacional, 1859. 22 v. Disponível no site Brasiliana- USP <
https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/5423>. Acessado em out. 2017. p. 33-36.
193
BRITO, Antônio Ferreira De. Voltairofobia e Voltairofilia na cultura portuguesa dos séculos XVIII e
XIX. Op. Cit. p. 14.
194
ANDRADE, António Alberto Banha de. Op. Cit. p. 476-483, 629 e 681.
195
SILVA, Innocencio Francisco da, [1810-1876]. Diccionario Bibliographico Portuguez. Op. Cit. p.3334.
196
SANTOS, Ana Clara. Réception de la comédie française au Portugal (XVIII e-XIXe siècles). Anales de
Filologia Francesa, nº. 21, p. 365-383. 2013. p. 369; TEIXEIRA, Ivan. Rosa e depois: o curso da
agudeza na literatura contemporânea (esboço de roteiro). Um conceito operacional de agudeza. Revista
USP-São Paulo (36), p. 100-115. Dezembro/Fevereiro 1997-98. p. 102.
197
SANTOS, Maria José Moutinho. Perspectivas sobre a situação da mulher no século XVIII. Revista de
História. vol. 04, Instituto Nacional de Investigação Científica, Porto. Centro de História da Universidade
do Porto, p. 35-48, 1981. p. 38.
198
SILVA, Innocencio Francisco da, [1810-1876]. Diccionario Bibliographico Portuguez. Op. Cit. Loc.
Cit.
174
dos Papas, e Príncipes, que pertencem a esta matéria. No parecer de censura, introduzse o argumento contrário à obra dizendo que se trata de uma “qualificação geral” em
que “se pode dar a ideia que induz à reprovação deste livro”. Isso porque, continua, “é
um escrito erudito” e “mordaz”, sendo “um extrato de notícias cavadas em toda a
História da Igreja com o pretexto de fazer odiosos os vícios dos Eclesiásticos”. No
entanto, continua, o argumento do texto é “descrito com pena superficial, improcedente
e satírica”. Na narrativa de Pina e de Melo, segundo o parecer, sobra erudição, mas falta
o devido modo de se dirigir aos assuntos relacionados à Igreja e ao clero. Prossegue o
parecer, dizendo que “não basta que um autor diga verdades: é necessário que a
narração delas seja competente, própria, tempestiva, decente e irrepreensível”. E
conclui, apontando que, “faltando estas qualidades no Livro, que se teve a temeridade
de apresentar nesta Real Mesa” – no caso, a mesma obra de Francisco de Pina e de
Melo, objeto do referido parecer –, “passo a individuar os motivos, porque ele me
parece indigno de impressão”. Daí segue uma minuciosa análise de vários pontos
considerados problemáticos na obra do fidalgo de Moncorvo. O parecer indica, por
exemplo, a falta de decoro de Pina e de Melo ao falar dos vícios do clero, pois nele o
autor supõe “ser erro sistemático do Estado” eclesiástico aquilo que “é vício de
particulares”. O mesmo diz quanto à passagem em que o autor do Triumpho da Religião
fala sobre os motivos pelos quais o monarca expulsou o núncio da Corte de Lisboa, em
tom que “é intempestivo, e tem alguma coisa de temeridade”. Destaca-se ainda algumas
imprecisões a respeito de fatos, como quando o livro afirma que os regulares “têm
concebido apreensão de que os turcos não podem ser convertidos, e que por isso não
vão pegar aos sectários de Mafoma”, o que, segundo o parecer, não era verdade. Merece
destaque, por fim, a passagem da censura em que se diz que Pina e Melo “alega, e clama
ao Padre [Antônio] Vieira em tom de alegria, e isto para fazer valer duas frioleiras”, ou
seja, frivolidades ou tolices, elementos desnecessários ao texto. Tudo isso denotam que
o tom e a forma da escrita, imprecisa e com excessivas liberdades quanto a assuntos
sensíveis, além do estilo, nortearam a negativa da impressão.199
199
Documento gentilmente cedido pelo professor Luiz Carlos Villalta. Arquivo Nacional da Torre do
Tombo - Real Mesa Censória/ Real Mesa da Comissão Geral para a Censura de Livros/ Desembargo do
Paço - Censura, 1768, nº 115. Frei Manuel do Cenáculo e outros. Censuras - Pareceres - Caixa 4, 1786.
Daqui em diante, ANTT.
175
E fundamental destacar, de início, o porquê da nomenclatura de “épicopolêmico” com a qual o autor define o estilo de sua obra, já no título.200 Na segunda
parte do prolegômeno, o autor explica que “serve o título em todos os escritos de dar
uma clara, ainda que breve, notícia do argumento da obra”, o que de fato o faz. Como
explica o autor, o “poema épico-polêmico” vem da junção de dois estilos literários, que
delimitam os objetivos da obra: “épico”, que “vem do grego Epos que significa
narração, discurso, ou palavra, que os poetas têm aplicado a uma fábula ilustre” e
também “digna de ser imitada e anunciada por uma narração poética”; e o “Polêmico
procede do grego Polemos, que é o mesmo que guerra”. Mas, como seu poema não é
uma narrativa de sucesso bélico, o significado para ele de “polêmico” provém da
teologia. Segundo ele, “os Teólogos significaram com o termo polêmico, aquela
Teologia, que combate os erros da nossa Religião”, e “nessa disputa é que se funda a
Fábula deste Poema”.201
O propósito de se publicar uma polêmica teológica em forma de poema também
é explicado pela própria concepção dessa forma literária, de acordo com o autor. A
poesia, para Francisco de Pina e de Melo, tem a função de deleite, “mas também outro
objeto mais sublime, a instrução dos homens”.202 Para realizar este intento,
esteticamente, o poema deveria ser construído sob os princípios do gênio – ou seja, a
inventividade, sem a qual o poema tornar-se-ia “frio”, sem emoção –, juntamente com o
“juízo”, ou a moderação – sem a qual o texto ficaria inverossímil e hermético,
demasiado apelativo para a imaginação. Trata-se de um princípio estético que, nas
academias literárias luso-brasileiras e portuguesas durante todo o século XVIII, como
explica João Adolfo Hansen, marca a poética da Ilustração.203
Sendo o objetivo da obra o de demonstrar a verdade da religião católica perante
as demais, é fundamental se perguntar também sobre como nela se concebe o religioso.
Como explica Jonathan Israel, a narrativa do Triumpho da Religião se desenvolve de
maneira a incitar o leitor a considerar todos os sistemas filosóficos e religiosos como
racionalmente válidos para, por fim, escolher-se o melhor e mais racional.204 Na época,
em que iluministas como Verney e Francisco de Pina de Sá e de Mello escrevem sobre
200
MELO, Francisco de Pina de Sá e de. Triumpho da Religião. Poema Epico-Polemico que a’ Santidade
do Papa Benedito XIV dedica Francisco de Pina e de Melo, moço fidalgo da Casa de Sua Magestade, e
Academico da Academia Real de Historia Portugueza. Coimbra: Na Officina de Antonio Simoens
Ferreyra, Impressor da Universidade, Anno de 1756.
201
Ibidem, p. XXX-XXXI.
202
Ibidem, p. X.
203
HANSEN, João Adolfo. As Liras de Gonzaga: entre retórica e valor de troca. Op. Cit.
204
ISRAEL, Jonathan I. Iluminismo Radical. Op. Cit. p. 589.
176
“erros” de religião, no entanto, já existia uma longa tradição ibérica de escritos
polêmico-religiosos. Tais produções estão inseridas num quadro amplo e complexo de
polêmicas teológico-políticas e teológico-filosóficas, que remete a gêneros literários que
surgiram no final do século XV, na Península Ibérica, e permaneceram fortemente
difundidos na cultura letrada portuguesa até meados do século XVIII. No caso em
específico, trata-se de uma espécie de filão literário de publicações de sermões e
polêmicas contra judeus e cristãos novos, que tiveram como picos os mais destacados
momentos de conturbação política. Bruno Feitler estudou publicações antijudaicas feitas
entre os séculos XVI e XVII, após uma onda de textos de conotação apostólica e
evangélica a respeito das conversões dos judeus. Tal onda ganhou grande evidência
entre meados do XVI e se manteve bastante profícua até o início do XVII, quando
sucedeu outra, mais virulenta, de teor, segundo Feitler, abertamente racista, e que
defendia que soluções moderadas já não teriam lugar, em Portugal, quanto à questão
judaica. Houve dois grandes momentos de efervescência de produções dessas
polêmicas, que se deram nas duas primeiras décadas do século XVII, num quadro de
uma política considerada, por críticos, filossemítica, do rei Felipe IV e do Conde de
Olivares, seu ministro. Nessas produções, a crítica política e a polêmica antijudaica
andaram lado a lado, tensionadas ainda com a eminência de um novo perdão geral aos
judeus portugueses, negociado com a Santa Sé. Outro momento foi a eminência de
outro perdão geral, negociado por lideranças judaicas na Itália e pelo padre Antônio
Vieira, nas décadas de 1660 e 1670. Paralelamente a isso, continua Feitler, desenvolveuse uma outra corrente mais moderada, sobretudo a partir de 1651 e que foi constante até
os primeiros anos da segunda metade do século XVIII, em que as campanhas contra a
“heresia” dos judeus e judaizantes era acompanhada pela exaltação dos benefícios para
a res publica da conversão sincera destes e da esperança de que isso fosse possível
através de uma via evangélica e exegética. A invectiva literária contra os cristãos-novos,
de linha mais virulenta ou mais moderada, exaltando a expulsão violenta ou a conversão
pelo convencimento racional, continuou até a segunda metade do século XVIII, quando
o decreto de Pombal, abolindo a diferença entre cristãos novos e cristãos velhos, tornou
ilegais tais obras e tirou a atualidade das discussões teológicas sobre o judaísmo.205
Assim, o Triumpho da Religião revisita uma “vertente literária” comum na Idade
205
FEITLER, Bruno. O catolicismo como ideal: produção literária antijudaica no mundo português da
Idade Moderna. Novos Estudos - CEBRAP, n. 72, p. 137–158, jul. 2005.
177
Moderna portuguesa, mas com uma abordagem e estéticas mais afeitas à Ilustração
europeia e às tendências das academias literárias lusitanas.
Trata-se de uma perspectiva um tanto próxima da que Verney adota em sua carta
sobre a teologia no Verdadeiro Método,206 em que a um Catolicismo vincado no
dogmatismo escolástico é contraposto um ideal mais moderado, pensado sob
paradigmas experimentais e empiristas de matriz britânica, sobretudo tributários de
Locke. Parte-se, assim, do princípio de que a verdadeira fé, sob uma forma moderna de
pensá-la, deve convencer aquelas que se desviam dela por meio de uma argumentação
sólida, e apenas assim se convenceriam da pertinência, tanto moral, como ética e lógica,
de emendar seus erros. A proximidade das concepções de religião entre o Triumpho e o
Método, todavia, não se aplica à poesia, ponto este sobre o qual Francisco de Pina e de
Melo discorda do Barbadinho, “ou seja, quem for o autor do Novo Metodo de estudar”,
a respeito de não haver uma boa arte poética ibérica. 207 É importante reiterar que o
autor, como já mencionei supra, era beneficiado por breve pontifício para ler e guardar
sub clavi livros defesos e não se furta a apontar alguns de seus autores ao longo do
Triumpho. Com efeito, Melo cita várias vezes a Voltaire, um dos autores com obras
proibidas à época da publicação em Portugal, demonstrando grande admiração pelo
ilustrado francês, seja como artista, seja por suas críticas às concepções religiosas.208
Em suma, no poema épico-polêmico, apesar de o tema da tolerância aparecer direta e
indiretamente em matéria de religião, “verdade” e “erro” em matéria religiosa estão
absolutamente demarcados, sendo que o sistema religioso verdadeiro, o católico, deve
ser demonstrado como tal aos que dele se desviam ou o duvidam. Dito de outra maneira,
mesmo os erros, no Triumpho, têm algo de válido em termos racionais e precisam ser
desfeitos por meio de argumentos que convençam seus adeptos a aceitar a única
verdade, que é a católica, que deve se impor pela disputa de opiniões racionalmente
postas em debate, e não pelo uso da força.
Cabe aqui fazer uma breve digressão a respeito de como se concebia, na cultura
erudita das Luzes, a tolerância religiosa, no século XVIII, para melhor contextualizar os
argumentos da obra. Tal discussão foi feita, de maneira mais aprofundada, no subtítulo
final do Capítulo 1 desta tese. Aqui, importa somente fazer alguns apontamentos com a
finalidade de se contextualizar melhor alguns aspectos internos do Triumpho. Habermas
206
VERNEY, Luís António. Verdadeiro metodo de estudar.... Tomo 2. Op. Cit. p. 195-228.
MELO, Francisco de Pina e de. Triumpho da Religião. Op. Cit. p. XXXI.
208
São onze citações diretas, ao todo, além de várias de forma indireta.
207
178
observa haver, até a Revolução Francesa, uma concepção de tolerância que engloba dois
aspectos centrais: a transigência de autoridades com minorias político-religiosas
indesejáveis, e um princípio ético-teológico de reconhecimento recíproco de liberdade
de consciência e prática religiosa.209 Para Fernando Catroga, por sua vez, esses
princípios existiam desde o século XVI, sobretudo nos debates teológicos e políticos em
torno das irrupções religiosas europeias à época das Reformas, em que não há uma
necessária aceitação da diferença religiosa ou abdicação da dicotomia entre verdade e
erro, mas um paulatino reconhecimento de que haveria de se conceder às “seitas
errôneas” algum espaço, para a manutenção da paz civil. Nas Luzes, a novidade nas
discussões sobre a tolerância arvora-se mais acentuadamente nas variadas vertentes do
anticlericalismo – das críticas mais veementes às religiões instituídas até as mais
específicas, como as dirigidas ao clero regular – e também na secularização da ética, em
que surgem pressupostos para se pensar princípios de sociabilidade e paz civil cada vez
mais autônomos do religioso. Essas mudanças se dão a partir de três ângulos essenciais,
a saber, a hermenêutica bíblica, as concepções de natureza humana e as exigências
concretas de sociabilidade.210
A ideia de tolerância baseada na permissão do erro, além da dissimulação diante
dele – e não sua aceitação –, está presente em várias definições em alguns dicionários
do período. Na definição de “tolerado”, em Bluteau, por exemplo, vem uma
conceituação similar baseada em princípios teológicos, em que ele é tomado como
“excomungado e tolerado”, sendo “aquele que ainda que esteja realmente
excomungado, é tolerado da Igreja, a qual se permite, que Fieis possam comunicar & e
tratar com ele”, atribuindo a definição aos “termos que se usa a Igreja conforme Bula de
Martinho V”.211 Ou seja, dentro de um vocabulário católico, no século XVIII, faz-se
presente a ideia de admitir-se um tratamento mínimo, pessoal e coletivo, com aqueles
indivíduos ou grupos que viviam em erro ou dissidência em matéria religiosa. Dito isso,
fica possível introduzir-se, com uma clareza maior, a narrativa e os argumentos do
Triumpho, localizando-o dentro de um contexto de ideias em que múltiplos debates
filosóficos, teológicos e políticos se cruzam a respeito do tratamento com a diferença
religiosa. Nesta tese, analiso o poema épico-polêmico como uma possível inserção,
209
HABERMAS, Jürgen. A tolerância religiosa como precursora de direitos culturais. Op. Cit. p. 280281.
210
CATROGA, Fernando. Entre deuses e césares. p. 65-91
211
BLUTEAU, Rafael. [1638-1734]. Vocabulario Portuguez & Latino... [1712]. Tomo IX. Op. Cit.
p.189.
179
dentro de uma dinâmica iluminista católica, de meados do Setecentos, nesse campo de
embates.
O poema épico-polêmico desenvolve a história do personagem “Peregrino”, que,
ao longo de nove livros, enfrentará, em disputas de argumentos, diversos pensadores,
como teólogos, filósofos e outros, que estão na base de todos os “desvios” da verdadeira
religião. O triunfo, ao fim, é o de demonstrar, com erudição e argumentação sólidas,
com base na discussão de filósofos modernos e antigos, na crítica das Escrituras e na
história profana e sagrada, a verdade do Catolicismo romano perante todas as outras
“seitas” e, inversamente, a invalidade tanto de outras confissões, como também a de
proposições de matriz teológico-filosófica que admitem algum tipo de verdade universal
a todos os sistemas religiosos. Embora haja livros em que os duelos são contra religiões
instituídas, como o hebraísmo (Livro VII), o maometismo (Livro VI), o luteranismo e o
calvinismo (Livro VIII), seu ataque mais ferrenho é contra as tendências religiosofilosóficas identificadas com o pensamento iluminista, que eram o ateísmo (Livro I), o
deísmo (Livros III) e a libertinagem (Livros IV e V). Quanto a estes últimos, de fato, há
na argumentação do Peregrino, uma discussão, conceituação e refutação racional mais
enfática da tolerância religiosa.
No livro I, contra os ateus – que Pina e de Melo define como “o mesmo que
Seita que nega a existência de Deus (...) Porém os que seguem este delírio são uns
monstros, ou abortos da natureza” –,212 as imagens de obscuridade são ressaltadas desde
o cenário, a saber, um bosque obscuro, onde os ateus vivem privados da luz e cegos,
como brutos. Entende-se, nesse ponto, haver o uso de uma alegoria quanto a um mundo
secreto onde os ateus viviam e paulatinamente perdiam sua humanidade.213 Nesse
ponto, aparecem no poema aqueles que seriam os “autores do ateísmo”: Epicuro,
Espinosa, Lucrécio, Maquiavel e Vanini e alguns outros são mencionados. Nas notas em
que são explicados os porquês das menções aos autores, há uma versão dada para o
surgimento do ateísmo em cada um deles. No caso de Bento de Espinosa, por exemplo,
Pina e de Melo diz que ele “foi hebreu, professor da lei de Moises”, e “por cuja causa
fugiu de Portugal para Amsterdã”. Lá, “conhecendo a Sinagoga, e vendo o pouco
fundamento com que os Rabinos explicavam o texto, desprezou com esta lei todas as
mais religiões, e se reduziu à loucura do Ateísmo”.214 Em um sentido geral, de acordo
212
MELO, Francisco de Pina e de. Triumpho da Religião. Op. Cit. p. 1.
Ibidem, p. 12.
214
Ibidem, p. 14.
213
180
com a narrativa, o indivíduo é atraído para um obscuro mundo do ateísmo por má
instrução na verdade religiosa e pela sedução oferecida por sistemas errôneos, o que o
poeta estiliza com a alegoria de Circe, a feiticeira que seduziu Ulisses na Odisseia, que
ele junta aos ditos autores do ateísmo.215
O Peregrino desenvolve um longo diálogo, a partir daí, com Epicuro e com uma
breve participação de Espinosa, embora a maior parte das falas fique sempre – não
apenas neste, mas em todos os livros –, com o protagonista. O desmonte lógico do
ateísmo parte tanto de uma concepção de natureza conciliada com a divindade, como
também através da demonstração da quase universalidade das religiões como prova.
Além disso, a descrença nos prêmios e castigos do pós-vida é colocada como
impeditivo moral de sociabilidade dos ateus –por isso, as várias menções à sua
“desumanidade”.216
É possível inferir que o argumento contra a tolerância, evocado no diálogo
contra o ateísmo, remete a pontos sobre o tema presentes nas obras de Locke e Bayle,
no final do século XVII. Para Locke, os limites da tolerância religiosa a serem
respeitados por um magistrado, dentro de uma sociedade politicamente organizada, a
fim de se manter o bom governo, seriam os ateus e os “papistas”, ou seja, católicos.
Estes últimos, para Locke, deviam obediência a um príncipe estrangeiro, e não às
autoridades nacionais. Já os primeiros, por não se organizarem como religião, mas em
“conventículos e sedições”, não poderiam reivindicar o privilégio da tolerância, por não
configurarem uma religião, além de a própria descrença em Deus impossibilitar-lhes um
verdadeiro juramento ao contrato socialmente aceito, tornando-os, naturalmente,
antissociais.217
Por outro lado, o ateu, na concepção de Pierre Bayle, não possui qualquer
incompatibilidade com uma vida social virtuosa, uma vez que, para o filósofo, partindo
de uma análise hermenêutica da Bíblia, princípios morais fundamentais para a vida
comum independem da religião.218 A descrença na imortalidade da alma, atribuída aos
ateus, não os impediria necessariamente de constituir sociedades virtuosas, guiadas por
leis justas, repudiando o crime ou costumes contrários a uma vida em comum. 219 Da
215
Loc. Cit.
Ibidem, p. 26-36.
217
LOCKE, John. A letter concerning tolerance [1689]. Huddersfield: Printed for the editor, by J. Brook,
1776. p.53-56
218
BAYLE, Pierre. Pensées sur l’athéisme. Paris: Edition présentée, établie et annotée par Julie Bloch.
Édition Desjonquères, 2004. p. 92-94 e 97-100.
219
Ibidem, p. 96.
216
181
mesma forma, sociedades que conhecem os Evangelhos não são necessariamente
virtuosas e sequer possuem uma moral universalmente cristã, propriamente dita. Pelo
contrário, algumas conseguem ser injustas, por agir conforme o dogma, e transformar a
religião em um mero instrumento de praticar atos imorais, conservando e perpetuando o
fanatismo, a idolatria e a superstição ao invés da verdadeira religião.220 Para Fernando
Catroga, a concepção de tolerância de Bayle, visível no seu tratamento aos ateus, remete
a uma secularização do princípio calvinista do livre arbítrio. Nas ideias do pensador
francês, a sinceridade da convicção e sua construção em cima da razão são superiores à
sua veracidade ou erro. Dentro dessa concepção, a consciência constituía o único
critério pelo qual se poderia julgar verdade ou erro. A universalidade da luz natural,
vinda da divindade, teria de passar pelo particularismo da luz interior e, assim, sem
admitir que verdade e erro não existem, equiparando-os, Bayle defende a tolerância ao
“erro sincero”. A verdadeira religião, dessa maneira, somente existia na persuasão
interior da alma perante Deus, e não em se seguir o dogma, que, para ele, afastava o
indivíduo da verdade. Com isso, na concepção de Bayle, a matéria religiosa é algo não
atribuível à coerção externa.221
Ainda que não haja menções a Locke e a Bayle no Triumpho da religião, é
possível inferir que, na sua argumentação contra os ateus, há uma defesa de posição e de
concepção sobre a tolerância que, de alguma forma, dialoga com pontos apresentados
por eles. A relação entre a descrença e a incapacidade de se viver em sociedade,
representando ateus como criaturas sombrias que fogem da luz, assim como a mesma
relação entre descrença e imoralidade, nesse sentido, são indicativos. É já conhecida a
circulação do iluminista inglês na cultura letrada portuguesa no século XVIII222, além
das incontáveis menções à obra do exilado francês nos escritos de diversos pensadores
das Luzes223, o que torna bastante plausível acreditar-se no conhecimento de Francisco
de Pina e de Melo a respeito do debate a respeito da pertinência de aplicar a tolerância
ao ateísmo. O lente José Anastácio da Cunha, no final do século XVIII, além de
220
Ibidem, p. 100-103.
CATROGA, Fernando. Entre deuses e césares. Op. Cit. p.84-87.
222
TEIXEIRA, Ivan. Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica. Op. Cit. p. 165-208.
223
Por exemplo, Montesquieu dedica dois capítulos a respeito de Bayle e às suas ideias sobre a religião e
as leis necessárias para o bom governo, no livro XXVI do Espírito das Leis: Das leis na sua relação com
a religião estabelecida em cada país, considerada nas suas práticas e em si mesma. Outro exemplo são
as leituras que Rousseau fez de Bayle a respeito do ateísmo, indicadas em algumas de suas obras.
ALMEIDA, Maria Cecília Pedreira de. Vozes da virtude: moralidade, religião e sociedade em Bayle e
Rousseau. Cadernos de Ética e Filosofia Política. Número 21. p. 219-232. 2012. MONTESQUIEU,
Charles-Louis de Secondat [1748]. Do Espírito das leis. Op. Cit. p. 458 e p. 461.
221
182
inquisidores e censores portugueses desde meados do mesmo século liam Bayle,
discorreu sobre ele, como se vê em seu processo inquisitorial. Retomo esses pontos no
Capítulo 4. Aqui, importa reforçar a plausibilidade de pensar em Francisco de Pina e de
Melo como possível leitor de Bayle, e, efetivamente, como alguém que debate tópicas
que remetem à sua obra.
Nos escritos de Bayle e no Triumpho da religião, as concepções de verdade e
erro são claras e marcadas. Porém, no épico-polêmico lusitano, não há qualquer defesa
da liberdade de consciência. Pelo contrário, o erro alcançado por meio dela precisaria
ser combatido pelo conhecimento da verdade, demonstrada com o uso de argumentos.
Isso fica muito mais evidente nos livros contra o deísmo e contra os libertinos. O
deísmo é definido pelo autor como originário do “Luteranismo, de Alemanha”,
consistindo na crença de “que Deus não deve ser invocado senão com o entendimento, e
tendo por indignas da Divindade as cerimônias exteriores”. Seu maior divulgador, em
sua época, seria “o Abade [Antoine] Furetière no seu Dicionário [O Dictionaire
Universel..., 1727]”, que “diz que os Franceses usam da palavra Deísmo para
significarem um homem sem alguma religião”.224 O cenário do encontro entre o
Peregrino e os deístas, estes últimos em assembleia, é descrito como uma cidade, sem
templos ou sacerdotes, onde a liberdade é constantemente exaltada e onde se encontram
pessoas de várias nações, sobretudo Inglaterra e França.225
Nessa parte da polêmica teológica, o Peregrino encontra-se com seu interlocutor
Jorge Pauli, ministro e predicante de Cracóvia, apresentado como um dos autores do
deísmo.226 Durante o debate, enquanto o Peregrino tenta convencer Pauli de que o
224
MELO, Francisco de Pina e de. Triumpho da Religião. Op. Cit. p.88.
Ibidem, p. 90-92.
226
A referência provável é a de Gregorius Pauli, que foi ministro da congregação de Cracóvia até 1562,
cargo que teve de abandonar diante das opiniões consideradas heréticas pronunciadas por ele no sínodo de
Pinezow, em 1556, e repetidas na mesma cidade em 1562, em duas datas, em agosto e novembro. Polonês
de ascendência italiana, ficou conhecido como notável defensor de ideias antitrinitárias, questionando
também a natureza divina de Cristo, dizendo que ele não existia antes do nascimento. Defendeu ideias
radicais, como a de que um cristão jamais deveria ocupar cargos públicos ou pegar em armas, afirmando,
entre outros pontos, que Jesus Cristo teria abolido, com seu sacrifício, o poder temporal. Criticava
também as doutrinas do purgatório, o culto aos santos, o batismo de crianças, a ideia de que o espírito não
forma uma substância independente e, portanto, separada do corpo, entre outras. Tornou-se um dos mais
notórios líderes da reforma na Europa central, sobretudo na Polônia. Possivelmente, pelo radicalismo de
suas posições religiosas, por sua iconoclastia se assemelhar em alguns pontos com algumas defesas do
deísmo no século XVIII, sobretudo em relação aos ritos instituídos e aos santos, o reformador polonês
possa ter sido escolhido por Francisco de Pina e de Melo como interlocutor do peregrino. M’CLINTOCK,
John, rev.; STRONG, James. Ciclopaedia of biblical, theological, and ecclesiastical literature. New
York: Harper & Brothers, publishers. 1894. Vol. 7. (Digitalized by Google - Library of Congress - at
Washington). p. 834-835.
225
183
deísmo era um sistema errôneo e o Catolicismo, verdadeiro, Pauli afirma que não o
tentará convencer de maneira contrária:
Esse mesmo vos peço (Pauli acode)
Para que fique a mente desncansada
Nessa lei, que supondes revelada.227
A resposta do Peregrino é um forte argumento, que marca outras passagens da
obra, contra a tolerância religiosa.
Não só muitos vestígios quero dar-vos
(O Peregrino diz) para arrancarvos
Essa triste opressão da inteligência,
Mas também vos darei toda a evidência
De que há lei; e que há culto, regra, e modo,
Revelado por Deus ao Mundo todo
(...)
Que livro, e história há, que se promete
Vencer as ondas do profundo Lete?
Ali estão em descuidos soporosos
Tantas ações, e fatos portentosos,
Que aspiram à eterna melodia:
Ali perde a lembrança a fantasia
Da firme duração: só esta história
Ficou sempre o estrondo da memória:
Se acaso o não julgais por um desígnio
Da excelsa prevenção, contra o domínio
Do estrago temporal, então presumo
Que a vossa ideia condensada em fumo,
Se revolve na torpe claridade,
Traçando o frenético aforismo
Do delirante horror do Ceticismo [grifos nossos].228
Apesar do deísta dizer que não vai persuadi-lo para entrar no seu sistema, pois
vivia em conforto “na lei que supunha revelada”, o Peregrino diz que vai apresentar-lhe
as evidências de que há uma revelação divina e, nela, ritos e regras para se seguir a
religião. Essas evidências estão na história dos textos sagrados, na história eclesiástica e
no fato deles não terem sido esquecidos desde a Antiguidade, na universalidade dos
cultos exteriores à divindade.229 Além disso, essas evidências estariam na própria
propensão natural que todos os povos teriam de seguir algum culto.230 Diante desses
sinais que, para ele, indicam a verdade da lei católica e de sua revelação para a
humanidade, Isso estaria em contraposição ao erro do sistema deísta, de tolerar, com
base no argumento de que a crença e o verdadeiro culto se dariam genuinamente a partir
227
MELO, Francisco de Pina e de. Triumpho da Religião. Op. Cit. p. 105.
Ibidem, p. 106.
229
Ibidem, p. 110.
230
Ibidem, p. 103.
228
184
da consciência do indivíduo e do conforto em que ele vive, segundo seu sistema
errôneo, Tal erro, além disso, torna-se um problema, por mantê-lo preso à obscuridade.
Cabia, portanto, uma ação externa para dissuadi-lo, muito ao contrário da solução
proposta por Bayle, segundo o qual caberia somente a Deus o julgamento do indivíduo
ou sociedade quanto ao erro.231 Portanto, juntamente com uma defesa da
demonstrabilidade da verdade católica, numa visível apropriação pela religião de
sistemas modernos baseados no empirismo, há também uma contundente crítica à ideia
da liberdade de consciência, princípio que ganhou evidência na defesa da tolerância
religiosa no século das Luzes, embora suas raízes remontem ao Renascimento.
Nos livros IV e V, sobre os libertinos, o argumento é retomado. No quarto, o
épico-polêmico se dirige aos libertinos religionários, que são “aqueles que admitem que
todo o gênero de religião (...) [em] que se reconheça a Deus, há salvação”,232 enquanto o
V se dirige aos libertinos cirenaicos, que, segundo ele, duvidam da imortalidade da
alma.233 Novamente, o Peregrino argumenta com ambos no sentido de demonstrar a
verdade da revelação divina e o erro na tolerância a todas as formas de religião
diferentes da verdade católica. Além disso, o Peregrino reitera a necessidade de
instrução de quem incorreu em alguma das “seitas”. A revelação demonstra haver
verdade e erro, tanto em relação ao culto quanto às normas éticas e morais de se viver
em sociedade. Tais normas precisavam ser demonstradas para se vencer, de maneira
argumentativa, os erros,234 o que tornava impróprio, por conseguinte, admiti-los como
minimamente corretos, seja em matéria soteriológica ou em termos de sociabilidade.
Assim como no caso dos ateus, a leitura da continuidade entre moral e religião
ganha um peso importante. Isso ocorre, por exemplo, contra os libertinos religionários,
quando o Peregrino compara a proposição de se haver salvação em todas as leis com um
cenário hipotético onde um rei permite que, em cada região de seus domínios, as suas
ordens e leis do reino sejam seguidas cada qual de seu jeito, considerando, ao final,
todos certos e dignos de méritos.235 Isso, para ele, seria o mesmo que dizer que alguém
pode se salvar mesmo agindo de forma imoral. Situação igual se verifica quando o
personagem reafirma, contra os libertinos cirenaicos, ser incompatível, com a virtude e
231
CATROGA, Fernando. Entre deuses e césares. Op. Cit. p. 85.
MELO, Francisco de Pina e de. Triumpho da Religião. Op. Cit. p. 118.
233
Ibidem, p. 148.
234
Ibidem, p. 134.
235
Ibidem, p. 143-147.
232
185
a bondade, a descrença nos prêmios e castigos além-vida.236 É importante também frisar
que, ainda que essas críticas possam estar em diálogo com um debate erudito,
possivelmente elas também evidenciem uma apropriação pelo poeta da tradição
religiosa ibérica, de matriz popular e enraizada na memória, sobre a convivência entre
judeus, maometanos e cristãos, no período anterior às guerras de Reconquista. Tais
elementos tiveram sobrevivências no campo religioso ibérico, verificáveis durante toda
a Idade Moderna.237
Em suma, entendendo o Triumpho da religião no conjunto de documentos até
aqui analisados, pode-se dizer que seus argumentos sintetizam bem o lugar da tolerância
no campo religioso de uma cultura letrada no contexto pombalino. Em pleno diálogo
com concepções presentes em obras de pensadores renomados, como Verney e Ribeiro
Sanches, faz-se uma forte defesa de um Catolicismo pensado e racionalizado segundo
uma epistemologia moderna. Por sua vez, há um claro posicionamento, em consonância
com essa nova leitura da fé católica, quanto à tolerância religiosa, debate em grande
evidência em meados do século XVIII, sob a pena de muitos pensadores. Na cultura
letrada das Luzes no mundo luso-brasileiro no período pombalino, dessa maneira, a
tolerância religiosa é um ponto rejeitado, tal como as formas consideradas fanáticas e
supersticiosas de religião, por ser também considerada como parte de um corpo de
doutrinas irreligiosas que se desejava combater. Assim, no clima de opinião das Luzes
no referido período, dentro da cultura letrada, é possível perceber um olhar ora dirigido
à república das letras europeia, ora às percepções concretas desses letrados quanto ao
universo cultural ibérico. De toda forma, a tolerância era um assunto que tinha lugar nos
debates travados entre esses letrados, mesmo que sua defesa fosse vetada dentro de suas
redes de sociabilidade e meios de circulação de ideias, uma vez que ela era tida como
incompatível com o modelo de modernização que se impunha durante a governação
pombalina. Assim, é esperado que as defesas mais veementes da tolerância religiosa
sejam dadas externamente a esse ethos de pensadores alinhados ao Pombalismo, ou
seja, nos lugares onde as correntes mais radicais da Ilustração puderam se desenvolver
no mundo luso-brasileiro: entre os chamados libertinos e os livres-pensadores, nas lojas
maçônicas e em outros espaços. Também deve-se pensar nos desenvolvimentos a este
respeito entre pessoas simples e iletradas, que circularam em diversos espaços no
236
Ibidem, p. 171-172.
SCHWARTZ, Stuart. Cada um na sua lei. Op. Cit.; KAMEN, Henry. O amanhecer da tolerância. Op.
Cit.
237
186
mundo luso-brasileiro e que apresentaram, nas suas proposições, uma reflexão sobre
aspectos de seu universo mental religioso, o qual desempenhou importante papel na
formação
de
uma
defesa
da
tolerância
religiosa.
187
Capítulo 3 – Para além do dirigismo
“Todas as religiões que empregam o ferro e
fogo para obrigar os homens a abraçar seus
dogmas são, certamente, falsas.”
(Francisco Xavier de Oliveira, Le Chevalier
D’Oliveira brulé em effigie comme
hérétique, 1762, p. 18).
As defesas mais veementes da tolerância religiosa estiveram nas proposições
tidas como heréticas, documentadas pelos tribunais do Santo Ofício da Inquisição de
Portugal. Para encontrá-las, no caso, foi fundamental recorrer a uma documentação que
se refere a indivíduos que estiveram à margem das elites letradas e das redes clientelares
das quais elas fizeram parte, como discutido no capítulo anterior desta tese. É preciso
ressaltar, todavia, que, no mundo luso-brasileiro, esses indivíduos nem sempre
estiveram totalmente à parte dos debates ou de seus círculos de sociabilidade típicos do
Iluminismo católico. Acrescente-se a isso, tomando aqui algumas tópicas comuns à
documentação inquisitorial do período (referente a proposições heréticas e blasfêmias),
que a distância entre o que era “popular” e “erudito”, em matéria de ideias e
religiosidade, merecem, por si mesma, problematizações mais específicas. Embora haja
alguma documentação impressa e publicações em que há tais informações, a maior parte
delas está na documentação inquisitorial. Cabe, aqui, tratar como problema a questão
sobre em que medida as diversas proposições e outros comportamentos heterodoxos se
relacionam com leituras distintas, ou mesmo críticas, por vezes, radicais, do processo
secularizador das Luzes nos espaços luso-brasileiros. Essas falas, registradas pelos
escrivães inquisitoriais, foram produto de um cruzamento complexo de tópicas que
remetem a uma religiosidade popular, mas também aos debates letrados, iluministas ou
não, mas que não se dissociaram de leituras da própria realidade e das mudanças vividas
no referido contexto de meados do século XVIII. A Inquisição, a Igreja e a sua relação
com Roma e com a Coroa portuguesa, os ideais de religião e de convivência com
minorias religiosas, e até mesmo a figura do Marquês de Pombal, apareciam como
pontos importantes nas referidas falas heterodoxas.
Um pressuposto defendido aqui, produto da leitura e análise da documentação, é
o de que muitos indivíduos considerados heterodoxos foram tachados dessa maneira por
188
enunciarem opiniões críticas sobre uma realidade permeada pelo Catolicismo e pela
constante vigilância da ortodoxia. Além disso, foram ainda ativos praticantes,
defensores e propagandistas de ideias que remetiam a formas mais tolerantes de trato
com a diferença em matéria de fé. Daí é possível ter, aqui, como hipótese deste capítulo,
que nessa defesa mais veemente de uma maior tolerância religiosa, cruzaram-se
elementos da cultura letrada, num âmbito mais geral, e tópicos propriamente iluministas
católicos, em aspectos mais específicos do contexto luso-brasileiro do Setecentos.
Cruzuram-se, ainda, diversas outras tópicas que escapam da cultura letrada. Esses
elementos, em seu conjunto, indicam haver muito mais filtros ligados às tradições
religiosas e à cultura popular, muito anteriores à Ilustração, e que eles balizaram
algumas das apropriações, formulações e leituras da realidade observadas nas falas dos
réus dos tribunais do Santo Ofício português. A defesa da tolerância esteve no meio das
disputas em torno do campo religioso. Ela se somou às críticas aos cleros regular e
secular, à Igreja e ao lugar da religião na vida coletiva. Nota-se, também, a demanda por
se aproximar as realidades da vivência da religiosidade no âmbito privado e no das
sociabilidades. Isso representou o cerne de resistências, na maioria das vezes difusas,
não organizadas e pouco conscientes, à hegemonia católica (tal como existia). Porém,
tal posicionamento, visto nas falas documentadas pela documentação inquisitorial,
também englobava críticas e ações mais conscientes. Tudo isso criou uma narrativa
crítica ao status quo católico, sobretudo à Inquisição, mas, também, aos usos feitos da
religião pela Coroa.1
3.1 Proposições e heresias na historiografia e no pensamento políticoreligioso moderno
Antes de desenvolver a hipótese e objetivos apresentados no preâmbulo deste
capítulo, é necessário fazer uma pergunta importante: o que os inquisidores queriam
dizer quando acusavam alguém de proferir alguma "proposição"? Ou, mais
especificamente, uma “proposição herética”? É importante aqui problematizar o termo,
uma vez que a seleção de fontes inquisitoriais para esta tese obedeceu ao critério de
investigar, justamente nas proposições definidas como heréticas, informações que
remetam às defesas da tolerância religiosa. A partir delas, foi possível também analisar
1
Conforme a discussão a respeito da categoria campo religioso, já feita no Capítulo 2 desta tese. C.f.
STEFANO, Roberto Di. Disidencia religiosa y secularización en el siglo XIX ibero-americano. Op. Cit;
BOURDIEU, Pierre. Gênese e estrutura do campo religioso. Op. Cit.
189
outros tipos de delitos, que em maior ou menor medida se relacionavam diretamente
com heterodoxias exprimidas através das ditas proposições. Voltando ao termo, o
letrado Raphael Bluteau, no seu Vocabulário, definia “proposição” como “uma oração,
que consta sujeito, atributo, & copula verbal, & chama-se Proposição, porque se
propõem no silogismo para dela se tirar a conclusão”. O mesmo verbete continua
definindo como “proposição”, em termos, “Geométricos”, em que “é a alegação de uma
verdade, provada com demonstração. Estas proposições se dividem em Teoremas, &
Problemas. Todas as Proposições de Euclides são claras, & certas”. Por fim, sintetiza o
mesmo termo como aquilo “com que afirmamos, ou negamos alguma coisa verdadeira,
ou falsa”.2 As definições de Bluteau são parecidas com as que aparecem no Diccionario
de Autoridades, de 1737, em que se diz que “proposição” é “entre los Dialécticos (...)
una oración breve, en que se assienta alguna cosa verdadera o falsa”. Neste último
dicionário, assim como em Bluteau, “proposição” também é um termo adequado para se
apresentar problemas filosóficos, matemáticos, teológicos e científicos a serem
provados.3 Assim, no século XVIII, as proposições são entendidas como enunciados,
verdadeiros ou falsos, que, conforme o contexto, são postos para ser provados e
demonstrados. Décadas depois do Vocabulário português e do dicionário castelhano,
proposição, no sentido de algum problema ou verdade enunciado como verdadeiro ou
falso, aparece com bastante semelhança no dicionário de Antônio de Morais e Silva, que
a define como:
PROPOSIÇÃO, s.f. Logico, a palavra, ou palavras, em que se afirma
algum atributo, ou propriedade de algum sujeito, ou se nega: v.g.
escrevo; eu escrevo, eu estou escrevendo: vivo: estou vivo; sou
vivente? Deus é santo, justo, misericordioso: ou com que se exprime
desejo.4
Assim sendo, uma proposição dita como “herética” deveria, em princípio,
enunciar algum erro contra a fé católica romana. Basicamente, afirmar algum ponto,
com a estrutura lógica similar à que aparece nos dicionários, contendo algo que vá de
2
BLUTEAU, Rafael. Vocabulario Portuguez & Latino... Op. Cit. p. 784
REAL ACADEMIA ESPAÑOLA. Diccionario de la lengua castellana, en que se explica el verdadero
sentido de las voces, su naturalezza y calidad, ... Dedicado al Rey nuestro senor Don Phelipe 5. ...
/compuesto por la Real Academia Espanola: Tomo quinto. Que contiene las letras O.P.Q.R, Volume 5. En
la Imprenta de la Real Academia Espanola: por los Herederos de Francisco del Hierro. 1737. Original da
Biblioteca Nacional de Nápoles. Digitalizado por Google Books, novembro 2013. p. 406
4
SILVA, Antônio de Morais. Diccionario da lingua portugueza - recompilado dos vocabularios
impressos ate agora, e nesta segunda edição novamente emendado e muito acrescentado, por ANTONIO
DE MORAES SILVA. Lisboa: Tipographia Lacerdina, 1813. Disponível em Brasiliana:
http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/2/Proposi%C3%A7%C3%A3o. Acessado em set./2017. p.
516.
3
190
encontro à doutrina católica ou algum dogma. Há, nas definições de “heresia” e termos
análogos no direito canônico, esse tipo de construção. Conforme aparece no Cânone
751, do Livro III, do Código de Direito Canônico, a heresia pode ser definida como “a
negação pertinaz”, depois de recebido o batismo, “de alguma verdade que se deve crer
com fé divina e católica, ou ainda a dúvida pertinaz acerca da mesma”. Pode também
englobar a “apostasia”, que seria “o repúdio total da fé cristã” e o “cisma”, que é “a
recusa da sujeição ao Sumo Pontífice ou da comunhão com os membros da Igreja que
lhe estão sujeitos”.5 E sobre aquilo em que um católico tem o dever de acreditar para
não incorrer em heresia, o Cânone anterior a este último é bastante claro, ao afirmar:
Cân. 750: No que um fiel católico deve acreditar
— § 1. Deve-se crer com fé divina e católica em tudo o que se contém
na palavra de Deus escrita ou transmitida por Tradição, ou seja, no
único depósito da fé confiado à Igreja, quando ao mesmo tempo é
proposto como divinamente revelado quer pelo magistério solene da
Igreja, quer pelo seu magistério ordinário e universal; isto é, o que se
manifesta na adesão comum dos fiéis sob a condução do sagrado
magistério; por conseguinte, todos têm a obrigação de evitar quaisquer
doutrinas contrárias.
§ 2. Deve-se ainda firmemente aceitar e acreditar também em tudo o
que é proposto de maneira definitiva pelo magistério da Igreja em
matéria de fé e costumes, isto é, tudo o que se requer para conservar
santamente e expor fielmente o depósito da fé; opõe-se, portanto, à
doutrina da Igreja Católica quem rejeitar tais proposições consideradas
definitivas.6
Trata-se de definições segundo um direito canônico recente, distantes do
contexto analisado nesta tese, mas que, por sua vez, guardam algumas similaridades
com os significados correntes na Idade Moderna. Assim, servem de ponto de partida
para se pensar “heresia”, “proposição herética” e alguns termos análogos, de forma que
seja possível fazer uma reflexão sobre esses termos como categorias e tipologias de
delito, no vocabulário inquisitorial.
A definição de heresia como conceito se vale, em muito, da formulação de são
Tomás de Aquino, na questão 11, da Suma Teológica. Nela, heresia se define, ao
mesmo tempo, como um vício no qual o homem incorre em decorrência da fraqueza
própria de sua condição, mas que, em última análise, é um desvio da verdade em
5
CÓDIGO DE DIREITO CANÓNICO. PROMULGADO POR S.S.O PAPA JOÃO PAULO II [1983].
Lisboa: Conferência Episcopal Portuguesa; Braga: Editorial Apostolado de Oração. Versão portuguesa:
António Leite, S. J.; revista por SILVA, Serafim Ferreira e, d.; RODRIGUES, Samuel S.; LOPES, V.
Melícias, O.F.M.; MANUEL, Luís Marques, O.F.M. 1983. 4ª ed. revista. p. 138.
6
Ibidem, Loc. Cit.
191
direção à mentira em matéria de fé, motivado por sua escolha. Dessa maneira, segundo
Aquino, existem duas maneiras nas quais o homem pode se desviar da retidão na fé
cristã. A primeira ocorre pelo fato dele não estar disposto a concordar propriamente com
a lei de Cristo. Ele teria, assim, uma vontade maléfica, por assim dizer, em relação às
matérias de fé. Isto pertence a uma espécie de infidelidade que é própria aos pagãos e
judeus. Já a segunda se dá quando este mesmo homem, apesar das intenções de seguir a
lei de Cristo, deixa-se levar pelas escolhas feitas em desobediência àquilo que Cristo
ensinou pela Revelação divina e, inversamente, em sugestões de outros ou por seu
próprio pensamento. Assim, heresia tem seu fundamento na distorção produzida por
aqueles que professam a fé de Cristo, mas corrompem seus dogmas e verdades por suas
vaidades e perversões.7 Delas se derivam as seitas, que colocam o bem comum da
cristandade em risco, o que, portanto, torna legítimo que os hereges sejam
excomungados e entregues à morte pelo braço secular.8
Essa leitura a respeito do significado de heresia indica haver, na história do
Cristianismo, um movimento que confirma o argumento de José d’Assunção de Barros,
segundo o qual, se ao longo da Antiguidade tardia o significado de heresia predominou
como sendo um conjunto de disputas em torno de sutis questões teológicas, num
momento em que a própria ortodoxia católica estava em processo de se estabelecer,
entre a Idade Média Central e limiar da Idade Moderna, acrescentam-se a essa
percepção do termo os questionamentos à própria autoridade da Igreja. Tais
questionamentos foram comumente identificados à formação de ordens do clero regular
ou no ministério dos sacramentos fora do controle do papado. Num segundo momento,
o próprio tratamento aos pagãos e infiéis à lei de Cristo, como os judeus, sobretudo com
o surgimento das inquisições, também passarão por substantiva mudança de tratamento
por parte das autoridades, em paralelo com as mudanças na definição dos erros de fé.9
De fundo, estava a questão da pretensa universalidade do Catolicismo e o
condicionamento do bem comum e da ordem temporal à unidade espiritual, para a qual
o herege era visto cada vez mais com um empecilho. Um estudo sobre o conceito de
“tolerância” na Idade Média, feito por Istvan Bejczy, aponta para uma conclusão nesse
7
AQUINAS, Thomas, saint. THE SUMMA THEOLOGICA of Saint Thomas Aquinas. Translated by
Fathers of the English Dominican Province. Rev. SULLIVAN, Daniel J. Chicago; London; Toronto:
Encyclopeaedia Britannica/ William Benton-Publisher, 1952. Vol. II. p. 438.
8
Ibidem, p. 439 e 440-441.
9
BARROS, José D’Assunção. Heresias: considerações sobre a história de um conceito e sobre as
discussões historiográficas em torno das heresias medievais. Fronteiras, v. 12, n. 21, p. 33–49, 2010.
p.33-49.
192
sentido. Segundo o autor, tolerantia, por volta do século XII, foi entendida como
propensão a se ter paciência, transigência e permissão a algum grupo visto como mau e
indesejável a princípio, como judeus, mendigos, prostitutas, hereges, entre outros. Tal
conceito, em bulas e tratados teológico-políticos do período, estabeleceu-se como
princípio político no sentido de se “tolerar” alguns grupos minoritários em razão de um
bem comum. Porém, ele sistematicamente excluía os hereges, pois identificou nele
características como o sectarismo e a capacidade de se corromper todo o seio da
comunidade cristã-católica, de maneira a ser entendido, no final da Idade Média, que
exterminar a heresia –e não tolerá-la como “mal menor” – seria o melhor para a
preservação do bem comum.10
Cruzando-se os significados de “proposição” e “heresia”, é possível definir que
uma proposição herética é uma enunciação de algo considerado contrário à fé católica,
seja por negação ou por dúvida pertinaz contra ela, ou, noutros casos, uma explicitação,
por meio de fala e do agir, de uma recusa ou cisão com os costumes, doutrinas,
tradições e hierarquias da Igreja Católica. Trata-se de um entendimento identificado na
descrição dos delitos de alçada inquisitorial feita no mais importante manual usado
pelas inquisições na Baixa Idade Média, e que foi republicado na Idade Moderna: o
Manual dos Inquisidores, ou Directorium Inquisitorum, escrito por Nicolau Eymerich,
em 1376, e revisto, comentado e ampliado pelo inquisidor espanhol Francisco de La
Peña, em 1578.
No Directorium, no título a respeito da jurisdição do inquisidor, o manual é claro
ao dividir essa descrição nos tópicos “A heresia” e “Os hereges”. São elas – as diversas
heresias – e eles – os praticantes delas, nas suas inúmeras variações –, em última
instância, a matéria sobre a qual o inquisidor deve agir. O “que deve se entender como
heresia”, segundo o manual, está definido segundo as Etimologias, de santo Isidoro de
Sevilha, conforme um triplo significado: em primeiro lugar, vem do verbo “eleger”
(eligo, no latim), pois o herege equivale a um “eleitor” que, “ficando entre uma
verdadeira e uma falsa doutrina, nega a verdadeira e escolhe como verdadeira uma
doutrina falsa e perversa”; um outro significado deriva do verbo “aderir”, já que
“herético” significaria “aquele que adere” (haereticus, adhaesivus), ou seja, aquele que
“adere com convicção e obstinação a uma falsa doutrina considerando-a como
verdadeira”; e, por fim, recorrendo novamente a Isidoro, heresia também tem uma
10
BEJCZY, Istvan. Tolerantia: A Medieval Concept. Journal of the History of Ideas, v. 58, n. 3, p. 365–
384, 1997. p. 374-375.
193
definição ligada ao verbo erciscor, sinônimo de divido, remetendo à divisão, pois o
herético seria aquele que se afasta da vida comum, apartando-se do corpo do qual faz
parte (dos súditos do monarca, dos fiéis à lei de Cristo etc.) movido pela obstinação pela
falsidade doutrinal.11 Em síntese, no manual:
E, na verdade, o herético [, ao] escolher uma falsa doutrina, e, ao
aderir obstinadamente a uma doutrina rejeitada por aqueles com quem
convivia antes, isola-se e afasta-se, espiritualmente, de sua
comunidade, de onde será imediatamente separado através da
excomunhão. Depois, entregue à autoridade secular, afasta-se para
sempre da comunidade dos vivos. Portanto, é claro que existe
separação quando existe heresia, e a conclusão de tudo o que se disse
antes é que o conceito de heresia envolve três conceitos de: eleição,
adesão e separação.12
No comentário de Francisco de La Peña, também está presente a noção de que,
entre os antigos, o termo heresia não significava nada de desonroso, uma vez que
remetia à adesão a escolas distintas de pensamento, i.e., o “herético” nada mais era que
todos os que pertenciam a outra escola filosófica. Porém, em seu tempo, heresia tem sua
significação como “condenável e indigna porque designa todos aqueles que acreditam
ou ensinam coisas contrárias à fé de Cristo e de sua Igreja”. Suas consequências,
segundo Peña, são “blasfêmias, agressões aos fundamentos da Igreja, transgressão das
decisões e leis sagradas, injustiças, calúnias e crueldade de que os católicos são
vítimas”. Além disso, a heresia faz com que “a verdade católica” se “enfraqueça e se
apague nos corações”, e, com isso, “os corpos e bens materiais se acabam”, pois
“surgem tumultos e insurreições, há perturbação da paz e ordem pública”, de forma que
“todo povo, toda nação que deixa eclodir em seu interior a heresia, que a alimenta, que a
não elimina logo, corrompe-se, caminha para a subversão, e pode até desaparecer”.
Conclui, citando que “prósperas regiões e reinos em franco desenvolvimento” foram
“atingidos por grande calamidade por causa da heresia”, de uma maneira um tanto geral,
mas que se pode inferir, pelo contexto em que foi escrito, tratar-se das regiões da
Europa então assoladas pelas guerras de religião.13
Daí em diante, o manual descreve e tipifica os artigos específicos que tornam
algumas proposições “heréticas”, fazendo o mesmo sobre o termo “herege”, aspecto que
se verifica repetidamente nos Regimentos da Inquisição portuguesa por toda a Idade
11
EYMERICH, Nicolau. DIRECTTORIUM INQUISITORUM. Manual dos inquisidores [1376]. Escrito
por Nicolau Eymerich em 1376 e comentado por Francisco de la Peña em 1578. Trad. Maria José Lopes
da Silva. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos. Brasília, DF: Fundação Universidade de Brasília, 1993.p. 31
12
Ibidem, p. 31-32.
13
Ibidem, p. 32.
194
Moderna, ainda que com significativas variações. No Directorium, continuando, o
manual de Eymerich responde sobre “quando é que se pode dizer que um artigo ou
proposição são heréticos”, concordando com as questões de são Tomás de Aquino,
dizendo “que existem três causas ou três razões capazes de determinar o caráter herético
de um artigo ou uma proposição”. São eles:
a) Se é contrária a qualquer artigo de fé, como, por exemplo, o dogma
da Santíssima Trindade ou da Encarnação do Filho, ou outros artigos
parecidos que constituam a base de nossa fé católica e o essencial de
nossa crença; b) Se é contrária a qualquer verdade que a Igreja tenha
declarado de fé; por exemplo, que o Espírito Santo não procede do Pai
e do Filho como de dois princípios, ou que a usura não é pecado; c) Se
é contrária ao conteúdo dos livros canônicos: por exemplo, que Deus
criou o céu e a terra, ou Cristo não mandou seus apóstolos pregarem
(...). É necessário crer, efetivamente, em tudo o que está escrito nos
livros canônicos.14
No comentário de Peña, citando o inquisidor espanhol Tomaz de Torquemada “e
outros doutores”, detalha-se “a doutrina eymerichiana através de sete critérios de
heresia”. Assim, “herética é toda a proposição que se oponha”: a tudo aquilo que esteja
expressamente contido nas Escrituras; a tudo que decorra necessariamente do sentido
das Escrituras; ao conteúdo das palavras de Cristo, transmitidas aos apóstolos que, por
sua vez, as transmitiram à Igreja; a tudo o que a Igreja tenha proposto à fé dos fiéis; a
tudo o que tenha sido proclamado, por unanimidade, pelos padres da Igreja no que diz
respeito à reputação da heresia; por fim, a tudo que decorra necessariamente dos
terceiro, quarto, quinto e sexto itens anteriores.15 Assim sendo, uma proposição é
herética ou suspeita de sê-la quando, de forma mais ou menos direta ou explícita,
defende algum tópico que, no entendimento eclesiástico e inquisitorial, vá de encontro a
algum dogma, artigo de fé da Igreja católica – tais como as bulas, breves, encíclicas,
concílios etc. –, ou contra as Escrituras sagradas. É importante salientar que um mesmo
artigo ou tópico pode ser considerado “herético” por razões que entrelacem mais de um
ou todos esses pontos. Além disso, há a percepção, que perpassa essa definição, de que,
da defesa mais sutil à mais veemente de uma proposição herética, há uma corrupção da
fé, que pode levar reinos e comunidades inteiras – e, em última instância, toda a
cristandade – a grandes calamidades. Assim, a tipificação do herege, mesmo com alguns
pontos um tanto gerais, obedece a um certo nível de gradação no vocabulário
inquisitorial.
14
Frisando que, conforme a tradição católica, o conjunto que constitui os livros canônicos é a Bíblia,
formada pelos Velho e Novo Testamentos. Ibidem, p. 33.
15
Ibidem, p. 33-34.
195
O herege, segundo o Directorium, além de incorrer nos pontos supracitados em
suas proposições, deve ainda se encaixar em duas condições em que a heresia
propriamente dita é tipificada: segundo o intelecto e segundo a vontade. Basicamente, o
herege precisa reunir ambas condições para ser considerado como tal. O herege é aquele
que tem consciência de incorrer em algum erro de fé, conforme os pontos mencionados
no parágrafo anterior e ainda que é pertinaz no mesmo. A pertinácia, na definição feita
por Peña, “é parecida com a perseverança: tanto uma como a outra evidenciam um
apego”. Assim, “fala-se em pertinácia quando se trata de apego ao mal, e em
perseverança quando se trata de apego ao bem”.16 Complementando essa definição com
a feita pelo teólogo John S. Daly, entende-se que nem todo erro de heresia é imputável,
pois, para sê-lo, ele deve ser caracterizado como “heresia formal”. Esta, continua, valese da perspectiva sobre forma e matéria da filosofia escolástica, que foi apropriada pelo
direito canônico de maneira a chegar à definição desse tipo de desvio. Segundo o autor,
qualquer indivíduo batizado que expresse uma opinião conflitante com o dogma
católico ou com seus artigos de fé deixa patente que o elemento material da heresia está
presente. Cabe, já na perspectiva do direito canônico, perguntar se o indivíduo entende
que a sua opinião a respeito de uma matéria determinada está em conflito com esses
pontos ou também com as Escrituras. Ao indivíduo, tendo consciência de seu erro e do
conflito de sua opinião com o que determina a Igreja, os dogmas e as Escrituras, ainda
deve-se perguntar se tal conflito se deveu à má instrução na fé católica ou a outro fator
atenuante. A heresia formal, assim, caracteriza-se pela união da matéria da heresia, i.e.,
o comportamento, a opinião ou expressões consideradas desviantes da fé, com sua
forma, i.e., a adesão consciente, formal e pertinaz, ao desvio no qual se incorre.17
Quanto aos hereges, eles podem ser “manifestos” ou “disfarçados”, isto é, com
ou sem pública manifestação de sua adesão a algum “erro” de fé. Há também a distinção
entre “afirmativos” e “negativos”. Os primeiros são aqueles que “estão intelectualmente
errados quanto à fé que manifestam”, seja “através da palavra como através da ação, o
apego da sua vontade ao erro mental”. Ao passo que os negativos são aqueles que, uma
vez convencidos de alguma heresia, “continuam firmes em suas negações”, mesmo que
diante das autoridades estejam “confessando em palavras a fé católica e proclamando a
16
Ibidem, 38.
DALY, John S. Material and Formal Heresy. Le Bouchillou à Servanches, 1999. Disponível em:
www.sedevacantist.net/pertinacity.html . Acessado em set. /2017.
17
196
sua rejeição à perversidade herética”.18 O tipo mais grave de herege seria o “heresiarca”,
“que assim como a palavra ‘patriarca’ significa o ‘príncipe dos pais’ (...) a palavra
‘heresiarca’ significa ‘príncipe dos hereges’”, já que eles “não se limitam a se enganar e
se apegar a seus erros”, pois “são eles que os formulam, inventam e também os
apregoam”.19
Para Peña, há graves problemas em qualquer possibilidade dos heresiarcas se
reconciliarem ao grêmio da Igreja católica, ao contrário dos demais hereges. Segundo o
inquisidor espanhol, os primeiros podem levar até mesmo príncipes e reis aos seus
erros, causando problemas tão graves que corrompem a todo o reino, de maneira que
seus crimes deveriam, para ele, ser equivalentes ao de lesa-majestade.20 O tópico da
decadência dos reinos e impérios causada pela corrupção moral, que afastava os homens
das leis de Deus em nome do enriquecimento e da glória terrena, foi abordado e
analisado a fundo por Adriana Romeiro, em trabalho sobre a corrupção, numa
perspectiva histórica, dentro do Brasil colonial e império português. É bem demonstrado
no trabalho que autores, distantes no tempo e espaço, tais como Camões e o padre
Vieira, viram nessa forma de corrupção as causas da decadência da Índia e de outras
partes do império. Na base, a imoralidade e os vícios dos governantes, que corrompiam
e levavam à ruina reinos antes prósperos, tinham claros elementos religiosos, conforme
diversos tratados morais e teológico-políticos da Idade Moderna. O excessivo apego a
coisas terrenas, em detrimento do bem comum e dos súditos do rei, além dos abusos e
desregramentos nos costumes e na moral cristãs, estavam entre as causas das
calamidades que levavam grandes nações ao completo fracasso.21 Isso pode indicar que,
no caso ibérico, no geral, e no português, em particular, esse tipo de justificativa para a
vigilância religiosa poderia atuar em duas frentes: primeiramente, quanto à mencionada
preocupação com as guerras de religião que assolavam a Europa, sobretudo países
protestantes; e, em segundo lugar, evitar a heresia, sectarismos e cismas, um última
análise, significava, na Idade Moderna, evitar a própria degradação dos reinos católicos,
em função da disseminação de vícios contrários às leis naturais e divinas, algo bastante
razoável segundo o pensamento do Antigo Regime.
Voltando à questão dos heresiarcas, observa-se que mesmo no Regimento de
1774 da Inquisição de Portugal, em que já são bastante limitados os autos-de-fé e penas
18
EYMERICH, Nicolau. DIRECTORIUM INQUISITORUM. Op. Cit. p. 38
Ibidem, p. 46.
20
Ibidem, p. 48.
21
ROMEIRO, Adriana. Corrupção e poder no Brasil. Op. Cit.
19
197
públicas de qualquer espécie, bem como os tormentos, ao heresiarca cabiam esses tipos
de punições. No terceiro artigo do Título III, do Livro II, do Regimento de 1774, por
exemplo, os tormentos, apesar de duramente condenados no mesmo título, podem ser
aplicados aos heresiarcas e dogmatistas que não confessarem e ocultarem seus
seguidores. No título XV do mesmo livro, ainda que haja também uma duríssima
condenação aos autos-de-fé, no segundo parágrafo existe uma exceção similar aos
dogmatistas e aos heresiarcas. É fundamental se destacar que, mesmo nesses casos
excepcionais, o tormento e o auto-de-fé público somente aconteceriam sob
determinação do monarca, refirmando o caráter régio da Inquisição, reforçado pelo dito
regimento, assunto que retornarei mais à frente. Efetivamente, tal autorização régia para
tais aplicações dessas penas não chegou a acontecer, de 1774 até a extinção dos
tribunais de fé, em 1821. 22
Aqui cabe destacar, sobretudo, a permanência da ideia de que o formulador de
heresias foi entendido como alguém perigoso para a res publica, aspecto que perpassa
todos os regimentos inquisitoriais. Dois exemplos podem ser citados a este respeito. No
Regimento da Inquisição de Portugal de 1640, no Título I, dos hereges e apóstatas da
santa fé católica apresentados, Livro III, das penas que hão de haver os culpados nos
crimes de que se conhece no Santo Ofício, § 8, há uma menção sobre os heresiarcas e
dogmatistas. Aqueles que se apresentassem, confessassem suas culpas e mostrassem
sinais de arrependimento e disposição para uma “verdadeira conversão”, poderiam ser
reconciliados com a Igreja. Mas, mesmo assim, isso aconteceria em lugar público e com
hábito penitencial, “por razão do prejuízo e escândalo, que deram com sua falsa
doutrina”.23 Há instrução similar no regimento proposto pelo frei Inácio de São Caetano
à d. Maria I que, apesar de aprovado, não chegou a ser posto em execução, no final do
século XVIII. Nesse regimento, em que havia formas mais brandas de punição e menor
preocupação com a ortodoxia católica, se comparado com o anterior, de 1774,
permanece, no Título XIV, Dos hereges obstinados e convictos, a seguinte
determinação: que o “heresiarca e dogmatista que houver sectários ou sequazes, ou por
causa da Religião fizer ajuntamentos e conventículos (...) assim como (...) pregar,
ensinar e propagar os seus erros por palavra, ou escrito”, e seguindo tais doutrinas com
22
SIQUEIRA, Sônia (org.). Os regimentos da Inquisição. Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, Rio de Janeiro, ano 157, n. 392, p. 495-1020, 1996. p. 911 e p. 931.
23
Ibidem, p.833-831.
198
obstinação, “perderá todos os seus bens para a Coroa do Reino e morrerá de morte
natural”.24
Há também os hereges impenitentes, penitentes e os relapsos, respectivamente,
aqueles que preferem se manter obstinados em seus erros, os que procuram abjurar dos
mesmos e, por último, os que, mesmo tendo abjurado, reincidem nos seus erros.25
Existe, por fim, a blasfêmia, uma categoria um tanto específica de proposição, que pode
ser ou não ser herética, caracterizada por uma ação ou palavra não devidamente
respeitosa com o sagrado. Entre suas motivações, encontram-se, por exemplo,
circunstâncias particulares, como a embriaguez, loucura, rusticidade, além de ataques
diretos contra os dogmas e artigos de fé, levantando a maiores ou menores suspeitas de
heresia.26
Essas tipificações de proposições e de heresias, constantes no Directorium,
foram retomadas, como já foi dito acima, em todos os regimentos inquisitoriais,
norteando os estilos do Santo Ofício. Trata-se de um lugar comum nos regimentos
inquisitoriais portugueses. Em alguns regimentos, existem títulos específicos sobre
hereges diminutivos, afirmativos, convictos, penitentes e impenitentes, como no caso
dos de 1640 e 1774, ou ainda sobre heresiarcas e dogmatistas, como no de 1778,
proposto pelo frei Inácio de São Caetano. Ainda é comum que apareçam esses termos
nas descrições de alguns procedimentos, como no de 1613, em que se mencionam
heresiarcas e dogmatistas, no artigo IX do título III, que fala a respeito de menores de
25 anos que foram “dogmatizados” em algum erro por pais e avós e se apresentam fora
do tempo da graça.27 Assim, uma constante na história desses mesmos estilos
inquisitoriais era uma variação e gradação das proposições heréticas quanto à sua
complexidade de elaboração, sua publicidade e “escândalo”, além de sua capacidade de
conseguir “sequazes”. Leva-se em conta também a propensão ou não do acusado, ou
réu, de admissão de culpas e de delação de outros que tenham incorrido nos mesmos
“erros”. No caso da blasfêmia, seriam avaliados ainda a circunstância e outros fatores
em torno do contexto em que ela teria sido proferida, bem como o risco de seu conteúdo
de se aproximar de alguma matéria condenada por herética.
Aqui, optei por uma longa digressão a respeito do assunto a ser tratado neste
capítulo devido a uma necessidade, por vezes negligenciada pela historiografia, que
24
Ibidem, p. 985.
EYMERICH, Nicolau. DIRECTORIUM INQUISITORUM. Op. Cit. p. 47-48.
26
Ibidem, p. 49-52.
27
SIQUEIRA, Sônia (org.). Os regimentos da Inquisição. Op. Cit. p.625.
25
199
motivou o problema abordado e desenvolvido no trabalho de Alécio Nunes Fernandes:
ter em conta, em análises históricas que tocam na lógica inquisitorial, seja pesquisando
a respeito de sua burocracia ou funcionamento jurídico, seja na leitura e
problematização de temas constantes nos processos inquisitoriais, as diversas lógicas
jurídico-religiosas empregadas ou defendidas institucionalmente, em nível discursivo,
pelas Inquisições. Os regimentos, manuais e o próprio direito canônico revelam
concepções de justiça, ortodoxia, sociedade e bem comum, aplicadas em diversos
procedimentos inquisitoriais e que remetem a todo um vocabulário político-jurídico e
religioso da Idade Moderna. Porém, para Fernandes, a análise de tais textos é colocada
constantemente de lado. Apresentando o problema de maneira sintética, o autor diz que:
De maneira geral, os historiadores que escrevem sobre o Santo Ofício
– ou com base em sua documentação – podem ser divididos em três
grupos: os apologéticos, os herdeiros de uma “lenda negra”
historiográfica, e os que procuram adotar uma postura mais sóbria e
desapaixonada. Entretanto, nos três grupos é raro encontrar aqueles
que se preocupem em analisar a legislação inquisitorial ou o discurso
institucional que dá sustentação teórica às práticas do Santo Ofício; na
maioria das vezes, os processos são o ponto de partida das análises.
Menor ainda é o número de historiadores que procuram compreender
o caráter jurídico-criminal do Tribunal; em geral, ressalta-se o aspecto
religioso da Inquisição. E mesmo alguns assuntos exaustivamente
discutidos, como os motivos para a instalação e manutenção do Santo
Ofício em contextos espaço-temporais tão distintos, não resultaram
em consenso historiográfico. Justamente as razões para o surgimento e
tão longa duração no tempo do Tribunal são o ponto central dos
embates entre as correntes historiográficas.28
Há, segundo Fernandes, dois problemas, sendo um de ordem teóricometodológica e outro, de ordem político-ideológica, que motivam essa negligência da
historiografia sobre o Santo Ofício ou que recorre à documentação inquisitorial e que
empobrecem as análises: a primeira, é a insistência em se tomar como ponto de partida,
nas pesquisas, os processos inquisitoriais, colocando regimentos e manuais, no melhor
dos cenários, num segundo plano, resultando em análises bastante centradas em uma
anacrônica descrição de casos constantes na documentação, sem que os delitos em
questão sejam colocados em seu devido tempo e espaço, considerando as tipologias e
caracterizações presentes na Idade Moderna;29 a segunda, não menos importante, trata28
FERNANDES, Alécio Nunes. Da historiografia sobre o Santo Ofício português. História da
Historiografia. Ouro Preto, v. 1, n. 8, p. 22–48, 2011. p. 25.
29
O autor mais criticado, nesse ponto, por Alécio Nunes Fernandes, é o historiador e antropólogo Luiz
Mott. Pare ele, Mott, apesar de demonstrar conhecer os regimentos da Inquisição de Portugal, apresenta
de maneira anacrônica sua análise sobre os delitos de sodomia, justamente por fazê-lo excessivamente em
cima da descrição dos processos e pouco ou quase nada em termos de cruzamentos de informação com os
200
se de uma opção deliberada dos historiadores em não contextualizar devidamente os
procedimentos e pensamento jurídico que permeiam os procedimentos inquisitoriais,
sob a justificativa de haver um risco de se relativizar os tribunais, criando-se assim uma
“lenda rosa”, contraposta à “lenda negra” do Santo Ofício – aqui, o autor cita Bruno
Feitler como autor que manifesta tal preocupação –,30 ou de colocar em risco avanços
relativos às conquistas do presente, sobretudo relacionados a minorias – aqui, a crítica
mais veemente é ao trabalho de Anita Waingort Novinsky.31
Tomando como premissa que as questões e críticas propostas por Alécio
Fernandes objetivaram realçar a importância de uma história social e institucional da
Inquisição portuguesa – nas suas palavras, “silenciada” por uma tradição que privilegia
os processos –,32 salvo algumas exceções, observo alguns problemas. Reconheço que a
provocação feita pelo autor é extremamente válida. Todavia, o trabalho de Fernandes é
criticável por fazer uma separação um tanto simplista, com uma carga valorativa óbvia,
que resulta nos “três grupos” de historiadores sobre a Inquisição portuguesa. Uma
ressalva advém das dificuldades naturais de se fazer algum agrupamento dessa natureza,
considerando-se uma historiografia tão vasta, como a inquisitorial. Diante da quantidade
de abordagens e recortes, bem como da profusão de obras a este respeito do século XIX
até hoje, algumas simplificações seriam inevitáveis. De toda forma, os historiadores que
adotam uma “postura mais sóbria”, segundo sua análise, seriam, os merecedores de
maiores elogios do ponto de vista metodológico e teórico, ao passo que os demais,
tributários da “lenda negra” da Inquisição ou os apologéticos, viriam a ser alvos naturais
mencionados regimentos. Mott faz, conforme a leitura de Fernandes, uma “história na perspectiva da
vítima”, o que, na sua avaliação, não é problemático em si. Porém, o que se torna alvo das críticas do
autor é a caracterização feita por Mott de condenados por sodomia como “filhos da dissidência”,
“portadores de uma contracultura temida como imoral e revolucionária”, punidos pela Inquisição em um
contexto de intolerância e preconceito, tratando, inclusive, valores como tolerância com minorias
religiosas e sexuais como categorias não-históricas a partir das quais os próprios tribunais seriam
analisados e, em grande medida, julgados a posteriori pelo historiador. Com base nas leituras da obra de
Luiz Mott, vejo como bastante pertinentes as críticas feitas por Fernandes nesses pontos, justamente por
conta de Mott insistir no tratamento das tipologias criminais de alçada inquisitorial como transhistóricas
e, muitas vezes, como indicativos de alguma resistência direta a uma hegemonia cristã-católica, o que não
observo nas fontes. Ibidem, p. 31-32; MOTT, Luiz. Sodomia não é heresia: dissidência moral e
contracultura. In: VAINFAS, Ronaldo; FEITLER, Bruno, LAGE, Lana, (orgs.). A Inquisição em xeque:
temas, controvérsias, estudos de caso. Rio de Janeiro: Ed. Universidade Estadual do Rio de Janeiro,
2006.p.253-266; _________. Filhos de Abraão & de Sodoma: cristãos-novos homossexuais no tempo da
Inquisição. In: GORENSTEIN, Lina; CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (orgs.). Ensaios sobre a
intolerância: inquisição, marranismo e antissemitismo. São Paulo: Humanitas/LEI, 2005. p. 67-100.
30
FERNANDES, Alécio Nunes. Da historiografia sobre o Santo Ofício português, Op. cit., p.24.
31
Ibidem, p. 28.
32
_________ Dos manuais e regimentos do Santo Ofício português: a longa duração de uma justiça que
criminalizava o pecado (séc. XIV-XVIII) [Dissertação de mestrado]. Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade de Brasília. Brasília, DF, 2011.p. 16-47.
201
de suas críticas mais fortes. Estes últimos, no caso, uma literatura revisionistaapologética,33 são muito pouco abordados no trabalho de Fernandes, embora ela,
efetivamente, exista. Evidentemente, por se tratar de uma dissertação de mestrado, há de
se considerar as limitações quanto à amplitude do trabalho de Fernandes. Porém,
entendo que, em relação à proposta do trabalho, esse tipo de escrita sobre a história das
Inquisições poderia ser melhor abordada. Isso porque, avalio, boa parte dessas obras
incorre no mesmo problema teórico-metodológico realçado de maneira mais
contundente pela crítica feita por Fernandes , qual seja, a problemática contextualização
dos tribunais do Santo Ofício em relação ao pensamento jurídico-teológico de sua
época, muitas vezes motivado por ideologias e alinhamentos político-ideológicos e
identitários daqueles que escrevem sobre os tribunais.
Sobre a historiografia revisionista-apologética sobre as Inquisições, Giuseppe
Marcocci e José Pedro Paiva demonstram que, tão logo a Inquisição portuguesa chegou
ao fim, uma historiografia que defendia pontos como a importância das Inquisições para
se evitar as guerras de religião no sul da Europa, ou a necessidade de contextualização
dos procedimentos inquisitoriais em sua época, contrária aos argumentos pautados na
“lenda negra”, surge já na primeira metade do século XIX. Ela foi um tanto motivada
pelas disputas de memória sobre o Antigo Regime e a efervescência política daquele
contexto.34 É necessário se observar que as publicações apologético-revisionistas se
valeram de motivações políticas óbvias. Por exemplo, o conhecido político
contrarrevolucionário saboiano Joseph-Marie de Maistre publicou sua Lettres à un
gentilhomme russe sur l’Inquisition espagnole, em 1822, em que fica claro que,
33
A apologética católica é um aspecto fundamental dessa literatura que tem, por intenção, defender teses
favoráveis aos tribunais do Santo Ofício ou que minimizem algumas das violências historicamente
atribuídas a eles. Em termos filosóficos, “apologética” se define como sendo uma defesa de algo através
de argumentos racionalmente válidos. Dessa maneira, a “apologia” a alguém ou algo seria usar de
argumentação para justificar ou defender ações e ideias. Aplicado à teologia, o termo se refere à defesa da
religião a partir de “uma reflexão crítica que tenta apresentar o conteúdo da fé diante das exigências da
razão”, segundo Fisichella. No que toca aos textos apologéticos sobre a história da Inquisição, na sua
forma, esta escrita se aproxima do que vários autores do século XX chamaram por “revisionismo”, aqui
entendido como reelaborações do passado de maneira a se relativizar ou negar culpas ou traumas
historicamente ligados a grupos ou correntes hegemônicas do presente no qual se escreve tal narrativa
histórica. Dessa maneira, entende-se como uma literatura apologética-revisionista uma tradição de
publicações, comumente feitos por católicos, nas quais a defesa da fé católica, por um lado, e a rejeição
de valores modernos identificados como inimigos do Catolicismo e/ou “seculares”, por outro, são feitas
tendo narrativas do passado inquisitorial como meio. FISICHELA, R. Apologética. In: Lexicon:
dicionário teológico enciclopédico. Vários autores. Trad. João Paixão Neto; Alda da Anunciação
Machado. São Paulo: edições Loyola, 2003. p. 44-45; ADORNO, Theodor W. O que significa elaborar o
passado. In: __________. Educação e emancipação. Trad. Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro: Ed. Paz e
Terra, 1995. p. 29-49.
34
C.f. MARCOCCI, Giuseppe, PAIVA, José Pedro. História da Inquisição portuguesa. Op. Cit. p.449468.
202
juntamente ao apelo crítico para se entender as Inquisições em seu tempo histórico,
havia uma claríssima exaltação dos tribunais de fé como mantenedores de uma ordem e
uma hierarquia sociais. Defender a atuação dos tribunais do Santo Ofício, em termos de
narrativa histórica, foi, assim, uma defesa de valores tradicionalistas e reacionários.35
Trata-se de um argumento que se assemelha significativamente a alguns pontos da obra
de Marcelino Menéndez y Pelayo, historiador de visão política bastante conservadora.
Em sua História dos heterodoxos espanhóis, apresentou a Inquisição como um último
bastião de defesa da nação espanhola e de sua tradição católica, contra, por exemplo, as
reformas protestantes e guerras de religião e as tendências modernas, como o
enciclopedismo e o liberalismo.36 Trata-se de um ponto que vai no sentido oposto de
teses clássicas, como as de Henry Charles Lea e de Alexandre Herculano, segundo as
quais um estado de atraso cultural, científico e econômico dos países ibéricos teria, em
grande parte, sido produto de longos séculos de perseguição inquisitorial, sobretudo às
mentes que poderiam tê-lo evitado.37
A partir do século XX, observam-se alguns novos argumentos e algumas
atualizações de debates revisionistas-apologéticos sobre a história das Inquisições. Por
exemplo, as conhecidas Letters, publicadas no contexto da II Grande Guerra pelo
historiador de ascendência judaica e posteriormente convertido ao Catolicismo David
Goldstein. Nas Letters, o autor questiona a natureza “preconceituosa” das fontes que
falam das perseguições inquisitoriais, além de apontar como uma das causas da
desagregação das comunidades judaicas e também do enfraquecimento de sua fé a
insistência na narrativa de perseguidos, fortemente amparada por uma historiografia
inquisitorial. Além disso, de certa maneira, Goldstein culpa os próprios judeus de terem
criado uma tradição de perseguições religiosas da qual as Inquisições se valeram.38 O já
mencionado historiador jesuíta Giacommo Martina, entre outros pontos, defende a
importância das Inquisições para o surgimento do procedimento investigativo criminal e
35
MAISTRE, Joseph-Marie de. Lettres à un gentilhomme russe sur l'Inquisition espagnole. Lyon: J-B.
Pélagaud,
1846.
Disponível
em
Bibliothèque
nationale
de
France
–
Gallica
http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k62190868/f1.image.texteImage# . Acesso em jun./2018.
36
MENÉNDEZ Y PELAYO, Marcelino. Historia de los heterodoxos españoles. Tomo III. Madrid:
Librería católica de San José, 1880. [digitalizado por Wellesley College Library]. p. 197-412.
37
LEA, Henry Charles. Historia de la Inquisición española. Trad. Angel Alcalá y Jesús Tobio. Edición y
Prólogo: Angel Alcalá. Vol. III. Fundación Universitaria Española. Madrid, 1993.p. 531; HERCULANO,
Alexandre. História da origen e estabelecimento da Inquisição em Portugal. Porto Alegre: Ed. Pradense,
2002.
38
GOLDSTEIN, David. The Goldtein’s Letters [1943]. Letter 16 (Spanish Inquisition pt. 1), Letter 17
(Spanish
Inquisition
pt.
2)
e
Letter
18
(Jewish
Inquisition).
Disponível
em
http://www.catholictradition.org/Tradition/goldstein18.htm . Acessado em mar./2018.
203
do direito à defesa do réu, pontos fundamentais ao direito liberal contemporâneo. Além
disso, destaca uma relativa “brandura” dos tribunais de fé em relação à justiça secular,
sobretudo entre a Baixa Idade Média e Idade Moderna. O mesmo historiador italiano
também incorre em algum nível de apologia às Inquisições quando, por exemplo,
fazendo uma citação descontextualizada (e, em grande medida, desonesta) de Henry
Charles Lea, endossa a tese, completamente equivocada, além de prescritiva e
excessivamente especulativa, de que que se os cátaros não tivessem sido exterminados,
certamente, a Europa voltaria à barbárie39 Essa “antecipação do direito moderno”,
quanto a procedimentos e a princípios, na qual se ampliam direitos de defesa ou se adota
a presunção de inocência, atribuído aos tribunais do Santo Ofício. Esse também é um
ponto central da obra de João Bernardino Gonzaga, ex-professor de direito penal da
Universidade de São Paulo (USP) em obra que veio à luz no início dos anos 1990. Para
Gonzaga, os tribunais do Santo Ofício, a despeito do que se produziu contra sua
imagem por uma “historiografia secular” e anticatólica, contribuíram para a superação
de um “direito feudal” – baseado no ordálios e no arbítrio dos senhores, e não em
princípios de justiça. Os crimes atribuídos às Inquisições, em sua quase totalidade,
teriam se dado por ingerências do poder civil no seu funcionamento ou por desvios
isolados de alguns de seus agentes. Além disso, por meio de uma análise quantitativa
dos números de mortos, presos e torturados, Gonzaga defende a tese de que a violência
dos tribunais de fé foi superdimensionada em função de se atacar a imagem da Igreja
católica.40
Considerando também a escrita não acadêmica da história, é possível localizar
discursos revisionistas-apologéticos sobre as Inquisições que ascenderam com grupos
católicos ultraconservadores surgidos após o Concílio Vaticano II (1962-1965). Um
exemplo disso foi mencionado em trabalho de Yllan de Mattos: são os artigos
organizados e produzidos no Simposio Internazionle di Studio sul Tema L’Inquisizione,
organizado em outubro 1998, promovido e organizado pela Comissão históricoteológica para a preparação do Grande Jubileu, tendo o papa João Paulo II
39
O que Henry Charles Lea cita, em trabalho famoso sobre as Inquisições medievais, é uma discussão
sobre as justificativas, presentes nas bulas e outras publicações dos séculos XII e XIII, que justificaram a
cruzada contra aos albigenses, no sul da França, entre 1209 e 1244. Entre as acusações, consta a ameaça
de espalhar a corrupção e barbárie em toda a Europa. O autor, repito, focaliza tais acusações como
problema de análise histórica, o que não significa, obviamente, endossar esse ponto de vista. MARTINA,
Giacommo. Op. Cit. p. 138 e p. 139-143; LEA, Henry Charles. A history of the Inquisition of the Middle
Ages. Vol. I. New York: Harper& Brothers, 1887. p. 128-208.
40
GONZAGA, João Bernardino. A Inquisição em seu mundo. São Paulo: Ed. Saraiva, 1993. 4ª edição.
204
discursando em sua abertura.41 No Brasil, alguns dos pontos colocados por este
simpósio têm sido amplamente divulgados, sobretudo em setores fundamentalistas do
Catolicismo vinculados à vertente da “renovação carismática”, como, por exemplo, na
entrevista dada pelo padre Wander Maia à rede católica Século XXI, recentemente,42
além do livro Para Entender a Inquisição, do engenheiro, radialista e missionário
Felipe Aquino.43 Repletas de imprecisões facilmente apontáveis com o conhecimento de
estudos históricos, clássicos ou recentes, sobre a história dos tribunais do Santo Ofício,
que vão de erros factuais a anacronismos grosseiros, tais obras remetem a aspectos que
exigem algumas discussões sobre os usos da história no âmbito da cultura e opinião
pública. Tanto a entrevista como a obra supracitada são construídas sob o
questionamento sobre se, do ponto de vista moral e ético, a modernidade pode condenar
as Inquisições. Optam, assim, mais por fomentar uma discussão ética no presente do
que disputar, per se, algum tipo de “verdade histórica” no sentido tradicional do termo.
Esse questionamento pode ser desdobrado num segundo: se na contemporaneidade
aqueles que defendem valores considerados modernos (tolerância, igualdade, liberdade
etc.), estejam em quais grupos estiverem ou seguindo quais ideologias modernas
seguirem (comunismo, socialismo, liberalismo, pós-modernismo, esquerdas, etc.),
estariam aptos, do mesmo ponto de vista – moral e ético –, a julgar a Inquisição ou a
Igreja católica. As respostas negativas dessas narrativas históricas para ambas as
questões têm a função de convidar seus leitores a uma rejeição aos valores ditos
modernos, com todas as implicações ético-políticas que isso traz em si.44
41
MATTOS, Yllan de. A Inquisição contestada. Op. Cit. p. 25. O discurso do pontífice pode ser acessado
no site do Vaticano. É interessante frisar que, nele, o pontífice assume um tom muito mais moderado do
que o adotado por muitos textos que tomaram este simpósio como referência para as suas obras
apologéticas. Por exemplo, no quarto parágrafo do discurso, o papa diz que o “problema da Inquisição
pertence a uma fase conturbada da história da Igreja, sobre a qual já convidei os cristãos a tornarem com
ânimo sincero”, completando com a citação de uma Carta Apostólica em que diz que a Inquisição foi um
“capítulo doloroso, sobre o qual os filhos da Igreja não podem deixar de tornar com espírito aberto ao
arrependimento, é a condescendência manifestada, especialmente nalguns séculos, perante métodos de
intolerância ou até mesmo de violência no serviço da verdade”. Ao longo de todo o discurso, fica patente
o tom de se levantar a necessidade de uma apuração, “das mais imparciais e isentas de julgamento moral”,
“que escapa da competência dos historiadores”, a fim de, num outro momento, “haver um posicionamento
ético moral, baseado na verdade, por parte da Igreja”. Discorso del santo padre Giovanni Paolo II ai
partecipanti al Simposio Internazionale di studio sul tema “l’inquisizione”, 31 ottobre 1998. [Artigo
online].
<
https://w2.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/speeches/1998/october/documents/hf_jpii_spe_19981031_simposio.html>. Acessado em dez./ 2017.
42
MAIA, Wander da Silva, pe. [Entrevista] O que foi a Inquisição: Contexto Histórico | Entendendo a
Inquisição - Parte 1. Programa Ecclesia. Youtube, Publicado em 4 de ago/ de 2016. Disponível em
https://youtu.be/ilH7Mt7BmgE . Acessado em nov/ 2017.
43
AQUINO, Felipe. Para entender a Inquisição. 9ª ed. Lorena, SP. Ed. Cléofas, 2016.
44
Duas discussões a respeito de como revisionismos dialogam com objetivos político-ideológicos
conservadores ou reacionários muito marcantes, configurando um modelo de se narrar o passado para o
205
Trata-se, usando terminologia discutida por Hayden V. White, da construção de
uma narrativa de um “passado prático”,45 onde está, num primeiro plano, a elaboração
de discursos que recorrem à História para se agir no presente, conferindo-lhe sentido
histórico.46 Assim, esse tipo de narrativa apologética-revisionista sobre as Inquisições
medievais e modernas articula-se com agendas políticas reacionárias, anti-modernas,
anti-intelectuais e antiliberais, em seu conjunto de intencionalidades, mais do que no
sentido de se disputar alguma verdade ou interpretação historiográfica, acadêmica e
cientificamente.47
fim de atenuar culpas passadas de grupos hegemônicos do presente, aparecem em: FONTE, Sandra
Soares Della; LOUREIRO, Robson. Revisionismo Histórico e o Pós-Moderno: Indícios de um Encontro
Inusitado. Impulso, v. 20, n. 49, p. 85–95, 2010. p.88-92; VENÂNCIO, Renato P. O Incorreto no Guia
politicamente incorreto da história do Brasil. Resenha do livro: Guia politicamente incorreto da história
do Brasil. 2 ed. São Paulo: Leya, 2012. (Primeira edição em 2009), versão ebook. Disponível em: <
https://www.academia.edu/36354688/O_Incorreto_no_Guia_politicamente_incorreto_da_hist%C3%B3ri
a_do_Brasil> . Acessado em abr./2018.
45
WHITE, Hayden V. The practical past. Evanston, Illinois: Northwestern University press, 2014. 3-24.
46
Conforme a definição de Jörn Rüsen, discutida em ensaio a respeito do tema, em que faz uma distinção
entre “memória” e “consciência histórica”, objetivando problematizar a busca por sentidos no passado na
construção de identidades e justificativas de ações do presente. Para o autor, há uma distinção entre o
papel das representações históricas na orientação cultural e na vida prática e os procedimentos racionais
narrar o passado, pelos quais o conhecimento do que aconteceu, de fato, é conquistado. O primeiro
(memória) se interessa pelos modos de fazer e manter o passado no presente; já o segundo (sobre
consciência histórica) inclui em si a racionalidade dos mecanismos de produção de sentido do espírito
humano, especialmente interessado nos modos de representação que dão ao passado uma forma distintiva
entre o que é “histórico” e o que é “memória”. A partir daí o autor aponta que o recurso das sociedades
humanas ao passado, com uma intencionalidade “prática” com o presente, acaba por produzir um “sentido
histórico” para ações e aspectos do presente, em que a mediação do passado com o presente feita pela
narrativa historiográfica – profissional ou não – representa o passado em um interrelacionamento mais
explícito com o presente, guiados por conceitos de mudança e reivindicações de verdade. O passado,
ainda que distante, assume um papel de legitimador, e a narrativa histórica revela uma historicidade
ligada a identidades e interesses de grupos que a produzem e seus objetivos de agir, somados às suas
constituições identitárias. Partindo disso, entendo que historiadores e não historiadores que se interessam
pela historiografia inquisitorial, produzida sob objetivos apologéticos-revisionistas, têm um sentido claro
na sua produção sobre o passado inquisitorial: trata-se de uma intencionalidade de se justificar no passado
ações e pensamentos reacionários do presente. Não tenho dúvidas que tais pressupostos desenvolvidos
por Rüsen, que explicam como usos do passado atuam na formação de identidades dos mais variados
grupos politicamente organizados (dos mais progressistas aos mais reacionários), respaldados pela
construção de uma memória histórica, aproximam-se, nos textos revisionistas analisados, com as
premissas de White quanto a um uso prático do passado inquisitorial. Este serve para legitimar posturas
conservadoras e reacionárias católicas de grupos do presente por meio da narrativa histórica. Narra-se um
passado que ressalte pontos como a primazia dos valores cristãos e ocidentais perante os demais, a
“necessidade histórica” da intolerância contra minorias ou contra quaisquer ideias progressistas, dando a
tópicas defendidas por diversos grupos (conservadores católicos, por exemplo) um regime de verdade
cuja significação se legitima no passado. Em suma, a Inquisição aparece, nessas narrativas, desde como
uma necessidade do contexto, até como um símbolo de um bastião de valores de uma sociedade branca,
cristã e masculina –idealizada e “inventada” -, que foi corrompida pela modernidade. RÜSEN, Jörn.
Como dar sentido ao passado: questões relevantes de meta-história. História da Historiografia. Ouro
Preto, v. 2, nº2 (163–209), 2009. P. 168-170.
47
Devo aqui dar os devidos créditos a um amigo e colega de curso de História na Universidade Federal de
Minas Gerais, Hugo C. Palmier, pois foi depois de uma conversa que tivemos a respeito da historiografia
sobre as Inquisições que pensei na necessidade de uma reflexão crítica sobre esse tipo de uso da história
tocante a elas, o que merece, inclusive, novas pesquisas. A partir dessa discussão, publiquei um artigo
cujo objetivo foi discutir a escrita apologética da história das Inquisições, sobretudo pelo seu viés
206
Essa digressão a respeito das atualizações dos discursos apologéticosrevisionistas sobre as Inquisições se justifica nesta tese. As críticas apresentadas a
respeito do trabalho de Alécio Fernandes não diminuem a importância que ele teve para
a reflexão teórica proposta a respeito dos objetos desta tese. Afinal, ainda que se
reconheça que, de fundo, existam consideráveis motivações político-ideológicas na
literatura apologética-revisionista sobre a Inquisição, em termos metodológicos, elas se
constroem, em grande parte, em cima de problemas que Fernandes analisa em sua
dissertação, a saber, a precária – e, muitas vezes, funcional – contextualização social e
institucional dos tribunais inquisitoriais em sua época. Nesse ponto, a pouca reflexão
sobre regimentos e manuais inquisitoriais, bem como quanto a textos jurídicos e
teológicos, e as inadequações referentes às categorias de delitos inquisitoriais –
proposições heréticas, blasfêmias, entre outros – acabam por aproximar os escritos
tributários da “lenda negra” aos da tradição revisionista-apologética. Diante disso,
justifica-se a discussão feita supra a respeito do Direito Canônico, dos regimentos e de
outros documentos inquisitoriais a fim de se evitar, do ponto de vista metodológico,
problemas similares. Todavia, ressalto, tais considerações estão longe de objetivar a
reivindicação de uma “neutralidade” no sentido político-ideológico desta tese, a meu
ver, tão contraproducente quanto impossível de se alcançar.
Com essa discussão, além disso, objetiva-se evitar problemas de outra ordem ao
se analisar documentação inquisitorial. Um deles, por exemplo, pensando nas questões
levantadas por Fernandes, seria o de procurar, nas proposições, aproximações um tanto
forçadas com ideias de tolerância estranhas à maioria ou a todas as vozes que aparecem
nos processos, ao se desconsiderar todo um quadro de sustentação teórica e filosóficoreligiosa que emoldurava os debates sobre a tolerância religiosa no contexto das Luzes,
assim como a própria historicidade das proposições e publicações do período sobre o
tema. O propósito, enfim, é o de evitar-se a armadilha de pautar a análise sobre a
tolerância religiosa a partir somente de definições exteriores aos contextos em que as
fontes foram produzidas. Outro risco seria reproduzir um procedimento análogo ao da
literatura apologético-revisionista sobre as Inquisições, mas com uma intencionalidade
oposta – o que, também, não seria o ideal, dos pontos de vista ético e científico.
Acrescento que a problematização das tipologias de delito, segundo definições correntes
negacionista, ressaltando algumas de suas intencionalidades. ROCHA, Igor Tadeu Camilo. Entender ou
defender o Santo Ofício? Negacionismo, apologética e usos da história inquisitorial em Para entender a
Inquisição (2009), de Felipe Aquino. História da Historiografia. Ouro Preto, v. 12, nº 29 (179-213),
2019.
207
na Idade Moderna, atenua o risco de tomar as “proposições heréticas”, analisadas neste
capítulo, como auto evidentes ou importantes somente em relação a seu conteúdo
interno, dissociado de sua tipificação e percepção pelas autoridades, que, em última
análise, produziram a documentação inquisitorial que vai ser aqui analisada.
Diante do que foi discutido e exposto até aqui, os próximos subtítulos analisarão,
respectivamente, blasfêmias e outros tipos de proposição no mundo luso-brasileiro;
sobre o mesmo tema. Isso será feito a partir de casos referentes a estrangeiros, católicos
ou de outras confissões, que caíram nas malhas inquisitoriais; e, por fim, analisando a
defesa da tolerância religiosa e os ataques contra a Inquisição que aparecem na análise
de alguns processos e algumas produções literárias de meados do século XVIII.
3.2 Blasfemadores e hereges: “delitos de fala”
Em setembro de 1755, o inquisidor Luiz Barata de Lima mandou à então vila de
Punhete, que passou a ser chamada de Constância, a partir de 1837, 48 uma comissão
para averiguar uma denúncia contra Lourenço Ferreira. Este, um homem do mar, casado
e natural de Santa Margarida, também em Portugal, era acusado de proferir uma série de
blasfêmias que constam no 131º Caderno do Promotor e que foram retomadas no seu
processo. Segundo denúncia de uma mulher chamada Catarina Maria, Lourenço Ferreira
“blasfemava contra Deus e contra os santos”. Ela relatou que ele, com uma faca em
mãos “dissera para um Sñr. crucificado que lha havia de pregar” nele. Relatou ainda que
em “uma festa que se faz nesta terra do Divino Espirito Santo” que, “caindo um
tabuleiro de pão na rua”, teria dito que “Nosso Sñr. havia de dar com cada espiga de
trigo uma dúzia de cabelos” somente, e que o pão, criado a partir do trigo, era dado pelo
Diabo. Na mesma festa, teria proferido ainda que Deus “não tinha Misericórdia para o
governar” e também teria dito a seu filho pequeno “que quando fosse a um mandado seu
e encontrasse Nosso Senhor Jesus Cristo” que “o corresse a pedradas e seguisse [o] seu
mandado”, pois “valia mais o que ele mandava do que aquilo que Deus mandava”. A
denunciante disse ainda que Lourenço Ferreira tinha o costume de dizer “que o Diabo
tomasse sua alma”, entre outras proposições, “todas escandalosas, falsas e ridículas”,
segundo os inquisidores.49
48
COELHO, Antonio Matias. Crónica: de Punhete a Constância, por António Matias Coelho [online].
Portal Mediotejo.net. 16/12/2015. Disponível em http://www.mediotejo.net/cronica-de-punhete-aconstancia-por-antonio-matias-coelho/. Acessado em nov. 2017.
49
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Denúncia de Lourenço Ferreira, proc. 1561. Fl. 1-4v.
208
Noutra acusação, Catarina Maria ainda disse que, na mesma ocasião, “com
grande escândalo”, teria ouvido o acusado dizer que “nem clérigo”, “nem frade nem
nenhum dos que serviam o Espírito Santo eram mais que ele e nem capaz[es] de falar
diante dele”, e que “o Espirito Santo” ali festejado “não era capaz de andar debaixo das
solas de seus sapatos”. Afirmou que o mesmo acusado, enquanto entalhava uma rede,
“pegou uma faca e disse virado para um crucifixo que tem em um oratório” que, “já que
não tendes onipotência, estou capaz de vos pregar esta faca”, repetindo, ainda segundo
ela, noutra ocasião, que Deus “não tem onipotência” para lhe governar e “nem
Misericórdia”.50
Outro caso de blasfêmia foi denunciado por Luiz de Souza e Silva contra
Francisco José, durante a visitação da Inquisição portuguesa ao Grão-Pará (1765-1769),
em agosto de 1765. Francisco José também foi acusado de uma gama ainda mais
variada de proposições malsoantes e escandalosas. O denunciante, preso na Enxovia das
Almas, no mesmo Grão-Pará, apresentou-se ao visitador Geraldo José Abrantes. Disselhe que, no período de seis meses em que estivera ali recolhido, tem presenciado
Francisco José praticar diversos “atos [...] sem temor algum da Divina Justiça, e à vista
de todos os presos, tem proferido execrandas heresias [...] e escandalosíssimas
blasfêmias, as quais continua[m] sem emenda”.51 Luiz de Souza e Silva disse também
que o denunciado fora soldado na praça no Grão-Pará, tivera ofício de alfaiate e era
nascido no reino de Portugal. Continuando a denúncia, contou que Francisco José
costumava dizer, pública e obstinadamente, “que não há Deus, e que o Deus que há o
pisa debaixo dos pés”. Também denunciou que, tendo passado no período em que
conviveram “muito mais de cinquenta vezes o Santíssimo Sacramento por de fronte da
dita Enxovia”, enquanto os “mais presos, como cristãos, se punham de joelhos e lhes
rendiam adoração”, Francisco José costumava “virar de costas ficando em pé e batendo
ele no chão com sinais de entranhável ódio”, enquanto dizia as palavras “cão perro”.52
Noutra ocasião em que os presos se levantaram por ter passado uma imagem do
Senhor Sacramentado, continuando a denúncia, Francisco José tornou a virar-se de
costas a ela. Ao mesmo tempo, proferia ele não ser “filho de Deus e que antes se queria
com o diabo que com Deus e que ele não tinha poder algum e somente o tinha o diabo”.
50
Ibidem, Fl. 12v-13.
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Denúncia contra Francisco José, Inquisição de Lisboa, proc.
38/0785. Visitação do Santo Ofício da Inquisição, feita pelo inquisidor Geraldo José de Abranches, no
Estado do Grão-Pará, Brasil (1765-1769). Fl.79
52
Ibidem, Loc. cit.
51
209
O denunciante também declarou que Francisco José se recusava a ouvir missas “de
propósito e caso pensado”, pois, “quando o sacerdote se achava no altar que está de
fronte da cadeia e os mais presos estavam ouvindo [a missa],virava as costas para o
mesmo altar” e, algumas vezes, “rindo se altamente, e outras vezes cometendo o
abominável pecado da molície”. Quanto a esse pecado, ele não se contentava em apenas
de o cometer diante dos demais presos “quando se celebrava o santo sacrifício da missa,
mas descarada e atrevidamente o faz em qualquer hora que lhe parecia, dizendo e
afirmando que aquilo não era pecado”. E, havendo presos que o repreendiam por isso,
para “que não dissesse [a tal proposição] que naquelas poluções procuradas por ele não
havia pecado, por quanto não tinham ouvido dizer que São Paulo declarara contra
semelhantes fatos,”53 respondia Francisco José que “São Paulo era um bêbado, e um
asno, que não sabia o que dizia”.54 Fora isso, em todas as noites, Luiz de Souza e Silva
denunciou que Francisco José se recusara continuamente a rezar o terço de Nossa
Senhora, como era costume dos demais presos. Mais que isso, “antes virava as costas
para a imagem do Nosso Senhor Crucificado, sem que lhe nunca ouvisse rezar nem
Padre Nosso e Ave Maria nem palavra alguma pela qual dê ao menos um leve indício de
ser cristão”. E mais, em algumas ocasiões em que “os presos tinham de beijar os pés do
mesmo Senhor crucificado, lhe levaram para o mesmo fim sua sacrossanta imagem, e
ele respondia que lhe tirassem [a imagem] de diante e metessem na parte mais imunda
do corpo humano”. Ele, além disso, fazia o mesmo com “as imagens do Senhor dos
Navegantes e sua coroa, e outros santos”. 55
Francisco José e Lourenço Ferreira, separados no tempo por aproximadamente
dez anos e no espaço, por um ser colono no Grão-Pará e, o outro, homem do mar em
Portugal, possuem muitos pontos em comum nos seus atos e falas. Saltam aos olhos
diversos aspectos que podem ser relacionados às suas percepções e relações com as
autoridades estabelecidas e a religião. Tais pontos formam um conjunto de visões de
mundo muito mais complexo que, pura e simplesmente, o escândalo causado por suas
proposições – que, aos olhos contemporâneos, poderiam ir do cômico, para os mais
53
Em matéria de posições teológicas quanto ao sexto preceito do decálogo, e mais especificamente
quanto à proibição masturbação masculina, existem frequentes interpretações sustentadas em leituras de
algumas das cartas de São Paulo, em trechos em que fala sobre os pecados da carne e da submissão do
homem a elas. São elas: 1 Coríntios 6:12, Gálatas 5:16, Gálatas 5:22-23, Romanos 13:14, entre outras.
Esse ponto será retomado mais à frente, no Capítulo 4.
54
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Denúncia contra Francisco José. Op. Cit. Fl. 79v.
55
Ibidem, Fl. 79v-80.
210
céticos, ao criminoso, para os mais conservadores.56 O primeiro aspecto é a ênfase que
as denúncias dão à publicidade das proposições, no caso, especificado por termos como
“escândalo” ou sinônimos. O lugar público das blasfêmias torna-se relevante para
entender sua recepção e sua interlocução, mas também remete a uma segunda
56
A sensibilidade quanto a posturas irreverentes frente a elementos religiosos é bastante variável na
contemporaneidade, considerando, conforme os recortes do trabalho, o Ocidente de tradição judaicocristã. São conhecidíssimos alguns casos de grande sucesso de produções que tiveram como temática
central sátiras a temas religiosos, tais como a feita pelo grupo britânico de comédia Monty Python Monty
Python's Life of Brian (1979). Trata-se de uma obra que conta a história de um personagem que fora
confundido com um “messias”, embora nunca quisesse ter seguidores, construindo, ao longo da trama,
uma série de críticas, em tom irônico, à credulidade e hipocrisia dos que seguem as religiões instituídas.
Por outro lado, o direito a manifestar tais posturas quanto ao cristianismo tem sido, frequentemente, usado
como uma espécie de moeda de troca no campo da política por grupos conservadores. Foi o caso da PL
8615/2017, que propôs modificar o artigo 74 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, apresentada pelo
deputado Marco Feliciano. Tal proposta de lei pretendia proibir o que o deputado brasileiro chamou de
“profanação de símbolos religiosos em manifestações artísticas”. Tais manifestações seriam filmes, jogos,
apresentações artísticas, entre outros. Trata-se de um tipo de ação anti-moderna e fortemente alinhada
com discursos conservadores, contrária a qualquer fala ou expressão nos espaços públicos, tradicionais ou
não, de dissenso, crítica ou irreverência quanto à crença dos grupos proponentes ou apoiadores deste tipo
de lei –afinal, na referida PL, não há qualquer sinalização quanto a se entender como “símbolo religioso”
quaisquer elementos que não sejam cristãos, católicos ou protestantes, contrariando quaisquer princípios
de igualdade entre religiões e grupos religiosos, caros às constituições liberais contemporâneas. Outro
exemplo vem do padre Paulo Ricardo Azevedo, conhecido no Brasil por suas posições ultraconservadoras
e que, em texto recente, chegou a criticar a própria Igreja católica quanto às representações de nudez na
arte sacra, em especial a da Capela Cistina. Ele atribui a permissão a essas pinturas a um “novo ambiente
cultural” do qual a Igreja fazia parte, “cuja base não era mais cristã”, sendo essa permissão fruto de um
“período de declínio de sua própria história”. Devo também lembrar que esse tipo de ação conservadora,
ligada ao fundamentalismo religioso, dá-se também fora do âmbito da política institucional, motivando
ações diretas contra “blasfemadores” diversos, muitas vezes de maneira violenta. O ataque à redação do
jornal satírico Charlie Hebdo, em janeiro de 2015, feito por fundamentalistas islâmicos ligados a um
grupo extremista, é um exemplo claro desse tipo de ação. É um equívoco, porém, pensar que tais atos
violentos motivados por supostas violações do sagrado por grupos fundamentalistas estejam ligados
somente ao Islã. Trata-se de uma forma de pensar motivada por preconceitos, norteados por aquilo que
Edward Said chamou de “orientalismo”, termo que define, em linhas gerais, uma “invenção do Oriente”
pelas mentalidades ocidentais, ressaltando aspectos anti-civlizados, como a violência, a incontinência
sexual, o exotismo, entre outros. Pode-se, por exemplo, mencionar as ameaças e os ataques do grupo
fundamentalista estadunidense Army of Christ contra clínicas de aborto em estados dos EUA onde ele é
legalizado e regulamentado, entre os anos 1980 e 1990. Enfim, seria um sem número de exemplos, mas
estes aqui bastam para se colocar em perspectiva que a postura perante o que se considera sagrado, em
alguma medida relacionado a definições próximas daquilo que denominamos “blasfêmia”, no seu sentido
tradicional, ainda que com outros nomes, está presente e permeia alguns discursos contemporâneos. É um
tema que extrapola em muitos os objetivos desta tese e, certamente, merece uma dedicação mais
aprofundada
noutros
trabalhos.
C.f.
Monty
Python's
Life of Brian. Dir. Terry Jones. Produção: John Goldstone. Escrito por: Monty Python. Cinema
International Corporation (UK), Orion Pictures/ Warner Bros. (US), 1979. 93 min; OLIVEIRA, Luccas.
Projeto de lei quer proibir filmes e jogos com símbolos religiosos no Brasil. O Globo, Rio e Janeiro,
04/10/2017, Cultura. Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/projeto-de-lei-quer-proibir-filmesjogos-com-simbolos-religiosos-no-brasil-21907256. Acessado em jan./ 2018; AZEVEDO, Paulo Ricardo,
padre. É verdade que a arte sempre retratou a nudez? Site: Padre Paulo Ricardo. A resposta católica.
27/10/2017. Disponível em https://padrepauloricardo.org/episodios/e-verdade-que-a-arte-sempre-retratoua-nudez. Acessado em jan./2018; Attentat de Charlie Hebdo: il y a trois ans, l’horreur au coeur de Paris.
Rfi – Le voix du monde. 07/01/2018. Disponível em http://www.rfi.fr/france/20180107-attentat-charliehebdo-trois-ans-horreur-coeur-paris-kouachi-hommage-macron . Acessado em jan/2018; SAID, Edward
Wadie. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007; “Army of God” Anthrax Threeats. CBS News, Novembrer 9, 2001.
Disponível em: https://www.cbsnews.com/news/army-of-god-anthrax-threats/ . Acessado em jan./2018.
211
característica que é o fato de que tais falas malsoantes, de maneira espontânea e não
organizada, indicam, de maneira mais ou menos veemente, uma resistência a
instituições católicas e a obrigações delas derivadas, tais como os sacramentos, as festas
religiosas, a moral e os costumes, além da autoridade conferida ao clero. Aproximandose ambas denúncias, é possível pensar uma inserção dessas pessoas acusadas de
blasfêmias e proposições heréticas –delitos ligados à fala e públicos, em alguma
medida, a disputas específicas dentro do campo religioso em meados do século XVIII.
Uma defesa mais ou menos explícita ou consciente de formas mais tolerantes no trato
com a religião foram um elemento central dessas disputas.
Obras clássicas da historiografia sobre a Idade Moderna, como as de Lucien
Febvre e Mikhail Bakhtin, já abordaram esse falar no espaço coletivo, bem como se
detiveram sobre a conotação desse tipo de prática na vida social, além de examinarem
alguns enredamentos dele com a religiosidade. Ambos trabalham com a França da
época de Rabelais, no caso, o século XVI. Isso, avalio, não impede que algumas de suas
categorias sejam consideradas aqui para a condução desta tese. Todavia, são necessárias
algumas ponderações e matizes, de sorte a se formular chaves de leitura consistentes
para se analisar os delitos de fala presentes na documentação inquisitorial no período do
reformismo ilustrado português.
Na clássica obra do teórico russo Mikhail Bakhtin, o desenvolvimento feito das
categorias grotesco e cultura cômica popular revela haver, na Idade Moderna, um
campo bastante sofisticado de visões de mundo, verificáveis em muitos estratos sociais,
que ultrapassa muito as tradicionais simplificações contidas na dicotomia entre culturas
erudita e popular. Trata-se de complexos entrelaçamentos, que envolvem diversas
concepções de corpo, da natureza e da própria religiosidade. Tais entrelaçamentos
implicam uma igualmente complexa circularidade, na qual se cruzam constantemente as
abstrações filosóficas e teológicas e as visões de mundo construídas dentro de uma
cultura predominantemente iletrada. Dentro desse processo, constroem-se filtros
culturais que permeiam representações da realidade amplamente compartilhadas por
homens e mulheres entre finais da Idade Média e o limiar da Modernidade. A partir
desses filtros, é possível observar e identificar alguns dos elementos presentes nas
proposições aqui analisadas. Bakhtin lança mão de um amplo aparato conceitual ao
estudar linguagem e cultura populares à época de Rabelais. Com ela, o autor discute o
“riso popular” como objeto de análise histórica, considerando-o parte de uma “cultura
212
específica da praça pública e também o humor popular em toda a riqueza de suas
manifestações”.57
Baseado nesses pressupostos, Bakhtin formula a categoria da carnavalização,
com a qual define um sistema de imagens e cosmovisões, presentes na cultura popular
medieval e renascentista, e que, em grande medida, traduzem-se no campo da
linguagem como expressão de uma relativa liberdade na fala em relação a “qualquer
dogmatismo religioso ou eclesiástico, do misticismo, da piedade”, e, além disso,
“completamente desprovidos de caráter mágico ou encantatório”. Mais além, sintetiza o
Carnaval no referido período de maneira que não englobe somente a festa que sucede à
Quaresma, mas um sistema de representações da realidade que rompe, ainda que
provisoriamente, algumas das barreiras hierárquicas presentes na vida social moderna.58
Em termos de religiosidade, o “carnaval”, no sentido posto pelo autor, define uma
conjugação de elementos chave para representações da vida real muito própria da Idade
Moderna, que se faz presente nas mais variadas leituras culturalmente difundidas da
realidade. Essas leituras tomam forma numa mistura do sagrado com o profano, do
espiritual com o corpóreo, dentro das mesmas formas de representar o mundo real.
Assim, a carnavalização permeia uma leitura do religioso que é oposta a uma
religiosidade “oficial”, abstrata e erudita, e, ao mesmo tempo, constituinte de um amplo
campo relativamente autônomo de filtros culturais, difusos na cultura popular. Tais
filtros, por sua vez, norteiam a compreensão do mundo e extrapolam, em muito, as
reduções e os enquadramentos criados por uma cultura letrada.59 Sobre tal sistema de
imagens da cultura cômica popular, o chamado “realismo grotesco”, Bakhtin explica
que:
No realismo grotesco (...), o princípio material e corporal aparece sob
forma universal, festiva e utópica. O cósmico, o social e o corporal
estão ligados indissoluvelmente numa totalidade viva e indivisível. É
um conjunto alegre e benfazejo.60
No século XVIII, Bakhtin observou uma tendência do grotesco ser separado do
cômico popular e colocado como elemento que reduzia sua qualidade, caindo numa
espécie de “decomposição naturalista”, segundo a qual as representações do físico, do
57
BAKTHIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François
Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. Brasília/São Paulo: Editora UnB; Hucitec, 2008. 6ª edição. p. 3.
58
Ibidem, p. 7-8.
59
Ibidem, p. 16-17.
60
Ibidem, p. 17.
213
visceral e do corpóreo remetiam sempre ao baixo, vulgar e obsceno, contraposto ao que
era de bom gosto nos domínios da cultura erudita.61
Bastante conhecida também é a importante discussão que Lucien Febvre fez a
respeito do suposto ateísmo do humanista francês Rabelais. No referido trabalho,
Febvre contraria grande parte da historiografia. Em sua concepção, ela exagerava na
descrença atribuída ao autor de Pentagruel (1532) e caía em enormes anacronismos, por
ele entendidos como “o grande pecado do historiador”. Febvre escreveu:
Historiadores, falemos sobretudo da adaptação ao tempo. Cada época
fabrica mentalmente o seu universo, não só com todos os materiais de
que se dispõe, todos os fatos (verdadeiros ou falsos) que herdou ou
que acaba de adquirir, mas também com os seus próprios dons, a sua
engenhosidade específica, os seus talentos, as suas qualidades e as
suas curiosidades, tudo o que a distingue das épocas precedentes. [...].
Paralelamente, cada época constrói mentalmente a sua representação
do passado histórico.62
Assim, Febvre introduz a sua tese de que Rabelais não poderia ser um ateu, no
sentido contemporâneo, uma vez que isso seria conceber o mundo de uma maneira
completamente estranha a seu tempo. Noutras palavras, a descrença atribuída ao
humanista francês seria impensável dentro de um mundo cujas formas de percebê-lo
perpassavam, em todas as suas concepções e representações, elementos religiosos.
Analisando suas proposições, Febvre aponta para a inadequação metodológica de “se ler
um texto do século XVI com olhos de homem do século XX e de lançar gritos de
assombro”. Afinal, “a mesma proposição articulada por um homem de 1538 e depois
por um homem de 1938” não produzem, nas suas palavras, “o mesmo som”.63 Uma das
grandes distinções entre as leituras feitas por homens tão distantes no espaço e tempo,
conforme explica Febvre, sintetiza-se na sua asserção de que “não somos teólogos e os
homens do século XVI eram”. Nas suas palavras, homens e mulheres da Idade
Moderna, ainda que não passassem anos em conventos, colégios e universidades,
viviam imersos numa realidade na qual temas como a imortalidade da alma, de onde ela
vem quando entra no corpo ou para onde vai quando o corpo morre, e questionamentos
a respeito da salvação eterna, sobre o Paraíso, o Inferno ou o Purgatório, dentre outros,
eram parte das concepções mais centrais de mundo. Tais temas eram discutidos e
61
Ibidem, p. 29.
FEBVRE, Lucien. O problema da incredulidade no século XVI: a religião de Rabelais. Trad. Maria
Lúcia Machado; José Eduardo dos Santos Lohner. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 30
63
Ibidem, p.181.
62
214
vividos com “um zelo, uma preocupação com os antecedentes, um respeito às tradições,
um ardor de curiosidade inaudito para nós”.64
Até pelo status de clássicos que as obras de Bakhtin e Febvre adquiriram ao
longo da história da historiografia, do século XX até hoje, não chega a ser novidade o
fato de que trabalhos recentes dialoguem com as problematizações nelas encontradas a
fim de buscar chaves de leitura para a compreensão dos conteúdos das proposições
blasfemas e heréticas, similares às que foram e ainda serão analisadas aqui. Trabalhos
como os de Adriana Romeiro, Yllan de Mattos e Stuart B. Schwartz já fizeram tal
aproximação, levantando importantes considerações a respeito do universo mental e
cultural que pode ser desvelado na análise da documentação do Santo Ofício.
Adriana Romeiro, por exemplo, analisou e questionou, em sua dissertação de
mestrado, aquilo que comumente se entende como um “exteriorismo” marcante na
religiosidade colonial, em reflexões feitas a partir da documentação da Primeira
Visitação às partes do Brasil, de 1596. Para a autora, tal “exteriorismo” em nada lembra
qualquer estado de “vazio espiritual”, como entende equivocadamente parte da
historiografia. Segundo Adriana Romeiro, esse traço remete a um certo “materialismo”,
fundamentado na valorização do corpo e expresso em proposições que indicavam
concepções corporificadas do sobrenatural, que muitas vezes eram identificadas com as
necessidades, desejos e temores dos colonos quanto à vida cotidiana. Essa relação com
o imaterial e espiritual foi denominada pela autora “materialismo popular”, conceito que
exprime a tendência à valorização da vida presente, de seu caráter imediato e concreto,
em detrimento de concepções mais abstratas sobre milagres, salvação ou danação
eternas, entre outros. Isso não significava, no entanto, uma negação da vida após à
morte, mas remetia a um maior acento na percepção do religioso nas conquistas da vida
material. Exprimia-se, também, um desejo popular de uma religiosidade mais tolerante e
branda, questionando-se, por exemplo, a pertinência, com relação à misericórdia divina,
da existência de nações inteiras condenadas ao Inferno, como seriam a dos mouros, a
dos judeus, a dos indígenas e a das demais não conversas à lei de Cristo, além da
própria dureza, conforme o mesmo entendimento, das realidades de privação material à
qual eram submetidas.65
Stuart B. Schwartz, por sua vez, demonstrou o quão próximos estiveram, na
cultura ibérica da Idade Moderna, os sentimentos de tolerância religiosa e as injúrias,
64
65
Ibidem, p.182
ROMEIRO, Adriana. Todos os caminhos levam ao céu. Op. Cit.
215
blasfêmias e proposições contrarias ao Santo Ofício, Igreja, sacramentos ou figuras
sagradas, como os santos. De acordo com o autor, tais demandas por uma maior
tolerância estiveram presentes na cultura popular e eram visíveis nas proposições
heréticas, colocando no mesmo plano uma relação entre heterodoxia e espiritualidade,
que constituíram um campo de contestação não organizado e, muitas vezes, pouco
consciente, a todo um status quo cristão católico.66 Uma crítica que o trabalho de
Schwartz recebeu do historiador italiano Giuseppe Marcocci, com a qual concordo em
grande parte, incide sobre a grande autonomia que o autor estadunidense confere à
religiosidade popular na Idade Moderna ibérica. Segundo análise de Schwartz, “o
caminho da crença de cada um parece ter sido determinado mais por decisões e
convicções individuais que por características sociais”.67 Marcocci argumenta que esse
ponto é uma fragilidade da tese de Schwartz por reivindicar, de maneira excessiva, a
autonomia de uma tolerância religiosa de matriz popular, não explicando sua falta de
relação com posições mais elaboradas, assumidas por teólogos, humanistas e letrados
em geral, que a apoiaram, em medidas e formas variadas, bem como construíram uma
gama variada de argumentos críticos às autoridades eclesiástica e inquisitorial.68 De
toda forma, a crítica de Marcocci a Schwartz vale para grande parte de seu importante
trabalho, exceto para a final, focada no século XVIII. Nela, o autor de Cada um na sua
lei defende a hipótese de as matrizes populares do tolerantismo se entrecruzam a
perspectivas teológicas e filosóficas letradas, típicas do século das Luzes, produzindo
substantivos efeitos nas mudanças sociais que viriam a abalar as estruturas do Antigo
Regime na Península Ibérica e colônias do Atlântico.69 Stuart Schwartz, não justifica
suficientemente o porquê de os cruzamentos entre as perspectivas mais eruditas de
religiosidade e formulações filosóficas e matrizes populares de defesa da tolerância
serem típicos do século XVIII, ou mais acentuados nele. Porém, aponta para um aspecto
importante a ser analisado nesta tese: no “mundo de teólogos” da Modernidade, alguns
temas e problemas de natureza religiosa e teológica articulam e unem, em alguma
medida, representações de mundo absolutamente separadas pelas hierarquias de Antigo
Regime e por diferenças de letramento nos variados estratos sociais. É o que se verifica
na análise das proposições e blasfêmias no mundo luso-brasileiro do Setecentos.
66
SCHWARTZ, Stuart. Cada um na sua lei. Op. Cit. p. 148-150.
Ibidem, p.146.
68
MARCOCCI, Giuseppe. Review of “All can be saved: religious tolerance and salvation in the iberian
atlantic world” (Stuart Schwartz). E-Journal of Portuguese History online. Vol. 8, n. 1, p. 76-78. 2010.
69
SCHWARTZ, Stuart. Cada um na sua lei. Op. Cit. p. 315-384.
67
216
Yllan de Mattos demonstra aproximações importantes ao que foi discutido
acima. Além disso, ressalta um aspecto fundamental desse relativo tolerantismo
depreendido da documentação inquisitorial, analisando questionamentos e mesmo
ataques veementes e injuriosos em delitos de fala contra autoridades eclesiásticas e
inquisitoriais: trata-se de seu caráter de resistência difusa às imposições da ortodoxia,
sem qualquer tentativa substancial de se constituir algum tipo de resistência
organizada.70 As blasfêmias analisadas pelo autor (no caso, injúrias ao Santo Ofício e
aos agentes inquisitoriais) tomaram parte de um conjunto maior de atitudes e falas que
indicavam haver um constante entrelaçamento entre a mencionada defesa de uma
tolerância de matriz popular e outras matrizes mais eruditas, sem que uma determinasse
o funcionamento da outra, ou, ainda, que existissem de maneira absolutamente
autônoma uma em relação à outra. As conclusões do autor, nesse ponto, aproximam-se
das encontradas na parte final da obra de Stuart B. Schwartz, já mencionada. Nesta tese,
não sustento uma discordância substancial em relação ao trabalho de Yllan de Mattos.
Entretanto, as fontes aqui analisadas indicam haver entre os defensores dessas
proposições heréticas, em alguns momentos e casos específicos, ações mais diretas e
conscientes de confronto à ordem cristã-católica e absolutista. Essa situação é
identificável na profusão e divulgação de ideias mais veementes contra a intolerância
institucionalizada, nos ataques às instituições centrais de uma monarquia católica, vistas
como potenciais focos de sedições pelas autoridades, mesmo que esse risco seja,
constantemente, superdimensionado por elas. Acrescenta-se a isso algum nível de
conexão desses indivíduos, que caíram nas malhas inquisitoriais, com circuitos mais
amplos de ataques incisivos contra as Inquisições ibéricas e em defesa de uma
tolerância religiosa. São proposições que relacionam, igualmente, experiências
cotidianas com a diversidade de opinião e de religião presentes nos debates do contexto,
que remetem a uma cultura letrada iluminista, mas também a outras, que não se limitam
a ela. Primeiramente, o objetivo aqui será mapear alguns aspectos constantes nas falas
de diferentes pessoas, provenientes de variados estratos sociais e com níveis distintos de
instrução formal, a respeito do lugar do religioso na vida coletiva. Tais pessoas
manifestaram uma rejeição relativa ou um desajuste em relação à ortodoxia. Essa
perspectiva é um elemento constitutivo das blasfêmias e proposições heréticas.
70
MATTOS, Yllan. "Me tome o Santo Ofício no cu": injúrias populares, críticas e vocábulos da praça
pública contra a Inquisição portuguesa (séculos XVI-XVIII). In: ASSIS, Angelo Adriano Faria de; LEVI,
Joseph Abraham; MANSO, Maria de Deus Beites. (Org.). A expansão: quando o mundo foi português.
1ed.Viçosa / Braga / Washington: Ed. Évora,2014, v. 1. p. 132-151.
217
Um tipo de ato, considerado blasfemo, bastante comum, era o de se adotar
algum tipo de postura imprópria ou de zombaria face aos sacramentos da Igreja, tal
como foi apresentado acima na denúncia contra Francisco José, no Grão-Pará, em
relação às missas. Na mesma visitação, quando Manoel de Oliveira Pantoja se
apresentou ao visitador, foi relatado um caso similar, envolvendo uma representação
cômica da missa e do rito do casamento. No dia 20 de setembro de 1763, Pantoja se
apresentou perante o inquisidor visitador. Disse que haveria pouco mais de dezesseis
anos antes daquela apresentação, no Engenho do mestre de campo Antônio Ferreira
Ribeiro, às margens do rio Acará, entraram ele e mais um grupo de pessoas, entre as
quais o referido mestre de campo, na capela de Santo Antônio, ali localizada. Disse que,
naquela ocasião, “achando-se ele confitente com as referidas pessoas praticando depois
da missa ainda dentro da dita capela”, falara ser “a grande apetência que tinha de casar
uma mulher já velha”, chamada dona Clara. Declarou que Antônio Ribeiro, “para lhe
saciar a sua loucura e desejos de casar, lhe tinha dito por graça que havia de receber o
dito João de Brito”, outro dos denunciados na apresentação. E para que esse casamento
se realizasse, o apresentado disse ter-se fingido de pároco para celebrar a cerimônia,
tomando “uma loba e barrete”. E chamando Clara e o dito João de Brito, por vezes
também nomeado Alonso, ao altar, para realizar o matrimônio encenado, Pantoja disse
ter perguntado para Clara “se ela era capaz de aturar o Alonso porque era um homem
que tinha o membro viril de demarcada grandeza, apontando a grandeza com o braço”.
A isso, Clara respondeu, conforme a denúncia que “isso não importava porque também
ela pari[r]a uma criança com grande cabeça”, do que “resultou um geral riso”.71
Semelhantes desacatos contra ritos e sacramentos católicos apareceram na
denúncia que José de Faria fez contra José Vienne, que segundo ele era natural do Rio
de Janeiro, fora para Lisboa aos cinco anos de idade e, à época da denúncia, era corretor
mor das letras dos câmbios reais e provedor da mesa de seguros. Vienne foi acusado de
várias proposições, tais como, por exemplo, de dizer, num dia de guarda, ao responder à
sua família que lhe dizia para ouvir missa que "leve o diabo a missa e quem a diz e mais
quem a ouve”. Ele o acusou também de dizer, diante de uma imagem da Virgem Maria,
"que Nossa Senhora fora concebida em pecado como outra qualquer mulher”. Também
consta na denúncia que, quando Vienne esteve gravemente doente, diante da visita de
71
AMARAL LAPA, José Roberto do. Livro da visitação do Santo Ofício ao Estado do Grão-Pará: 17631769. Texto inédito e apresentação de J. R. Amaral Lapa. Petrópolis: Ed. Vozes, 1978 (Coleção História
Brasileira, 1). p. 126-128.
218
um pároco, disse "antes queria ver seiscentos mil diabos que o pároco”, além de “que a
cruz não tinha a adoração de latria”, e também “que o Pontífice era Pontífice de merda e
cagalhões”. Disse ainda que livros portugueses e espanhóis “não servem senão para
limpar o cu”, além de comer carne em dias de preceito e “guardar livros mundanos” em
sua casa. Além disso, consta que o denunciado demonstrava não crer em jubileus,
terços, nem em religiosos, assim como não reza e não ouve missa. Manifestava, ainda,
dúvidas quanto à existência do Purgatório e dizia “saber tudo o que acontecia (...) dentro
do Santo Oficio, pois conversou com muitos judeus que estiveram lá presos”. Concluiu
a denúncia dizendo que sua mulher compartilhava das mesmas proposições. Ela trataria
escravas com crueldade, "tiranias que não devem obrar se entre católicos”, além de
dizer que seu irmão é "o diabo de tanta missa". O denunciante, ainda, recomendava
cautela com o denunciado por ele ser muito violento.72
Outra denúncia que trata de proposições contrárias à missa foi a denúncia de
Tereza Nunes contra seu marido José Pereira, sapateiro, dada ao inquisidor Luiz Barata
de Lima. No caso, a denunciante declarou que o marido a teria impedido de frequentar a
missa. Ele a teria tentado persuadir que largasse a lei de Cristo para viver na lei de
Moisés, na qual havia de se salvar e, diante de sua resistência em aderir à fé hebraica,
começou a maltratá-la, além de a impedi-la de guardar os preceitos católicos e obrigá-la
a guardar a sexta-feira. A mulher declarou ainda ter pedido licença ao marido, após
confessar-se com um religioso no Convento de Santo Antônio da Vila, para voltar para
a sua terra natal, Vila Cova dos Tavares (morava na de Covilhã), mas dali foi para
Lisboa para denunciar ao seu marido.73
Na documentação examinada, são, também, inúmeras as proposições contrárias
à confissão auricular. A importância desse sacramento, dentro da dinâmica das
sociabilidades nos reinos católicos da Idade Moderna, era abordada por diversas áreas
do conhecimento. Santo Afonso de Ligório (1696-1787), por exemplo, redigiu uma obra
de grande influência, chamada Instrução prática para um confessor (1757), em que,
contrariando os rigoristas, procura mostrar aos confessores como confortar, tranquilizar,
apaziguar os penitentes. Mas, além desse autor, os debates a respeito da confissão entre
diretores espirituais, teólogos e outros, valiam-se de uma vasta literatura, que
perpassava pensadores católicos diversos, como São Tomás de Aquino e São Francisco
72
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. 121º CADERNO DO PROMOTOR 121, liv. 313. Fl, 247, 247v, 248,
248v.
73
Ibidem, Fl. 306-308
219
de Sales, o que denota que o ato de confessar, em si, tinha uma importância significativa
no contexto.74 Jean Delumeau ressalta que tais autores católicos, ainda que com
enormes discordâncias, tendendo a posturas mais ou menos rigorosas em relação ao
pecado, aproximavam-se quando ressaltavam a importância do ato de se confessar a
eclesiásticos para isso autorizados. Eles exaltavam o triplo papel dos confessores: de
“médico”, de “juiz” e de “pai”,75 sendo também a confissão um instrumento importante
para uma disciplinarização de corpos e mentes no período moderno.76
Um exemplo de proposição malsoante ligada a atos irreverentes contra a
confissão auricular encontra-se numa carta do reverendo João de Jesus Nazaré
denunciando duas irmãs, no ano de 1759, identificadas somente como Francisca e
Isabel, de alcunha “lagartas”. Segundo o padre, as duas, residentes na cidade da Guarda,
tinham “de uso e costume chegarem-se junto aos confessionários e neles ouvir os
pecados dos penitentes, e depois pela sua malevosidade [sic] de língua os andar em
ódio”, juntamente com uma vizinha, identificada como Maria Trindade. As três,
segundo a denúncia, “lhe põem rosto em todos os pecados que podem alcançar e ouvir
das confissões”, e “depois [de] dizerem os confessores, lhos dizem e lhos revelam, e
daqui se levantam tanta ruína e descrédito”. E conclui que as acusadas ainda teriam se
aproveitado de tal procedimento a fim de lhe levantarem falso testemunho.77 Já o
escravo Luiz Pinto, pardo e cativo de Rosa Maria da Encarnação, ao ser repreendido por
comer carne em dia de preceito pelo denunciante Teodoro José, no lugar onde hoje é o
distrito de Roça Grande, nas Minas Gerais, no ano de 1758, foi denunciado porque teria
respondido que continuaria a não guardar aquele jejum católico, uma vez que os
“confessores sempre o absolviam e que isso não era pecado”. Tornando a ser
repreendido, respondera, conforme a denúncia, que “se (comer carne em dia proibido)
fosse pecado grande [...] os confessores o não haviam de absolver”. O denunciante, na
sua denúncia, ressaltou o tom de zombaria do escravo quanto à confissão.78
Algumas das violações do sacramento da confissão foram denunciadas como
tendo religiosos como seus agentes. É o que se verifica na denúncia contra frei
Francisco Xavier do Salvador, franciscano, feita pelo frei Lourenço Caldeira de Abreu
74
COUTINHO, Sérgio Ricardo. Biografia, Documento e Vida Religiosa em Goiás: uma 'outra' história
cultural. Rev. Mosaico, v.1, n.1, p.13-26, jan./jun., 2008. p. 22.
75
DELUMEAU, Jean. A confissão e o perdão. A confissão católica, séculos XIII a XVIII. Trad. Paulo
Neves. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 26.
76
Ibidem.
77
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. 121º CADERNO DO PROMOTOR. Op. Cit. Fl. 31.
78
Ibidem, Fl. 185-185v.
220
Bento, em 1759. Segundo o frade, na Vila de Montargil, patriarcado de Lisboa, o
franciscano teria contado o nome de um confitente a quem remediou e absolveu,
acrescentando que a dita pessoa absolvida era conhecida por incontinente.79 Algo
similar foi denunciado pelo frei Antônio de Melo Pereira de Faria contra o vigário José
Ramos de Morais, que, no Rio de Janeiro, em 1758, foi acusado de quebrar o sigilo da
confissão com frequência, especialmente em se tratando do sexto preceito.80 Outra
proposição contrária ao sacramento que obriga o católico a confessar-se com um
sacerdote aparece na denúncia contra o padre espanhol d. Gabriel de Mira, dada por
João de Morais, que se achava no Hospital Real de Todos os Santos, na enfermaria de
São José, em Lisboa, aos 26 de março de 1760. Segundo a denúncia, o padre teria dito,
à data da confissão da quaresma, que bastava mostrar pesar por ter ofendido a Deus que
o confitente estaria absolvido e, assim, não ouviu os pecados do denunciante na
confissão.81 Já no ano de 1750 e sem ter local especificado no documento, o padre
Antônio Rabelo, ao saber que um confitente cometia pecados contra o sexto
mandamento, teria, com alguma publicidade, procurado o cúmplice, colocando em risco
o segredo da confissão.82 Já o padre Antônio Pedro de Carvalho, em denúncia dada na
Freguesia de Nossa Senhora do Socorro, localizada onde hoje seria o estado brasileiro
do Sergipe, foi acusado de se jactar por revelar segredo de confissão, também
relacionado a violações do mandamento a respeito da castidade.83 Já na denúncia datada
de 28 de maio de 1759, em carta assinada pelo capelão Ângelo de Bastos ao inquisidor
Luiz Barata de Lima, o mesmo padre é acusado de, durante uma procissão realizada no
mês anterior, ter revelado ao denunciante que “ele, confessando um penitente que, a
título de casado, andava amancebado com uma mulher que tinha em casa, e ele, com
esta notícia o fora denunciar”. Isto teria terminado, segundo a denúncia, na prisão do
confitente.84
De maneira similar ao caso das blasfêmias atribuídas a Lourenço Ferreira, acima
analisado, aparecem na documentação alguns casos de desacatos e de agressões a
imagens de santos e outras consideradas sagradas. Um exemplo é denúncia foi dada em
Pedrogão, bispado da Guarda, em Portugal, no ano de 1759, e passada pelo comissário
Francisco Luiz Aires contra Diogo José Sanches e sua esposa Leonor Maria Sanches.
79
Ibidem, Fls. 134.
Ibidem, Fls. 137-137v.
81
Ibidem, Fls. 276 e 276v
82
Ibidem, Fl. 50
83
Ibidem, Fls. 120 e 120v
84
Ibidem, Fls. 121-121v.
80
221
Sobre ela, foi-lhe recomendada a abertura de diligências para se apurar a informação
segundo a qual o casal mantinha uma imagem do Cristo crucificado em uma latrina, que
teria sido achada por Isabel Gertrudes, denunciante. Esta conta também que viu ambos
denunciados darem pancadas no Cristo crucificado. O mesmo Diogo Sanches teria,
conforme a denúncia, jogado um crucifixo ao chão, com desprezo, quando estava com
um carriel que ajustava uma cruz de ouro para vendê-la. A mencionada Isabel Gertrudes
faz outra denúncia, de mesmo teor, no mesmo Caderno do Promotor.85 Por sua vez, um
dos denunciados, Diogo José Sanches, compareceu em mesa no mesmo ano de 1759 a
fim de dizer que Isabel Gertrudes (na sua apresentação, referida como Isabel Gonçalves)
teria feito uma denúncia falsa contra ele e sua esposa, motivada por viver em trato ilícito
com um Alexandre Fernandes, “com quem vivia de maneira indecente, escandalosa,
sendo público e notório o fato de que ambos os queriam prejudicar [o casal antes
denunciado] e eram afeitos a dar falsos testemunhos”.86
Mesmo com a tentativa de defesa de Diogo Sanches, o comissário da Inquisição
Francisco Luiz Aires apresentou denúncia contra ele e sua esposa, Leonor Maria
Sanches, tidos por cristãos novos e donos de uma loja de bacalhau, conforme denúncias
anteriores. Eles foram denunciados por “terem metido um Cristo crucificado em um
vaso cheio de urina e, depois de tirado, a risadas, lhe encheram de pancadas”. A
denúncia do comissário se baseou na que foi apresentada por Isabel Gonçalves, que
afirmou que esteve na casa deles. Segundo a denúncia, ela os tentou repreender, mas lhe
“disseram que se calasse, se não a culpariam”. Em uma ocasião em que ajudava a
vender "uma cruz de ouro com crucifixo na ponta", atirou-a no chão de forma
desrespeitosa, “o que teria sido visto por uma segunda testemunha, Tereza Antunes,
solteira, filha de Aleixo Pires”, que também depôs na diligência. Além disso, teria dito,
na mesma ocasião, que "antes havia de meter no rabo de seu cavalo o crucifixo, a
vender a quem o ajustava".87 Em seguida, o comissário da Inquisição tomou o
depoimento de Isabel Gonçalves. Esta, além de repetir as denúncias anteriores,
descreveu a cena, salientando as risadas do casal ao açoitarem o Cristo crucificado, e
também de o ver várias vezes urinando no bacalhau que vendia. Os inquisidores, porém,
não deram inteiro crédito à testemunha, por já ter sido culpada na visita ocorrida em
85
Ibidem, Fls. 237-238.
Ibidem, Fls. 240 e240v.
87
Ibidem, Fls. 243 e 243v.
86
222
1757, ser de "mau procedimento”, "faladora" e "travessa", e que o denunciado, "em
razão do sangue, poderia obrar o acima deferido", mas era "homem atencioso".88
Noutro testemunho, a acima referida Tereza Antunes disse que Diogo Sanches
varria o lixo de sua loja em cima do crucifixo e confirmou ainda a história de que ele
teria atirado um crucifixo ao chão, demonstrando desprezo. Porém, a cruz, segundo seu
testemunho, não teria crucifixo, ao contrário da denúncia de Isabel Gonçalves.89
Posteriormente, Isabel Gonçalves deu novo testemunho. Nele, detalhou que o caso da
cruz teria ocorrido haveria entre seis e sete anos, e que o dito Diogo Sanches teria dito
para sua mulher não colocar o crucifixo novamente no pescoço, mas "antes o meter no
rabo de seu cavalo" e que não voltasse a lhe cobrar dinheiro. 90 Ao final da diligência, o
comissário concluiu que Isabel Gonçalves vivia amancebada com Diogo José Sanches
fazia algum tempo antes das denúncias, o que deixou de acontecer havia
aproximadamente um ano. Desde então, tratavam-se com inimizade. Portanto, não se
devia dar crédito à denunciante. Apontou ainda algumas incoerências no depoimento de
Isabel, não tendo mais andamento no caso.91
Na visitação ao Grão-Pará também houve denúncias de alguns casos de
agressões a imagens. Por exemplo, no dia 18 de outubro de 1763, José da Costa
compareceu perante o visitador para denunciar Tomaz Luiz Ferreira. Diante de uma
procissão, realizada em 1742, na quaresma, quando um grupo de meninos carregava
“um andor ou carola muito bem asseado e armado com oito velinhas de cera e dentro do
dito andor uma imagem perfeita do Senhor Crucificado”, o denunciado atirou pela
“janela um vaso de imundícias fétidas e asquerosas sobre o dito andor, com tamanho
ímpeto que, com a pancada e peso do dito vaso, caiu o dito andor no chão e quebrou”,
ficando ainda “maculado com as ditas imundícias humanas”.92 Noutra denúncia, feita
por Caetano da Costa, em setembro de 1764, o denunciante afirmou que, durante uma
viagem sua, havia oito anos, à vila de Cametá, estando ele em casa de um Manoel
Arnaut, outro homem identificado por Luiz Fagundes “saíra de dentro de sua casa com
uma imagem do Senhor Crucificado e a pusera em um galho de goiabeira e lhe dera
uma quantidade de açoites” que não sabia ao certo, nem com qual instrumento eles
foram feitos. Ele apontou, ainda, que o próprio Manoel Arnaut teria sido testemunha do
88
Ibidem, Fls. 244-246.
Ibidem, Fls. 246-247v.
90
Ibidem, Fls. 247v-249.
91
Ibidem, Fls. 252-253.
92
AMARAL LAPA, José Roberto do. Livro da visitação do Santo Ofício ao Estado do Grão-Pará. Op.
Cit. p. 168-169.
89
223
ocorrido, que foi denunciado como sacrilégio ao bispo d. Francisco Miguel de
Bulhões.93 Noutra denúncia, ainda no Grão-Pará, feita por Romão Lourenço de Oliveira,
é relatada uma série de agressões feitas pelo capitão mor José Miguel Aires e alguns de
seus parentes contra imagens e símbolos sagrados. Segundo o denunciante, uma jovem
de doze anos de idade chamada Ana, que “por caridade”, durante algum tempo, morava
em sua casa, juntamente com os pais e irmãos, muito “viva e desembaraçada”, lhe
contou sobre o sádico e bizarro hábito do capitão mor de punir seus criados e escravos
mantendo-os durante todo o dia “em um artefato de taboas” em posição similar à
crucificação. Uma das vítimas, inclusive, teria sido a jovem Ana. Fora isso, disse
também que “tendo o dito Capitão Mor um Oratório em sua casa (...) para nele ouvir
missa, ao qual costumavam ouvir seu irmão André Miguel Aires, capitão de auxiliares”,
além de sua mulher e filhos, teria visto a mesma Ana, “por muitas e repetidas vezes, a
dois filhos do dito André Miguel Aires”, um chamado Manoel e outro chamado Pedro,
este “mais moço”, a fazer “horríveis desacatos” e “ações que costumam fazer os índios”
contra imagens sagradas que estavam no oratório. Por exemplo, costumavam cuspir
nelas continuamente “e, depois de estarem cuspidos lhes chamaram nomes infuriosos
[sic], como hipócritas, judeu e outros, e se retiravam para fora do altar”. Além disso,
costumavam, durante os desacatos, a virar-se de costas para as imagens “desabotoando
os calções” e depois “levantavam a camisa pela parte de trás e viravam esta parte para a
dita imagem” do Cristo crucificado e, “abrindo as nádegas lhas mostravam olhando ao
mesmo tempo com o rosto torcido e violenta postura”. Acrescenta ainda que seus pais
não os repreendiam, alegando que eram “rapazes, e que não sabiam o que faziam e
entenderiam que aquela imagem era alguma boneca”.94
As críticas ao clero, regular e secular, muitas vezes misturadas a críticas à
própria Igreja e suas hierarquias e contra a Inquisição também aparecem constantemente
nos delitos de fala. É o que se verifica na apresentação do religioso Pedro Papito,95 feita
em 1759, em Lisboa. Natural de Chatellerault, no reino da França, e residente em
Lisboa, alegou ter proferido diversas proposições desse tipo em discussões com
vizinhos. Por exemplo, contou que, certa vez, quando lhe disseram que “o papa podia
93
Ibidem, p. 229.
Ibidem, p. 218-220.
95
Este sobrenome é, provavelmente, uma corruptela, na tentativa de aportuguesamento de um sobrenome
francês ou de país francófono. Na impossibilidade de se verificar isso no documento e na ausência de
documentação suplementar para viabilizar esse procedimento, optei por transcrever seu nome exatamente
com a mesma grafia do documento. As atualizações da grafia, conforme a língua do país de origem das
ditas pessoas, serão, nesta tese, feitas quando possível.
94
224
meter no céu quem quisesse”, respondera “que o papa não era mais santo que eles e que
não podia dar um escrito, e mandar para o céu”. Noutra discussão, teria dito que não
acreditava nas indulgências que se vendiam nas portas das Igrejas, ao que se seguiu que
seus vizinhos disseram que “o Santo Ofício o há de queimar”. A isso respondeu que o
mesmo tribunal “não havia pegar nele sem ter bens”, além de dizer que “não era bom
beijar as mangas dos frades nem as cruzes por ganhar indulgências”. Concluiu, dizendo
que as proposições não passavam de respostas às provocações que recebia
constantemente e não “por duvidar do poder de Cristo Senhor Nosso, ou o do papa, nem
da autoridade da Igreja e valor das indulgências”.96
Também no sentido de críticas ao clero, mas aqui com alguma coloração mais
direta de tolerantismo, há uma denúncia feita pelo padre Rodrigo Lopes Coelho contra o
carpinteiro Antônio da Silva, em 1761, no arraial de Nazaré, freguesia da Vila de São
João Del Rei, nas Minas Gerais. Disse o denunciante que, achando-se na capela do dito
arraial, ouviu “umas heresias proferidas” pelo acusado, que então trabalhava na dita
capela. O denunciante disse tê-lo repreendido, dizendo que proferiu tais heresias diante
do oficial de carpinteiro Manoel da Mota. As proposições foram várias. Teria dito que
“os preceitos da Igreja não obrigavam a culpa mortal por serem postos por homens” e
também teria proferido que o “sumo pontífice era homem”, e que por isso as pessoas
não devem se obrigar a ele. Também teria dito que não existiam nem Inferno e nem
demônios, e que estes últimos eram homens. E que tudo isso se falava “para florear
quando se falava em milagres e prodígios que os santos fazem e faziam”. Disse ainda,
segundo a denúncia, “que era boa a lei da liberdade de consciência”, ao que uma
testemunha mencionada, chamada Thomas de Souza, teria respondido ao acusado
“muitas vezes para que fosse para a Inglaterra”. E diante do mencionado Manoel da
Mota teria dito, ainda, “que a lei maometana, ou a dos mouros, era boa”, ao que a
referida testemunha lhe teria respondido “que a seguisse ele”. A isso, segue a denúncia,
Antônio da Silva “replicou” ao dito Manoel da Mota, indagando-lhe: “você não tem fé
nela?”. E a isso o denunciado teria respondido, após Mota dizer que não tinha nenhuma
fé na religião maometana, que “se não tem fé na dita seita dos mouros, não se há de
salvar”.97
Mais críticas contra o clero são encontradas na denúncia feita ao cônego
Francisco Fernandes Simões, comissário do Santo Ofício, pelo padre Domingos
96
97
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. 121º CADERNO DO PROMOTOR. Op. Cit. Fl. 5.
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. 122º CADERNO DO PROMOTOR, livro 314. Fls. 228, 230-230v.
225
Teixeira Teles, da paróquia de Nossa Senhora das Necessidades, da Ilha de Santa
Catarina, contra o governador da ilha, d. José de Melo Manoel. No documento, não
consta a data da denúncia, mas infere-se que ela tenha sido dada no período de
governação do denunciado, que foi nomeado em 1753 e ficou no cargo até 1762.98 Na
denúncia, o governador é acusado de várias proposições. Teria dito que os clérigos e
frades são a coisa mais supersticiosa que há no mundo, além de que o estado sacerdotal
é somente um “ornato público do urbe cristão”, pois não são “outra coisa os sacerdotes
mais que uma quadrilha de ladrões, cuja cabeça dela é o sumo pontífice”. Na denúncia,
acrescentou-se: “e isso se acha provado no cartório religioso do Rio de Janeiro, na
defesa de uns capítulos que o governador maquinou do denunciante”. O denunciante,
ainda, afirmou que José de Melo Manoel “acredita ou se persuadiu da superficialidade
da Missa e mandou dizer aos testamenteiros que não façam missas, por não dar dinheiro
aos sacerdotes ladrões, pois não fazem nada além de comer e beber vinho”. Além disso,
que o denunciado “despreza os ritos da Igreja, as bulas e coisas sagradas, publicamente,
e que vai à igreja somente para zombar”. Além disso, “demonstrava irreverência diante
das imagens, especialmente a cruz de Cristo, arrancando-as da casa do governador seu
antecessor e distribuindo entre os guardas”. O denunciante o acusou de zombar das
“conjuras” da Igreja. Conclui a denúncia dizendo que "sua vida é um complexo de
abominações, e se não vê que pratique alguma virtude cristã, antes persuade não só em
palavras, [...] também com as obras os vícios mais perniciosos ao grêmio Católico".99
Consta ainda, no Arquivo Histórico Ultramarino, uma denúncia feita pelo ouvidor da
comarca de Santa Catarina Manuel José de Faria ao juiz e mais oficiais da Câmara pela
má administração de d. José de Melo Manuel, datada de 1758.100 Mais denúncias de
irregularidades contra ele foram feitas no mesmo ano pelo capitão-general do Rio de
Janeiro Gomes Freire de Andrade aos juízes e oficiais da Câmara da vila de Nossa
Senhora do Desterro.101 Neste caso, não se pode dissociar as denúncias contra o
98
No Arquivo Histórico Ultramarino, consta, por exemplo, um documento de 29 de outubro de 1753 em
que d. José de Melo Manuel envia um ofício a Sebastião José de Carvalho e Melo sobre sua posse no
governo da ilha de Santa Catarina, além de informar ao secretário de negócios estrangeiros de d. José I
que enviara, para o Rio de Janeiro, o bergantim que o trouxera, para transportar o seu antecessor para a
Corte. Há menção a uma devassa que mandou tirar da administração da Ilha de Santa Catarina o
denunciado, datada de 3 de maio de 1762. AHU-Santa Catarina, cx. 2, doc. 19. AHU_CU_0-21, Cx. 2,
D. 90; AHU-Santa Catarina, cx. 3, doc. 37. AHU_CU_021, Cx. 3, D. 180.
99
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. 121º CADERNO DO PROMOTOR. Op. Cit. Fls. 250-250v.
100
Arquivo Histórico Ultramarino-AHU. 1758, Agosto, 12, rio Pardo. AHU-Santa Catarina, cx. 3, doc. 2.
101
Arquivo Histórico Ultramarino-AHU .1758, Agosto, 25, [forte de São Miguel]. AHU-Santa Catarina,
cx. 3, doc. 3.
226
governador de presumíveis tensões nas relações que ele mantinha com outras
autoridades locais.
No processo envolvendo um estudante de dezesseis anos, apresentado ao Santo
Ofício em meados do século XVIII, leituras e interpretações heterodoxas das Escrituras
se entrecruzam numa gama bastante variada de proposições. Trata-se de José Caetano
de Miranda, estudante de Moral, que foi levado à mesa do Santo Ofício pelo tio
Martinho Lopes de Miranda, em 1765. Diante do inquisidor Joaquim Jansen Müller, o
denunciante afirmou que o jovem teria escrito “dois ou três” cadernos que, segundo a
denúncia, foram rasgados em pedaços pelo jovem assim que descobertos, em que havia
muitas proposições heréticas organizadas em dezessete capítulos. Na apresentação,
Miranda afirmou que o “padre eterno”, ou seja, Deus, “não tinha princípio, posto que o
desconhecesse”. Disse também que no “cálice consagrado não podia estar o sangue de
Cristo”, já que “se o acólito lançasse no cálice muito vinho e o sacerdote o bebesse se
havia embebedar”, e “como o sangue não embebeda era certo que não era o sangue de
Cristo, mas o vinho que o sacerdote bebia”. Também apresentava uma dúvida quanto à
virgindade de Maria Santíssima, inferida a partir de uma leitura heterodoxa do livro do
Cântico dos Cânticos.102 O jovem também dizia que a Igreja errava ao dizer “In nomine
Patris, et filii, et Spiritus Sancti”, porque se devia dizer, segundo ele, “in nomine Patris,
et Filii, atque illus monitoris ad aliquos”103, pois, se o Espírito Santo fosse para todos, “a
todos inspiraria os acertos, e ninguém seria desamparado, nem incorreria em delitos”.104
No sumário, dois comissários do Santo Ofício consideraram que o jovem incorreu em
heresia formal pelas quatro proposições. O inquisidor recomendou-lhe penas espirituais,
seguidas por um exame de crença, uma espécie de interrogatório, no qual ele foi
perguntado sobre diversas matérias referentes à fé católica. Isso ocorreu aos 6 de
fevereiro de 1766.105
O que se pode depreender dessas diversas denúncias e processos é, em primeiro
lugar, a centralidade de temas teológicos nos vários espaços de sociabilidade,
Da parte citada no documento consta o trecho “Nigra sum sed formosa”, que compõe um trecho que
completo é “Nigra sum, sed formosa, filiæ Jerusalem, sicut tabernacula Cedar, sicut pelles Salomonis”.
Em português, “"Sou morena, mas sou bela, filhas de Jerusalém, como as tendas de Cedar, como os
pavilhões de Salomão”, capitulo 4, versículo 1. C.f. The Knox Bible. New Advent. Disponível em:
http://www.newadvent.org/bible/
Acessado
em
fev./2018;
Bíblia
Católica
Online: https://www.bibliacatolica.com.br/neo-vulgata-latina-vs-biblia-ave-maria/canticum-canticorum/1/
. Acesso em jun./2018
103
“Em nome do Pai, do Filho, e alguns que ele guiar”. Tradução minha.
104
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Apresentação de José Caetano de Miranda, proc. 4.070. Fls 24v, 25
e 25v.
105
Ibidem, Fl. 36v.
102
227
frequentados por pessoas de todos os estratos sociais. Temas como os sacramentos, a
importância da Igreja e do clero na vida coletiva, além do pós-vida, a salvação ou
danação eternas, formavam um campo complexo de assuntos a serem discutidos e que
motivavam preocupações bastante concretas entre as pessoas da Idade Moderna. O
mesmo se pode dizer a respeito de diversas dúvidas acerca do sobrenatural, como a
“concepção sem pecado” de Maria Santíssima (proposição das mais comuns no Brasil
colonial, como atesta pesquisas de Ronaldo Vainfas e Luiz Mott),106 a predominância de
aspectos divinos ou humanos em Jesus Cristo ou questionamentos sobre a ação divina
no mundo material. Trata-se de indagações que estavam intimamente ligadas a muitas
outras ações na vida coletiva, a vivências e a sociabilidades. E, justamente neste ponto,
é que se pode pensar na categoria de “campo religioso”, explicada no Capítulo 2 desta
tese, para se entender a dinâmica das proposições no século XVIII. Por mais necessário
que seja ressaltar a presença de uma intolerância institucionalizada – em diversos níveis,
dentro dos quais os tribunais do Santo Ofício e um amplo aparato de vigilância da
ortodoxia católica e absolutista eram plenamente estabelecidos –, essa enorme
diversidade de ideias, atitudes e falas heterodoxas indica algum nível de disputa pelo
religioso, dentro da qual o alcance e o poder do clero institucionalizado e dos teólogos
jamais se tornou absoluto, ainda que fosse hegemônico.
Nesse “mundo de teólogos”, aqui, novamente, tomando de empréstimo o termo
usado por Febvre sobre o universo de Rabelais, forma-se um complexo enredamento de
ideias a respeito de elementos religiosos, profundamente vincados com a vida coletiva e
que fazem mediações fundamentais na relação de pessoas da Idade Moderna com o
mundo, envolvendo questões de moral, dúvidas existenciais e mesmo a relação com as
autoridades estabelecidas. No caso das heterodoxias, nota-se que existe, no contexto
mencionado supra, um espaço de reinvindicações, tomado por agentes diversos, nos
vários estratos da sociedade, de acesso aos “bens de salvação”, aqui, tomando um termo
de Bourdieu107. Ali, encontravam-se elementos que vão das interpretações autorizadas e
das Escrituras, da administração e acesso a ritos e sacramentos, até a questões que
relacionem moral e salvação, entre outros. É uma dissidência contra a religião, de
natureza absolutamente religiosa, pois se pauta por uma disputa por um capital
106
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados. Moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro:
ed. Campus, 1989. p. 59; MOTT, Luiz R. B. Maria: virgem ou não? Quatro séculos de contestação no
Brasil. Comunicação apresentada na 15ª reunião da Associação Brasileira de Antropologia. Curitiba,
1986.
107
BOURDIEU, Pierre. Gênese e estrutura do campo religioso. Op. Cit.
228
simbólico religioso e, por conseguinte, contra os que o possuem legitimamente e de
maneira socialmente reconhecida. Atacar símbolos, instituições, práticas, ideias ou
pessoas com acesso a esses capitais simbólicos implica, também, tomar parte de uma
realidade relacional entre a dissidência religiosa e a religião, propriamente dita.108 E, em
concordância com discussões já feitas por Yllan de Mattos e Stuart
mencionadas
anteriormente,
trata-se,
em
princípio,
de
resistências
Schwartz,
difusas,
desorganizadas, onde mesmo os radicalismos, contra clero, dogmas e a própria Igreja,
passam longe de algum vislumbre por uma ruptura substantiva com o Catolicismo ou
com a autoridade eclesiástica em si. Enfim, têm-se aqui movimentos de mudança e de
ressignificação das relações das pessoas, nos espaços mais diversos no mundo lusobrasileiro, com a hegemonia cristã católica.
Se não restam dúvidas de que portugueses e colonos, espalhados pelo Império,
ocupavam-se consistentemente de assuntos teológicos, tocantes a diversas matérias, e
que estes faziam parte dessas mencionadas resistências difusas no âmbito da religião, há
alguns aspectos que merecem alguma atenção mais pormenorizada. Um primeiro, que já
foi discutido acima, é o referido “materialismo”, marcante na relação destes indivíduos
com o espiritual,109 notável, entre outros pontos, nas ações físicas feitas contra imagens
sagradas. Em Portugal ou no Grão-Pará, tendo como agentes pessoas de variados níveis
de letramento, alguma ação física contra símbolos e imagens sagrados parecia ser um
tanto comum na documentação inquisitorial de meados do século XVIII. Possivelmente,
nessas agressões, de fundo, há alguma percepção compartilhada sobre o espiritual que
se aproxime das analisadas no famoso livro O queijo e os vermes, de Carlo Ginzburg,
sobretudo as relacionadas diretamente ao moleiro Domenico Scandella, ou Menocchio,
preso pela Inquisição no norte da Itália, por proposições contidas em suas elaborações
cosmológicas. Numa delas, o moleiro dizia que “morre o corpo, morre a alma”,
amparando partes das suas elaborações à leitura que fez das Viagens de Mandeville
(1371).110 Ginzburg ainda menciona e analisa mais dois casos em que a mesma
proposição aparece, referentes aos processos de Alessandro Mantica, que negava a
imortalidade da alma baseado em uma interpretação do livro de Eclesiastes, e o
processo de Pelegrino Baroni, com pontos similares. Assim, o autor observa haver um
108
STEFANO, Roberto Di. Disidencia religiosa y secularización en el siglo XIX ibero-americano. Op.
Cit. p. 158.
109
SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das Letras,
1986.
110
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. Op. Cit. p. 89.
229
componente materialista no universo religioso e espiritual de Menocchio. Trata-se, nas
suas palavras, de uma espécie de recusa de componentes imateriais como filtros para
interpretar a realidade, o que ele associa a um “radicalismo camponês” aplicado ao
religioso e com diversas implicações noutros campos, designando, assim, fenômenos
estudados no Friuli que dão conta de particularidades da religiosidade popular anteriores
ao século XV. Tal “materialismo camponês ou popular” indica um certo nível de
resistência em se admitir um princípio imaterial, mesmo relacionado a Deus, ao mundo,
ao além-vida e às almas dos mortos, que são vistos como entes materiais, tangíveis,
formados por substâncias concretas, algo expresso de forma bastante clara na
proposição “não há mais que nascer e morrer”.111
Já mencionei, também, o trabalho de Adriana Romeiro e o conceito de
“materialismo popular” utilizado pela historiadora para analisar as proposições no Brasil
colonial, no final do século XVI. Um exemplo são as atribuídas a Lázaro Aranha, que
teria afirmado, conforme denúncia analisada, que “no mundo havia vários deuses, sendo
um deus dos cristãos, outro dos mouros, outro dos gentios”, além de dizer que “o deus
dos mouros era somente mais um dos deuses do mundo”. Ele também dissera, conforme
denúncia, que “neste mundo havia [somente] uma coisa imortal, que era o carvão
metido debaixo da terra”.112Relacionando o materialismo, presente na espiritualidade
medieval e moderna nos estratos populares, conforme analisados por Ginzburg e
Adriana Romeiro, há algumas considerações a respeito das agressões e desacatos feitos
a símbolos sagrados. Conforme foram analisadas anteriormente, tais agressões e
desacatos indicam um tipo de relação “materialista”. Reitero, aqui, a conotação do
termo para a Idade Moderna, de alguma materialização do sobrenatural. Não se tratava
de algo encontrado no sentido contemporâneo, que muitas vezes se refere a doutrinas
ateístas. Essa materialização do sobrenatural e, por conseguinte, do espiritual,
certamente, permaneceu nas mentalidades e no campo religioso no mundo lusobrasileiro séculos após os contextos analisados pelos dois autores discutidos supra. Essa
seria a chave mais evidente para se entender o que pensava ou sentia um indivíduo
como Lourenço Ferreira, ao atacar imagens de santos com uma faca. Pode isso ser o tal
“materialismo” ou “radicalismo popular”, pensado quanto ao religioso na Idade
Moderna? A meu ver, as fontes, analisadas à luz da historiografia, apontam para uma
resposta afirmativa. A isso, acrescento mais uma observação: uma agressão dessa
111
112
Ibidem, p. 116-117 e 186-188.
ROMEIRO, Adriana. Todos os caminhos levam para o céu. Op. Cit. p. 228-235 e 294-295.
230
natureza poderia, perfeitamente, significar, no plano simbólico, uma ação contra uma
realidade cristã católica propriamente dita, num sentido mais amplo e profundo, uma
vez que esta, vigiada por diversas estruturas e devidamente enraizada nas mentalidades,
em alguma medida, gerava níveis diversos de insatisfação ou mesmo de revolta nos
contemporâneos. Nas Luzes católicas, com a tentativa de tornar hegemônico um outro
Catolicismo, adequado a uma linguagem racionalista de cariz iluminista, abre-se um
uma fissura inédita e um campo de conflito entre uma ideia de religiosidade conforme
uma “sã teologia”, abstrata e uma epistemologia ilustrada – conforme discutido no
Capítulo 2 – com matrizes populares e “materialistas”, no sentido colocado acima. Isso
se fez notar nas proposições heréticas da documentação inquisitorial a partir de meados
do século XVIII. Esse ponto será retomado e melhor desenvolvido neste capítulo.
Por fim, vejo como necessário pensar em possibilidades de se problematizar tais
pontos de insatisfação e desajuste que, em alguma medida, movimentam essa disputa
pelo religioso, no contexto luso-brasileiro, em meados do século XVIII. Anita Novinsky
observou que algumas dessas características relacionadas ao religioso no universo lusobrasileiro têm relação com uma espécie de “mentalidade inquisitorial”, desenvolvida ao
longo de séculos de perseguições religiosas, responsável por um estado de identidade
ontológica, típico do indivíduo ibérico, sintetizado no que ela chama de uma condição
de “desenraizado” em termos de espiritualidade. Essa condição, que ela utiliza como
categoria para pensar o estatuto do cristão-novo na Idade Moderna ibérica, seria
marcada por uma permanente percepção de desajuste em relação ao status-quo
religioso. À época, o sujeito nunca se percebia plenamente inserido em alguma
comunidade de maneira ampla e plena, tendo uma identidade ontológica dividida.
Afinal, a auto representação ontológico-religiosa do cristão novo da Idade Moderna se
formou, na sua análise, de uma maneira em que ele nem se encaixaria mais em um
judaísmo tradicional, distante dele temporal e espacialmente e precariamente preservado
na memória social, nem mesmo em uma identidade católica de maneira plena, uma vez
que o estado desses sujeitos na modernidade no espaço ibérico e colonial é de constante
suspeição de heterodoxia. Nas palavras da autora, isso descreve o que ela denomina de
um “homem dividido”.113
Anita Novinsky vai além ao dizer que esse estado “dividido” do cristão-novo foi
responsável por uma “inquietude interna, produto de sua condição” na Idade Moderna e
113
NOVINSKY, Anita W. Cristãos-novos na Bahia. Coleção Estudos nº9. São Paulo: Editora
Perspectiva, 1972. p. 141-162.
231
que “provavelmente terá inclinado muitos de seus descendentes a se tornarem
posteriormente maçons e precursores dos ideais de libertação do Brasil”. 114 Em
trabalho, publicado no início dos anos 1990, a autora desenvolve melhor essa relação
feita entre os séculos de repressão inquisitorial aos suspeitos de judaizar e cristãos
novos com as heterodoxias do final do século XVIII. O trabalho tem por objeto as
apropriações heterodoxas dos libertinos luso-brasileiros, estudantes da Universidade de
Coimbra, de uma literatura e um ideário iluministas. Para ela, as vertentes radicais das
Luzes nos espaços lusófonos tiveram suas repercussões e desenvolvimentos mais ricos e
ativos na crítica religiosa. A inquietude espiritual, herança da condição dividida em
relação à identidade religiosa, somada a uma “mentalidade subterrânea” produzida por
séculos de perseguição inquisitorial, contribuiu para que se formassem indivíduos e
grupos mais receptivos às críticas contra a Inquisição ou às ideias em favor da liberdade
e tolerância religiosas no último quartel do Setecentos. Isso se deu, todavia, em
contraste com desenvolvimentos da Ilustração que aconteceram apenas “palidamente
em Portugal”. Anita Novinsky qualifica essas “Luzes estrangeiradas” como
“acovardadas e de compromisso”, sem propostas de grandes mudanças estruturais, tal
como o que aconteceu nos Além-Pireneus.115
O trabalho de Anita Novinsky e essa instrumentalização do conceito de “homem
dividido” para se discutir a heterodoxia na Idade Moderna, bastante discutida na
historiografia, possuem alguns pontos que merecem a devida crítica. A meu ver, a isso,
naturalmente, se soma a necessidade de constante atualização de sua leitura, dada sua
importância nos estudos sobre a religiosidade do período. Um apontamento importante,
feito por Luiz Carlos Villalta, refere-se a uma contradição metodológica na construção
feita pela autora, ao relacionar a dita “mentalidade subterrânea” com a radical crítica
religiosa no final do XVIII, influenciada pelas Luzes. Afinal, a concepção negativa das
Luzes portuguesas construída por Anita Novinsky, tomadas como conservadoras e
compromissadas com a ordem cristã católica e monárquica, desconsidera alguns
aspectos peculiares que conformam as elites letradas portuguesas do Setecentos, ao
passo que outras características específicas luso-brasileiras e ibéricas somente são
levadas devidamente em conta ao analisar o radicalismo religioso dos heterodoxos.116
Nesse ponto, há de se sublinhar que Anita Novinsky não considera adequadamente –
114
Ibidem, p. 64.
_________________. Estudantes brasileiros “afrancesados” na Universidade de Coimbra. Op. Cit.
116
VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do livro no mundo luso-brasileiro sob as Luzes. Op. Cit. p. 127-128.
115
232
acredito que por se valer de concepções de Luzes muito centradas nas grandes sínteses
de Peter Gay, de Paul Hazard e de Ernst Cassirer, centradas na França setecentista e
tomadas como origem de uma modernidade secular e liberal – os desenvolvimentos
específicos que a Ilustração teve nos países católicos do sul da Europa. As Luzes
esmaecidas de Portugal, como tomadas pela autora, são produzidas a partir dos mitos de
modernidade relacionados ao Iluminismo. A ausência de radicalismos no campo
político e a existência apenas de uma vertente radical, discreta e localizada na crítica
religiosa, são compreensões claramente teleológicas. Apesar disso, como categorias de
análise, a “mentalidade subterrânea” e a condição de “homem dividido”, aplicadas às
disputas no campo religioso, podem fornecer chaves de leitura importantes a respeito de
sua estruturação e formulação de ideias que remetam à tolerância.
A condição “dividida” e a “mentalidade subterrânea” são categorias formuladas
a partir de uma ampla pesquisa documental, feita por Anita Novinsky, a respeito de
perseguições contra cristãos novos. Faz-se necessário indagar se o que tais construções
definem em matéria de vivência relacionada ao religioso e da percepção da ortodoxia
católica não abrangia grupos mais amplos, também sujeitos à repressão inquisitorial.
Embora o “homem dividido” constitua um arquétipo que descreve um conflito
ontológico, em grande parte tributário das conversões forçadas e das perseguições aos
suspeitos de judaizar, há exemplos de instrumentalizações dessa categoria para outros
grupos. Adriana Romeiro, em trabalho já discutido aqui, mobiliza tal aporte conceitual
para pensar a condição do mameluco no Brasil colônia, cuja identidade ontológicoreligiosa e cultural não se localiza de maneira muito precisa nem entre o branco europeu
e nem entre o indígena e, mais tarde, entre o escravizado africano.117 Nesse caso, o
mameluco, assim como o cristão-novo, estava, do ponto de vista cultural, numa
condição de trânsito. Tratava-se de um estado de não pertencimento ou pertencimento
incompleto a algum grupo estabelecido. Com isso, tais sujeitos estariam, do ponto de
vista ontológico, em posição privilegiada no sentido de criticar dogmas, doutrinas e
pressupostos teológicos e morais da ortodoxia católica – ainda que, dentro da dinâmica
de sociedades da Idade Moderna, tal “privilégio” também implicava um risco constante
por conta da vigilância inquisitorial. Essa foi uma posição muito específica na Idade
Moderna, mas, dentro do processo de estabelecimento dessa mesma ortodoxia católica e
das estruturas de sua vigilância – em especial, a Inquisição –, enraizaram-se algumas
117
ROMEIRO, Adriana. Todos os caminhos levam para o céu. Op. Cit. p. 233-234.
233
percepções do religioso de forma mais ampliada no tecido social. Dito de outra maneira:
num universo cultural em que conceber o pleno uso dos corpos e mentes, a livre
expressão de opiniões e a livre vivência religiosa não passavam de utopia para alguns, e
sequer eram vislumbrados pela maioria das pessoas – tal como aponta Stuart Schwartz –
118
, um certo dissenso conflituoso, entre aquilo no qual se acredita por “assenso interno”
(usando, aqui, termo comum na documentação) e o que se professa publicamente, tende
a ser mais geral e enraizado nos diversos grupos sociais, e não próprio de um grupo
específico.
É importante ponderar que grande parte da ideia de uma “mentalidade
subterrânea” é tributária do debate historiográfico que defende a existência e
permanência de um judaísmo, em nível privado e doméstico, de maneira clandestina,
em função da vigilância dos tribunais do Santo Ofício. Sem a pretensão de ir muito a
fundo nessa complexa esfera de discussões, há de se considerar que a tradição ibérica no
trato com a minoria judaica, que remonta a processos históricos que vão desde as
chamadas Guerras de Reconquista até as formações das Inquisições espanhola e
portuguesa, passando pelas conversões forçadas e por ações que visaram à sua expulsão
da Península. Como lembra Bartolomé Bennassar, a relativa tolerância anterior às ditas
Guerras de Reconquista foi, em grande medida, produto do equilíbrio político e militar
existente entre muçulmanos e cristãos, entre os séculos VIII e XIII, tendo como marco
central de sua deterioração a batalha de Navas, em 1212119, após a qual o lado cristão
saiu-se amplamente fortalecido. A partir daí, no quadro das crises da Europa no final da
Idade Média, os judeus foram relegados ao papel de bode expiatório, o que intensificou
o processo de hostilidade contra esse grupo nos domínios cristãos. Nesse contexto,
sancionaram-se leis de conversão e realizaram-se batismos forçados, que, segundo
Bennassar, por terem sido desacompanhados da instrução na nova fé, criaram multidões
de indivíduos considerados católicos apenas de modo exterior, mantendo secretamente
práticas judaicas. No pico da hostilidade contra judeus, formou-se um ideal de pureza de
fé, segundo o qual estes outsiders deveriam ser eliminados do reino de Castela – em
alguma medida, de toda a Ibéria –, o que se materializou com a criação dos tribunais do
Santo Ofício, em 1478.120 Sobre o caso português, Henry Charles Lea fala de uma
118
SCHWARTZ, Stuart. Cada um na sua lei. Op. Cit. p. 335.
Batalha em que uma coligação entre reis ibéricos, de Portugal e Navarra, derrotaram o Califado
Almóada, marcando de forma decisiva o processo da chamada Reconquista dos cristãos na Península
Ibérica.
120
BENNASSAR, Bartolomé. L’Inquisition Espagnole. Op. Cit. p. 143-151
119
234
tentativa de “absorção”, materializada nas diversas leis de conversão da minoria judaica
no reino católico, com a qual gozaram de uma certa proteção régia durante o reinado de
d. Manuel I, paralela com hostilidades populares fomentadas pelo baixo clero, como o
pogrom de 1506. Tal condição tornou-se mais precária a partir do reinado de d. João III,
durante o qual, sob influência espanhola – sob reinado de Carlos V – e eclesiástica, em
especial da Companhia de Jesus, fundou-se a Inquisição portuguesa em 1536.
121
Essa
relação com os seguidores da lei de Moisés – também com os suspeitos de a seguirem –,
de acordo com José Pedro Paiva, explica o porquê de Portugal e Espanha não terem
experimentado processos de “caça às bruxas” idênticos aos da Europa setentrional, uma
vez que os hebreus ocuparam, nesse imaginário político-teológico e cultural, o lugar de
bodes expiatórios.122
A vasta produção literária antijudaica, entre os séculos XVI e XVIII, foi
estudada por Bruno Feitler. Segundo esse autor, nenhuma outra minoria religiosa obteve
uma atenção tão grande de tratadistas e teólogos lusos na Idade Moderna, 123 sendo
evidente a constância da “obsessão antijudaica” da Inquisição portuguesa, observável na
reiterada perseguição que lhe foi movida.124 Essa produção literária aponta para uma
chave de leitura: a perseguição contra judeus e suspeitos de judaizar marcou o próprio
delineamento da ortodoxia político-religiosa em Portugal, com contornos muito
significativos, bastante estudados pela historiografia. Dentro desse processo, retomando
aqui a construção de Anita Novinsky, essa mesma ortodoxia em muito se valeu, na sua
formação discursiva, da ideia de haver minorias religiosas, heterodoxas e, em alguma
medida (ou consequentemente) sediciosas, que praticavam seus “desvios” em relação à
fé católica de maneira subterrânea e secreta.
A digressão supra se justifica em função de se pensar mais solidamente uma
outra chave de leitura, esta derivada da releitura a respeito da “mentalidade
subterrânea”, sobretudo, mas também da ideia de “homem dividido”, constantes nas
obras de Anita Novinsky. Analisando os casos das blasfêmias e de proposições
heréticas, como as discutidas neste título e que ainda vão ser discutidas ao longo deste
capítulo, observo que esse tipo de percepção estrutura, em grande parte, as disputas
dentro do campo religioso. As várias proposições, desacatos, blasfêmias e demais
121
LEA, Henry Charles. Historia de la Inquisición Española. Op. Cit. p. 23-41.
PAIVA, José Pedro. Bruxaria e superstição num país sem “caça às bruxas” (1600-1774). Lisboa:
Notícias, 1997.
123
FEITLER, Bruno. O catolicismo como ideal: produção literária antijudaica no mundo português da
Idade Moderna. Op. Cit.
124
MARCOCCI, Giuseppe; PAIVA, José Pedro. História da Inquisição portuguesa. Op. Cit. p. 49-76.
122
235
críticas à Igreja, à Inquisição e a outras autoridades apontam para um substrato bastante
múltiplo de relações com o sagrado e com as autoridades, no qual se colocava em
questão, ainda que sem constituir sistemas ou doutrinas, a própria pertinência dessa
ortodoxia. Trata-se de um aparato conceitual importante para se entender alguns
conflitos de natureza religiosa, presentes nas proposições, sem, efetivamente, concordar
com algumas das conclusões encontradas nos trabalhos de Anita Novinsky, aqui
discutidos. Repita-se, nesta tese, tendo em vista a compreensão das blasfêmias e
proposições heréticas que constituem seu objeto, julgam-se úteis as categorias
“mentalidade subterrânea” e “homem dividido”, formuladas por Anita Nonvinsky. Por
isso, torna-se importante avaliar a percepção, a meu ver, geral, de que existe uma
distância entre o que prescreve a ortodoxia e o que de fato se pensa, professa e discute
em matéria religiosa, relacionando-se tal percepção diretamente à resistência difusa à
ortodoxia presente nas proposições heréticas, blasfêmias e mesmo nas agressões a
imagens religiosas ou injúrias ao Santo Ofício e seus agentes, como explicam Yllan de
Mattos e Stuart B. Schwartz. Ela forma um substrato de uma ampla e multifacetada
crítica religiosa radical, perceptível nas fontes e que aponta, justamente, para uma
disputa em torno do religioso – insista-se, disputa difusa, pouco consciente e
organizada, constituinte de um ideal relativamente claro de se diminuir, ao máximo, a
diferença entre o expresso publicamente e o que era aceito internamente, em termos de
religião. Pleiteia-se, dessa maneira, uma religiosidade e um trato mais brando e tolerante
com os súditos católicos por parte de quem zelava por sua ortodoxia, assim como um
acesso mais direto à administração dos “bens de salvação” (celebrações, missas, moral,
confissões, etc.), menos dependente de sacerdotes, da teologia e dos inquisidores.
Antes de prosseguir com esse ponto, a análise se volta para outra forma
especifica de experiência com o religioso, que vai servir para se desenvolver o
argumento apresentado acima de uma maneira mais densa. No caso, pensar a questão da
tolerância associada à experiência das viagens e dos contatos com estrangeiros, tão
importantes a um período histórico que, conforme os recortes tradicionais, começou
com as grandes navegações e conquistas do “Novo Mundo”.
3.3 Fronteiras nacionais, fronteiras do religioso
236
A viagem se incorporou no imaginário das pessoas da Idade Moderna, ainda que
as condições para as fazer fossem precárias, dificuldade esta que se soma com as longas
distâncias. Em um capítulo a respeito do assunto, Adriana Romeiro diz que:
As paisagens inauguradas pela expansão ibérica no século XV
abriram-se como sendas de complexas mediações culturais: por elas,
transitavam os mediadores que assimilavam as diferenças,
estabeleciam trocas, promoviam invenções sincréticas, que, mais
tarde, renovariam a cultura erudita e abalariam os fundamentos da
ortodoxia religiosa. Nas bordas do Império português, estava em curso
uma experiência singular que desembocaria na relativização das
culturas e das crenças religiosas.125
Dessa maneira, segundo a autora, a experiência da viagem esteve, ao longo do
período moderno, intimamente ligada com a da tolerância religiosa. Isso porque o
deslocamento físico, de diversas maneiras, acontecia juntamente com deslocamentos de
percepções de mundo, na medida em que mediações e filtros de representação do outro
deixavam para trás a estabilidade de um presumível isolamento cultural, curvando-se à
experiência concreta com a alteridade. Partindo desse ponto, Adriana Romeiro aponta
para o fato de que, junto à “gente miúda” no Império português, durante a Modernidade,
floresceu uma nova atitude perante o mundo e também quanto ao “novo” em que o
alargamento de horizontes promovido pelas conquistas em América, África e Ásia
andou em conjunto com uma disposição inédita para o conhecimento de outras culturas.
Disso resultou, também, a adesão aos códigos e valores do outro. Mais que uma
incursão por novas paisagens e culturas, muitas vezes, buscava-se experimentar outros
universos culturais e religiosos, ou até viver entre outras crenças, explorando credos e
tradições religiosas estranhas a princípio, criando-se mecanismos diversos para se
conviver com eles. Assim, num período em que a “escolha religiosa” estava fora de
questão, uma vez que o pertencimento a uma lei específica “determinava o estatuto
ontológico do indivíduo, espraiando-se por todas as esferas de sua existência e
integrando-o ou não ao seio da cristandade”, a experiência das trocas com os demais
sistemas de crenças era mais frequente no mundo colonial. Nas conquistas
ultramarinas, “nas quais os moradores estavam sempre de passagem, misturando-se às
levas de forasteiros que vinham e iam a toda hora – e, dessa forma, impossibilitando as
estratégias de controle e vigilância tão características das aldeias e cidades da Europa
125
ROMEIRO, Adriana. As aventuras de um viajante no Império Português: trocas culturais e tolerância
religiosa no século XVIII. In: PAIVA, Eduardo França; ANASTASIA, Carla Maria Junho (orgs.). O
trabalho mestiço: maneiras de pensar e formas de viver - séculos XVI a XIX. São Paulo: Annablume:
PPGH/UFMG, 2002. p. 483-497. p. 483-484.
237
Moderna –”, formava-se um terreno de identidades mais fluidas, que revelavam novas
sensibilidades diante do outro. Estas eram mais abertas e provisórias, mesmo em
matéria tão central na vida da Idade Moderna como a religiosa.126
O estudo de caso sobre Simeão de Oliveira e Souza foi a forma com a qual
Adriana Romeiro demonstrou a ligação entre a experiência da viagem a terras
estrangeiras e da tolerância religiosa na Idade Moderna. No caso mencionado,
concretizaram-se possibilidades de trocas culturais, levando-se em conta o trânsito desse
indivíduo pelo Império português e também por regiões que o ultrapassavam. Graças a
seus contatos com outras culturas e à vivência em meio delas, a uma ampla gama de
trânsitos e de vivências, constituiu-se uma identidade bastante complexa. Segundo a
autora, sua trajetória ajuda a pensar sobre “as possibilidades de mobilidade geográfica
que estavam à disposição dos aventureiros, revelando o quanto eram pequenas as
distâncias no universo colonial”. Ela também “joga luzes sobre a ação dos mediadores
culturais que, dispersos pelas fímbrias do Império, operavam as sínteses culturais que,
resignificando velhas práticas e forjando outras”, fecundaram “a própria cultura no
confronto com novas paisagens culturais”.127 Simeão de Oliveira e Souza, de acordo
com as fontes analisadas por Adriana Romeiro, em suas perambulações por territórios
na Américas portuguesa e espanhola, pela Espanha, por Argel e pela África, conheceu o
protestantismo com os ingleses e outras leis com outros povos, tendo se convertido
diversas vezes, além de haver participado de várias ordens católicas, como a dos
franciscanos, dos carmelitas e outras. Caindo nas malhas inquisitoriais, vieram à tona
suas dezesseis trocas de identidade, um caso de amizade ilícita com uma mulher
enquanto era religioso, somada às suas experiências religiosas dentro do Catolicismo,
nas ordens, e fora dele, nas “escandalosas” incursões ao Protestantismo, Judaísmo e no
Islã.128 O que chama a atenção é a enorme disposição que o indivíduo analisado
demonstrava em se inserir nos diversos contextos religiosos da maneira mais íntima
possível, e, conforme os depoimentos e demais falas na documentação inquisitorial,
mostrava, em alguma medida, se apropriar de diversos pontos de crenças os mais
diferentes para elaborar suas próprias cosmovisões.
Stuart Schwartz também discute, numa parte de seu trabalho sobre a tolerância
religiosa no mundo atlântico ibérico, a importância que as autoridades inquisitoriais
126
Ibidem, p. 485.
Ibidem, p. 486.
128
Ibidem, p. 486-490.
127
238
davam a esses trânsitos de viajantes, nas colônias, no que toca à defesa da ortodoxia. No
caso, sua análise tem como foco o espaço do Caribe espanhol. Lá, os diversos
contrabandistas e comerciantes que atuavam na região desde o século XVI, passando
pelos estabelecimentos de colônias inglesas, francesas e holandesas ao longo do XVII,
além do contato de colonos católicos com protestantes, judeus e populações
escravizadas, que tornavam o referido espaço profícuo para os mais intensos contatos
entre tradições religiosas distintas. A isso, segundo o autor, somava-se uma escassez de
agentes inquisitoriais dos tribunais hispânicos na região, o que levou autoridades
religiosas estabelecidas no Caribe, no século XVII, a reclamar diretamente com o
monarca sobre essa dificuldade diante da constante ameaça de heresia.129 No século
XVIII, ainda segundo Schwartz, “por meio do comércio, do contrabando e da guerra”,
criou-se um espaço caribenho bastante promissor dentro do qual “pessoas e
mercadorias, e também ideias e livros deslocavam-se entre sistemas imperiais diversos”,
intercambiando, assim, experiências e sistemas religiosos que possibilitaram trajetórias
de conversões, defesas da tolerância religiosa e de maiores liberdades nesta matéria.130
A respeito da relação entre a experiência do deslocamento geográfico e a
tolerância religiosa, duas considerações devem ser feitas: a primeira é que, de fato, a
viagem na Idade Moderna, entendida como um espaço privilegiado de trocas culturais e
experiências com a diversidade, em alguma medida, abalou visões de mundo, que eram
um tanto sólidas e constituintes de identidades, visões essas que tinham no religioso um
campo fundamental. Com isso, a viagem proporcionou, efetivamente, um conjunto
importante de experiências que remetem à tolerância religiosa. Advirta-se que essa
“tolerância” deve ser tomada de acordo com definições próprias da Idade Moderna, ou
seja, que, em linhas gerais, não prescinde da distinção entre erro e verdade, ou que,
muitas vezes, também depende da delimitação de um “outro” como mau ou indesejável.
As fontes apontam que, no período, as relações entre a tolerância e as mediações
culturais e religiosas foram tão diversas quanto os trânsitos dos indivíduos, nem sempre
– raramente, melhor dizendo – com respostas muito similares entre si. Novamente, o
que se observa é um padrão difuso, algo semelhante às proposições e blasfêmias,
analisadas anteriormente. Nesse caso, os mencionados abalos relacionados às
percepções de mundo das pessoas que cruzaram fronteiras geográficas e, também,
culturais e religiosas, implicaram ajustes relacionados à alteridade, à tolerância e mesmo
129
130
SCHWARTZ, Stuart B. Cada um na sua lei. Op. Cit. p. 340-341
Ibidem, p. 341-342.
239
à intolerância. Dentro dessa zona de conflito, localiza-se um importante campo de
críticas à ortodoxia católica que pretendo aqui explorar. É importante ressaltar, por isso,
uma pequena discordância com uma conclusão de Adriana Romeiro, no mesmo trabalho
analisado neste título: ao contrário da autora, não vejo, nesse processo relacionado aos
trânsitos do período moderno, uma “antecipação das ideias das Luzes”131. Como já foi
exposto nos capítulos anteriores desta tese, a própria definição do que era a tolerância
religiosa e do que ela representava esteve muito em aberto nas próprias Luzes. Não
havia uma disposição unívoca e claramente predominante a seu respeito naquele
contexto sociológico, cultural e letrado. Muitas vezes, por exemplo, ideias de tolerância
conviviam com a defesa de algum nível de defesa de verdades absolutas e da coerção
institucional para mantê-las. Esse ponto era tópico comum no universo letrado católico.
Reconheço, porém, que essas as experiências dos indivíduos em trânsito possuem uma
similaridade com os debates e a defesa da tolerância – ou mesmo ressignificações das
diversas intolerâncias – encontrados no contexto da Ilustração. Nas falas de sujeitos que
caíram nas malhas inquisitoriais registradas na documentação, há uma enormidade de
experiências com a alteridade proporcionadas pelas viagens. Tais experiências
potencializaram visões e desejos por vivências mais tolerantes em matéria de religião,
assim como níveis de conflito e confronto entre realidades e visões distintas de mundo,
inéditas para muitos deles, e perfeitamente afinadas com perspectivas mais diacrônicas e
plurais de desenvolvimento das Luzes.132 Dentro de um campo religioso em constante
131
ROMEIRO, Adriana. As aventuras de um viajante no Império Português. Op. Cit. p. 493.
Stephen J. Barnett, ao abordar a tolerância religiosa nas Luzes, sustenta que, tão ou mais importante
que as elaborações dos philosophes a respeito da tolerância religiosa, foi o peso da experiência das
guerras de religião, que se arrastaram entre os séculos XVI e XVII e que, após a revogação do Édito de
Nantes, no final do XVII, eram percebidas, por alguns, como risco iminente. A isso, também, se somam
debates no âmbito da teologia e em outros círculos letrados, não necessariamente considerados como
pertencentes às Luzes (numa perspectiva mais tradicional, sobretudo). A questão importante aqui é a
enorme diversidade de percursos e tradições pelos quais essas pessoas passavam, assim como a quais
aparatos recorriam em suas elaborações sobre a tolerância religiosa. A experiência colonial foi, também,
um dos seus elementos importantes, como discute Alan Lavine. Henri Kamen também defende que os
séculos XVIII e XIX, no Ocidente, “foram devotados à aplicação fragmentária” de princípios de
tolerância, “cujo surto” se observa desde o século XVI, com raízes anteriores, referindo-se a dinâmicas
bastante complexas de elaborações e que envolvem pensadores, formação e conflitos de igrejas e seitas ou
grupos que perpassavam religiões e denominações diversas, bem como experiências com guerras e
perseguições, entre outros. BARNETT, Stephen J. The Enlightenment and religion. Op. Cit.p.54-55;
LEVINE, Alan. Introduction: the prehistory of the toleration and varieties of skepticism. Op. Cit. p. 1-10;
KAMEN, Henri. O amanhecer da tolerância. Op. Cit. p. 242. Em síntese, a pequena discordância
apresentada se refere a uma concepção de Ilustração específica. Apesar de discordar que experiências
como as analisadas por Adriana Romeiro teriam antecipado defesas da tolerância religiosa que saíram da
pena de autores como Voltaire, considero de suma importância pensar as experiências de indivíduos como
Simeão de Oliveira, bem como as dos diversos comerciantes do Caribe espanhol analisadas por Stuart
Schwartz. dentro do mesmo universo mental em que se formaram as ideias das Luzes. Dentro de uma
perspectiva diacrônica para se pensar a formação dos debates e ideias das Luzes, na qual se valoriza o
132
240
disputa, tolerância e intolerância eram constantemente repensadas e reelaboradas,
podendo ser entendidas pela chave da alteridade. A diversidade de possibilidades e de
caminhos em disputa sobre o lugar da diferença religiosa na realidade próxima, dessa
maneira, torna-se o vínculo mais visível dessas experiências e narrativas com a
Ilustração do setecentos.
A segunda consideração é a de que, a partir da análise das fontes, houve um
conjunto de experiências relacionadas ao religioso que, com algum grau de autonomia,
dialogou com a cultura letrada das Luzes, embora com dinâmicas absolutamente
distintas. No caso, o trânsito geográfico e cultural, em questão, impacta também em
apropriações dos debates mais eruditos. Há alguma similaridade entre as dinâmicas de
abalos na estabilidade e cosmovisões religiosas potencializadas pelos trânsitos espaciais
e culturais com os debates letrados sobre a tolerância, e mesmo alguma conexão entre
ambas, sem haver, entretanto, necessariamente, uma interdependência entre essas
realidades. O que se nota na elaboração de proposições é um trânsito bastante diverso
dos que as enunciam. Esse trânsito envolve leituras, autorizadas ou não, de textos e das
próprias tradições religiosas nas quais esses viajantes estiveram imersos.
Retomando a análise da documentação estudada sobre o espaço colonial, volto à
visitação ao Grão-Pará. No dia 10 de outubro de 1763, o padre Miguel Ângelo de
Morais compareceu diante do visitador Geraldo José de Abrantes para denunciar um
homem que nomeou apenas por “Monsieur Gronfelt”. Tratava-se de um engenheiro,
residente no Grão-Pará, ao qual o padre se referiu pelo nome que ele era conhecido na
freguesia do Rosário, bairro da Campina, onde o denunciante era cura e o denunciado,
morador. As denúncias se referem a proposições que o padre teria ouvido do
engenheiro, de quem declarou saber que era “alemão”, em conversas informais. Na
primeira, disse que “indo ele denunciante visitá-lo”, o “denunciado excitou em matéria
de Teologia” e “foi dizer” a proposição de que “Deus parecia iníquo”, já que “sabendo
que uma alma se havia de perder a errava neste mundo”. Complementou, segundo o
padre, dizendo que “assim o sentiam os luteranos que pareciam que tinham razão”. Com
isso, o denunciante inferiu que Gronfelt era “sequaz dos mesmos luteranos ou dos
pensamento sistemático elaborado por letrados de diversos âmbitos, sem a dissociar de outras ideias e
debates cuja origem remete a experiências práticas concetas, num contexto em que os trânsitos de ideias
e práticas também formavam arcabouços fundamentais para as críticas às autoridades e tradições, analisalos se faz imprescindível. Entendo esses agentes não como antecipadores de pontos que constam e serão
sistematizados pelos philosophes, mas como constituintes, em pontos e âmbitos distintos dos quais os
letrados partem, de um mesmo e multifacetado processo.
241
hereges que assim o afirmam”. Ao ser repreendido, continua o padre Miguel de Morais,
o engenheiro se retirou para o seu quarto.133
Ainda na mesma denúncia, o mesmo padre disse que, fazia dois meses e meio
antes da denúncia, aproximadamente, que estando ele e o engenheiro em suas
respectivas casas, que eram próximas de maneira que era possível alguma comunicação
entre eles, ouviu mais algumas proposições. Segundo ele, Gronfelt disse que “muitos
santos cujas imagens estão nos altares estão ardendo suas almas nos infernos”. O
religioso prontamente o repreendeu, dizendo que “não proferisse tal coisa porque, para
se canonizar um santo, se faziam exatíssimas diligências”, além se de gastarem com elas
“larguíssimos anos”. Mais que isso, continuou o eclesiástico, “tudo aquilo que o Sumo
Pontífice dizia ex cathedra se devia ter por infalível pela assistei [sic] que tem do
Espírito Santo”, ao que Gronfelt respondeu que “o Pontífice era homem e como tal
podia errar”. Ao ser repreendido novamente, o denunciado voltou ao seu quarto.134
Ainda na Colônia, nas Minas Gerais, no ano de 1744, o padre Inácio Gonçalves de
Souza denunciou o francês Felipe de La Contrice por cisma. Ele teria dito proposições
sobre as imagens que se adoram e veneram na Igreja católica, afirmando que elas foram
instituídas para os ignorantes, não para os sábios e entendidos. Além disso, sustentou
que os bispos anglicanos, da Inglaterra, eram legítimos.135 Nos dois casos, o estatuto do
Sumo Pontífice e dogmas do Catolicismo, além da própria questão da canonização e
veneração dos santos, apareceram como pontos de conflito associados a percepções de
realidades religiosas distintas. É possível presumir que os denunciados, indivíduos
nascidos em contextos mais próximos do protestantismo, trouxessem aos espaços
coloniais da América portuguesa as críticas à veneração dos santos e ao estatuto do
papa, proposições bastante vivas em suas tradições religiosas de criação.
Por sua vez, estrangeiros católicos também estiveram no centro de conflitos em
matérias similares, ao tomarem contato com comportamentos de católicos lusobrasileiros. Ainda na América portuguesa, destaco a denúncia do doutor “José Baltazar
Auger”, nome aportuguesado no documento do italiano Giuseppe Baldassare Augeri,
contra Gaspar Rodrigues dos Reis Calçado. Augeri apresentou denúncia, em 21 de
133
AMARAL LAPA, José Roberto do. Livro da visitação do Santo Ofício ao Estado do Grão-Pará. Op.
Cit. p. 144-145.
134
Ibidem, p. 145.
135
RESENDE, Maria Leônia Chaves de. Anexo documental. FURTADO, Júnia Ferreira; _____________
(orgs.). Travessias inquisitoriais das Minas Gerais aos cárceres do Santo Ofício: diálogos e trânsitos
religiosos no império luso-brasileiro (sécs. XVI-XVIII). Belo Horizonte, Fino Traço- 1ª edição.
2013.Coleção História. Anexo documental. p. 415-476. p. 433.
242
novembro de 1758, contra várias proposições que afirmou ter ouvido e visto. O
denunciante se apresentou como homem solteiro de trinta e quatro anos, natural da
Freguesia de Santo Cosme e Damião, da cidade de Turim, em Piemonte, na Sardenha, e
morador no curato de Nossa Senhora das Russas, Vila de Santa Cruz do Aracati, em
Pernambuco. O piemontês disse que ouviu o denunciado “dizer várias coisas
malsoantes, protervas e escandalosas” contra a fé católica, “indicativas de Judaísmo”,
como “que Maria Santíssima não podia parir e ficar virgem”, e ainda “achando-se o
denunciante com o denunciado pela Semana Santa, na Igreja Matriz das Russas, disse o
denunciado”, ao ver uma imagem de Cristo preso em uma coluna em que representava o
passo dos açoites, “que aquela figura que estava presa” era “um macacão”. Depois
disso, continua o italiano, “com grandes risadas escarnecia da Santa Imagem e disse”,
ainda, “que as cerimônias da Semana Santa eram macaquices”. Noutra ocasião, estando
novamente junto ao denunciado na igreja, “reparou que o denunciado entrava com umas
esporas nos pés”. Então, ele o advertiu “ser indecência e irreverência” entrar daquela
maneira na igreja, ao que o Gaspar Calçado respondeu-lhe “que tanto fazia entrar com
esporas na igreja como dentro de uma estrebaria, e fazendo mofa do sacrifício da
missa”, acrescentando que “tanto fazia ouvir ou não ouvir, porque missa não enchia a
barriga”. Giuseppe Baldassare Augeri denunciou ainda que, ao advertir o denunciado
por seus excessos de risos e insolências durante a missa, já que “lhe poderiam chamar
judeu pelo portar escandaloso na igreja”, o denunciado respondeu “que ele se prezava
muito de ser judeu”. Denunciou ainda que, por algumas vezes, o denunciado teria dito
que a “igreja do lugar de Aracati não servia para nada, só sim para cagar nela”.136
Na documentação encontram-se alguns casos de estrangeiros que, em Portugal,
de forma e intensidades variadas, viveram situações em que se denota uma espécie de
fronteira entre realidades e práticas religiosas, proporcionada ou potencializada na
situação de viagem por pontos diversos do Império ou fora dele. É o caso de um
irlandês que se apresentou, em Lisboa, em 1760, perante o inquisidor Alexandre Janssen
Muller e cujo nome, no documento, aparece como Olivieiro de São João, um provável
aportuguesamento de Oliver St. John. O apresentado disse que se converteu ao
Catolicismo na França, mas que começou a viver entre os protestantes de várias nações,
tais como holandeses, ingleses e franceses, vindo a praticar seus costumes em Portugal e
nas Índias orientais, onde caíra nas malhas do Santo Ofício. Na apresentação, reforça
136
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. 121º CADERNO DO PROMOTOR. Op. Cit. Fl. 146.
243
seu arrependimento e sua fidelidade à fé católica.137 Tal tipo de conflito também se viu
na apresentação de d. Maria Ilate, dada em 11 de janeiro de 1760, em mesa da
Inquisição de Lisboa. Ela foi levada por seu confessor, o padre Jonh Preston, do Colégio
dos missionários ingleses da mesma cidade. Ela, casada do Jonh Ilate, inglês e morador
também em Lisboa, vivia na casa do Conde de Santiago. Através de seu confessor, que
também foi seu intérprete, a inglesa disse “que se acusa à Mesa do Santo Ofício”,
“depois de ter abjurado” dos “erros dos protestantes”. Ouvindo uma irlandesa, que
morava na mesma casa que ela, dizer que “os parentes dela (...) todos foram para o
inferno ainda crianças de pouca idade”, teve um acesso de raiva e, então, proferiu
algumas proposições malsoantes. Confessou que durante a discussão disse “que se ela
dantes tivera sabido que seus parentes foram para o inferno, que também ela Maria Ilate
houvera de ir”, Falou também que “a seita dos protestantes fora boa”, e que “o
sacramento deles é alguma coisa, a saber pão e vinho, mas que o sacramento dos
católicos não é nada”. Disse ainda que os “católicos são pagãos e gentios, e outras
coisas semelhantes”. Concluiu dizendo que não tinha certeza se “consentiu ou não
interiormente à alguma heresia”, pois “nunca lhe sucedeu antes ou depois de abjurar do
dito acesso de raiva duvidar ou negar qualquer ponto da fé católica”. 138
Outro caso de súdito de origem britânica em terras portuguesas, é o de Thomas
Callis (provavelmente o nome é Thomas Call, aportuguesado), mercador e marinheiro
inglês, nascido e criado no protestantismo, foi para Portugal após converso à lei
católica. Em Lisboa, ele se apresentou em outubro de 1755, perante o Santo Ofício, com
um intérprete, que também era o já mencionado padre John Preston. Na apresentação,
deixou claro que viveu durante longo tempo entre o Catolicismo e Protestantismo e que
também defendia que os protestantes podem se salvar dentro de sua própria lei. No
Caderno do Promotor, há alguns detalhamentos a respeito de sua apresentação, em que
se nota uma importante fluidez entre os limites nos modos como, na Idade Moderna,
eram percebidas e vividas as confissões religiosas pelas pessoas. Thomas vivia, segundo
a apresentação, em casa de outro inglês, que se chamaria Anthony Moore e que tinha
um armazém de vinhos. Disse que “nascendo na heresia protestante que seguiam seus
pais”, viveu nela até os 16 anos. Nessa idade, foi catequizado por um padre, cujo nome,
à época da apresentação, perdera na memória. Assim, “abraçou a religião católica
romana, na qual foi instruído e nela continuou a viver”. Mas quando foi para Lisboa,
137
138
Ibidem, Fls. 231-231v.
Ibidem, Fls. 238-238v.
244
quatro meses antes da apresentação, os contatos com católicos romanos portugueses,
“que lhe falavam o que lhe deviam”, fizeram-no entrar “em alguma exasperação”. Isso o
teria motivado a dizer muitas proposições, que veio a declarar em seguida em mesa.
Disse, como mencionado anteriormente, “que os protestantes podiam se salvar na sua
lei”, o que também dizia a respeito dos católicos. Sustentou que o “Rei da Inglaterra era
a cabeça da Igreja da Inglaterra”. Mas o que chama mais a atenção é o fato de ele
admitir que, “na presença de hereges”, no caso, protestantes, “dizia algumas coisas
contra católicos para o fim de alcançar daqueles (protestantes) algum benefício”.
Afirmou ter falado que não temia ser punido pelas suas proposições, porque “se cá o
prendessem, também em sua terra prenderiam os missionários”. Além disso, deixara a
entender que lhes dizia que poderia tornar ao protestantismo.139 Acrescentou que
estivera em cerimônias protestantes ao voltar para Inglaterra e, na presença de
irlandeses e ingleses em Portugal, participava de tais cerimônias entre os “hereges”. As
proposições, logo em seguida, foram detalhadas em uma carta escrita em latim por seu
confessor e intérprete na apresentação. Não houve indicação de qualquer andamento da
denúncia.140
Alguns pontos similares são notados na denúncia contra Ana O’Kelly, irlandesa,
casada com um protestante holandês, residente em Lisboa. Segundo a denunciante
Antônia do Sacramento, casada com alguém identificado somente como Jacome Lon ou
Marquete Lon, natural da Ilha Terceira e residente no beco dos Alciprestes, freguesia de
Santa Catarina, Anna O’Kelly ou Anna Lon casou-se com Estevão Lon, que era homem
de negócios e, como já foi dito, protestante. Anna foi presa e, depois de solta, voltou
para a Irlanda, onde permaneceu por um ano, retornando em seguida a Portugal. Depois
de seu retorno, dormiu durante algum tempo na casa da denunciante e não quis buscar a
desobriga141 dos preceitos da quaresma, por estar oculta na Corte de Portugal. Ao ser
repreendida pela denunciante a este respeito, disse-lhe que ela não era sua tutora e nem
139
Ibidem, Fl. 51.
Ibidem, Fls. 51v, 52 e 52v.
141
A “desobriga” ou “desobriga pascal” é um preceito católico pelo qual o fiel deve se confessar à época
da quaresma e pedir a contrição de seus pecados. Na Idade Moderna, a desobriga, por meio da confissão e
do perdão, tinha a função de tornar visível que a Igreja católica salvava e era santa. Para a Igreja, o
funcionamento da desobriga tinha várias funções. A começar por tornar claro e público que o clero
cumpria sua função. Além disso, disseminava-se que “a confissão se realizava, espalhando seu efeito de
perdão, de recomposição da graça perdida”. Também fazia com que, “por meio da aparição dos públicos
penitentes”, se sentissem os efeitos benéficos da “cura das almas”, “fazendo voltar os pecadores ao
rebanho, à confissão e à graça”. Por fim, funcionava como eficiente punição dos que não cumpriam o
preceito da confissão obrigatória anual, por meio de listas de desobriga. Algumas vezes, estas tornavamse processos. TORRES-LODOÑO Fernando. A outra família: concubinato, Igreja e escândalo na Colônia.
São Paulo: Edições Loyola, 1999. p.130.
140
245
sua diretora espiritual. Por isso, ela, a apresentada, era obrigada somente ao seu marido,
que vivia sob a lei de uma Igreja reformada. Disse ainda que não havia terra como sua
terra natal, onde "cada um podia viver na lei que queria viver", além de comer carne nos
dias proibidos. Disse ainda, casualmente, diante de um religioso e na presença de seu
marido, que "Nossa Senhora parira três vezes".142 A mesma denúncia, bem menos
detalhada que a anterior, foi feita por outros dois denunciantes, sendo um identificado
como José Rodrigues Chaves. Logo em seguida, foi denunciada também por Tereza da
Ponte, viúva, que disse aos inquisidores que Anna O’Kelly ou Lon "vivia como esposa
de um herege protestante chamado Estevão Lon", mesmo sendo batizada na Igreja.
Reafirma que ela fora presa e que depois de solta voltou para a Irlanda, retornando
depois como "oculta" para Portugal. Disse que viveu oito dias na casa da denunciante,
onde comia carne em dias de preceito. Na ocasião, a denunciada dissera que havia de
fazer, em matéria de religião, somente aquilo que ordenava seu marido. 143
Os documentos analisados até aqui possuem, no mínimo, dois pontos em
comum. O primeiro, como já foi dito anteriormente, é o conjunto de aspectos que
remete ao “mundo de teólogos”, recorrendo novamente à terminologia da obra de
Lucien Febvre, no qual as pessoas viviam imersas. Discussões pessoais, disputas de
argumentos e conversas informais podiam, na Idade Moderna, tornarem-se proposições,
uma vez que a própria informalidade dessas situações, somada aos elementos que
remetiam ao religioso e que, frequentemente, permeavam e pautavam qualquer tipo de
assunto, traziam esse risco em potencial. No caso dos estrangeiros, a isso se soma ao
fato de que sua memória e suas tradições religiosas, distintas das do Catolicismo
português ou colonial, também enredavam-se em tais falas e ações. Trata-se de algo
observável entre estrangeiros que viviam sob outras confissões e também em católicos,
o que denota a diversidade imensa que esta última confissão possuía internamente no
período, constituindo filtros culturais dos mais variados.
Por sua vez, há um outro aspecto, talvez mais importante para o tema central
desta tese. É, no caso, a situação em que o estrangeiro se coloca, num contexto em que
está imerso numa tradição religiosa distinta da que foi criado, diante de uma dinâmica
nova, mais fluída, quanto à própria tolerância com o outro, em matéria religiosa. Dito de
outra forma, a própria tolerância e mesmo a intolerância religiosas eram reorganizadas
junto a todos os mecanismos que permeavam as percepções da realidade desses homens
142
143
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. 121º CADERNO DO PROMOTOR. Op. Cit., Fls. 295 e 295v.
Ibidem, Fls. 296 e 297.
246
e mulheres da Modernidade. São evidências dessa realidade o trânsito entre protestantes
e católicos, além da “exasperação” ao lidar com falas de católicos distintas das
aprendidas quando da catequização, de que é exemplo o caso do marinheiro Thomaz
Call. A relação com o marido protestante e o também constante trânsito entre
Catolicismo e Protestantismo, no caso de Ana O’Kelly ou Lon, são também outra
evidência. O mesmo se pode dizer a respeito do caso de d. Maria Ilate, mais
precisamente da discussão motivada por ouvir que seus parentes foram condenados ao
Inferno. Fica claro que a experiência concreta e as sociabilidades que possibilitam o
contato com alguma alteridade em matéria de religião, muitas vezes, abalam esquemas
mais fixos dados pelas tradições, doutrinas e dogmas protestantes ou católicos.
Seria possível observar tal situação quando o trânsito e o abalo mencionados
anteriormente aconteceram em contextos não cristãos? Nos documentos dos arquivos
inquisitoriais, encontram-se casos de alguns estrangeiros que se converteram, em algum
momento, ao Islã. Tais casos deixam algumas dúvidas, mas fornecem alguns indicativos
para uma resposta positiva quanto a esse problema. Alguns estrangeiros caíram nas
malhas da Inquisição portuguesa acusados de islamismo. No geral, os documentos
referentes a tais personagens não possuem uma grande riqueza de detalhes sobre suas
vivências em contextos islamizados. Mesmo não tendo aspectos fundamentais a este
respeito, que possibilitem ir mais a fundo quanto às várias possibilidades de relações
desses indivíduos com contextos religiosos absolutamente distintos dos de seus
nascimentos, seus processos inquisitoriais indicam pistas importantes nesse sentido e
também sobre suas relações com a ortodoxia católica. Um bom exemplo é o do processo
de Miguel Gregg, marinheiro, natural da Ilha de Malta e vindo da Praça de Mazagão,
que se apresentou ao Santo Ofício quando tinha trinta e três anos de idade. Em 7 de
junho de 1769, em Lisboa, o maltês apresentou-se diante do inquisidor Miguel Barreto
de Menezes. Ele havia ficado preso nos cárceres da Inquisição lisboeta cerca de um mês
antes. Ele declarou que havia quatro anos que ele saíra da mencionada ilha
mediterrânea, em um navio mercante carregado de trigo para o porto de Cádiz, no reino
de Castela. De lá, embarcou para Portugal, dessa vez numa embarcação pequena e
carregada de chumbo. Em meio a essa última viagem, passou pelo Estreito de Gibraltar,
onde se encontrou com duas embarcações de “mouros”, que o capturaram. Gregg estava
junto a um companheiro seu, identificado apenas como José – cujo sobrenome
esqueceu, mas disse que era natural de “Geneva” –, não havendo mais informações
sobre ele no processo. Passando um mês na “terra dos mouros”, ouviu dizer “que se
247
fizesse mouro havia de viver na sua liberdade e livre do cativeiro em que se achava”, e
assim “se resolveu o dizer que era mouro e a sujeitar-se ao que o circuncidassem”.
Também recebera um nome diferente do seu de batismo, no caso, o nome de “Josef”.
Porém, disse que, interiormente, jamais se apartara da fé cristã, vivendo apenas
exteriormente “a Lei de Mafoma”. Por esse motivo, “depois de estar em Larache coisa
de dois anos”, e indo com uma “carta para Marrocos a entregar ao mesmo Rei [em] cuja
terra se demorou coisa de três meses”, o mesmo rei “o mandou outra vez (...) com a
resposta” para outra cidade. Todavia, ele, ao invés de “tomar o caminho para a dita
cidade de Larache”, seguiu “em direitura para a Praça de Mazagão”, com a finalidade de
“nela se ver em terra de católicos”. No entanto, “sendo preso no caminho, para ocultar
ao ‘Bachá’144 Mogamet o fim com que tomava o caminho de Mazagão, lhe disse que,
como não sabia o caminho, Larache inadvertidamente se perdera”. Depois, o mesmo
bachá o deixou novamente em liberdade, no que, segundo a apresentação, fez com que
retomasse o caminho para a cidade de Larache, de onde foi “mandado vir para o
exército que estava sitiando a dita Praça de Mazagão na mesma noite em que chegou”,
em 8 de março do mesmo ano em que se apresentava. Durante esse tempo, disse ter
passado para a dita praça pelo mar e que, estando em território católico, logo pediu para
se confessar. Isso não foi possível de imediato, pois dali a três dias, numa zona de
conflito, teria de obrigatoriamente embarcar para Lisboa, o que fez.145
Outro maltês que se apresentou à Inquisição para se confessar por “culpas de
islamismo” foi Arrigo Grec, ou Rodrigo Grec – aparecem ambos os nomes no
documento –, também marinheiro, no ano de 1755, quando tinha 36 anos. Ele
apresentou no dia 30 de julho, diante do inquisidor Luiz Barata de Lima, através do
intérprete Joaquim Sader Mougella, já que não sabia falar português. Disse que havia
aproximadamente seis anos e três meses “o capturaram os mouros andando em uma
galera, ou galeote maltês” e que, na condição de cativo, fora levado a Túnis, que
atualmente é a capital da Tunísia. Passados, depois desse acontecimento, sete meses,
disse ter sido persuadido por uma mulher chamada “Anja Pelegrina” para que se casasse
com ela. Para tanto, seria necessário que “abraçasse a seita maometana, o que ele, com
as persuasões da dita mulher e por querer com ela casar-se, resolvera fazer-se turco
Provavelmente, o documento se refere ao termo “paxá”, utilizado para se referir a oficiais de alta
patente do Império Otomano desde a década de 1640, também derivado dos termos basha, que vem de
bash, que significa “cabeça” ou “chefe”. Online etymology dictionary. Disponível em
https://www.etymonline.com/word/pasha . Acessado em jan./2018.
145
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Processo de Miguel Gregue, proc. 9840. Fls. 3, 3v e 4.
144
248
exteriormente”. Com isso, ele veio a “deixar a religião católica em que tinha sido criado
e que com efeito o fizera assim consentindo em que o circuncidassem”. Disse ainda que,
depois que se casou com a dita mulher, com a qual teve um filho, “ficava vivendo como
turco, indo às mesquitas dos mesmos (...) e fazendo com eles as cerimônias da seita
maometana”, mas que tudo o fazia “exteriormente, porque no coração conservava
sempre a fé católica”. Por isso, concluindo a apresentação, disse que decidiu por fugir
de Túnis em um navio inglês que fazia viagem para Londres, de onde depois partira
para Lisboa e fora procurar confissão.146
Outro processo apareceu contra um francês de 32 anos, chamado Jean Guibert.
Seu ofício não consta no processo, e nele aparece o nome de outro francês, identificado
como Jean Danté, de 23 anos. Consta que Manoel Tavares da Silva, escrivão do juízo e
auditoria, além de eclesiástico na Praça de Mazagão por provimento do provisor e
vigário geral da mesma praça, passou aos inquisidores, em 1764, um auto de perguntas
feito aos franceses sobre fatos acontecidos no ano anterior. Guibert, nascido
Montbouton, província de Borgonha, no reino da França, conforme os autos, “estava
assistindo na Praça” de Mazagão “no serviço de Espanha”, mas “desertara para a
Berbéria, onde foi apresentado ao rei Mohamed de Marrocos”. Já Danté, segundo os
mesmos autos, disse que também estava na mesma praça, à mesma época, “da qual
fugindo em uma lancha para Castela”, foi surpreendido por “um chavelho de mouros”,
que “lhe tomou o caminho de sorte que o fez dar à costa da Berbéria a quatro
companheiros que (...) iam na mesma lancha”. Eles, sendo “vistos dos mouros, estes os
captivaram [sic]”, i.e., os fizeram cativos. Danté e seus companheiros, conforme o
documento, também foram apresentados ao mencionado rei de Marrocos, e este “fez
trabalhar mais o sobredito (...) Guibert [de sorte] a romper uma muralha”. Tal trabalho,
segundo o que foi dito pelos acusados, era “de muito custo”. Eles alegaram “que não
podiam com tanto trabalho, padecendo de moléstias rigorosas na dita escravidão, onde
foram sempre católicos”. Então, para conseguirem ser libertos, “disseram que queriam
ser mouros e, com efeito, para se livrarem das violências e rigores, disseram ao dito rei”
de Marrocos, segundo eles, “de palavra somente”, que queriam aderir à lei islâmica.
Depois, tendo notícia, por parte de cativos portugueses, sobre os domínios dos mesmos
naquela região, para lá fugiram e se confessaram, comprometendo-se a apresentar ao
Santo Ofício dali a quinze dias, o que fizeram.
146
147
147
Este caso e os dois anteriores sobre
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Processo de Rodrigo Gree, proc. 5168. Fls. 1, 3, 3v e 4.
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Processo de João Guibert, proc. 9694. s/n.
249
acusações de Islamismo tiveram sentenças iguais: abjuração de leve, absolvição ad
cautellam da excomunhão em que incorriam, instrução nos mistérios da fé, penas e
penitências espirituais, além do pagamento de custas.
Isabel M. R. Mendes Drumond Braga, em análises muito mais aprofundadas que
as desta tese acerca da relação entre Inquisição portuguesa, o Islã e islamizados,
apresentou pontos de concordância com os aqui já ressaltados. Ela também defrontou-se
fortemente com o problema do pouco detalhamento que tais processos oferecem a
respeito da vivência dessas pessoas dentro do Islã.148 Seria precipitado e ingênuo
endossar suas falas diante dos inquisidores, concluindo que viviam a lei islâmica
somente de forma exterior e de maneira utilitária. Por outro lado, há indícios bastante
fragmentários sobre alguma vivência mais substantiva nesse contexto cultural e
religioso. Os exemplos podem ser vários, como o casamento de um dos marinheiros
malteses, os motivos da deserção de um dos franceses para a Berbéria, entre outros. De
toda forma, caberiam, na ausência de mais documentos ou detalhes mais profundos na
documentação, somente conjecturas. Seria um assunto que, certamente, demandaria
outras pesquisas que verticalizassem mais sobre o tema. Ao que interessa aqui, o
importante é observar que a ideia de uma religiosidade interior e de outra exterior –
aqui, pouco importando se o que todos afirmaram ao Santo Ofício era falso ou
verdadeiro–fazia-se muito presente nas mentalidades desses homens da Idade Moderna.
Tal ponto, inclusive, é comum entre esses soldados e marinheiros que viveram sob a lei
islâmica ou entre estrangeiros protestantes ou católicos que viveram no mundo lusobrasileiro, sob a ortodoxia católica e a vigilância inquisitorial. Da mesma forma,
aparentemente, essa noção se relacionava com algumas percepções de mundo, quando
eles imergiam em realidades religiosas distintas das suas, o que, de alguma forma, se
relacionava com sua percepção de alteridade.
Há de se considerar, também, que a circulação de pessoas e, consequentemente,
de suas ideias, crenças e práticas religiosas, conforme analisado até aqui, algumas vezes,
teve algum tipo de relação com a cultura letrada. Na documentação, há casos um tanto
peculiares, como o do músico italiano e cantor da Patriarcal João Batista Brace, de
alcunha “Tita”. Em abril de 1757, foi enviado um papel aos inquisidores Luiz Barata de
Lima e Joaquim Janssen Muller, contendo algumas proposições atribuídas a ele. Tal
148
C.f. BRAGA, Isabel M. R. Mendes Drumond. Os Irlandeses e a Inquisição portuguesa. Revista de la
Inquisición, n. 10, p. 165–191, 2001. p. 182-183 e p. 189; ______________. Entre a cristandade e o Islão
(séculos XV-XVII): cativos e renegados nas franjas de duas sociedades em confronto. Ceuta: Instituto de
Estudos Ceutíes, Ciudad Autónoma de Ceuta, 1998.
250
papel foi entregue por outro italiano, chamado Angelo Miguel Galini. As proposições,
um tanto complexas, indicam que o cantor da Patriarcal e ordenado de epístola fazia
muitas críticas à formação da mocidade católica da época em que vivia, misturando no
documento trechos em português e em latim, cujas referências são difíceis de se
identificar – entre textos canônicos, Escrituras e vários outros. Dentre as proposições
que constam da denúncia, há a de que não existe pecado leve por pravidade de matéria,
“mas sim por falta de plena advertência, o de conhecimento ou de ignorância”, e que o
“contrário desta doutrina merece condenar-se por herética”. Também dizia que se devia
seguir às cegas e “com o entendimento totalmente rendido à Verdade, apesar de toda a
natureza”, as máximas da fé cristã, advindas da revelação divina e ensinadas pela Igreja
romana. E isso se daria pelo combate às doutrinas errôneas, condenadas pela doutrina
católica, “por serem origem de todo o gênero de vícios e opostas aos que creem e
professam a Fé”. Diante disso, concluindo seus argumentos contidos no papel de
denúncia entregues à Inquisição, condenava o “ensinarem os meninos e mocidade com
livros profanos, de autores gentios, como são Cícero, Virgílio” e outros. Junto a isso,
também questionava o ensino das teologias especulativa e escolástica, “qual dizem ser
necessária para convencer hereges”, bem como a teologia moral, segundo ele, “fundada
em opiniões que não deixam o entendimento certo do como se deve obrar”. E sobre a
ciência (e seu ensino), dizia que ela “se funda na curiosidade, na estimação vã e cobiça
do mundo, e não em buscar o próprio conhecimento, e pura glória de Deus”. Tudo isso
em conjunto, continuava, levava as pessoas a uma condição em que não se “pode dar de
si senão que heresias, dogmas depravados e todo o gênero de seitas opostas à puríssima
e Santíssima lei evangélica”. E, por fim, concluíra que “a experiência muito bem o
mostra”, ao ver a mocidade ser ensinada com livros profanos, que “por tais canais não
se pode comunicar a graça de Deus”. Com isso, naqueles “deploráveis tempos”, entre
essa mocidade, “em lugar de crescer com as letras no conhecimento e próprio desprezo,
modéstia e pureza da alma”, e também “com ter refreados e rendidos os apetites brutais
e terrenos, tendo-os sujeitos à santíssima vontade de Deus”, acontecia o contrário. Os
estudos, como eram feitos, não eram “outra coisa que uma quintessência da malícia,
porque tudo o seu [sic] fundamento consiste em idear razões para resistir às Divinas
Inspirações e Verdades”. Na denúncia, contudo, se menciona que o acusado era
reputado em Lisboa como “doido”.149
149
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Processo de João Baptista Brace, proc. 4189. Fls. 4-7.
251
Na apresentação do francês Aleixo Escribot, clérigo de prima tonsura, mestre em
latim e francês, natural do marquesado de Chamerix, aparecem formulações elaboradas
a partir da leitura de um livro cujo título não foi dado nem o autor nomeado. O
apresentado disse que, de dois anos até a sua apresentação ao inquisidor Luiz Barata de
Lima, em 1755, “esquecera tanto da sua obrigação”, perdera “o temor de Deus Senhor
Nosso” e, “por cegueira sua, ou corrupção dos costumes, entrara a esfriar na fé”. Daí,
começou a ter algumas dúvidas quanto aos mistérios do Catolicismo, duvidando da
existência do Purgatório, “tendo para si que podia ser uma invenção artificiosa (...) para
enriquecer a Igreja à custa dos povos”. Além disso, naquela época, o juramento da
penitência “lhe parecia uma invenção humana e inútil para a salvação das almas”.
Também passou a duvidar das indulgências que o Sumo Pontífice concede, reprovando
ainda a credulidade dos povos em relação às bulas apostólicas, verônicas e outras
devoções católicas. Por fim, duvidou também do poder do Papa em canonizar os santos,
o que para ele “era um invento da Igreja Romana para persuadir os católicos a fazerem
obras pias e boas”, com a intenção de serem também canonizados. Todas essas
proposições ele comunicara a um outro francês, também residente em Lisboa, a quem
nomeou por Leronycont. Tal interlocutor não manifestara quaisquer reprovações a elas,
lendo com ele um livro de que, como foi dito acima, não se lembrava do título ou autor,
o qual Escribot se comprometeu a levar à Inquisição caso ele não tivesse sido queimado
por seu confessor.150 Acusado de culpas de ateísmo, o clérigo de prima tonsura assinou
um termo de abjuração sobre seus erros.
Escribot e Brace, de formas distintas, nas suas respectivas apresentações ao
Santo Ofício, esboçaram elaborações críticas a dogmas e doutrinas católicos. Tratam-se
de elaborações que eram similares a algumas que eram comuns à religiosidade
portuguesa e luso-brasileira, sendo encontradas em proposições e dúvidas heterodoxas
e, mas que eram filtradas e reelaboradas a partir de suas formações letradas e religiosas.
Elaborar ideias heterodoxas, muitas vezes a partir de uma leitura inventiva,
caracterizada por uma liberdade maior em relação aos textos – da sua posse à
interpretação – e por uma menor reverência a eles, foi uma atitude marcante do
setecentos151. Ela é mais observável no caso de Brace do que no de Escribot, mas ambos
os casos indicam haver uma conexão entre a experiência religiosa, a leitura e as
150
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Processo de Aleixo Escribot, francês de nação, proc. 1900. Fls. 34v.
151
VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do livro no mundo luso-brasileiro sob as Luzes. Op. Cit. p. 409-458.
252
proposições, sendo indicativas de uma espécie de percepção do mundo e de apreensão
de realidades do seu entorno por parte desses estrangeiros em suas respectivas
passagens por Portugal. Trata-se menos da relação entre leituras heterodoxas de
determinados conteúdos e a elaboração de proposições do que da mudança na própria
relação com o texto, fosse ele sagrado ou profano, referente a que tema fosse. Em
Brace, essa conexão mencionada é observável quando, nas suas proposições, ele
relaciona uma leitura livre de textos diversos, que vão da teologia à literatura clássica
romana. Sublinhe-se que, no caso, esse entrelaçamento serviu de arcabouço para uma
interpretação conservadora do músico sobre os tempos em que vivia e sobre a realidade
da educação da mocidade portuguesa, segundo as leis e ideias católicas. Assim, suas
proposições sustentaram algumas de suas críticas à forma e ao conteúdo do que se
ensinava com o objetivo de se manter a ortodoxia católica, de alguma forma tomando
alguma posição sobre a querela de antigos contra modernos. No caso de Escribot, por
sua vez, faz-se ver, de uma maneira menos explícita, sua apropriação de leituras, mas
fica patente alguma liberdade de posse e circulação de escritos. Além isso, evidencia-se,
no caso, a prática de se “colar” proposições a leituras, algo relativamente constante, no
século XVIII, entre heterodoxos luso-brasileiros.152
Todas essas situações anteriormente analisadas evidenciam importantes chaves
de entendimento a respeito da tolerância religiosa a partir da alteridade, tema principal
desta parte da tese. Durante a Idade Moderna, conforme se depreende dos processos,
denúncias e apresentações aqui analisados e contidos na documentação inquisitorial, tais
chaves são encontradas nos trânsitos de experiências, nas tradições religiosas, nos livros
e em outros elementos. É possível vê-las também nesses sujeitos que atravessam
fronteiras, dentro e fora da Europa. A viagem, em alguma medida, reorganiza, na
experiência de pessoas com as mais diversas origens e confissões, alguns elementos de
conflito e de percepção das diferenças religiosas, antes estranhos. A experiência
concreta com a diferença rearticula filtros de entendimento sobre o outro. Mesmo os
conflitos, enraizados em uma memória histórica que remete à intolerância entre os
diferentes credos, acabam por passar por processos de mudança.
Juntamente com isso, é perceptível que, assim como já foi identificado com os
blasfemadores do mundo luso-brasileiro, havia, em meados do século XVIII, duas
vivências religiosas separadas, sendo uma interna e particular, e outra pública. Esta
NOVINSKY, Anita Waingort. Estudantes brasileiros “afrancesados” na Universidade de Coimbra. Op.
Cit.
152
253
última deveria dar-se em conformidade com a ortodoxia, e tal entendimento parecia
estar bem difundido, embora, como já foi mencionado, seja imprudente se considerar
que tais afirmações, feitas diante dos inquisidores, correspondam, necessariamente, à
verdade para esses indivíduos. Estes pontos aqui elencados foram vistos, em meados do
Setecentos, como alguns dos elementos característicos da “seita” dos pedreiros livres, a
maçonaria, juntamente com alguns outros aspectos bastante peculiares destes
indivíduos, reunidos em “conventículos” – conforme a terminologia da Inquisição
portuguesa –, em que se ganhou força a representação desses grupos como ameaça séria
à ordem estabelecida. Um dos pontos nos quais essa ameaça era mais fortemente
percebida, precisamente, a tolerância que pregavam com quaisquer religiões, chama a
atenção. Sobre os pedreiros livres e, mais precisamente, sobre o famoso processo do
maçom John Coustos e os relatos de sua fuga das malhas inquisitoriais, será
desenvolvido o próximo tópico desta tese.
3.4 A lodge de Lisboa, os sofrimentos de John Coustos e uma narrativa antiInquisição
Proposições consideradas heréticas, vivência em contextos religiosos diversos e
a noção de uma fissura entre a ortodoxia estabelecida e uma religiosidade mais
particular, em meados do século XVIII, compunham um campo de ideias em torno do
religioso que se relacionava, em grande medida, com os debates do contexto das Luzes.
Pode se observar isso não somente na busca por argumentos e ideias de autores
importantes ou de apropriações deles nas proposições heterodoxas espalhadas por
Portugal e seus domínios coloniais, mas também na percepção disseminada naquele
contexto de mudanças, um tanto agudas, no que toca a este campo, quanto às críticas ao
status quo católico. Os ataques à Inquisição ou às posições dos eclesiásticos não eram
novos, muito pelo contrário. Mas o processo de secularização que estava em curso
oferecia novos problemas e elementos inéditos para esse contexto de críticas difusas em
matéria de disputa em torno do campo religioso. Efetivamente, tais novidades afetavam
os heterodoxos, mas, também, as próprias autoridades régias e inquisitoriais. Nos
processos sobre a maçonaria, tais relações podem ser percebidas em contornos bastante
visíveis.
Maria da Graça Silva Dias fala sobre quatro fases da implementação da
maçonaria em Portugal, sendo que a primeira remonta à década de 1730. Nela, em
254
período que vai de 1731 até 1737, existiram em Lisboa duas casas maçônicas: a dos
Mercadores Ingleses, de predominância protestante, além da Casa Real Lusitânia,
composta por uma maioria de irlandeses, que, segundo a autora, eram quase todos
católicos. Após a condenação da maçonaria por bula papal em 1738 – que será discutida
mais à frente –, cessaram as suas atividades, embora não existam evidências de que
tenham abandonado, efetivamente, a maçonaria. Ainda segundo a mesma autora, na
segunda fase, iniciada em 1743, adquirem importância a “loja” de John Coustos e mais
um núcleo de maçons de diversas nações, como França e Inglaterra, “onde traços do
maçonismo inglês, andersoniano,153 são indiscutíveis”.154 Segundo Alexandre Mansur
Barata, tudo leva a crer que, nessas organizações maçônicas que surgiram em Portugal
entre a virada dos anos 1720 para os 1730, não havia a presença de portugueses.155É
possível, no entanto, encontrar muitos portugueses envolvidos em processos contra
maçons em períodos posteriores, tanto a partir da época de Coustos como, sobretudo,
depois da década de 1780 – algo que será analisado no último capítulo desta tese.
É importante retomar que, paralelamente ao desenvolvimento da maçonaria em
Portugal, a Santa Sé Romana publicou bulas que a condenaram. Alguns pontos contidos
nelas são fundamentais para que se entenda como as autoridades viam a heterodoxia
religiosa nas atividades dos maçons. A tolerância religiosa é um aspecto fundamental,
visto como escandaloso o fato de que as “congregações” da “seita” dos pedreiros-livres
aceitassem em seu interior pessoas de todos os credos, impedindo-lhes, por meio de
suas constituições e alguns estatutos internos, de participar de polêmicas e querelas
teológicas. Além disso, o segredo e o juramento para mantê-lo foram condenados pelas
bulas, sendo esse aspecto algo sobre o qual os inquisidores insistiram fortemente nos
processos. Jurar com a mão sobre a Bíblia e se reunir onde, presumidamente, os olhos
vigilantes das autoridades católicas não alcançavam, eram práticas que causavam
153
Referente à Constituição de Anderson, marco da maçonaria moderna. Em 1721, quatro anos após a
inauguração da Grande Loja Inglesa, produto da reunião e organização das outras quatro então lojas
londrinas, o pastor presbiteriano James Anderson (1679-1739) foi incumbido de reunir regras e preceitos
adotados na Ordem para lhe elaborar uma constituição. Ela ficou pronta dois anos após, em 1723, depois
de ter sido revista por uma comissão da mesma ordem, objetivando ser uma espécie de documento básico
universal da maçonaria. C.f. VALADARES, Virginia Maria Trindade. A maçonaria moderna nas malhas
do Santo Ofício no Império Português no setecentos. Revista de História Regional, v. 19, n. 2, p. 346–
360, 2014. p. 348-349.
154
DIAS, Maria da Graça Silva. Anglismo na Maçonaria em Portugal no limiar do século XIX. Análise
Social, v. XVI, n. 61–62, p. 399–405, 1980. p. 399-400.
155
BARATA, Alexandre Mansur. Sociabilidade Ilustrada & Independência no Brasil. 1790-1822.
Editora UFJF. Juiz de Fora, 2006. p. 52.
255
particular incômodo. Na bula In Iminenti, de 1738, publicada no papado de Clemente
XII, esse incômodo se evidencia:
Agora, chegou a nossos ouvidos, e o tema geral deixou claro, que
certas
Sociedades,
Companhias,
Assembleias,
Reuniões,
Congregações ou Convenções chamadas popularmente de Liberi
Muratori ou Franco-Maçonaria ou por outros nomes, de acordo com
as várias línguas, estão se difundindo e crescendo diariamente em
força; e que homens de quaisquer religiões ou seitas, satisfeitos com a
aparência de probidade natural, estão reunidos, de acordo com seus
estatutos e leis estabelecidas por eles, através de um rigoroso e
inquebrantável vínculo que os obriga, tanto por um juramento sobre a
Bíblia Sagrada quanto por uma variedade de severos castigos, a um
inviolável silêncio sobre tudo o que eles fazem em segredo em
conjunto.
Mas é parte da natureza do crime trair a si própria e para mostrar ao
seu próprio clamor. Assim, estas citadas Sociedades ou Convenções
têm causado na mente dos fiéis a maior suspeita, e todos os homens
prudentes e íntegros têm apresentado o mesmo juízo sobre eles como
sendo pervertidos e depravados, pois se eles não estão fazendo mal,
então não deveriam ter um ódio tão grande da luz. De fato, este rumor
tem crescido a tais proporções que, em vários países estas sociedades
têm sido proibidas pelas autoridades civis como sendo contra a
segurança pública, e por algum tempo pareceu terem sido prudentes
eliminá-los (grifos meus).156
Os mesmos aspectos são confirmados numa segunda bula condenatória contra a
maçonaria, a Provida Romanorum Pontificum, de 1751, dada no papado de Bento XIV.
O tom dessa bula é de uma confirmação da proibição da anterior, somado à reafirmação
dos pontos sobre os quais a proibição se sustenta. Cita, como primeira causa da
proibição, que, “entre as causas mais graves das supraditas proibições e condenações
enunciadas” na bula anterior, “a primeira é: que nas tais sociedades e assembleias
secretas, estão filiados indistintamente homens de todos os credos; daí ser evidente a
resultante de um grande perigo para a pureza da religião católica”. Além disso,
detalhando mais que na bula anterior, enuncia que:
— a segunda é: a obrigação estrita do segredo indevassável, pelo qual
se oculta tudo que se passa nas assembleias secretas, às quais com
razão se pode aplicar o provérbio (do qual se serviu Caecilius Natalis,
em causa de caráter diverso, contra Minúcius Félix): “As coisas
honestas gozam da publicidade; as criminosas, do segredo”;
— a terceira é: o juramento pelo qual se comprometem a guardar
inviolável segredo, como se fosse permitido a qualquer um apoiar-se
numa promessa ou juramento com o fito de furtar-se a prestar
declarações ao legítimo poder, que investiga se em tais assembleias
156
In Eminenti Apostolatus Specula, papal bull dealing with the condemnation of freemasonery. Pope
Clement XII. [1738]. Disponível em: www.papalencyclicals.net/clem12/c12inemengl.htm . Acesso em
fev./2018.
256
secretas não se maquina algo contra o Estado, contra a Religião e
contra as Leis;
— a quarta é: que tais sociedades são reconhecidamente contrárias às
sanções civis e canônicas; o direito civil proíbe ajuntamentos e
sodalícios, como se pode conferir no XLVII livro de Pandectas, tit.
22 de Collegüs et Corporibus illicitis e na célebre carta de Plinius
Caecilius II, que é a XCVII, livro 10, na qual diz ser proibida pelo
Imperador a existência de “Hetérias”: isto é, sociedade alguma ou
reunião podia existir e constituir-se sem a devida autorização do
príncipe;
— a quinta é: que em muitos países as ditas sociedades e agregações
foram proscritas e eliminadas por leis de príncipes seculares;
— a última enfim é: que as tais sociedades e agregações são
reprovadas por homens prudentes e honestos e, no pensar deles, quem
quer
que
se
inscreva
nelas
merece
o
ferrete
da depravação e perversidade.157
Nas bulas, a tolerância religiosa é vista como ameaça à pureza da fé católica, já
que as “congregações” aceitavam pessoas de diversas confissões de maneira igual. Elas
apresentam, no geral, uma sofisticada visão de conjunto. De acordo com o conteúdo dos
ditos documentos pontifícios, as reuniões secretas quebravam ou conspiravam contra
laços de fidelidade que eram caros à estrutura social do Antigo Regime, quais sejam: a
autoridade eclesiástica e uma estrutura social própria de uma sociedade monárquica,
estamental e altamente hierarquizada. É importante lembrar que um dos fundamentos do
ordenamento social e jurídico da sociedade portuguesa se sustentava em cima da
categoria “ordem”, que, segundo Antônio Manuel Hespanha, constituiu uma moldura
explicativa do modo de ser das estruturas institucionais da Idade Moderna. “Ordem”
consistia no entendimento de que a sociedade seria um todo composto por partes
desiguais e autônomas, sendo que essa desigualdade se refletia tanto no ordenamento
jurídico como nos ideais e paradigmas de formação da sociedade.158 A manutenção
desse modelo de estruturação social e política, que visava, em última análise,
harmonizar em suas estruturas as várias partes desiguais e hierarquizadas centrada na
figura do monarca, assentava-se no ideal distributivo de benesses, privilégios e castigos,
segundo a qualidade de cada um, em uma cadeia de negociações de redes pessoais,
clientelares e institucionais.159 Assim, era perfeitamente entendível que a prática dos
juramentos, feitos à parte dessas redes, pudesse ser entendida como potenciais focos de
157
Provida
Romanorum
Pontificum,
Benedetto
XIV.
[1751].
Disponível
em
http://digilander.libero.it/magistero/b14provi.htm . Acessado em fev./2018.
158
HESPANHA, Antônio Manuel. Imbecilitas: As bem-aventuranças da inferioridade nas sociedades de
Antigo Regime. São Paulo: Anablume, 2010. p. 47-67.
159
GOUVÊA, Maria de Fátima S. Poder político e administração na formação do complexo atlântico
português (1645-1808). In: FRAGOSO, João. et alli. (orgs.) O Antigo Regime nos trópicos. Rio de
Janeiro: Civilização, 2001, p. 285-316.
257
sedição, uma vez eles eram dados a instituições (as “lojas”, ordens etc.) não ajustadas a
esse paradigma de governação, e entre indivíduos membros delas, em desconformidade
com os ajustes internos desse ideal de sociedade. Juntamente com o destaque de que tais
sociedades aceitavam homens de diversas religiões, vinha também um apontamento
condenatório por eles terem diversas origens, algo que poderia ser visto como
subversivo, dentro de dessa mesma ordem estamental.
Além de tudo, o juramento e o segredo possuíam um peso simbólico importante,
que será aqui analisado ao longo da discussão sobre alguns dos processos. Deve-se
salientar que, em meio ao contexto de publicação de ambas bulas, formava-se em toda a
Europa, sobretudo na Inglaterra e na França, uma relativamente vasta literatura
antimaçônica que, em grande medida, se pautava em pontos que remetem a uma suposta
conspiração vinda da maçonaria contra as autoridades estabelecidas e contra a
religião.160 As lojas maçônicas constituíam, no século XVIII, parte de uma esfera
pública burguesa, formada pelo uso, no espaço público, da razão por pessoas privadas.
Isso marcou uma mudança nas práticas de discussão no contexto das Luzes, tornando a
crítica racional, para além das distinções sociais, uma espécie de crivo definitivo para
quaisquer argumentações, algo possível, de início, somente em instâncias preservadas
da vigilância absolutista.161 Alguns historiadores veem nessa situação um dos elementos
chave de corrosão de estruturas do Antigo Regime.162
Segredo, igualdade e tolerância, além dos próprios rituais e detalhes dos
ajuntamentos – na documentação, termo constantemente usado pelos escrivães do Santo
Ofício para se referir às reuniões maçônicas, assim como “conventículos”,
“congregações” e “assembleias” –, são elementos frequentes nos interrogatórios e
apresentações dos maçons à Inquisição, sendo um exemplo o núcleo supracitado do
protestante suíço e maçom John Coustos, processo que será analisado mais à frente.
Antes, começo a análise com a apresentação do português, filho de francês com uma
portuguesa, Feliciano de Oliveira, datada de 1743. O alfaiate tinha 26 anos quando se
apresentou em mesa, em abril do mencionado ano, diante do inquisidor Manoel Varejão
e Távora.
160
MAGALHÃES, Pablo Antonio Iglesias. O caçador de pedreiros-livres: José Anastácio Lopes Cardoso
e sua ação contra a maçonaria luso-brasílica (1799-1804). Revista de História, v. 0, n. 176, p. 1, 4 ago.
2017. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/111602>. Acesso em: 6 fev.
2018. p. 8
161
HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Op. Cit. p. 42-50.
162
C.f. CHARTIER, Roger. As origens culturais da Revolução Francesa. Op. Cit.; OZOUF, Mona. Le
concept d’opinion publique au XVIIIe siècle. Op. Cit.
258
Em suas falas, declarou que, pouco mais de dois anos antes daquela data, “em
um porto de França chamado Ave de Graça”, se encontrou com um estrangeiro
“chamado Monssier Custô, suíço de nação”, que disse a ele ser lapidário e morar na
Corte de Lisboa. Com ele “travando amizade”– o referido era o próprio John Coustos –,
foi persuadido, ao lado de “outros mais que se achavam na dita estalagem, para que
quisessem ser da Congregação dos Francomaçons, ou Pedreiros livres”.163 Oliveira foi
recebido com todos os rituais, aprendendo gestos e hierarquias da referida ordem, o que
ele descreve de forma bem pormenorizada, o que não será feito aqui para se evitar uma
digressão muito longa.164 Um ponto, porém, da descrição de seus ritos iniciáticos
interessa bastante aqui. Oliveira declarou que, após prestar o juramento em que
prometia, sob pena de severos castigos, manter o segredo da “congregação”, com a mão
sobre a Bíblia, foi iniciado nos sinais com os quais se identificaria com seus
companheiros. Então, “lhe disseram que havia de observar aquela religião que seguisse
e que não havia de falar mal do Rei, do próximo e nem da República”. Além disso, ao
final da iniciação, descreve a celebração da relativa igualdade exaltada entre os
membros desses encontros, ao dizer que:
[...] ficando o dito Custó [Coustos] na parte principal dela [da mesa
em torno da qual estavam reunidos], como mestre e cabeça que era
daquela Congregação e ajuntamento; e, postos assim todos por sua
ordem [de graus dentro da loja maçônica], principiaram a comer e
fazer várias saúdes, em que observavam todos a igualdade de pegar
nos copos ao mesmo tempo, levantá-los ao ar, chegá-los à boca e, ao
depois de beber, faziam a ação de chegar três vezes com os mesmos
copos à cara e os assentavam todos ao mesmo tempo na Mesa, dando
então todos três pancadas e dizendo: viva, viva.165
Seguir a própria religião, independentemente das que seguissem os demais
membros da congregação, além de um relativo igualitarismo, exaltado em simbolismos
presentes no banquete ao final da celebração, tudo isso parecia chamar bastante a
atenção dos inquisidores. Nos demais processos do núcleo de Coutos isso fica ainda
mais evidente. Por exemplo, no processo contra Jean-Thomas Bruslé, lapidário francês,
preso pelo Santo Ofício de Lisboa em 1743, também por delitos de maçonaria. Nascido
em Paris e morador na Corte, tinha 45 anos quando foi preso pela Inquisição local,
depois de uma denúncia dada em 1742. Na sua ordem de prisão, datada de 16 de março
de 1743, notifica-se que se proveu um sumário contra os pedreiros livres e nele que está
163
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Processo de Feliciano de Oliveira, proc. 5344. Fls. 3-3v.
Ibidem, Fls. 4, 4v, 5, 5v e 6.
165
Ibidem, Fl. 6v.
164
259
um assento do Conselho Geral de 5 de março de 1743, no qual consta que os
denunciados no processo de Feliciano de Oliveira foram mandados vir presos. Eram
eles; Alexandre Jacques Mouton e John Coustos, além do próprio Bruslé. O termo foi
assinado por André Corsino de Figueiredo, notário do Santo Ofício.166
A denúncia, datada de 6 de outubro de 1742, foi dada em mesa na Inquisição de
Lisboa, diante do inquisidor Francisco Mendo Trigoso, pelo procurador de negócios
Henrique Machado de Moura, natural da Ilha da Madeira e morador de Lisboa. O
denunciante disse que, havia pouco mais de um mês, lhe chegara a notícia de que em
Lisboa havia vários “professores e sequazes da nova seita intitulada Franco [sic] maçons
ou Pedreiros Livres, há poucos anos condenada pela Sé Apostólica”. Segundo ele, era
“cabeça da seita” um “inglês” chamado “Monssieur Custó” [sic], mestre lapidário e
morador na rua dos Mercadores, da parte de Terreiro do Paço, e que este “é herege e
sabido deste, e sequazes da dita seita”. Nela, frequentavam também outras pessoas: um
outro estrangeiro nomeado por “João Pierre”, ourives, morador na rua das Flores, no
Bairro Alto, na casa de madame de Vandrevel; Miguel Vandrevel, lapidário, cunhado da
dita madame; Alexandre Jacques Mouton, também lapidário e irmão da madame;
Lamberto Boulanger, “monssieur Bilha [sic, no caso, Monsieur Billar]”, guarda livros
de um inglês, que mora nas casas da marquesa de Távora; e João de Villanova, ourives,
“todos franceses e católicos”.167
Consta ainda que Henrique Machado Moura declarou que os denunciados fazem
seus ajuntamentos umas vezes durante o dia, outras durante a noite, e em diferentes
lugares. E que nesses ajuntamentos fazem “suas profissões solenes os que de novo
entram e se alistam nesta seita”. No dia seguinte à denúncia, 7 do então corrente mês de
outubro, iria haver um “ajuntamento destes” na “referida quinta” de Lamberto Blanger,
“e que para tal profissão havia comprado algumas velas e que havia acontecido uma
cerimônia semelhante no domingo anterior, ao receberem um capitão de navio”, cujos
nomes e nacionalidade eram desconhecidos do denunciante. Tudo o que sabe foi
contado, segundo a denúncia, pela Madame Larriet e seu marido “Monsieur Larriet.
Denunciou, ainda, que soube por outra madame, de nome Clavé, que o dito Blanger
também teria comprado cera de velas para a próxima cerimônia.168
166
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Processo de João Tomás Brulé, proc. 10683. Fls. 5, 6 e 7.
Ibidem, Fls. 9 e 9v.
168
Ibidem, Fls. 10 e 10v.
167
260
Conforme o denunciante, ele ouvira dizer de “Pedro Serjan, grego de nação”,
que frequentavaa casa de Phillippe Balestre, mercador da Rainha, e também deste
último, que em Lisboa havia “a dita seita” e que “eram professores dela todos os
referidos, e percebeu dele ser o sabedor de outros particulares nesta matéria”.
Denunciou, ainda, o segundo secretário do Núncio, chamado d. Matheus, capelão, que
aconselhara a não delatar e divulgar a dita “seita”, para que não se resultasse disso
algum dano. Dos denunciados, Moura declarou ter inimizade somente com Lamberto
Blanger e Alexandre Mouton, que o teriam mandado esfaquear “por ser procurado
contra ele (Blanger)”.169
Seguiu-se a inquirição de diversas testemunhas, seis ao todo. Elas, em grande
parte, repetem, com menos detalhamento, pontos da denúncia original. Além disso, o
próprio acusado compareceu diante dos inquisidores para uma confissão de suas culpas.
No dia 20 de março de 1743, Jean-Thomas Bruslé, preso desde 18 do mesmo mês,
compareceu diante do inquisidor Simão José Silveira Lobo, confessando-se.
Apresentou-se como francês, católico, contratador de diamantes, casado com Francisca
Marcela Milfotf, além de morador em Lisboa e de 44 anos de idade. Disse, na confissão,
que haveria sete para oito anos antes de sua prisão que saíra de sua pátria e passara por
portos da Itália, Holanda e Inglaterra, com interesses de melhor empregar os negócios
dos quais vivia (no caso, o de lapidário de diamantes).
Chegou em Portugal fazia então algo em torno de três anos ali vivendo de polir
pedras preciosas, arte que em disse ter “uma grande prática”. Para Portugal levara a sua
família. Ao longo das viagens, foi conquistando a amizade de muitos estrangeiros de
cada país em que passava, entre as quais destacou a do francês e também católico
monsieur Billart, citado no processo, além de um inglês não mencionado no mesmo. O
primeiro o convencera a entrar em uma “companhia que se achava estabelecida na
cidade, chamada de Franc Massons, na língua francesa e, na portuguesa, pedreiros
livres”. Disse que a “tal companhia se compunha de muito boa gente, e que entrando ele
confitente nela seria ajudado e socorrido de todos nas suas necessidades”. Além disso,
“passaria uma vida alegre, porque muitas vezes se havia achar em convites e banquetes
em casas que para isso tinham destinadas”. Para tanto, deveria somente contribuir com
uma moderada despesa, que teria na ocasião do jantar em celebração à sua entrada.
Após pensar na oferta de Billart, disse que aceitou fazer parte da francomaçonaria. Foi
169
Ibidem, Fl. 11
261
admitido e, então, teve contato com “João Custó, grão-mestre”, que ele apresenta aqui
como “francês de nação, e um inglês, [d]o qual não se lembra o nome”.170
Bruslé descreveu a cerimônia de admissão com detalhes parecidos com os
apontados por Feliciano de Oliveira. Fez o juramento de pertencimento à ordem com a
mão na Bíblia, jurando obedecer a todos os seus princípios. Disse que lhe fora
perguntado se fora até ali por sua boa vontade, ao que respondera que sim. Depois, o
grão-mestre lhe explicou os princípios da ordem. Foi então que lhe afirmou que “a
primeira cousa”, entre as obrigações da ordem “que lhe recomendou, foi que não havia
de fazer, nem falar mal de nenhuma sorte contra a religião”, não importando qual fosse,
e que não se pronunciasse dessa maneira “especialmente contra aquela que professava,
nem também havia de mover disputas nem contendas sobre esta matéria, nem sobre ela
introduzir nem admitir práticas”. Também não havia de falar mal contra o seu rei, nem
contra o Estado, nem contra os bons costumes. Além disso, deveria jurar não revelar
direta ou indiretamente nada a respeito dos “pedreiros livres” por nenhum meio, e
dentro de suas lojas e cerimônias, precisaria guardar decoro, sem proferir “palavra
obscena ou cantar ou dizer cousa desonesta”.171
No exame de fé, ao qual Bruslé foi submetido após sua confissão e inquirição de
testemunhas e antes da conclusão do processo, é notável o desconcerto dos inquisidores
diante do juramento, do segredo e da tolerância religiosa que perceberam na “seita”
maçônica. Há, ainda, uma atenção sobre os rituais descritos no processo. Isso fica claro,
por exemplo, quando o acusado foi inquirido insistentemente sobre a que se devia o
segredo a ser guardado dentro da ordem. A isso, ele respondeu ser referente aos sinais,
gestos e palavras com os quais os membros se identificam. Os inquisidores também,
durante o exame, insistiram na questão do juramento, ressaltando a importância de um
juramento sobre a Bíblia, e também que se jurar em nome de “matérias horrorosas e
ridículas”, classificando-as como atos “impertinentes, sediciosos e pecaminosos”. Foi
perguntado também sobre “a frivolidade de se jurar não falar mal da religião, contra o
príncipe e contra o Estado”, pois isso seria “desnecessário”, já que “sem preceder [sic.
No caso, é “proceder”] juramento algum” se devia agir assim. Mas, sendo em seguida
perguntado se nas congregações, em Portugal e noutros reinos, “se observam
proposições contrárias à fé católica ou ao uso comum da Igreja”, respondeu que não e
reafirmou um dos preceitos da ordem, que “é o não dizer uma só palavra direta nem
170
171
Ibidem, Fls. 31 e 31v e 32.
Ibidem, Fl. 38.
262
indiretamente em matéria de religião”. Foi ainda perguntado se reconhecia que todos os
rituais presentes na sua recepção foram atos supersticiosos, ao que respondeu que “em
todas as sobreditas ações entende que não houve sombra alguma de superstição”.
Acrescentou “que tudo o que se obrava nas ditas recepções não era outra cousa mais do
que um juvenil divertimento”, com o qual os presentes “querem passar o tempo [...]
comendo e bebendo à custa dos que são novamente admitidos”.172
Virgínia Maria Trindade Valadares, em trabalho recente sobre a perseguição
inquisitorial aos francomaçons em Portugal, faz uma interessante relação entre as
leituras sobre o juramento e sobre o segredo pela Inquisição e pela maçonaria, no século
XVIII:
Ao analisar os processos, nota-se o significado do juramento e do
segredo transmutado sob forma de poder tanto pela Igreja quanto pela
Maçonaria. O juramento do segredo era usado no exercício do poder,
na medida em que ambos, tanto o Santo Ofício quanto a Maçonaria,
pediam segredo dos seus atos ou aos inquiridos ou aos membros da
sociedade (...). Assim, jurar compromisso de segredo em público,
tanto para o inquirido do Santo Ofício, quanto para o sócio da
confraria maçônica, representava não um ato de liberdade, mas uma
obrigação devida, como se não houvesse confiança na verdade
proferida – o juramento significaria a certeza da inviolabilidade do
segredo institucional.173
Nesse ponto, a autora dá relevo a uma dimensão fundamental do conflito
estabelecido entre maçonaria e a Inquisição, uma vez que, aqui, o juramento era,
também – mas não apenas –, uma forma de exercício de poder. Ainda segundo Virgínia
Valadares, nessa relação estabelece-se um paradoxo, pois ao mesmo tempo em que o
tribunal da fé pedia segredo aos réus sobre tudo o que se passasse durante o processo,
tentava-se obter deles todo o segredo guardado pela maçonaria.174 A este respeito, faço
uma leitura distinta. Não observo haver um paradoxo na defesa do segredo de um e no
questionamento da legitimidade, juntamente com a insistência da quebra, do segredo de
outro: nessa operação, o que se evidencia, tanto a partir da leitura das bulas que proíbem
a maçonaria como no exame dos processos, é uma disputa por imposição de poder,
claramente pendente para o lado das autoridades régias e eclesiásticas. Disso se
depreende uma ideia de que o segredo das congregações maçônicas era, potencialmente,
se não essencialmente, sedicioso e perigoso ao trono e ao altar, ao passo que, por
172
Ibidem, Fls. 59-64v.
VALADARES, Virginia Maria Trindade. A maçonaria moderna nas malhas do Santo Ofício no
Império Português no setecentos. Op. Cit. p. 356.
174
Ibidem, p. 357.
173
263
exemplo, o segredo judicial do Santo Ofício, era legítimo, posto que ajudava a
conservação da ordem. Existe ainda uma diferença na natureza do segredo, dentro das
perspectivas da Inquisição e da maçonaria: enquanto a primeira respaldava seu segredo
no dogma católico, reafirmado nos regimentos e manuais do Santo Ofício (conforme
analisado no Capítulo 3), a segunda tinha no seu segredo um mecanismo de se
preservar das autoridades, tendo liberdade para seus debates e práticas.
Há estudos que demonstram o poder simbólico do segredo na manutenção do
poderio das inquisições ibéricas. É bem conhecido o trabalho de Bartolomé Bennassar a
respeito da Inquisição espanhola, no ponto em que trata do que chamou de “pedagogia
do medo”, mecanismo que, na sua análise, foi o maior responsável pelos tribunais de fé
durarem, com relativo poderio e estabilidade, por três séculos, aproximadamente. O
segredo processual foi um de seus instrumentos centrais, pois, ao se impossibilitar o
acusado de saber quem era seu acusador, envolvia-o de tal maneira que o levaria a
confessar culpas, nem sempre verdadeiras, o que tornou o procedimento inquisitorial
uma verdadeira “fábrica de culpados”. O autor pôde constatá-lo na documentação da
maioria dos tribunais espanhóis, em que os acusados, somente na minoria dos casos,
eram absolvidos ou tinham seus processos suspensos, mesmo que quase sempre
resultassem em penas leves, como abjurações e penitências.175 O segredo que envolvia o
processo inquisitorial e a forma com a qual ele absorvia os acusados inspiraram o
historiador português Antônio José Saraiva a compará-lo ao universo ficcional e
distópico narrado por Franz Kafka, no romance O processo (1925).176 O declínio desse
procedimento, acentuado a partir da segunda metade do século XVIII e completamente
abolido da legislação inquisitorial portuguesa no Regimento de 1774, esteve
diretamente relacionado com o próprio declínio do temor generalizado a respeito dos
tribunais, parte de um mais amplo processo de dessacralização que perpassou muitas
das proposições heterodoxas dos chamados libertinos luso-brasileiros, no referido
contexto.177
O segredo possuía um peso simbólico significativo para os tribunais do Santo
Ofício. Sua quebra era duramente punida e havia grande preocupação a respeito de sua
175
BENNASSAR, Bartolomé. L’Inquisition espagnole: XVe,-XIXe siècle. Collection Marabout
Université. Paris: Hachete, 1979. p. 127-128.
176
SARAIVA, Antônio José. Inquisição e cristãos novos. Lisboa: Editorial Estampa, 1994. 6ª edição. p.
98.
177
ROCHA, Igor Tadeu Camilo. Não se fazem mais excomunhões que prestem nos dias de hoje:
libertinos, Reformismo Ilustrado e a defesa da tolerância religiosa no mundo luso-brasileiro (17501803). Almanack. 2016, n.14, p.196-240.
264
preservação nos processos.178 Ele se justificou pelo entendimento, no pensamento
jurídico moderno, de que era necessário, sempre, algum nível de segredo em se tratando
de justiça, presente na tradição jurídica e que as Inquisições apenas aprimoraram179. Foi
justificado também nos manuais inquisitoriais, que o associavam ao objetivo de
preservação dos inquisidores, do processo e da própria integridade da instituição.180 A
afirmação dele também era a afirmação do poderio dos tribunais e da própria ortodoxia
perante alvos considerados heterodoxos, como a maçonaria. O segredo processual,
entretanto, foi duramente criticado ao longo da história das Inquisições ibéricas, num
processo que envolveu desde argumentos em defesa dos perdões gerais até publicações
contra o Santo Ofício. Exemplos de manifestações sobre o assunto são as de autoria do
padre Antônio Vieira e de outros letrados.
Em relação à tolerância religiosa, é interessante ressaltar que a proibição,
mencionada por Bruslé, de falar-se mal de qualquer religião que seja, sobretudo a sua, ia
ao encontro de um ideal de tolerância católica que se consolidava, embora não de
maneira completamente hegemônica, entre o final da primeira metade do século XVIII e
princípio da segunda. Segundo esse ideal, a tolerância concebida conforme as ideias
ditas como “modernas” e pela qual se aceitariam certos níveis de verdade em todos os
credos, deveria ser combatida, em privilégio de uma tolerância conjugada com a
verdade católica. A liberdade de consciência e de religião, dentro do entendimento
católico sobre a tolerância religiosa, seria equiparável ao indiferentismo, ao colocar a
verdade no mesmo nível do erro, entendendo-se que era, também, uma forma do agir
tolerante o ato de instruir o herege no conhecimento da verdadeira fé, possibilitando-lhe
felicidade em vida e no além vida, beneficiando também aos povos e estados.181
Esses pontos são ainda mais visíveis no processo contra John Coustos,
mencionado, nos processos anteriormente examinados, como “grão-mestre” da loja de
178
Sobre a gravidade da quebra do segredo, ver: PIERONI, Geraldo. Profanadores do segredo: a
Inquisição e os degredados para o Brasil-Colônia. Revista Varia História. Departamento de História
UFMG. Nº 22. Belo Horizonte, (42-55), 2000.
179
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro:
ed. Campus, 1989. p. 191; BENNASSAR, Bartolomé. L’Inquisition espagnole. Op. Cit. p. 123-123.
180
No Directorium Inquisitorum, a justificativa para se manter o segredo processual era, sobretudo, os
riscos a que o inquisidor, o processo e os delatores estariam sujeitos diante da possibilidade de retaliação
das famílias e pessoas próximas dos delatados, sobretudo as que fossem “ricas e generosas”. Por esse
motivo, afirma que os Concílios de Béziers e Narbona “(...) retomaram essa prática do sigilo,
acrescentando a proibição formal de se revelarem as circunstâncias, tanto de depoimento quanto do delito:
através das circunstâncias do depoimento o acusado poderia descobrir, por dedução, a identidade de seu
acusador”. DIRECTTORIUM INQUISITORUM. Manual dos inquisidores. Op. Cit. p.223.
181
MARTINA, Giacommo. La Iglesia, de Lutero a nuestros días. Op. Cit. p. 175; DOMÍNGUEZ, Juan
Pablo. Reformismo cristiano y tolerancia en España a finales del siglo XVIII. Op. Cit.
265
Lisboa. Chamam a atenção ainda – isso será analisado mais à frente – alguns
desdobramentos envolvendo esse famoso maçom, que vão muito além de seu processo,
como a publicação de seu livro de memórias sobre sua experiência com o Santo Ofício
de Portugal. Seu processo valeu-se da mesma denúncia feita em 6 de outubro de 1742,
ao inquisidor Francisco Mendo Trigoso, pelo procurador de negócios e causas Henrique
Machado de Moura. O teor e os detalhes são os mesmos da denúncia contra JeanThomas Bruslé. A diferença é que, em fevereiro de 1743, o mesmo denunciante
compareceu novamente, mas dessa vez diante do inquisidor Manoel Varejão e Távora,
“confrontando a denúncia retro”. Na ocasião, foi perguntado se sabia mais algo em
relação aos “ajuntamentos” dos pedreiros livres desde sua primeira denúncia até então.
Respondeu, então, que apenas pôde averiguar “que quando fazem as suas entradas, é
com tal cautela e segredo que fecham as portas e janelas, e levam velas acesas para se
alumiarem na mesma função, e fazem seu banquete à custa do que entra de novo”. Nada
mais afirmou saber além disso. Mencionou a participação do cozinheiro do núncio num
dos banquetes e falou sobre mulheres irlandesas, dando nome somente a uma, Ana
Anastácia, que frequentavam as casas onde as reuniões ocorriam. Disse, por fim, que
todos os “sócios” delatados eram católicos, exceto “Custon” (como aparece no
documento, mas nesta tese, será usado seu nome, Coustos). Ele o descreve como chefe
da “congregação” e que teria ouvido do monsieur Billar que “o dito Coustos lhe consta
diz que não necessita de trabalhar, porque bastam para o sustentar os sócios da mesma
congregação”.182
Seguiram-se a isso alguns depoimentos. Um importante é do francês, então com
49 anos de idade, Cornélio Larriet, que também se declarou católico e depôs ao
inquisidor da primeira denúncia, Francisco Mendo Trigoso. Após negar duas vezes
conhecer alguma matéria pertinente a ser denunciada à Inquisição, disse que Coustos
era francomaçom, declarando ainda que falou sobre isso com o denunciado, e ele
comentou sobre a “congregação” com sua mulher, Madame Larriet, também
mencionada nesse processo e no de Jean-Thomas Bruslé. Cornelio Larriet apontou os
mesmos integrantes da “seita” que foram denunciados quando depôs nesse processo e
no anteriormente analisado, do mesmo núcleo, dizendo que também fora convidado
para fazer parte dela, além de ter afirmado saber que Coustos era seu grão-mestre.
Perguntado, ainda, sobre “em que consiste esta nova religião, ou congregação, a que se
182
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Processo de João Custon, proc. 10115. Fls. 7, 7v e 8.
266
obrigam os professores dela”, respondeu que “a utilidade que desta companhia tiram os
congregados [...] é o ajudarem uns aos outros em qualquer parte, ou Reino, aonde se
acharem, conhecendo-se por tais por sinais que para isso tem”. E acrescentou que
Coustos “lhe disse que esta congregação nem era prejudicial à Religião, nem ao
próximo, nem à república, nem a testas coroadas”.183
Depois de mais testemunhas ouvidas, foi ordenada a prisão de Coustos, em
março de 1743. No sumário de testemunhas, é destacada a proibição da “seita dos
pedreiros livres” por bula do papa Clemente XII. Além disso, menciona-se “também
constar das mesmas testemunhas”, ouvidas no processo que os delatos, entre os quais
Coustos, não só se publicam, professam e observam “a dita seita, mas igualmente a
inculcam e persuadem a outros muitos católicos, causando assim escândalo, e ruína aos
fiéis cristãos, que como filhos da Igreja devem cegamente observar os seus preceitos, e
proibições”. Acrescenta que “o dito Coustos é herege, como dizem as testemunhas”,
visto que também sofreu uma acusação de protestantismo – o que explica sua pena mais
dura que a dos demais condenados em seu núcleo. Como tal, além de estrangeiro,
segundo o Regimento, não poderia ser castigado e molestado nas matérias que
pertencem à Religião católica. Porém, “fica sendo certo, e indubitável que assim ele e os
mais delatos ficam sujeitos à jurisdição deste tribunal”, no caso, “os católicos, por
seguirem uma congregação que se acha condenada pela Sé Apostólica; e os hereges no
escândalo que dão em se publicarem professores da dita seita, e prejuízo, que com ela
causam aos católicos que adquirem por sequazes da mesma”. Em 5 de março de 1743, o
Conselho Geral julgou que o sumário de testemunhas oferecia provas para se mandarem
prender John Coustos “e monsieur Motton”.184
Mas o que chama mais a atenção, considerando os pontos destacados até o
momento nos processos contra maçons, é a confissão de Coustos, dada em 21 de março
de 1743, estando já preso. Nela, o lapidário disse que, havia pouco mais de dois anos,
indo ele para Lisboa “e querendo introduzir nela uma congregação de francomaçons,
que na nossa linguagem quer dizer pedreiros livres”, começou a convidar várias pessoas
para ela. Acrescentou que aceitou e providenciou suas entradas, “na mesma forma que
se observa na França e Inglaterra e outros mais Reinos, donde ele confitente vinha,
sendo sido aceito na corte de Londres, cuja entrada e formalidade” ele descreveu na
183
184
Ibidem, Fls. 11-14.
Ibidem, Fls. 35v-38v.
267
confissão com muitos detalhes.185 Não vou entrar nos detalhes da cerimônia, atendo-me
apenas aos elementos que interessam diretamente a alguns aspectos centrais pertinentes
ao argumento da tese, apontados anteriormente.
A questão do juramento aparece juntamente com a descrição do processo de
aceitação de novos membros. Depois que o dito é aceito, e ele se dirigindo à “loge”,186
onde encontrará seus irmãos de congregação, descreve Coustos, o mestre então lhe
pergunta se foi até ali por sua livre vontade. Respondendo de forma afirmativa, tiramlhe uma venda dos olhos, que era colocada ao início da cerimônia. Depois disso, o
servidor, sob comando do mestre, acompanha o novo membro e é pedido que lhe ensine
a postura “em que se deve pôr como maçom”. Coustos descreve minuciosamente a
cerimônia de iniciação, chegando à parte do juramento, em que “mandam por a mão
direita sobre uma Bíblia, estando esta aberta no lugar em que se acha o Evangelho de
São João, e ao mesmo tempo, lhe mandam pegar com a esquerda em um compasso”.
Depois disso, “descoberto [...] o peito esquerdo, lhe mandam por sobre ele a ponta do
compasso, e ao mesmo tempo lhe diz o mestre, em nome de toda aquela congregação e
do grão-mestre de Inglaterra, França e outros reinos, que pelo juramento que toma”
deve saber as suas obrigações.187 São elas as de “guardar inviolável segredo em tudo o
que passar na dita congregação, e a não fazer coisa alguma que ofenda algum dos
confrades, nem ao rei, nem a república, ou à sua religião”, porque se fizer o contrário “a
sua língua será arrancada e na mesma forma seu coração, para ser enterrado junto do
mar, e o seu corpo queimado para se lançarem as cinzas ao vento de sorte que não haja
mais [...] memória dele, nem lembrança dele”. Disse, na confissão, “que se observa este
juramento tão fortemente que, nos reinos estrangeiros, mais fácil é deixarem-se matar,
que haverem de descumprir os segredos a que se obrigam”.188 Feito isso, prossegue, o
mestre toma pela mão o novo confrade, chama por mais dois servidores da mesma
185
Ibidem, Fls. 39, 39v e 40.
Um aportuguesamento de lodge, que em inglês, no seu uso como substantivo, seria traduzido mais
propriamente como “abrigo”, “pousada”, “cabana” (no sentido de um lugar para se hospedar) e “loja”
seria um sentido menos frequente. Nas memórias de John Coustos, aparece um pequeno estranhamento
dessa questão linguística. As lodges de Lisboa, ou os alojamentos, que nos processos traduziam como
"lojas", não eram feitas em tavernas, como na Inglaterra, mas em casas privadas dos amigos escolhidos
para fazer parte da congregação, conforme a descrição. C.f. COUSTOS, John [1703-1746]. The Sufferings
of John Coustos, for Free-masonry, and for His Refusing to Turn Roman Catholic, in the Inquisition at
Lisbon: Where He was Sentenc'd, During Four Years to the Galley; and Afterwards Releas'd from Thence
by the Gracious Interposition of His Present Majesty, King George II. To which is Annex'd The Origin of
the Inquisition, with Its Establishment in Various Countries .... London: printed by printed by William
Strahan, for the author, 1746. p. 9.
187
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Processo de João Custon. Op. Cit. Fl. 40 v.
188
Ibidem, Fls. 40, 40v.
186
268
“loge” para que façam seu ofício e lhe coloquem suas insígnias “que lhe competem por
razão daquela nova ordem à que se alista, dizendo juntamente ao que entra de novo que
aquela religião que professa é muito mais nobre que a ordem do tostão de ouro, de
Santo Spiritus, de Cristo e de todas as mais do mundo por ser esta mais nobre e mais
antiga que todas aquelas”.189 Há ainda a descrição de saudações que celebram a
igualdade entre os membros, similar ao que foi descrito no processo de Jean-Thomas
Bruslé
190
, bem como a menção às constituições das ordens maçônicas, ao ser
perguntado pelos inquisidores se tais regras e etiquetas estão escritas em algum livro.191
Continuando a confissão, feita em 26 de junho de 1743 diante do inquisidor
Manoel Varejão e Távora, Coustos explica mais detalhadamente a simbologia do
segredo e o juramento. Sobre o segundo, explica que razão pela qual os iniciados na
francomaçonaria fazem juramento sobre uma Bíblia, no livro de Evangelhos de São
João, é porque:
(...) destruindo-se e arruinando-se o famoso Templo de Salomão, se
achou debaixo da primeira pedra uma lâmina de bronze em que se
achava esculpida a palavra seguinte – Jeová – que quer dizer Deus,
dando assim a entender que aquela fábrica e Templo foi construído e
edificado em nome do mesmo Deus, a quem se dedicava, sendo o
mesmo senhor o princípio e o fim de tão magnífica obra; e como no
Evangelho de São João se acham as mesmas palavras e doutrina, por
essa razão se manda tomar o juramento sobre aquele lugar, para assim
o mostrar que todo o instituto desta congregação se vai fundando na
mesma doutrina que Salomão observava da sua suntuosa obra, e que a
razão que tem para assim dizer o referido é pelo ter ouvido a alguns
mestres de França e Inglaterra, porém não sabe aonde eles acharam a
referida doutrina para assim a haverem de explicar.192
E sobre o segredo, disse que ele se justifica para que não saibam dos sinais e
demais mecanismos de identificação dos confrades e da formação das lodges. Uma das
funções disso seria manter pessoas estranhas às assembleias distantes delas, sobretudo
das caixas onde guardam pagamentos de novos membros ou algum outro que pague
algum valor por alguma regra, com o que eles ajudam os confrades mais pobres.
Ressalta, nesse ponto, a função de socorro mútuo da ordem.193 O fato é que as
explicações não livraram Coustos de uma dura condenação, ao fim do processo.
Juntamente com o analisado Jean-Thomas Bruslé, além de outros mencionados nos
processos, Jean-Baptiste Richard e Alexandre Mouton, Coustos saiu no auto-de-fé de
189
Ibidem, Fl. 40 v.
Ibidem, Fls. 42-42v
191
Ibidem, Fl. 46v.
192
Ibidem, Fls. 49-49v.
193
Ibidem, Fls. 50 e 51.
190
269
junho de 1744. Na sentença, publicada em 21 de junho do mesmo ano, foi condenado ao
degredo pelo período de quatro anos para as galés, além do pagamento de custas,
tomado por maçom e protestante. Em 22 de setembro também do mesmo ano, Coustos
entregou uma petição pedindo que a pena nas galés lhe fosse perdoada, argumentando
que tinha uma lesão num braço e uma inflamação na mão, sendo que a 6 de outubro foi
levado a um cirurgião, que servia os cárceres da Inquisição, o qual comprovou não ser
totalmente verdade o que o réu alegava e que ele estava com capacidade para poder
satisfazer à pena. Entendendo ser ele o cabeça da “seita” e sua dura pena como exemplo
aos mais hereges para viverem com menos soltura e mais moderação, o requerimento
foi indeferido.194
Além de ter sido apontado como “cabeça da seita” dos pedreiros-livres e ser
protestante, também pesaram a favor da condenação de Coustos alguns aspectos já
levantados acima, como a associação do segredo de uma assembleia de pessoas à parte
do que era vigiado pela Inquisição e autoridades civis com algum tipo de sedição, além
de, claro, os presumidos riscos à ortodoxia na aceitação indiferenciada de membros que
professassem qualquer credo, impedindo-lhes de se empenhar em polêmicas e disputas
em matéria de religião. John Coustos, porém, não cumpriu totalmente sua pena, tendo
escapado das galés e, posteriormente, publicado um livro de memórias que acabou
funcionando como uma publicação panfletária em favor da tolerância religiosa e
também como um veemente instrumento de ataque à Inquisição portuguesa. Trata-se da
obra The Sufferings of John Coustos (1746), publicada a partir do relato do próprio
sobre sua passagem pela Inquisição de Lisboa e pelas galés.
Na edição de 1746, há um prefácio do editor escocês William Strahan, o qual
entraria para a carreira política alguns anos depois. A começar pelo seu título, A
Prefatory discourse, on occasion of the present rebellion, by the editor, o texto assume
forma de um discurso político que se dirigia à situação política britânica daquele ano.195
No geral, faz uma verdadeira apologia à tolerância religiosa, com todas as diversas
acepções e ambiguidades que este termo possuía no século das Luzes, indo sua
194
MARCOCCI, Giuseppe e PAIVA, José Pedro. História da Inquisição portuguesa. Op. Cit. p. 299-300.
O editor se refere a situações conturbadas no cenário político britânico – como o Levante Jacobita, que
ocorreu até 1746, por exemplo – ao final da primeira metade do século XVIII, em que se observa,
também, o que Luiz Caros Soares chamou de uma segunda fase do Iluminismo inglês, marcado tanto por
uma crise do latitudinarismo, como, também, pela interiorização das academias de ciência e da “opinião
pública”. Juntamente com as conturbações políticas, aparecia uma “era da conversa”, em que pubs, cafés,
teatros, jornais, entre outros, ganhavam um destaque importante na cena pública, marcando uma entrada
mais significativa nela das camadas médias das populações, sobretudo, das cidades grandes. C.f.
SOARES, Luiz Carlos. A Albion revisitada no século XVIII. Op. Cit. p. 200.
195
270
argumentação da completa condenação aos tribunais do Santo Ofício, sua história e
procedimentos, até, por exemplo, ao risco desses tribunais e da intolerância do
“papismo” dissolverem a tolerância reinante em terras inglesas desde a Revolução do
século anterior. Strahan, por exemplo, destaca não ser maçom, mas acrescenta que isso
não lhe impede de publicar e trazer à luz a irracionalidade, cometida pelos inquisidores,
de se condenar uma pessoa que, segundo ele, até a edição do livro, trazia em si terríveis
marcas feitas pelos "infernais espíritos em forma de homem, os inquisidores", somente
por ele ser pedreiro-livre. Além disso, ele sustenta que essa sociedade, a
francomaçonaria, não era prejudicial à comunidade, mas lhe era benéfica.196
O autor diz ainda que “em sua humilde opinião”, nesses assuntos, condenar a
Inquisição e demonstrar toda a solidariedade às suas vítimas era fundamental a todo
homem que, naqueles anos, se considerasse "ilustrado". Tratava-se, acima de tudo, de
"um dever moral de se dispender qualquer esforço em nome de nossa religião, nossa
soberania, nossas vidas, nossas liberdades e nossos destinos" – novamente, aqui,
referindo-se ao quadro de tolerância britânico, existente desde o século XVII. 197 Diz
ainda que se isso não for feito pelas mentes ilustradas de sua época, há riscos de a
intolerância papista se instalar na Inglaterra novamente e extirpar a tolerância britânica,
vista como um "baluarte da reforma" no contexto das divisões religiosas da Europa. Por
isso, era necessário mobilizar artistas, jornais, pensadores e toda a sorte de pessoas que
falassem ao público para a divulgação dos sofrimentos de Coustos e contra a toda a
intolerância que o lapidário sofreu.198 Acrescenta, ainda, algumas críticas mais fortes
contra o próprio Catolicismo em si. Fala sobre o quanto é antinatural o clero regular e
sua vida sem trabalho, critica o voto obrigatório de celibato, fazendo também algumas
menções ao que considera como idolatria presente no culto católico. Conclui dizendo
que uma religião ruim, o Catolicismo, e um monarca ruim, ou um déspota que zele por
essa religião por meio dos inquisidores – possivelmente se referindo a d. João V –,
podem levar quaisquer povos, por melhores que sejam, à completa ruína.199 O autor
equipara viver sob um país católico a viver sob a tirania, tanto dos reis católicos como
de formas de governar que oprimem os indivíduos e os exploram, como as ordens do
clero regular e a redução do país à província do papa. Quanto ao caso de a Inglaterra ser
196
COUSTOS, John. The Sufferings of John Coustos. Op. Cit. p. XXVII.
Ibidem, p. XXIX.
198
Ibidem, p. XXXI-XXXII.
199
Ibidem, p. XXXVII-XXXIX.
197
271
conquistada pela França, adverte, suas liberdades e sua boa constituição seriam
corrompidas e perdidas.200
A narrativa das memórias de John Coustos, por sua vez, começa com sua
biografia, mencionando o fato de ter nascido em Berna, atual Suíça, onde fora criado na
lei protestante. Depois, mudara-se para a Inglaterra, onde conhecera a francomaçonaria
e a profissão de lapidário. Foi por ela, e com a esperança de ir para o Brasil fazer
alguma fortuna, que se mudou para Portugal em 1741.201 Enquanto esperava pela
resposta sobre ir para o Brasil – que lhe foi negada, inicialmente –, começou a viver em
meio a várias pessoas do meio de joias e mercado de créditos, em Lisboa. Tais pessoas
lhe fizeram generosas ofertas para o caso dele decidir permanecer definitivamente na
Corte, sem perder as esperanças, no entanto, de ir à colônia.202
É a partir daí que Coustos desenvolve algumas reflexões a respeito da
Inquisição, em si, no que antecede à narrativa sobre seus sofrimentos. Descreve, por
exemplo, como observava a posição dos inquisidores nas sociedades ibéricas:
Eu devo observar, a propósito, que os inquisidores usurparam, de
maneira tão formidável o poder em Espanha e em Portugal, que os
monarcas daqueles reinos não são mais, se posso usar essa expressão,
do que seus principais súditos.203
Depois, Coustos faz uma série de descrições que destacam a falta de escrúpulos
dos mesmos inquisidores em buscar provas que o incriminassem. Um exemplo é o
episódio em que o lapidário suíço diz que, talvez, tivesse escapado das “impiedosas
patas” da Inquisição, se “não tivesse sido traído da forma mais bárbara” por um amigo
português, atribuindo, em partes, tal traição a estratégias dos inquisidores.204
Conforme os objetivos desta tese, entrarei nos detalhes da narrativa somente
naquilo que toque, diretamente, aos tópicos já levantados nas análises dos processos. O
primeiro deles é o segredo processual e dos cárceres secretos. Coustos descreveu ambos
como um imenso “labirinto de horror”, destacando sua solidão, sua angústia e o terror
de estar numa prisão escura por vários dias. A isso se somava, nas suas palavras, o
200
Ibidem, p. XVII.
Há uma coincidência, aqui, com a narrativa ficcional de Daniel Defoe, no romance “Robinson
Crusoé”, de 1719, marco das Luzes. O protagonista, depois de sair da Ilha na foz do Orenoco e ir para a
Inglaterra, aventa a possibilidade de se instalar no Brasil, o que refuta por conta da Inquisição e do
papismo aqui reinates. C.f. VILLALTA, Luiz Carlos. Robinson Crusoe e Cartas Persas: romances,
viagens e devir histórico (1719-1806). In: BORGES, Célia Maia Borges. (Org.). Narrativas e Imagens.
Juiz de Fora: Editora da Universidade Federal de Juiz de Fora, 2006, p. 102-155.
202
COUSTOS, John. The Sufferings of John Coustos. Op. Cit., p. 7.
203
Ibidem, p. 8.
204
Ibidem, p. 16.
201
272
medo da morte pelo fanatismo dos frades, “de sofrer o mesmo que tantos cujo único
crime era diferir em opiniões religiosas”. O medo se deu, justificou, por ele ser
protestante e estar naquela situação.205 O segredo, o processual e o dos cárceres
secretos, descritos com terror com relação à experiência de Coustos ao ser preso, é um
tema que será retomado na sua descrição sobre os depoimentos e o exame de fé.
John Coustos diz que foi chamado a falar em mesa três vezes, voltando sempre
para o cárcere secreto, ao qual se referia com termos como “masmorra”. Ao relatar que,
depois de resistir, a princípio, veio a falar sobre a maçonaria aos inquisidores, em
especial os seus princípios – no caso, a caridade, a tolerância religiosa e a fidelidade à
religião e à autoridade civil –, conta que os inquisidores insistiram, nos interrogatórios,
em dois pontos: primeiramente, que seria impossível uma ordem condenada e proibida
ter sido fundada em tão bons princípios, como aqueles que mencionava e afirmava sua
opinião; e, em segundo lugar, que mesmo que fosse verdade a virtude dos fundamentos
da francomaçonaria, não fazia sentido terem criado regras tão específicas para guardar o
segredo sobre ela. A isso, Coustos explica, segundo seu relato e de maneira um tanto
parecida com o que se narrou em seu processo, que o segredo era necessário, pois, com
ele, apenas poucos e bons membros de aproximariam da ordem, movidos seja por
curiosidade, seja por identificação com seus princípios. Se o segredo não existisse,
continuou, e a ordem fosse totalmente aberta com qualquer um podendo a adentrar,
seria difícil administrar o decoro e os bons ensinamentos o tempo todo, assim como os
pagamentos necessários para que fosse feita a caridade.206
A respeito da tolerância religiosa, o lapidário conta que também foi perguntado
várias vezes pelos inquisidores Suas falas extrapolam, em vários pontos, a narrativa que
envolve a maçonaria. Isso porque, segundo Coustos, a tolerância fizera parte de sua
criação na lei protestante. No seu exame de consciência, conta que teve de deixar a
França ainda jovem devido à sua religião, nas primeiras décadas do século XVIII. Sua
experiência de vida e criação familiar, nas suas palavras, ensinaram-lhe “que em certos
países nunca se devia conversar sobre religião”. Acrescenta a isso que aprendeu com
seus pais que nunca se deve entrar em disputas de religião, uma vez que elas apenas
"amarguram as mentes, ao invés de as reconciliar".207 Daí entra na questão das regras da
maçonaria, ao dizer “que pertencia a uma sociedade da qual havia uma regra que proibia
205
Ibidem, p. 21
Ibidem, p 33-34
207
Ibidem, p. 26.
206
273
seus membros de entrar em disputas religiosas, sob penas determinadas em seus
estatutos”.208
Ainda inquirido sobre a questão da tolerância religiosa, Coustos relata uma
disputa com os inquisidores, que insistiram que a sociedade de que declarou fazer parte,
era, ela própria, uma religião. A isso respondeu, conforme a narrativa de suas memórias,
que a maçonaria poderia ser considerada como uma religião, mas de forma distinta da
que estava colocada pelos inquisidores, pois, ao invés de seguirem uma lei específica,
viviam todos nela como uma irmandade, na qual as pessoas deveriam viver sob amor
fraternal e caridade o quanto mais fosse possível, ainda que pudessem diferir em
princípios confessionais.209 Sobre sua fala diante dos inquisidores, Coustos repete, na
sua narrativa, ainda mais uma vez, um princípio: amor e caridade entre os membros,
independentemente do credo. Isso reforça o tom do relato de que a afirmação de
tolerância, indo frontalmente de encontro à tirania da Inquisição, foi o ponto que
contribuiu de maneira central para a condenação e os sofrimentos do autor nas galés.210
São destacados ainda outros pontos, tais como o tratamento similar ao de um
escravo nas galés,211 a desumanidade do processo (em especial, a malícia de seus
acusadores juntamente com as nove sessões de tortura pelas quais passou)212 e a terrível
ignorância daqueles povos que o condenavam.213 O clímax das memórias de Coustos
sobre sua condenação é marcado por um tom religioso, que funciona como uma espécie
de redenção do lapidário diante dos sofrimentos causados pela intolerância inquisitorial:
ao final, Coustos agradece a Deus por ter resistido até ali a todos os diversos suplícios,
causados pela paixão, fanatismo, ignorância e tirania dos inquisidores. 214 Um
apontamento curioso é o fato de que os mesmos inquisidores, segundo Coustos, ainda
insinuaram haver algum tipo de licenciosidade na sociabilidade maçônica, por ela não
permitir a entrada de mulheres.215 Antes da descrição da sua fuga, ainda cabe menção às
ofertas que diz ter recebido do Santo Ofício para apostatar de sua fé, convertendo-se ao
Catolicismo para não ser condenado, o que ele recusou. Isso o também reforça a
208
Ibidem, p. 27.
Ibidem, Loc. Cit.
210
Ibidem, p. 31.
211
Ibidem, p. 67-68.
212
Ibidem, p. 63-66.
213
Ibidem, p. 39.
214
Ibidem, p. 50.
215
Ibidem, p. 34.
209
274
narrativa de seu martírio e redenção, associada à sua resistência contra a impiedade do
Santo Ofício português.216
Se, como a historiografia demonstra, o impacto destas primeiras fases da
maçonaria na sociedade portuguesa foi pequeno e ela talvez tenha inexistido nos
domínios coloniais, é impossível desconsiderar-se a importância que obras como The
Sufferings of John Coustos assumiram, em meados do século XVIII, nos debates sobre a
tolerância religiosa. Nos circuitos letrados da Europa, narrativas de ex-prisioneiros
tiveram uma importância significativa para um combate, cada vez mais aberto, contra os
tribunais do Santo Oficio. À altura da sua publicação, em 1746, ele se somava a um
filão crítico que ganhava grande força fora de Portugal.217 Já foi anteriormente
analisado, nesta tese, o libelo Origem da denominação e christão-velho e christão novo
em Portugal, que também significou uma crítica veemente à Inquisição portuguesa,
acompanhando uma tendência que vinha desde o final do século XVII, com as
publicações do Notícias Recôndidas, atribuído ao padre Vieira, o Historia Inquisitionis
(1683), do teólogo neerlandês Von Limborch e da obra de Charles Dellon a respeito de
sua passagem na Inquisição de Goa (1697). Sobre essa conjuntura de publicações antiInquisição, Francisco Bethencourt afirma haver uma articulação entre essas produções e
algumas mudanças de valores, experimentadas no continente europeu em matéria
religiosa, o que afetou todo um campo de representações correntes sobre os tribunais de
fé, sobretudo na Europa protestante:
A formulação dos novos valores fez-se, assim, por oposição à imagem
da Inquisição: em primeiro lugar a liberdade de consciência, noção
que emerge durante a segunda metade do século XVI; em seguida a
tolerância, durante as últimas décadas do século XVII. Ao longo do
século XVIII e do início do século XIX pudemos seguir, do lado
protestante, o desenvolvimento desses temas, o enraizamento das
memórias dos ex-presos e das narrativas dos dissidentes do tribunal, a
autonomia progressiva da historiografia sobre a Inquisição em face
dos envolvimentos polêmicos mais visíveis, segundo a sólida tradição
das principais publicações de Reginaldus Montanus e de Von
Limborch.218
Há uma outra publicação, feita na Holanda, em língua francesa, das memórias de
John Coustos sob a Inquisição portuguesa, por culpa de francomaçonaria e
protestantismo.219 Nesta pesquisa, foi identificada outra publicação do relato do
216
Ibidem, p. 46.
MARCOCCI, Giuseppe e PAIVA, José Pedro. História da Inquisição portuguesa. Op. Cit. p. 433.
218
BETHENCOURT, Francisco. História das inquisições. Op. Cit. p. 354.
219
COUSTOS, John. Procédures curieuses de l'inquisition de Portugal contre les Francs-Maçons, pour
découvrir leur secret, avec les interrogatoires et les réponses, les cruautés exercées par ce Tribunal, la
217
275
lapidário, do início do século XIX.220 Dessa forma, ainda que nada indique que a do
maçom, ao viajar para Portugal, tenha sido a de ser uma espécie de mártir, sua tragédia
pessoal teve circulação significativa na cultura letrada europeia das Luzes e contribuiu
tanto para a defesa da tolerância religiosa como para difundir, ainda mais, a imagem dos
tribunais do Santo Ofício como tirânicos, contrários aos ideias de civilização que então
estavam sendo difundidos. Além disso, ressaltava o caráter anticristão dos tribunais,
apontados como opostos aos Evangelhos por seus procedimentos, que iam de encontro
ao que pregam à piedade cristã e qualquer sã teologia. A pergunta que fica é se outros
heterodoxos portugueses, mais ou menos intencionalmente, manifestaram ideias
semelhantes e as colocaram em público contra a Inquisição e em defesa da tolerância
religiosa. Trata-se de outro ponto de vista, vindo de portugueses criados dentro do
Catolicismo, vivendo dentro ou fora Portugal. Dessa maneira, à resistência difusa ao
status quo católico, manifesta nas proposições de pessoas em todos os espaços de
Portugal e domínios coloniais, soma-se os casos de narrativas de súditos lusos que ou
tentaram empreender ou foram acusados de ações mais diretas contra ele. Efetivamente,
pontos relacionados a um campo mais difuso e menos consciente de críticas religiosas
cruzam-se com outros nos círculos letrados. Cumpre destacar, ainda, que narrativas
como as de Coustos fizeram parte de um processo de enraizamento de narrativas antiinquisitoriais, baseadas, sobretudo, nas memórias de ex-presos e condenados pelos
tribunais de fé. Este será o tema da próxima parte deste capítulo.
description de l'intérieur du S.Office, son origine, et ses excès, divisées en trois parties, par un frère
maçon sorti de l'inquisition. Revues et publiées par L.T.V.I.L.R.D.M. Dans la vallée de Josaphat, l'an de
la fondation du Temple de Salomon MMDCCCIII. [Hollande], (1745), pet. in 8°, de VIII-264pp., demiveau blond époque à petits coins, dos à filets dorés, étiquette au dos. (ex-libris Grande Loge du
Danemark, Den Danske Landsloge Biblioth.). Esta obra não foi lida e analisada nesta pesquisa, fazendo
parte somente de um levantamento de fontes.
220
______________. The Mysteries of Popery Unveiled in the Unparalleled Sufferings of John Coustos at
the Inquisition of Lisbon: To which is Added the Origin of the Inquisition, and Its Establishment in
Various Countries, and The Master Key to Popery. By Anthony Gavin, one of the Roman Catholic priests
of Saragossa. Hartford: printed for the Publisher R. Reynolds & H. Thompson, 1820.
276
Figura 3- Frontispício da versão, também em inglês, das memórias de John Coustos, na versão publicada em 1820. À
esquerda, uma ilustração sobre a chegada do lapidário suíço à Inquisição de Lisboa, imagem idêntica à da capa da
mesma publicação. COUSTOS, John. The Mysteries of Popery Unveiled in the Unparalleled Sufferings of John
Coustos at the Inquisition of Lisbon…1820. Op. Cit.
Figura 4 - Ilustração sobre uma das seções de tortura a que John Coustos foi submetido. Ibidem p. 137.
277
3.5 Antigas e novas críticas ao Santo Ofício
Em alguns momentos, as fontes demonstram que houve um ponto de intercessão
entre as críticas difusas à ortodoxia, já analisadas, com outras, em que há alguma
intencionalidade mais aparente em, por exemplo, criticar a Inquisição, ou ainda em
realizar críticas religiosas mais gerais e que, direta e indiretamente, englobam alguma
defesa da tolerância religiosa. Há exemplos de defensores da supressão dos tribunais de
fé ou de críticos a seus procedimentos que articularam essas suas críticas a debates das
Luzes e, em alguma medida, trouxeram suas ideias à luz para serem discutidas,
desafiando as autoridades político-religiosas instituídas. É importante, porém, salientar
que há diferenças substanciais nas ideias e proposições defendidas e na percepção que
autoridades régias e inquisitoriais tinham. O mesmo se pode dizer a respeito de outros
agentes alinhados a forças mais conservadoras – num sentido lato, isto é, aliadas ou
afins às autoridades vigentes – percebem as proposições mencionadas como risco para o
establishment, num movimento que é, em partes, similar ao que foi acima analisado
sobre a maçonaria. Dito de outra maneira: ao sustentarem proposições tais como as que
indicam, por exemplo, usos “não cristãos” da repressão religiosa, articulando-as a
debates ilustrados e a sociabilidades um tanto típicas desse contexto, isso não significa
que os agentes que as pronunciavam representassem um risco substantivo de sedição ou
de algum confronto mais organizado, como acusava o discurso das autoridades. Porém,
tais tópicas indicam haver, no contexto português e externo a ele, tomadas de posição
críticas ao status quo cristão católico e contra a Inquisição, que pleiteiam uma maior
liberdade religiosa, que extrapolam à espontaneidade e à intuitividade analisadas, por
exemplo, nos acusados de blasfêmias. A crítica religiosa, assim, entrelaça, por meio de
uma circularidade complexa, influenciada diretamente por um processo secularizador
próprio da segunda metade do Setecentos, aspectos da religiosidade do mencionado
“mundo de teólogos”, com críticas da cultura letrada das Luzes e narrativas relacionadas
às memórias de ex-presos e anti-inquisitoriais.
A pretensão aqui é de se analisar, nas proposições heréticas, um ponto já
presente desde a fundação dos tribunais de fé, e que revela uma imagem negativa do
Santo Ofício, segundo a qual ele era manipulado pelos interesses mundanos, e não pela
defesa da ortodoxia católica. Esse ponto assumiu alguns contornos novos em meados do
século XVIII, diante de duas realidades que ali se colocavam, que eram a cultura letrada
278
das Luzes e um processo de secularização, tocante, inclusive, aos ditos tribunais. Esse
ponto articula-se a outra face da defesa da tolerância e da resistência à ortodoxia
católica e à sua pretensa vigilância por autoridades eclesiásticas e régias e, por
conseguinte, a defesas mais diretas e intencionadas da tolerância religiosa. Será este o
próximo aspecto a ser analisado nesta tese.
Um caso importante nesse sentido é o de Francisco Xavier de Oliveira, ou
Cavaleiro de Oliveira, conforme tradução do francês de nome que atribuiu a si mesmo
em suas publicações, Chevalier d’Oliveira. É bastante conhecida, por biografias
publicadas no século XX, sua trajetória fora de Portugal, especialmente na Holanda e
Inglaterra. Suas Cartas Familiares foram censuradas quando residia no primeiro país,
em 1746, por conter “expressões indecorosas contra o clero e a religião”. Mas foi
durante sua passagem por terras inglesas que chegou ao Santo Oficio sua adesão ao
protestantismo, seguida de publicações que foram posteriormente censuradas por seu
tom severamente crítico aos tribunais de fé.221
O Cavaleiro de Oliveira morava em Londres quando a Inquisição de Lisboa o
condenou por publicar o Discours Pathétique au sujet des calamités présentes, arrivées
au Portugal, feita em Londres no ano de 1756. Na mesma cidade publicou, em 1757, o
Suite du Discours Pathétique: ou Réponse aux objéctions et aux murmures que cet Ecrit
s’est attiré à Lisbonne. Nessas obras, Oliveira satirizava a Inquisição, reprovava a não
publicação da Bíblia em língua vulgar (o que, para ele, causa de danos a Portugal e à
república cristã, pois impedia a lição das Escrituras e a meditação da Divina Palavra,
nos seus termos), condenava o culto a imagens de santos e outras práticas católicas.
Defendia, entre outros pontos, a liberdade de culto e a abolição do Santo Ofício,
alegando que os portugueses viviam sob a “lei dos inquisidores”. Além disso, fazia uma
provocação ao propor que os judeus construíssem uma sinagoga no Rossio.222 Oliveira
teria tentado convencer os leitores que mazelas da nação portuguesa, como as práticas
religiosas que dizia serem condenáveis, e a perseguição aos judeus seriam, no limite,
responsáveis pela ira divina expressa no Terremoto de 1755. Sobre isso, Antônio Baião
diz que, “à semelhança do que se passou com o (terremoto) de 1536, se aproveitaram
221
MARCOCCI, Giuseppe e PAIVA, José Pedro. História da Inquisição portuguesa. Op. Cit. p. 343.
Ibidem, p. 432-433; RODRIGUES, Antônio A. Gonçalves. O Protestante Lusitano: estudo biográfico
e crítico sobre o Cavaleiro de Oliveira. MDCII-MDCCLXXXIII. Coimbra: Coimbra editora, 1950. p.
253-254.
222
279
d’este fenômeno natural para d’ele tirarem efeitos políticos ou religiosos!”223 Antônio
Gonçalves Rodrigues, em estudo biográfico sobre Francisco Xavier de Oliveira, ao
discutir a recepção do terremoto na literatura europeia, é enfático ao afirmar que a
explicação dada pelo letrado português não destoava muito das inclinações das classes
médias europeias e, sobretudo, britânicas, em meados do século XVIII. Não era
estranho ao gosto estético do período se atribuir fenômenos como o dito sismo a causas
teológicas, ainda que as descrições e narrativas também se detenham nas causas
naturais, pois “logo as ultrapassam, procurando num providencialismo ortodoxo a
explicação da tragédia portuguesa”. Analisando sobretudo a poesia e produção literária
da Grã-Bretanha a respeito do trágico evento de 1755, Rodrigues conclui que a
“imaginação britânica, mais ou menos puritana, não satisfaz no plano científico, que
explica, mas não justifica” e, por isso, “sente-se mais à vontade no plano moral, em que
atinge a verdadeira e magnífica eloquência”.224 Essa explicação de Rodrigues leva em
conta, de maneira mais incisiva que Baião, o lugar da religião na produção letrada das
Luzes. Atribuir a narrativa que afirma causas teológicas ao sismo a somente seu uso
político puro e simples é, em grande medida, analisar tais argumentos partir de valores
seculares e secularistas de contextos posteriores a eles. As proposições presentes nas
obras de Oliveira podem e devem ser pensadas conforme esse trânsito e complexidade,
existentes na busca por explicações, tanto em linguagem secularizada como na
teológica, afinal, ambas estavam longe de serem mutuamente excludentes. Tampouco,
deve-se entender esse trânsito, entre explicações dos fenômenos que se valem da
linguagem secularizada, a das razões naturais, e as assentadas em leituras teológicas dos
mesmos fenômenos, meramente como acessórios, isto é, compreendendo que seu uso
simultâneo (ou seja, de uma linguagem religiosa que traga, implicitamente, propósitos e
ideias absolutamente seculares, ou vice-versa) serve tão somente de meio para se
argumentar da outra forma.225
BAIÃO, Antônio. Episódios dramáticos da Inquisição Portuguesa. Volume II – Homens de letras e
sciências por ela condenados- Varia. Rio de Janeiro: Álvaro Pinto –editor, 1919-1938. p. 68.
224
RODRIGUES, Antônio A. Gonçalves. O Protestante Lusitano: Op. Cit. p. 240. Sobre a repercussão do
terremoto na Inglaterra à época da produção do Cavaleiro de Oliveira: Ibidem, p. 232-240.
225
Conforme o que foi dito por Stephen J. Barnett sobre se repensar o lugar da religião nos estudos sobre
as Luzes, sem atribuir-lhes um “mito secularizador”, construído a posteriori. A ideia do autor, no que
toca ao combate, por exemplo, ao que chama de ilusão de uma “conspiração deísta”, as ideias, debates,
obras e proposições de autores ilustrados precisam ser compreendidas tendo como pressuposto que, em
grande parte, sua interlocução se deu com outras ideias e realidades fortemente marcadas e permeadas
pela religião. Assim como a análise das ideias de Locke não deve deixar de lado o fato de ele ter sido
protestante, de publicar estudos teológicos diversos e de boa parte de seus debates se dirigir a religiosos,
sobre temas também religiosos, a obra do Cavaleiro de Oliveira deve ser entendida conforme os diversos
223
280
No processo do Cavaleiro de Oliveira, publicado em fragmentos por Antônio
Baião e outros historiadores, o padre José Tomás Borges depôs dizendo que conhecia o
Discours Pathétique. Disse que a obra era dividida em três livros, cujo objetivo
principal era convencer o monarca de que o terremoto “viera em castigo dos pecados
públicos da nação, os quais eram na primeira parte a idolatria cometida no culto das
imagens a que se dava adoração”, e também “a conservação do tribunal da Inquisição
neste Reino”, acrescentando ainda que poderia vir outro castigo se tais inconvenientes
não fossem eliminados. Já o frei Francisco da Visitação Massarelos disse que não viu o
livro, mas sabia que ele era escrito em francês e que seu autor “seguia a seita de
Lutero”, certamente em referência a Oliveira ter-se convertido ao anglicanismo.226 No
testemunho do frei Domingos da Encarnação, há menção de que o livro é “cheio de
impiedades, blasfêmias e calúnias contra o Tribunal do Santo Ofício e seu retíssimo
procedimento”. Ao todo, Antônio Baião lista 12 testemunhas em seu processo.227
Antônio Gonçalves Rodrigues também destaca alguns depoimentos importantes, como
foi o caso do feito pelo frei Tomás de Aquino, da ordem de São Bento, irmão do
Cavaleiro de Oliveira, que teria recebido as publicações do próprio irmão e as teria
queimado, além de delatar proposições que tiveram peso significativo para o resultado
final do processo. Em 16 de outubro de 1756, Oliveira foi citado para se apresentar
dentro de 120 dias ao Santo Ofício “e dizer de sua Justiça, sobre certos artigos
pertencentes à Fé”, intimando-se à denúncia a todos que soubessem de sua presença
dele no Reino ou seus domínios. Oliveira não se apresentou, incorrendo em
excomunhão maior, e seu processo correu à revelia. A carta que condenava todas as
publicações do autor foi lida, em 17 de outubro de 1756, pelo pároco da freguesia de
Nossa Senhora da Pena. Prosseguido o processo até o fim, alguns anos depois desses
fatos, ele foi condenado como “convicto, negativo, pertinaz, revel e contumaz”, por
herético e apóstata, sendo sua obra classificada por “herética, cismática, sediciosa,
errônea, injuriosa à Igreja Católica Romana e contrária aos dogmas da nossa Santa Fé”.
contornos religiosos que seu contexto lhe oferecia, entre os quais a possibilidade e o alcance, do ponto de
vista moral e político, de explicações sobre fenômenos que ultrapassassem as balizas de uma linguagem
científica. C.f. BARNETT, Stephen J. The Enlightenment and religion. Op. Cit. p. 11-44.
226
Antônio Gonçalves Rodrigues define o Discours como “uma interpretação providencialista do
terramoto” de Lisboa, “estranhamente semelhante à do jesuíta Malagrida”, cujo objetivo de fundo era
“estimular a criação de uma Igreja Lusitana submetida ao gládio político” régio, “à imagem e semelhança
da Igreja anglicana que o aceitara como membro”. RODRIGUES, Antônio A. Gonçalves. O Protestante
Lusitano. Op. Cit. p. 252.
227
BAIÃO, Antônio. Episódios dramáticos da Inquisição Portuguesa. Op. Cit. p. 69-70.
281
Foi relaxado ao braço secular e queimado em efígie no auto-de-fé de 20 de setembro de
1761, um dos últimos da história da Inquisição de Portugal.228
Para Sônia Siqueira, a condenação e relaxamento ao braço secular do Cavaleiro
de Oliveira aceleraram a sua hostilidade contra a Inquisição de Portugal.229 Assim,
morando, à época, em Londres, Oliveira publicou uma resposta à sua condenação: se
tratava do Le Chevalier d’Oliveira brulé en figure. Comment héretique et pourquoi?
Anedotes et réflexions sur ce sujet donnent au public par lui même, publicado em 1762.
O livro é dividido em 15 artigos, cada qual explicando algum ponto em que critica os
inquisidores e a Inquisição, mais introdução e uma “advertência” ao leitor, no final
(Avertissement). Nesse escrito, também defende a liberdade de consciência e de religião,
além de criticar o Catolicismo como ele era vivido e praticado em Portugal, o que, na
sua concepção, não coincide necessariamente com o Catolicismo de modo geral. Na
introdução, o Cavaleiro de Oliveira explica claramente quais são os objetivos ali
propostos: responder à sentença da Inquisição, submetendo-a a dois juízes, a saber,
Deus e o público. Além de examinar as proposições pelas quais foi acusado, o autor
afirma que pretende demostrar o absurdo que significa, de acordo com as leis de Deus, a
própria Inquisição.230
Para abordar os argumentos mais interessantes a esta tese contidos na obra, vou
analisá-los agrupando-os em três tópicos, que são: sua defesa da tolerância religiosa,
suas críticas à Inquisição e, não menos importante, suas concepções e críticas sobre o
Catolicismo. Com isso, quero destacar alguns aspectos de suas proposições intimamente
relacionados a debates das Luzes, sem com isso perder de vista a questão da tolerância
em suas relações com a realidade e as tradições religiosas em Portugal.
Inicialmente, é importante analisar o que o Cavaleiro de Oliveira, na sua
resposta, concebia como o Catolicismo. Como foi dito acima, isso não necessariamente
correspondia universalmente a todos os que seguiam a Igreja Católica Romana. No
artigo XIII, Oliveira faz um apontamento fundamental, que permeia todos os pontos em
que critica a Igreja católica e o Catolicismo, separando de uma maneira bastante
peculiar duas formas de se seguir essa religião, às quais denominou “papismo” e
228
Ibidem. p. 51-53. RODRIGUES, Antônio A. Gonçalves. O Protestante Lusitano. Op. Cit. p. 256-258.
SIQUEIRA, Sonia. A Inquisição e o inquisidor no outono da modernidade. Sæculum–Revista de
História, (30), João Pessoa, jan./jun. , p. 141-159. 2014. p.149.
230
OLIVEIRA, Francisco Xavier de [1762]. Le Chevalier D’Olivera brulé en effigie comme hérétique.
Comment & Pourquoi? Anecdotes & Réflexions sur ce sujet, donné au Public par lui-meme. Londres: De
l’imprimerie de J. Haberkorn, Grafton-Street St. Ann’s Sobre; & se vend chez W. Nicoll, dans St. Paul’s
Church-yard. M. DCC. LXII. p. 13.
229
282
“catolicismo”. Papistas, segundo sua definição, são aqueles que sustentam e acreditam
na autoridade de um “déspota mortal”, o Sumo Pontífice, e com isso sustentam
“iniquidades e absurdos como a Inquisição”. Conforme seu argumento, trata-se de
países como Portugal, Espanha e de algumas partes da Itália. Por outro lado, há nações
esclarecidas, como França, Suécia, Alemanha e Áustria, onde se professa o verdadeiro
Catolicismo Romano, pois nelas não existe Inquisição e o respeito pela figura do papa
se dá tão somente como autoridade religiosa e nada além disso. Com isso, nesses
espaços, preserva-se a autoridade nacional, sem venerar-se o Papa como um deus e
obedecê-lo servilmente. Para os pensadores católicos romanos e não papistas, conclui
Oliveira, os procedimentos inquisitoriais são abomináveis e execráveis, contrários à
justiça natural e divina.231
Além da separação entre Catolicismo e papismo, tomando o segundo como uma
forma degenerada do primeiro, o Cavaleiro de Oliveira dedica o artigo XII à defesa da
proposição de que o terremoto de 1755 teria sido causado pela ira divina contra seu país
e, nesse ponto, constrói um pressuposto que vai perpassar toda a sua argumentação
crítica à lei católica. Nos argumentos teológicos, Oliveira busca explicações que
sustentem sua proposição de que o terremoto, juntamente com uma outra infinidade de
suplícios pelos quais Portugal passava até meados do XVIII, são fruto da forma
deturpada pela qual segue-se naquele ali tal confissão religiosa, sobretudo quanto ao
tratamento da diferença como heresia, através das perseguições inquisitoriais, que
isolam o país, em suas palavras, “na sua própria soberba e orgulho”.232 O autor
compara, ainda, a liberdade de exame das Escrituras nos países protestantes e nos
católicos, com vantagem aos primeiros, ponto em que a liberdade de pensamento é
exaltada, pois, com ela, se combate a ignorância, elemento que explica grande parte de
todos os problemas das nações papistas, que vão de questões como o fanatismo e a
intolerância, até o isolamento econômico e político, que seriam intimamente ligados.233
Esse argumento está colocado de maneira implícita no artigo IX da obra, em que se
sugerem ao rei d. José I reformas baseadas na sua definição de “catolicismo”, não no
“papismo”. Com isso, a autoridade real seria estabelecida na Igreja nacional, em
detrimento da papal, além de haver liberdade religiosa, sobretudo em relação aos judeus
231
Ibidem, p. 92-93.
Ibidem, p. 77.
233
Ibidem, p. 66.
232
283
e a abolição da Inquisição, sendo todos esses pontos centrais para livrar Portugal de
todos os seus problemas.234
Com base em tais pressupostos, apresentados de maneira um tanto espaçada ao
longo do texto, seus ataques contra a Inquisição desenvolvem-se de maneira bastante
veemente. Uma informação que se depreende do texto, no entanto, é que, talvez com
uma função retórica, a figura do inquisidor é apresentada ao leitor da resposta do
Cavaleiro de Oliveira como todo e qualquer agente, ao longo de toda a História, que
tenha utilizado de maneira ilegítima e contrária à razão natural alguma coerção contra o
dissenso religioso. Para ele, “inquisidor” seria um termo que tem aplicabilidade para se
definir realidades históricas e atitudes perante a diferença que ultrapassam a própria
existência dos tribunais de fé. Dito de outra maneira, ser inquisidor, para Oliveira, era
algo que unia aqueles que condenaram Jesus ao calvário com os que condenaram
Sócrates ao suicídio na Grécia Clássica,235 ou ainda com os brâmanes que enviavam à
morte infiéis na Índia.236 Assim, a narrativa de Oliveira transformava todos esses
“inquisidores” e inquisidores (sem aspas) em uma coisa só, mesmo estando eles tão
separados no tempo e no espaço e por confissões religiosas distintas. O que os unia era
seu despotismo, tirania, hipocrisia e também a ignorância, que os tornava incapazes de
provar que o outro estava errado, em matéria doutrinal, através de qualquer outro meio
que não fosse violento, desonesto e malicioso.237 Oliveira os contrapunha, dessa forma,
a quaisquer ideais de civilização, dizendo que os “inquisidores são tão bárbaros quanto
os povos de África, América e Ásia para onde eles mandam constantemente
missionários para pregar a palavra que eles dizem ser a de Deus”.238
O Cavaleiro de Oliveira também questiona os métodos e o fundamento da
Inquisição. A começar que, conforme o argumento do protestante lusitano, os tribunais
do Santo Ofício são tão absurdos e inúteis que não combatem, sequer, a heresia. Pelo
contrário, seus tormentos, prisões e violências, no geral, fazem que, no máximo, as
pessoas que as praticam escondam seus erros por medo, ou ainda que, motivadas pela
condenação e perseguição, obstinem-se ainda mais neles, havendo reincidência, 239 do
234
Ibidem, p. 56-60.
Ibidem, p. 49.
236
Ibidem, p. 94
237
Ibidem, p. 99.
238
Ibidem, p. 23.
239
Ibidem, p. 69.
235
284
que, neste caso, o próprio autor seria um exemplo.240 De alguma maneira, Francisco
Xavier de Oliveira sistematiza a tópica, já presente nas proposições de portugueses e
luso-brasileiros, desde a fundação dos tribunais, de que a repressão não combatia, mas
apenas enviava para o subterrâneo as heresias que se propunha a combater,
multiplicando-as, como as cabeças da hidra de Lerna241 da mitologia grega. Esse
processo produzia uma “divisão” e uma “mentalidade subterrânea”, numa compreensão
um tanto similar à que já discutiu em relação aos trabalhos da historiadora Anita
Novinsky.
Tocando diretamente no processo que o levou à sua condenação, Oliveira afirma
que a ira dos inquisidores contra as suas proposições a favor dos judeus deu-se não
porque os inquisidores demonstraram que elas eram erradas, mas porque a sugestão
feita ao rei de se adotar a tolerância aos judeus, juntamente ao apontamento de que os
procedimentos inquisitoriais eram execrandos e contra as leis divinas e humanas, não
era suficientemente contra argumentada pelos inquisidores, seja por sua incapacidade,
seja por seu costume em tratar de maneira tirânica as discordâncias resolvíveis pelo
embate racional.242 Essa tópica, aliás, reforça um entrelaçamento entre ignorância e
intolerância, marcante na sua descrição dos inquisidores, segundo a qual a força contra
o herege só é utilizada na medida em que a própria impotência dos agentes da
Inquisição em provar sua verdade mediante à razão vem à tona. Assim, o Cavaleiro de
Oliveira busca sustentar sua proposição favorável aos seguidores da lei de Moisés. O
autor defende seus argumentos em prol dos judeus com exemplos de santos, papas e
concílios que dizem que a existência de hebreus no seio da cristandade não a ameaçava.
Seu objetivo, com isso, era reafirmar suas proposições e a ideia de que os inquisidores
são tão ignorantes que não perceberam que os argumentos que sustentavam para
condenar um protestante, como Oliveira, poderiam perfeitamente condenar um papa
como herege ou apóstata. Isso reforça, na sua polêmica, que o uso da força para defesa
240
Na introdução, o Cavaleiro de Oliveira dá a si mesmo como um exemplo para reforçar seu argumento,
dizendo que a condenação lhe fez obstinar-se ainda mais na lei protestante e no seu combate contra a
Inquisição. Ele diz, assim como as publicações do processo relatam, que seu irmão pediu-lhe, em carta,
uma abjuração das proposições defendidas no Discours (1756), ao que ele teria refutado, mostrando-se
resoluto em defender cada uma das proposições pelas quais foi condenado. Ibidem, p. 11.
241
A analogia entre a heresia e a Hidra combatida por Héracles, na mitologia grega, que teria infestado o
lago na região de Lerna, em Argolis, foi amplamente usada na retórica e na iconografia inquisitoriais ao
longo dos séculos XVI e XVII. PACHECO, Milton Dias. Greek Mythology at the Service of the
Portuguese Inquisition: The Case of Hercules and the Hydra of Lerna. Athens Journal of Mediterranean
Studies. Vol. 1, No. 1 (25-44), January 2015.
242
OLIVEIRA, Francisco Xavier de. Le Chevalier D’Olivera brulé em effigie comme hérétique. Op. cit.
p. 54.
285
da ortodoxia, ao invés do uso da razão exposta por meio de argumentos, feria
gravemente a própria doutrina supostamente defendida, por ancorá-la cada vez mais no
obscurantismo, ao invés da verdade.243
A Inquisição, ainda segundo Oliveira, isola Portugal dos demais países. A partir
disso, ele levanta a seguinte questão: “como os portugueses podem querer ter aliados se
tratam a todos como hereges dignos de fogo?”244E, além disso, conforme defende no
artigo VIII, há uma completa falta de imparcialidade e, por conseguinte, de justiça, por
parte dos inquisidores, pois eles somente julgam com rigor a quem estiver numa posição
de poder desfavorável em relação a eles.245 Seria, assim, um tribunal político, não
defensor da fé. Eram, acima de tudo, nada mais do que a manifestação da falta de
virtudes cristãs e de Luzes: tratava-se de indivíduos que tinham como propósito
somente escravizar os povos através da ignorância.
Na argumentação do Cavaleiro de Oliveira, as críticas à Inquisição e a separação
entre um Catolicismo “ilustrado”, independente da ingerência papal e inquisitorial,
daquele a que chama de “papismo”, confluem numa defesa da tolerância religiosa. O
artigo primeiro, cujo título é Persecution, Oliveira, assenta-se na premissa segundo a
qual “todas as religiões que empregam o ferro e fogo para obrigar os homens a abraçar
seus dogmas são, certamente, falsas”.246 Além disso, tais credos selam seu destino na
medida em que a própria história do Cristianismo, segundo ele, prova que confissões
que são perseguidas, num determinado momento, serão as perseguidoras no seguinte, e
assim por diante, numa espécie de ciclo de intolerância que atravessa a História. Essa
perseguição, segundo ele, diz mais sobre o ímpeto mundano dos homens que sobre a
natureza das religiões, pois, nas suas palavras:
É muito verdade que o nome de Jesus Cristo, bem como aquele de
Júpiter e de Maomé, tem muitas vezes servido de pretexto às paixões
não reprimidas dos eclesiásticos e dos magistrados, para colorir seus
obscuros desejos e autorizar sua impetuosidade e suas injustiças
(Tradução minha).247
No segundo artigo, em que sua reflexão parte de alguns apontamentos feitos no
livro do Êxodo, na passagem dos dez mandamentos, o Cavaleiro de Oliveira argumenta
que forçar alguém a cumprir a lei divina ofende à autoridade de Deus, por julgar e
perseguir matérias de sua alçada, equiparando os perseguidores aos mesmos ímpios aos
243
Ibidem, p. 55.
Ibidem, p.73.
245
Ibidem, p. 55-56.
246
Ibidem, p.18.
247
Ibidem, p.19.
244
286
quais se diz perseguir.248 Assim, conforme sua argumentação, as perseguições religiosas
são tão irracionais quanto mundanas e anticristãs.
A respeito das acusações de seguir “doutrinas novas” – o que, para ele, não
passava de uma acusação vazia e um tanto geral, feita em muitos momentos da história
a quem pensasse diferente apenas pelo ímpeto da tirania dos “inquisidores” –, defendese em duas frentes. Em primeiro lugar, referindo-se à fé protestante que seguia,
argumenta que sua doutrina é tão antiga quanto a dos papas, mas estes, com sua
presunção de detentores de verdade o acusam de se desviar dela, dando-lhe uma
condenação que poderia ser dada apenas por Deus, único que pode saber qual das leis é
verdadeira ou falsa. Em segundo lugar, já tocando não somente seu credo, mas
incluindo suas proposições e até mesmo outras religiões, mesmo aquilo que se definia
como “heresia”, Oliveira diz que a presunção de porte legítimo e único da veracidade
em matéria de fé, típica daqueles que impõe aquilo que acreditam por meio da violência,
leva os homens à ignorância ou à malícia de afirmarem, contra qualquer coisa que
desafie seus sistemas dogmáticos, que não passariam de “novidades”, no sentido de que
vieram para contrapor-se à verdade e causar desordens e sedições.249
Isso levava, continua o Cavaleiro de Oliveira, a grandes mentes e espíritos serem
perseguidos pelos “inquisidores”. Isso porque são exatamente as pessoas mais ilustres
de suas épocas que com frequência são acusadas de criar ou defender “novidades”, já
que apontam as incoerências e inconsistências dos dogmas de seus acusadores. Além
disso, segundo o ilustrado português, suas vozes dissidentes são silenciadas porque
trazem à luz a ignorância desses “inquisidores”, estejam em que época estiverem. Tal
procedimento, para ele, era a razão pela qual as artes e as ciências não floresciam nos
países onde a Inquisição existia – dentre os quais, obviamente, Oliveira incluíra
Portugal –, pois, além de perseguir àqueles que desafiavam tais verdades e consensos
defendidos pelos inquisidores, os mesmos agentes inquisitoriais semeavam a ignorância
entre os povos, escravizando-os e fazendo-lhes tratar como criminoso quaisquer pessoas
que ousassem dizer verdades baseadas na razão.250
Por fim, a respeito de sua defesa da tolerância religiosa, cumpre aqui ressaltar
sua definição de heresia. Ao se defender das acusações sobre essa matéria, no artigo X,
Oliveira diz que o herege nada mais é que uma pessoa que conhece os verdadeiros
248
Ibidem, p. 24-27.
Ibidem, p. 47-48.
250
Ibidem, p. 48-51.
249
287
fundamentos da religião cristã e que, por algum ponto, distingue-se do que é tido como
ortodoxo e, ao dizer isso a alguém, torna-se, aos olhos das autoridades, inimigo de Deus
e de Jesus Cristo. Mas essa lógica não se aplica aos próprios inquisidores, que se
comportam como donos da verdade, usurpando a própria autoridade divina. Privando o
resto da comunidade católica do direito de julgar o que é ou não conforme às verdades
da fé por ela mesma, examinando os argumentos de quem defende uma suposta heresia
ou examinando as condenações dos hereges, os inquisidores conduzem “um julgamento
tirânico, que tem a liberdade de pensamento e a sã religião como inimigos”. Assim, ele
argumenta que sua doutrina protestante não é falsa e, ainda que o fosse, não o seria
somente porque os inquisidores disseram que ela é herética, sem poderem ser
contestados pelo uso da razão e da liberdade pelos seus compatriotas. Isso, explica, dáse porque somente o uso da razão, necessário para o exame das Escrituras e dos
Evangelhos, pode servir como base para se decidir se uma doutrina é errônea ou não.
Apenas através do uso dela é que as pessoas devem decidir, em conformidade com as
leis de Deus e da razão natural, o que elas vão seguir como verdade em matéria de
religião. O arbítrio dos inquisidores, ao decidir o que é erro ou verdadeiro, é,
duplamente, uma afronta contra a racionalidade humana e à misericórdia divina.251
Antônio Gonçalves Rodrigues afirma ter encontrado, entre 1762 e 1763, menção
ao Le Chevalier D’Olivera brulé em effigie comme hérétique somente no Journal
Encyclopédique, no número de 1 de abril de 1762, onde lhe dedicam uma resenha
bastante elogiosa de treze páginas. Nela, há destaques diversos sobre a obra, como
algumas considerações contra a Inquisição portuguesa; na resenha, afirma-se também
que houve uma tradução para a língua inglesa do texto, que não é conhecida, até
então.252 Porém, o próprio autor afirma ter encontrado algumas reimpressões de suas
obras a respeito do terremoto de 1755,253 o que pode ser um indicativo de uma
circulação não desprezível, porém de difícil localização dentro da documentação
disponível. Se não há informações suficientes sobre a amplitude da circulação da obra, é
certo que, tal como a narrativa anti-inquisitorial, já analisada, de John Coustos ou a
passagem de Candide,254 de Voltaire, em que a Inquisição portuguesa é apresentada de
251
Ibidem, p. 62-64.
RODRIGUES, Antônio A. Gonçalves. O Protestante Lusitano. Op. Cit. p. 273-275.
253
Ibidem, p. 250.
254
Cândido, protagonista, e seu mestre Pangloss, caracterizado por defender sistematicamente que
estamos no melhor dos mundos possível, no capítulo VI, passam por Lisboa no dia seguinte ao terremoto
de 1755. Na cena, os inquisidores, apresentados irônica e acidamente como sábios, decidem que o sismo
poderia ser acalmado com um auto-de-fé público, para o qual escolhem o mesmo mestre de Cândido,
252
288
maneira satírica e caricatural, a resposta do Cavaleiro de Oliveira à sua sentença somase a uma literatura crítica ao Santo Ofício, que contribuiu para um desgaste da imagem
dos tribunais de fé na cultura letrada europeia.
As informações contidas nos trechos do processo publicados por Antônio Baião
e a resposta do Cavaleiro de Oliveira à sentença que lhe foi aplicada pela Inquisição
portuguesa indicam alguns pontos importantes para se entender uma disputa em torno
do religioso, no sentido que foi apresentado neste capítulo. Tal disputa, como foi
repetidamente defendido nesta tese, não implicava uma ruptura com a religião,
demandando apenas uma religiosidade mais branda e tolerante, alternativa à proposta
pela ortodoxia e contornada pelo dirigismo do Reformismo ilustrado. Oliveira, muitas
vezes de forma direta, e implícita, noutras, vislumbra algum horizonte de possibilidades
menos duras e mais livres de se professar e seguir a religião, inclusive a católica, da
qual apostatou. A forma como o autor problematizou tal questão e a expôs em texto, que
circulou entre letrados no século XVIII, distanciam-no das proposições que foram
analisadas, pronunciadas por pessoas de estratos sociais mais modestos e mesmo
iletradas. Todavia, depreende-se um ponto de aproximação entre letrados, como
Oliveira, e essas mesmas pessoas com níveis menores de letramento que caíram nas
malhas do Santo Ofício, pertencentes a outros grupos sociais: em comum, havia a
percepção, ainda que distante da realidade concreta na Idade Moderna, segundo a qual
era desejável viver religiosidades mais livres. Vislumbravam-se formas de viver a
religiosidade sob maneiras que as autoridades externas interferissem menos no seu
controle, em que também as pessoas pudessem conceber realidades dentro das quais
seus corpos, mentes e ideias e desejos de salvação da alma fossem mais livres,
diminuindo-se a distância entre vivências interiores e expressões exteriores da religião.
acusando-o de dizer, ao defender que estamos no melhor dos mundos possível, uma proposição contrária
ao dogma da Queda do homem após a criação, conforme interpretação de Gênesis, 3:1-24. Assim, a
descrição que Voltaire faz da narrativa destaca sempre a irracionalidade e incivilidade de todo o ato,
construindo-se uma imagem do Santo Ofício associada a percepções supersticiosas e fanáticas da
realidade, associadas à crueldade e à injustiça que se cometem por conta delas: “Tinham pois, prendido
um biscainho que casara com a própria comadre, e dois portugueses que, ao comer o frango, lhe haviam
tirado a gordura: vieram depois do almoço prender o doutor Pangloss e seu discípulo Cândido, um por ter
falado e outro por ter escutado com ar de aprovação: ambos foram conduzidos em separado para
apartamentos extremamente frescos, onde nunca se era incomodado pelo sol; oito dias depois vestiramlhe um sambenito e ornaram-lhe a cabeça com mitra e papel: a mitra e o sambenito de Cândido eram
pintados de chamas invertidas e diabos que não tinham cauda nem garras, e as flamas eram verticais.
Assim vestidos, marcharam em procissão, e ouviram um sermão patético, seguido de uma bela música em
fabordão. Cândido foi açoitado em cadência, enquanto cantavam. O blacainho e os dois homens que não
tinham querido comer gordura foram queimados, e Pangloss enforcado, embora este não fosse o costume.
No mesmo dia a terra tremeu de novo, com espantoso fragor”. VOLTAIRE, François Marie Arouet.
Candido ou o otimismo. Op. Cit. p. 42.
289
Francisco Xavier de Oliveira, assim, é um exemplo importante de pensador que
sistematiza, sob o signo da razão ilustrada, tópicas já há muito presentes em
mentalidades portuguesas e coloniais, na sua relação com a vigilância da ortodoxia
católica, dentro do “mundo de teólogos” da Idade Moderna.
No texto de Oliveira, constantemente, aparece a ideia de que existe, de maneira
mais ou menos demarcada, uma cisão entre uma religiosidade interior e uma exterior,
sendo que a segunda é a que se expressa num contexto em que vigilância que zelava
pela ortodoxia vigente era uma constante. Essa cisão, que no texto é mais ou menos
sistematizada pelo Cavaleiro de Oliveira, é produto direto da vigilância e da tirania dos
inquisidores, além de um empecilho para o desenvolvimento da sã teologia, que só
existe por meio do exame crítico e racional das Escrituras, segundo as leis da razão,
decidindo-se, por esse meio, qual doutrina seria a melhor e verdadeira. A repressão
conduzida pela Inquisição, assim, atuava como um fator decisivo para esse problema. O
desejo, expresso nas proposições heréticas registradas em denúncias e processos da
Inquisição, era de que essa cisão deveria, no mínimo, ser atenuada. 255 Isso porque ela
reforçava uma religião vivida apenas exteriormente, sem assenso interno – como nos
depoimentos dos estrangeiros que se apresentaram por terem, em algum momento, se
convertido ao Islã –, sendo ruim para a verdadeira fé, baseada na razão, podendo, até
mesmo, fomentar cada vez mais a heresia. Tais pressupostos permeavam os desejos e
defesa por uma maior tolerância religiosa.
Por fim, há a problematização, feita pelo Cavaleiro de Oliveira, que associa a
intolerância religiosa institucionalizada, na Idade Moderna, em seu país natal – e
noutros “papistas”, valendo-me do termo usado por ele –, com objetivos mais mundanos
e materiais, e não artigos de fé ou defesa da religião. Esse é também um ponto em que,
na obra de Oliveira, verifica-se a articulação de diversas tópicas, sobretudo no que diz
respeito às críticas à Inquisição, mas também aos eclesiásticos. Aparecem, na pena do
ilustrado lusitano, elementos que remetem ao ideário ilustrado, principalmente a
vertentes protestantes da Ilustração inglesa e a seus debates públicos, em circulação em
meados do XVIII.256 Veem-se também outros aspectos que se assemelham às
proposições críticas ao universo católico da Modernidade e ao Santo Ofício,
255
Luiz Carlos Villalta chegou a conclusões similares analisando um outro escopo de fontes, discutindo
práticas de leitura e a formação de uma incipiente esfera pública no Brasil, na virada do século XVIII para
o XIX, naquilo que é comumente chamado de “crise do Antigo Regime”. C.f. VILLALTA, Luiz Carlos.
O Brasil e a crise do Antigo Regime português: (1788-1822). Rio de Janeiro: Editora FGV, 2016. p. 4581.
256
SOARES, Luiz Carlos. A Albion revisitada no século XVIII. Op. Cit. p. 197-200.
290
encontradas na documentação inquisitorial, vindas de pessoas dos mais variados estratos
sociais. Um apontamento necessário é que o “ímpeto secularizador” pombalino, nesse
contexto, oferecia elementos distintos dos encontrados em épocas anteriores e, por
conseguinte, provocava esse tipo de crítica. A documentação indica evidências
importantes quanto a este último ponto na acusação e condenação de três pessoas,
dentre os quais um comissário do Santo Ofício, por proposições e por sedição,
associadas a palavras malsoantes que teriam dito na ocasião do famoso auto-de-fé em
que o padre Gabriel Malagrida foi executado. Nos casos desses homens, a crítica à
ilegitimidade da Inquisição se somava a uma associação direta à condenação ao
Marquês de Pombal, insinuando-se uma ingerência dele na condenação do jesuíta,
entendida como baseada em motivos políticos, havendo uma inocência ou mesmo
santidade do religioso.
A execução do padre Gabriel Malagrida foi o último grande auto-de-fé público
da Inquisição portuguesa, realizado em 21 de setembro de 1761. A perseguição e a
morte desse religioso repercutiram em toda a Europa. Voltaire escreveu sobre ele,
relatando, com diversas imprecisões, detalhes do processo, sempre em tom um irônico e
ressaltando aspectos, conforme o texto, insólitos, como “as poluções dentro da prisão”,
que constam em partes do documento inquisitorial contra o jesuíta, além de passagens
de seus textos que contêm detalhes que considerava supersticiosos, como predições e
milagres atribuídos ao eclesiástico. No mais, o ilustrado francês dava a entender que
esse conjunto de situações, tratadas como absurdas, teriam sido usadas para entregar
Malagrida à Inquisição a fim de condená-lo, na verdade, pela tentativa de assassinato
contra d. José I, em 1758.257 O próprio Cavaleiro de Oliveira menciona algumas vezes a
condenação do inaciano no Le Chevalier D’Oliveira brulé em effigie comme hérétique.
Numa passagem, Oliveira se refere a ele como chefe da conspiração que culminou no
atentado contra o monarca, mas também acrescenta, nas suas críticas à doutrina do
purgatório, que essa crença foi utilizada pelos inquisidores para se conseguir bens e
recursos materiais de fieis e do próprio Malagrida, sob o pretexto de lhe diminuir as
penas no além vida. Noutra passagem, à semelhança de Voltaire, o mesmo autor
percebe o uso da acusação de heresia para se condenar Malagrida pelo atentado ao rei,
sem se indispor com Roma.258 Se essas e outras publicações indicam haver uma
257
VOLTAIRE, François Marie Arouet. Précis du siècle de Louis XV [1768]. Op. Cit. p. 219-220.
OLIVEIRA, Francisco Xavier de. Le Chevalier D’Olivera brulé em effigie comme hérétique. Op. Cit.
p. 36-38 e p. 80-81.
258
291
repercussão significativa da execução do jesuíta na cultura letrada europeia do início da
segunda metade do século XVIII, alguns processos encontrados na documentação
inquisitorial, por injúrias e proposições contra o “reto procedimento” da Inquisição,
mostram haver alguma repercussão do caso em Portugal. As impressões sobre a
execução de Gabriel Malagrida, assim, serviram de suporte, em alguma medida, a
críticas contra os estilos e procedimentos inquisitoriais, mas com alguns elementos
peculiares, em especial, a interferência do ministro plenipotenciário de d. José I. Por sua
vez, não se deve desconsiderar as críticas a ele pelo seu lado positivo, segundo valores
das Luzes. A execução de Malagrida também serviu de exemplo do combate do
pombalismo contra a superstição e em favor do racionalismo iluminista, com o qual
empreendia eu projeto modernizador em Portugal.
O primeiro dos acusados a ser analisado aqui foi o padre Jacinto José Coelho,
vigário da igreja de São Martinho da Golegã e comissário do Santo Oficio, natural da
Vila Franca de Xira. No início do processo, consta que ele estava preso pela Junta de
Inconfidência desde 17 de outubro de 1761, ou seja, foi preso menos de um mês após o
auto-de-fé em que Malagrida fora queimado vivo. Em 9 de outubro de 1761, em Lisboa,
diante do deputado do Conselho Geral d. Nuno Alves Pereira de Melo, José de Oliveira
Machado, escrivão adjunto da Junta de Inconfidência e familiar do Santo Ofício,
compareceu para denunciá-lo. Disse que lhe foram delatadas matérias pertencentes ao
Santo Ofício envolvendo Jacinto Coelho, além de algumas testemunhas. Declarou que,
“sendo no dia de domingo vinte de setembro”, do mesmo ano “em que se celebrou o
auto público de fé, aí nos claustros do convento de São Domingos”, em que foi lida a
sentença do jesuíta Gabriel Malagrida, chegara à companhia das testemunhas “o padre
Jacinto José Coelho”. Na ocasião do auto-de-fé, perguntando uma delas – que mais à
frente seria indicada na denúncia e ouvida no processo – ao padre denunciado “o que
lhes parecia aquilo, fazendo relação para o auto de fé que já estava no cadafalso”, uma
das testemunhas respondera “que estavam vistas as virtudes do Santo Malagrida”.
Ainda conforme a denúncia, o padre Jacinto Coelho teria dito “que há mais, e menos,
seis ou sete postilhões que têm vindo de El Rei de Castela para a Sua Majestade
Fidelíssima (d. José I) quisesse aceitar a Bula, que mandou se não relaxasse pessoa
alguma eclesiástica sem ordem de Roma”.259 A isso, o denunciado teria completado
259
No texto do Cavaleiro de Oliveira, em resposta à sentença que lhe foi dada pela Inquisição, há uma
menção a essa bula, dada pelo papa Gregório XIII, feita a pedido do rei Felipe II, da Espanha, que
determinava que religiosos só fossem entregues ao braço secular mediante autorização direta de Roma.
292
dizendo que, “de dentro do Santo Ofício, lhe tinham dito que na noite antecedente tinha
chegado outro postilhão”, insinuando, na denúncia, que o padre passava informações
confidenciais do Santo Ofício sobre haver um pedido similar em favor do jesuíta.260
O escrivão José Machado ainda declarou que o denunciado, ao ser indagado por
uma das testemunhas que apresentou para “que não desse ele, denunciado, crédito a tal,
porque um Tribunal reto, com tanta circunspecção”, não condenaria daquela forma
alguém que fosse inocente, e que isso “nem sua Majestade o aprovaria”, Jacinto José
Coelho respondera que: “diz isso porque não sabe o que eu sei, porque o processo do
mesmo Malagrida foi feito fora”. Complementou, ainda segundo a denúncia, “que [o]
daqui há de resultar há de ser mandar-se fechar o Santo Ofício, como já esteve quarenta
anos e sabe Deus, se El Rey sabe de tal”, dando a entender que “os senhores
inquisidores não obraram livres neste procedimento, de que até os secretários do Santo
Ofício choravam, nem Sua Majestade de tal soubera, mas que tudo fora sugerido”
externamente. Todavia, segundo mesma denúncia, o padre não teria dito diretamente de
quem, ou de onde, viera a interferência de fora. Porém, complementando a denúncia,
Machado declarou que o padre dava a entender que o interventor “era o excelentíssimo
Conde e Secretário de Estado”, Sebastião José de Carvalho e Melo.261
Inicialmente, três testemunhas foram chamadas a depor no processo: Pedro
Florêncio Barroso de Almeida, cavaleiro professo da Ordem de Cristo e familiar do
Santo Ofício, morador em Lisboa, perante o deputado do Conselho Geral d. Nuno Alves
Pereira de Melo; Luís José da Silva Pereira, que vivia de suas fazendas e era também
familiar da Inquisição, morador na Vila Franca de Xira, que compareceu, em 21 de
outubro de 1761, diante do inquisidor Luiz Barata de Lima; e, por fim, Jerônimo
Tavares Mascarenhas da Cunha, que compareceu, em 29 de outubro de 1761, também
diante do inquisidor Luiz Barata de Lima. Com pequenas diferenças – por exemplo, a
segunda testemunha disse que estava na presença de Pedro Florêncio Barroso quando
ouviu as proposições do padre Jacinto José Coelho, mas denunciou as proposições,
mesmo não sabendo nomear o denunciado –, as falas repetem, em linhas gerais, as
proposições inicialmente denunciadas, somente acrescentando que o padre Jacinto
Coelho teria dito que tinha informações internas do Santo Ofício, por ser um
Isso, conforme a proposição atribuída ao religioso, teria sido mobilizado em favor do padre Malagrida.
Francisco Xavier de Oliveira também menciona isso nas suas reflexões a respeito da jurisdição do Santo
Ofício. Ibidem, p. 80.
260
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Processo do padre Jacinto José Coelho, proc. 9068. Fls. 7, 7v e 8.
261
Ibidem, fl. 8v.
293
comissário, sobre um religioso que não teria saído naquele auto de fé porque “não
estava nos termos”.262 Este último era o frei Gabriel da Anunciação, acusado de ser
solicitante. No sumário das testemunhas, assinado pelo inquisidor André Corsino de
Figueiredo, o padre Jacinto Coelho, então comissário do Santo Ofício, foi acusado de
duvidar do reto procedimento da Inquisição, além de violar seu segredo, ao mencionar
detalhes sobre o processo do religioso acusado de solicitante, citado supra. 263 Foi
condenado a sair no auto de fé de 27 de outubro 1765, além de abjuração de leve, sendo
privado do cargo de comissário e excluído do serviço da Inquisição, além de degradado
para Angola por sete anos. Condenaram-no, ainda, a penitências espirituais, instrução
ordinária e pagamento de custas.264
Proposições e destino similares foram documentados no processo de Boaventura
de Santiago e Silva, presbítero secular da ordem de São Pedro, em documento que
envolve um grupo maior de pessoas. No processo, registram-se também proposições
que teriam sido ditas sobre a condenação de Gabriel Malagrida, na ocasião da leitura de
sua sentença. À época do processo, consta que o religioso estava preso nos cárceres
secretos do Santo Ofício desde 06 de novembro 1762, por ordem do inquisidor Joaquim
Jansen Muller. Na denúncia, dada em 14 de agosto do mesmo ano, feita, tal como no
processo do comissário da Inquisição Jacinto José Coelho, por José Antônio de Oliveira
Machado ao deputado do Conselho Geral da Inquisição d. Nuno Álvares Pereira de
Melo, menciona-se que Boaventura Santiago já estava preso anteriormente pela mesma
Junta de Inconfidência, na cadeia do Limoeiro “por ordem de sua Majestade”. Machado
também denunciou mais pessoas, além de Boaventura Santiago. Foram eles o padre
José Tomás Borges, presbítero e recluso, e o padre Sebastião Madeira, cura que foi da
freguesia de São Nicolau e Francisco Stocler, “todos por matérias que julgava pertencer
à alçada inquisitorial”. Na denúncia, o desembargador disse que, no mês de maio do ano
anterior, fora denunciado à Suprema Junta da Inconfidência Domingos Gonçalves, por
culpas de sua alçada. Sendo ele preso, declarou debaixo de juramentos, que o padre
Boaventura costumava ir à sua casa e lá blasfemar. Segundo consta, o padre dizia “que
não importava serem expulsos os jesuítas, que eles haviam de ser restituídos a este
Reino”; dizia também “que o excelentíssimo conde e secretário de Estado”, o então
conde de Oeiras Sebastião José de Carvalho e Melo, “havia feito bispo de Angola a frei
262
Ibidem, fls. 9-19v.
Ibidem, fls. 21-21v.
264
Ibidem, fls. 186-188 e 190.
263
294
Francisco de Santo Tomás para o botar fora do Santo Ofício”, com o objetivo de “fazer
inquisidor geral a seu irmão, o excelentíssimo senhor Paulo de Carvalho, fazendo ao
mesmo tempo da Mesa Grande ao senhor d. Nuno Álvares Pereira de Melo para ser
adjunto”, além do “padre mestre [frei João de] Mansilha, na Mesa Pequena”. Tudo isso
seria “para sentenciarem Malagrida, que era tido e havido como homem santo, causa
por que ele, Domingos Gonçalves, tivesse por certo e por fé que o tal Malagrida não
havia morrer”. E que, depois que vira Malagrida morrer, segundo denúncia, “levou as
mãos à cabeça e disse ‘Jesus ando perdido do juízo’, repetidamente, e a isso não sabia o
sentido que dizia”.265
Declarou também que o denunciado, conforme disse outra testemunha citada, o
mercador José da Costa Soares, na devassa da Inconfidência, que “com a mesma, ou
mais liberdade”, o padre Boaventura era “sumamente falador, novelista, e maldizente”,
e “que todas as suas notícias eram prognósticos perniciosos, persuadindo a todos com
quem facilmente falava das fatalidades que nos esperavam”, e que também “tratasse
cada um de fugir e pôr-se em salvo”, já que em breve “os castelhanos tomarão este
Reino e esta Corte, que já Sua Majestade tinha mandado preparar a armada” para nela
fugir. Também, segundo a denúncia, dizia-se que o conde de Oeiras planejava fugir,
“mas que não havia [de] poder, porque o não haviam [de] deixar, por ter urdido tudo
isto”, referindo-se à expulsão dos jesuítas e à injusta condenação de Malagrida.
Completava, continuando a denúncia, reafirmando que “os jesuítas haviam tornar para
este Reino”. Também foi denunciado que o padre Boaventura Santiago maldizia os
mencionados ministros do Santo Ofício, dizendo que “todos os mais eram bons cacos”.
Repetia que disse que, para degredarem o frei Francisco de Santo Tomás, o fizeram
bispo de Angola, e que “o padre Malagrida era um homem santo, que até na prisão
estava fazendo milagres”, e “que tivessem todos por certo que ele não havia morrer”.
Porém, vendo que o jesuíta morrera e ouvindo sua sentença “fez grandes escarcéus”. No
testemunho do mercador acima nomeado, em conclusão, foi dito que o padre ia muito à
casa do mencionado doutor José Tomás Borges e do dito Stocler filho, e este último
trazia notícias vindas em uma gazeta de Colônia, logo depois da morte de Malagrida,
em que se repercutia a influência da vontade do conde de Oeiras na sentença do jesuíta.
Nessas notícias, “diziam que mesmo os estilos do Santo Ofício foram manipulados em
função da condenação de Malagrida”, pelo ministro de d. José I.266
265
266
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Processo do padre Boaventura de Santiago, proc. 9066. Fl. 5-7.
Ibidem, Fl. 7-7v.
295
Consta ainda que o eclesiástico Boaventura Santiago fazia os mesmos discursos
junto ao padre Sebastião Madeira, sobretudo a respeito dos jesuítas com os quais “o dito
Madeira [era] muito apaixonado, sendo muitas vezes o primeiro que falava na matéria”
a respeito da manipulação dos estilos inquisitoriais contra Malagrida e sobre sua
inocência e santidade, “declarando a paixão e ódio do excelentíssimo Conde [de Oeiras]
contra os jesuítas, que tinham sido expulsos sem causa, nem razão alguma”, sendo esta
paixão e ódio causas para a condenação e morte de Malagrida. Quanto ao doutor José
Tomás Borges, declarou que, além da mesma relação com os jesuítas, costumava
afirmar “que quem se opunha aos jesuítas se opunha a Deus e ao Papa”, repetindo as
mesmas proposições sobre a maquinação do ministro de d. José I contra Malagrida. O
doutor Borges demonstrava, segundo a denúncia, concordar com as informações da dita
gazeta publicada no estrangeiro e citada na denúncia, afirmando ainda que o empenho
dos ministros do Santo Ofício na condenação do inaciano era uma prova da verdade
dessas notícias. No entanto, “no dia do auto de fé [de Malagrida] descompusera com
palavras ao dito Malagrida e que tinha botado a perder a sua religião”, que “suposto ele
denunciado [o padre Boaventura] tenha dito que, no Tribunal do Santo Ofício, não havia
homens letrados, isto dissera porque lho tinha dito o mesmo doutor José Tomás
Borges”, “porque ele denunciado não conhecia nenhum dos senhores do Santo Ofício,
exceto ao senhor dom Nuno [Álvares Pereira de Melo]”.267
Ao longo do processo, vários dos denunciados se apresentaram e houve
acareação entre alguns para esclarecimento de alguns pontos. As proposições do padre
em favor dos jesuítas e suas discussões sobre a repercussão da sentença de Malagrida, o
uso que teria sido feito pelo Conde de Oeiras do Tribunal do Santo Ofício para condenálo e as diversas menções à santidade de Malagrida aparecem nas falas de várias
testemunhas. Boaventura Santiago, segundo o padre José Tomás Borges, falara “por três
vezes contra a literatura dos ministros do Santo Ofício”, afirmando, entre outras
questões, “que faltavam os ministros antigos” ao tribunal no presente. O padre
Boaventura Santiago e Silva, acrescentou, lera uma sátira, feita em duas colunas, uma
em português e outra em francês, feita sobre a condenação do padre Malagrida. Esta
teria sido divulgada a eles por seu autor, que dizia ser “o abade de Platel de Lorena”,268
muito possivelmente o franciscano Norbert de Bar-le-Duc, que assinou algumas obras
267
268
Ibidem, Fl. 8,9 e 9v.
Ibidem, Fl. 20.
296
como “abade de Platel”, entre as quais Mémoires historiques (1760).269 É importante
lembrar que a obra em questão era laudatória ao Marquês de Pombal e de tom
extremamente antijesuítico. Nela, o argumento de que houve aparelhamento, por parte
do Conde de Oeiras, da Inquisição portuguesa, com o fim de fazê-la condenar
Malagrida, era apresentado como algo positivo ao combate do fanatismo e práticas
supersticiosas, em prol da modernização de Portugal. Na obra, há uma argumentação
que exalta a campanha do ministro de d. José I contra a Companhia de Jesus. Trata-se
de uma obra, sublinhe-se, que teve uma circulação considerável no contexto francês das
Luzes, entre os philosophes, em meados do século XVIII.270 Às proposições
consideradas injuriosas contra o Santo Ofício, somou-se uma acusação contra
Boaventura Santiago e Silva, por violar o segredo processual dos tribunais. Entre as
proposições que entenderam haver no livro, estava a de que Malagrida teria sido julgado
e condenado antes mesmo de passar pelo Tribunal do Santo Ofício, de acordo com o
rito processual previsto nos regimentos e manuais.271 Tudo isso em conjunto foi
suficiente para que o padre fosse condenado a sair no mesmo auto de fé que o padre
Jacinto Coelho, além de abjuração de leve, degradado para o reino de Angola por cinco
anos, ficando obrigado a penas e penitências espirituais, mais o pagamento de custas.
O auto de fé de 27 de outubro de 1765 ainda teve mais dois condenados por
proposições contra o “reto procedimento” do Tribunal do Santo Ofício, também
relacionadas diretamente à execução do padre Malagrida: o padre Anastácio dos Santos
e o tabelião José Antônio da Silva Freire. Ambos foram objeto de uma denúncia dada
em 22 outubro de 1763, mais uma vez diante do deputado do Conselho Geral da
Inquisição, d. Nuno Alves Pereira de Melo, pelo desembargador José Antônio de
Oliveira. Os denunciados se encontravam presos por ordem da Suprema Junta de
Inconfidência.
Na denúncia, consta que o oficial de carpinteiro Domingos Francisco denunciou
o padre Anastácio dos Santos por inconfidente. Ele vivera em sua companhia,
juntamente com sua esposa, desde o terremoto de 1 de novembro 1755 até julho do ano
anterior à denúncia. Domingos Francisco disse que Anastácio dos Santos proferiu,
269
CASTELO BRANCO, Camilo. Perfil do Marquês de Pombal. Porto/Rio de Janeiro: EditoresProprietários Clavel & Cª e L. Couto e Cª, 1882. p. 96-97.
270
CUNHA, Paulo Ferreira. La culture portugaise et la France Littéraire. Videtur, n. 19. Ed. especial.
(online). Univ. do Porto – Faculdade de Direito, Instituto Jurídico Interdisciplinar; Centro de Estudos
Medievais
– Oriente
&
Ocidente;
Editora
Mandruvá.
Disponível
em:
http://www.hottopos.com/videtur19/pfcunha.htm Acessado em mar./2018.
271
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Processo do padre Boaventura de Santiago. Op. Cit. fl. 35-35v e 4848v.
297
“entre outras blasfêmias, que jurou de vista, ouvida e fato próprio, contra a Sua
Majestade e seu primeiro ministro e governo, a favor dos jesuítas, e outras pessoas
mais”. Relatou que, na ocasião da leitura da sentença condenatória contra o padre
Gabriel Malagrida, o religioso denunciado dissera-lhe que o dito jesuíta “era um homem
santo, tido e havido por tal para com todos e que, assim a prisão, como as culpas que
dizia a sentença do Santo Ofício”, era “tudo maquinado pelo Excelentíssimo conde [de
Oeiras] e secretário de Estado contra o dito Malagrida a fim de mostrar ao mundo que
todos os jesuítas eram assim e que todos mereciam o mesmo”. E para tanto,
continuando a denúncia, o padre argumentava que o conde de Oeiras “tinha feito
Ministros de sua facção como seu irmão, o senhor Paulo de Carvalho [nomeado por
Pombal como inquisidor geral], e o senhor d. Nuno Alves Pereira de Melo, que lhe
fizeram a vontade”, em postos chave do Santo Ofício, de forma muito similar ao que
relata o processo analisado antes deste.272
Contra o tabelião José Antônio da Silva Freire, constam as mesmas acusações
que foram feitas ao padre Anastácio do Santos, passadas em treslado para o Santo
Ofício, com a diferença em que nelas se menciona o fato dele ter negado, inicialmente,
as acusações e as ter confirmado somente depois de acareação com o padre Anastácio
dos Santos. Da mesma forma, os seus inquiridores da Junta de Inconfidência
contestaram um ponto de sua alegação no processo, pois teria dito que tais proposições
em favor de Malagrida e dos jesuítas, contrárias à Inquisição e críticas ao Conde de
Oeiras, eram “pontos (...) vulgares, falados por muitas pessoas” do seu entorno. Eles
exigiram que fosse esclarecido quem disse e de onde tirou tais informações, ao que
respondeu “se tratar de impressos jesuítas, publicados em Roma e vistos com um
livreiro chamado Miguel Rodrigues, que os vendia”.273 Nos dois processos, são
descritos diálogos que ambos teriam tido enquanto assistiam ao auto de fé de Malagrida.
Em um deles, o padre Anastácio dos Santos, em sua confissão, declara ter tido com
Freire conversas a respeito de detalhes bem específicos da sentença. O padre disse, na
confissão, que arguindo Freire “com o que do dito Malagrida tinha ouvido na sentença,
especialmente dos tratos impudicos que consigo tinha”, referindo-se à prática do
onanismo na cela, o tabelião teria respondido que Malagrida “estava na sua
necessidade”, e o “conde de Oeiras quis-nos fazer ver aquilo que todos vimos” com
intenção de denegrir sua imagem, e teria completado que “ele governa tudo e quererá
272
273
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Processo do padre Anastácio dos Santos, proc. 9070. Fl. 7, 7v e 8.
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Processo de José António da Silva Freire, proc. 9069. Fl. 12-12v.
298
também governar o Tribunal, para o que meteu nele fulano e fulano, declarando os
senhores Paulo de Carvalho e Mendonça e d. Nuno Alvares Pereira de Melo”.274
Já no processo de Freire, e ao mesmo diálogo, o acusado declarou, em confissão
feita em 2 de junho de 1763, que, “encontrando-se com o delato [Anastácio dos Santos],
antes” da leitura da sentença “do penitenciado Malagrida, lhe dissera ele = o que estou
vendo é se ele faz papel=”, ao que respondera o delato “= fará, fará, que nisso não tenho
eu dúvida”, porque “o conde [de Oeiras] é, ainda que ele seja um santo,” mostrará
Malagrida “ser um demônio ou feiticeiro, ou o que ele quiser”, pois “ele tem o irmão”
no tribunal inquisitorial.275 Nos processos de Freire e do padre Anastácio dos Santos,
existem, ainda, diversas passagens em que há menção de contato deles e de outros que
foram processados e condenados à mesma ocasião com uma literatura favorável aos
jesuítas.276 Registra-se também que ambos seriam defensores dos religiosos da
companhia e que, a partir dessa posição, pautaram partes de suas críticas a Sebastião
José de Carvalho e Melo.277 Além disso, existem menções sobre estarem convictos da
inocência e mesmo santidade de Malagrida.278 A isso, somavam-se diversas críticas, que
indicam que os acusados e algumas pessoas de seu entorno viam aquele julgamento
apenas como um mis en scène, em que o réu já havia sido condenado previamente. O
religioso e o tabelião, além de também terem saído no auto de fé já mencionado, foram
condenados à abjuração de leve, degredo por cinco anos para Angola, instrução na fé,
penas e penitências espirituais, além de pagamento de custas. Freire, por sua vez, ainda
foi absolvido ad cautelam da excomunhão de que incorria.
Trata-se de ponto pacífico na historiografia que a Inquisição portuguesa foi mais
fortemente submetida à Coroa e mesmo ao controle direto de Sebastião José de
Carvalho e Melo, depois do Terremoto de 1755. O sismo do Dia de Todos os Santos
daquele ano, que trouxe consequências das mais dramáticas a Portugal, não deixou por
menos o Santo Ofício. Para Giuseppe Marcocci e José Pedro Paiva, ele significou um
momento especialmente marcante dentro de um contexto mais amplo de decadência dos
tribunais de fé, que antecedia ao seu controle mais incisivo por parte do Marquês de
Pombal. Isso se deu porque, a partir de 1750, depois da morte do inquisidor geral d.
274
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Processo do padre Anastácio dos Santos. Op. Cit. Fl. 33.
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Processo de José António da Silva Freire. Op. Cit. Fl. 21.
276
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Processo do padre Anastácio dos Santos, Fl. 26; ANTT. Tribunal do
Santo Ofício. Processo de José António da Silva Freire. Fl. 27
277
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Processo do padre Anastácio dos Santos. Fl. 32; ANTT. Tribunal do
Santo Ofício. Processo de José António da Silva Freire. Fl. 35v.
278
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Processo do padre Anastácio dos Santos. Fl. 26v; ANTT. Tribunal
do Santo Ofício. Processo de José António da Silva Freire. Fl. 27
275
299
Nuno da Cunha e Ataíde e Melo, bastante próxima ao falecimento de d. João V, o cargo
de inquisidor geral passou por um período de vacância de oito anos. O Conselho Geral
assumira a governação dos tribunais, designando para isso uma equipe formada pelo frei
Rodrigo de Lancastre, d. Nuno da Silva Teles, Antônio Ribeiro de Abreu, João Pais do
Amaral, além de Manuel de Almeida Carneiro e Francisco Mendo Trigoso. Estes
últimos eram os únicos com serviços mais recentes à Inquisição, na qual ingressaram
respectivamente em 1741 e 1745; os demais eram ligados ao Santo Ofício desde datas
que vão de 1714 até 1734. Nesse período, confirmou-se a tendência de decréscimo de
condenações e processos concluídos, assim como se verifica o mesmo quanto as
publicações de sentenças e autos de fé, em grande medida, decorrentes de uma
significativa crise econômica que se abateu sobre a instituição.279
No terremoto de 1º. de novembro de 1755, em meio a esse quadro de crises,
várias instalações da Inquisição de Lisboa foram abaladas de forma bastante
considerável, como as do Palácio dos Estaus, bem como as do edifício destinado à
habitação do inquisidor-geral, que foi completamente arruinado. Houve grande
repercussão, à época, das tentativas de fugas de presos, aproveitando-se da situação
caótica. Nesse contexto, o Tribunal de Lisboa viu-se obrigado a funcionar em barracas
instaladas no Rossio, enquanto se tentava reconstruir às pressas suas instalações,
situação que durou até 1756. Não menos importante foi o poderio alcançado por
Sebastião José de Carvalho e Mello, o que, em grande medida, se deveu à sua atuação
quando da ocorrência do referido sismo, como afirma Kenneth Maxwell.280 Dessa
maneira, diante de um tribunal em crise desde os derradeiros anos da “Inquisição
Barroca” – período que, segundo Marcocci e Paiva, corresponde à restauração dos
tribunais de fé portugueses, em 1681, até a morte de d. Nuno da Cunha e Ataíde e Melo,
marcado pelo apogeu dos tribunais em termos enraizamento institucional e social, além
da magnificência e fausto em suas cerimônias públicas –, abriu-se ao ministro de d. José
I uma espécie de “janela de oportunidades”, pela qual se viabilizou a instrumentalização
e o controle mais efetivo da Inquisição portuguesa, no contexto do Reformismo
Ilustrado.
O plano Sebastião José de Carvalho e Melo para o Santo Ofício se ajustava ao
projeto maior que ele tinha para Portugal e domínios, afinando-se às tendências externas
e a seus propósitos de modernização, de reforço da secularização do Estado, diminuindo
279
280
MARCOCCI, Giuseppe; PAIVA, José Pedro. História da Inquisição portuguesa. Op. Cit. p. 302-302.
MAXWELL, Keneth. Marquês de Pombal. Op. Cit. p. 26-32.
300
o poder eclesiástico e seus privilégios, além de reafirmar a soberania da Coroa perante a
Santa Sé.281 Boa parte das ações que incidiu sobre os tribunais de fé se justificou pelo
objetivo de reabilitá-los de um quadro de declínio acentuado. Assim, o então Conde de
Oeiras tomou medidas que visavam submetê-los mais fortemente à Coroa, de tal sorte
que, por um lado, a Inquisição se reabilitasse e, por outro, a autoridade civil a
dominasse, de forma a poder contar com o seu aparato para usá-lo contra possíveis
oposições.282 Francisco Falcon, a respeito da política pombalina para os tribunais do
Santo Ofício, afirma:
A Inquisição, como bem o compreendera d. Luís da Cunha, era uma
instituição que a monarquia não se poderia dar ao luxo de extinguir. O
próprio Oeiras dela se utilizou, por exemplo, contra o Pe. (Gabriel)
Malagrida, em cujo auto-de-fé foi queimado também, embora em
efígie, o Cavaleiro de Oliveira. Exemplo talvez este último de um
certo tipo de pensamento ou de atitude mental intoleráveis até mesmo
para o ‘pensamento ilustrado’.283
Dessa maneira, ainda de acordo com Falcon, que entende a orientação das
reformas pombalinas no Santo Ofício como eclética – concepção geral sobre as Luzes
de Portugal adotada pelo autor, que já foi analisada no Capítulo 1 desta tese –, a
Inquisição seria uma “peça formidável” para articular o projeto secularizador com
compromissos e ideias tradicionais, além de fazer parte da campanha antijesuítica.
Assim, conclui o autor que:
Exorcizam-se, de uma só vez, os velhos e novos deletérios. Tratava-se
de fazer do temido tribunal um instrumento secular, estatal, de defesa
da ordem e da ideologia dominante contra os desafios e os perigos das
novas ideias, heresias de um novo tipo, suscetíveis também de pôr em
perigo o trono lusitano.284
A submissão dos tribunais inquisitoriais, que fez parte do projeto pombalino e de
seu discurso de dirigista e reformista, visando fazer deles um instrumentum regni –
conforme terminologia usada por Cabral de Moncada, apropriada da documentação
epistolar de Verney –, constituiu parte importante de sua campanha antijesuítica e de
eliminação de possíveis inimigos. O exame das fontes, tais como as ligadas ao
comissário do Santo Ofício, o padre Jacinto José Coelho, aos padres Anastácio dos
Santos e Boaventura Santiago e ao tabelião José Antônio da Silva Freire, indica que
havia algum nível de circulação de críticas à religião, Inquisição e monarquia, remetente
281
MARCOCCI, Giuseppe e PAIVA, José Pedro. História da Inquisição portuguesa. Op. Cit. p. 349.
Ibidem, p. 351-353.
283
FALCON, Francisco Calazans. A Época Pombalina. Op. Cit. p. 441-442.
284
Ibidem, p. 442.
282
301
a uma incipiente opinião pública lusitana que se formou entre meados do século XVIII
e princípios do XIX. Paralelamente, ao que tudo indica o cruzamento das proposições
contidas nos processos dos padres e do tabelião degredados para Angola com a
literatura circulante na Europa, na qual se incluem figuras como Voltaire, o Cavaleiro
de Oliveira e o Abade de Platel – para se ater somente a alguns autores e obras –, havia
uma percepção de uma Inquisição aparelhada pelo projeto de Estado português levado a
cabo pelo ministro de d. José I. Às críticas contra o “reto procedimento” da Inquisição,
assim, somavam-se elementos que remetiam a processos constituintes do “ímpeto
secularizador” pombalino, como o antijesuitismo, e a fatos como a execução de Gabriel
Malagrida.
Com algumas sensíveis e significativas diferenças, há de se ressaltar aqui algum
nível de dessacralização do Santo Ofício, de maneira relativamente similar ao que
Robert Darnton analisou no contexto da Revolução Francesa, a partir das boemias
literárias. Para este autor, a deterioração da imagem da realeza, da aristocracia e outras
instituições centrais para o Antigo Regime francês, esteve intimamente ligada à difusão
de uma “baixa literatura”. Tal literatura, inserindo-se numa “era da conversa”, típica do
contexto das Luzes e que teve as gazetas e os cafés como importantes centros de
disseminação de informações, expôs os vícios de uma casta aristocrática cada vez mais
ao escrutínio público, a ponto de possibilitar que os franceses pensassem em si mesmos
como vítimas de um Estado e de uma nobreza decadentes e arbitrários. Assim, nas
palavras do autor, ocorreu uma “erosão ideológica”, de “baixo para cima”, a partir dos
subliteratos e de um público ávido pela produção que difundia e vulgarizava debates da
Ilustração.285 Esse processo, ainda segundo Darnton, era percebido também pelas
autoridades que o viam duplamente: na esfera da cultura letrada e na difusão de escritos,
mas também nas movimentações nas ruas e nos espaços coletivos, em constante
articulação e formando sociabilidades de onde as críticas contra elas eram formadas.286
Porém, a semelhança com Portugal e o mundo mediterrâneo, ou mesmo com a América
portuguesa colonial não foi mais que relativa, nesse ponto. Isso porque Darnton, em
alguma medida, superdimensiona o poder dos impressos nessa erosão ideológica. Se é
controverso essa importância dos escritos no contexto francês, analisar por essa chave
os espaços lusófonos é completamente inviável.
285
286
DARNTON, Robert. Boemia literária e revolução. Op. Cit. p. 13-47.
________________. Poesia e polícia. Op. Cit.
302
O a documentação analisada indica e ter havido no espaço lusófono um processo
mais próximo com o que Roger Chartier sistematiza com o conceito de dessacralização,
que precedeu a Revolução Francesa. A dessacralização, segundo o autor francês, define
processos distintos de uma descristianização – tendo por premissa de que a própria
cristianização tenha sido complexa, longa, descontínua e incompleta na Europa – em
que se observou uma mudança cultural dos franceses em relação às autoridades. Um
distanciamento progressivo das figuras do rei ou do clero também minou sua autoridade
nos espaços públicos, difundindo-se uma relação menos reverente e mais crítica, mas
não necessariamente “revolucionária” – poderia ser, em muitos casos, conservadora –
contra figuras que tradicionalmente não tinham suas posições na hierarquia social
questionadas.287 Assim, uma mudança cultural que toca o trato com as autoridades
precedeu a influência dos escritos e influenciou até mesmo a relação das pessoas com a
leitura, com ela tendendo a ser, também, menos reverente e mais livre.
Reforço a impossibilidade de se aplicar os mesmos conceitos ou tomar
simplesmente tais processos analisados por Darnton, no contexto das Luzes francesas,
de maneira análoga ao que se sucedeu em Portugal. Por sua vez, como demonstra o
trabalho de os de Luiz Carlos Villalta, em Portugal e na América portuguesa, entre
meados do Setecentos e princípio do Oitocentos, houve, junto ao aumento da circulação
de impressos e livros, apesar da censura, uma importante mudança nas práticas de
leitura e da relação com elas que remete a processos culturais mais próximos da
dessacralização, como sistematizada por Chartier. A oralidade, a circulação de
traduções e leituras coletivas, realizadas em espaços informais que poderiam ser as
casas de indivíduos como os religiosos e o tabelião aqui analisados, por exemplo, são
tão ou mais importantes para se compreender a incipiente esfera pública portuguesa
quanto os impressos.288 Também é fundamental se entender que as dificuldades de
publicação, somadas com a forte vigilância e dificuldades de se produzir e circular
gazetas em Portugal,289 que são aspectos bastante significativos a serem levados em
conta. A própria perseguição inquisitorial, experiência que a França não teve na Idade
Moderna, ao contrário dos reinos ibéricos, também aparece como aspecto relevante.
Dessa forma, os processos inquisitoriais, referentes aos quatro degredados para
Angola por questionarem publicamente o procedimento do Santo Ofício, na ocasião do
287
CHARTIER, Roger. As origens culturais da Revolução Francesa. Op. Cit. p.171-202.
VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do livro no mundo luso-brasileiro sob as Luzes. Op. Cit. p. 171-324.
289
TENGARRINHA, José. História da imprensa periódica portuguesa. Lisboa: Caminho, 1989. p. 48.
288
303
julgamento e execução do jesuíta Gabriel Malagrida, oferecem informações, em
primeiro lugar, sobre a existência de uma incipiente esfera pública em Portugal em
meados do XVIII, esta, como foi dito, se estruturou em torno de práticas diversas de
leitura e de debates. Em segundo lugar, eles sugerem que, no interior dessa esfera
pública, verificava-se alguma permeabilidade a ideias e a escritos estrangeiros. Nela,
desenvolveram-se ideias e debates em torno desses escritos, em diversos espaços, apesar
da vigilância de órgãos como a Junta de Inconfidência e a Inquisição. A existência dessa
modalidade de debates, ainda que de forma restrita, indica haver alguma tomada de
posições, por portugueses, quanto a aspectos das narrativas anti-inquisitoriais de
meados do Setecentos. Assim, diferentemente do que se observa – mas, também,
paralelamente e em diálogo – com o campo de proposições e blasfêmias críticas às
regras, costumes e moral católicas, bem como contra a Inquisição, analisadas por Stuart
Schwartz e Yllan de Mattos, que apontam para uma resistência difusa e pouco
consciente em relação à ordem político-religiosa estabelecida, esses processos tornamse indícios de que se formava uma dimensão distinta de disputas em torno do religioso.
Ainda que numa dimensão localizada e discreta, mas articulada com um contexto maior
de críticas às perseguições religiosas e às inquisições, havia ações e debates nos espaços
coletivos, onde se observavam disputas, que foram, nesse sentido, um tanto menos
espontâneas, sem, contudo, um grau substantivo de organização.
Nos quatro processos, observa-se essa percepção de que os tribunais de fé foram
manipulados pelo Marquês de Pombal. Trata-se de um ponto presente nas proposições
dos degredados, quando defendiam a inocência do padre Malagrida, o que guarda
alguma proximidade com um campo mais vasto de críticas à Inquisição, campo este
anterior e independente das Luzes. Afinal, como se observou no título a respeito das
proposições e das blasfêmias, ligar as atividades dos Inquisidores, ou mesmo as do clero
e da própria Igreja, a interesses não espirituais, configurou-se numa tópica importante
na Época Moderna. O que acontece, de maneira nova, nas Luzes, é que tais pontos,
presentes nas proposições – aqui, acrescento as críticas acima analisadas na publicação
de Francisco Xavier de Oliveira – aproximam-se essas tópicas, críticas ao clero e à
Inquisição, de aspectos próprios do Iluminismo católico luso, tais como o regalismo e o
antijesuitismo, reelaborando-os. Assim, essas proposições demonstram que a própria
crítica ao establishment católico que, também, incluiu algumas demandas por uma
maior tolerância religiosa, articulam-se com pontos das Luzes católicas e levam sua
crítica religiosa para além do que era balizado pelo dirigismo cultural pombalino,
304
analisado no Capítulo 2. Cumpre ressaltar, novamente, que uma chave para se entender
essas críticas para além do dirigismo cultural pombalino foram um efeito colateral do
próprio racionalismo com o qual o pombalismo se articulou, em seu discurso reformista.
Dito de outra maneira, o “ímpeto secularizador” do Reformismo Ilustrado, que afetou o
funcionamento e a própria finalidade da Inquisição portuguesa, influenciou, mesmo que
indiretamente, elementos centrais das proposições críticas a ela. Tomando de uma
maneira mais geral, a secularização em curso influencia e dá novos contornos às críticas
à Inquisição. É o que se observa, por exemplo, nos ataques feitos pelo Cavaleiro de
Oliveira aos tribunais, em boa parte articulados a uma posição clara do autor em relação
às políticas regalistas, para ele, um Catolicismo verdadeiro, dissociado do vicioso
“papismo”, que era tirânico e tinha a Inquisição como seu instrumento de exercício
ilegítimo de poder, com o qual se submetiam até mesmo os próprios reis. Assim,
observa-se, nos processos dos religiosos degredados para Angola e do Cavaleiro de
Oliveira, cruzamentos diversos entre elementos oriundos de uma cultura letrada das
Luzes – o regalismo, antijesuitismo, tópicas como a liberdade de consciência e religiosa,
leituras de livros e gazetas, entre outros – com outros, que remetem a vertentes
populares, como as dos blasfemadores, de críticas difusas ao status quo católico da
Idade Moderna, à percepção da divisão do religioso em esfera íntima e exterior e da
Inquisição como instituição que serve a propósitos mundanos e terrenos, entre outros.
Além disso, o fato de todos estarem presos pela Junta de Inconfidência, assim
como alguns dos que foram chamados a depor contra os religiosos e o tabelião nos
processos, também indica que a crítica ao status quo católico, no geral, e ao Santo
Ofício, a maneira como este era percebido no processo secularizador como agente ativo
na campanha antijesuítica, visível no último grande auto de fé que culminou na
espetacular execução do padre Malagrida, foi vista, pelas autoridades, como um foco de
sedição. O que se nota é uma percepção, dos agentes do poder instituído sobre as
heterodoxias, em que não se separavam suas naturezas religiosa e a política, ainda que,
de alguma maneira, a própria crítica à Inquisição, pautada na ideia da injustiça
produzida pela deturpação de suas finalidades, tenha sido, de alguma maneira,
secularizada. Deve-se acrescentar, ainda, que a menção a uma obra laudatória ao
antijesuitismo pombalino, como referência de alguns dos argumentos das proposições,
vai de encontro a qualquer concepção sobre tais críticas como meras traduções de
tópicas dos círculos letrados além-pirenaicos. Por fim, essa articulação de crítica
religiosa – com alguns elementos secularizados – com a percepção de desordem
305
política, fez parte do processo de criação de um substrato importante para se entender a
ideia da “tríplice conspiração”: isto é, conspiração contra o trono, o altar e a
aristocracia, urdida a partir dessas sociabilidades heterodoxas,290 fundamental para se
entender a perseguição aos heterodoxos no último quartel do século XVIII. Este
aspecto, que será retomado nesta tese, no próximo e último capítulo, fez-se presente,
entre o período dos processos contra John Coustos e outros maçons na década de 1740 e
a época da execução de Malagrida, desenvolvendo-se sob a baliza dos debates de uma
Ilustração católica.
290
NEVES, Lúcia Bastos Pereira. Revolução: em busca de um conceito no império luso-brasileiro (17891822). In: FEREZ JUNIOR, João; JASMIN, Marcelo (orgs.). História dos conceitos: diálogos
transatlânticos. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, Ed. Loyola, Iuperj, 2007. p. 131-132.
306
Capítulo 4 – Pela tolerância, contra o trono e contra o altar
“Nada irrita os inquisidores tanto como um
homem que raciocina” (Hipólito José da
Costa Pereira Furtado de Mendonça.
Narrativa de perseguição. p. 64).
A tolerância religiosa aparece na documentação inquisitorial do último quarto do
século XVIII como elemento importante das falas dos chamados libertinos. Nesse
momento, a irracionalidade de se perseguir pessoas em nome de dogmas religiosos, por
exemplo, torna-se uma tópica das mais comuns nas suas proposições, que entrelaçam
elementos já analisados no Capítulo 3 desta tese. Há, porém, duas particularidades
referentes a este contexto: em primeiro lugar, a percepção de crise, que marca o período
do final do Setecentos, que aparece de vários modos nas proposições dos libertinos e
também nas das autoridades régias e inquisitoriais, relacionando-se a leituras do
presente e a expectativas do futuro desses agentes. Elas estavam diretamente ligadas a
percepções de realidades posteriores à queda do Marquês de Pombal, às revoluções na
Europa e fora dela, entre outros elementos; em segundo lugar, relacionavam-se a uma
incipiente esfera pública, cujos contornos encontravam-se mais claramente definidos e
onde se difundia uma leitura conjuntural de que os libertinos, com suas sociabilidades e
sua crítica universal aos valores do Antigo Regime e dogmas da fé católica, estariam no
centro de uma crise, difundindo-a, acirrando-a e ameaçando toda a ordem tradicional. A
tolerância religiosa foi um elemento muito presente nas críticas que perpassam tais falas
heterodoxas. Ela foi um elemento articulador de ataques diversos à monarquia, à Igreja
e também a toda uma sociedade de Antigo Regime. As defesas de formas mais
tolerantes do trato com a diferença religiosa foram exprimidas, comumente, tanto como
desejo e expectativa de um mundo que superasse o atraso simbolizado pelo
establishment, como também na frustração por ele ainda não ter sido ultrapassado.
Assumiram, também, forte teor político, indo de encontro com valores tradicionais da
sociedade monárquica e cristã-católica.
4.1 Quem era o libertino da Idade Moderna e como ele chegou ao
Iluminismo?
307
No ano de 1804 foi publicado, em Cuenca, a segunda impressão de um sermão
que visava instruir católicos para um convencimento racional dos chamados “libertinos”
quanto a seus “erros” de fé. Ele foi escrito pelo frei Bruno de Zaragoza, da Ordo
Fratrum Minorum ou Ordem dos Frades Menores, que, segundo a mesma publicação, já
fora também visitador geral dos capuchinhos de Mallorca, provincial da mesma ordem
em Aragão e qualificador do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição (Figura 5). No
sermão, o regular deixa claro que seus objetivos ali são os de "trazer à reflexão aos que,
depois de haver logrado a imponderável graça do santo batismo, deixando se apoderar
de uma perniciosa libertinagem, se converteram heterodoxos, esquecendo as primeiras
luzes do Cristianismo".1 Para realizar tal objetivo, o frade instruía que aquilo de
verdadeiro que há sobre a religião deveria ser demonstrado da mesma maneira que a da
ciência, de forma a propiciar ao libertino entender, pelas vias racionais, que o
Cristianismo é uma doutrina que:
(...) manda a sujeição à razão até reduzir o homem ao estado da
inocência, da abnegação de si mesmo, à pobreza, à humildade, ao
perdão dos inimigos, à tolerância alegre e conforme as adversidades e
à submissão aos juízos inescrutáveis e disposições da Providência.2
Para chegarem a esse estado, segundo Bruno de Zaragoza, os libertinos deveriam
ser convencidos do absurdo lógico das doutrinas que seguiam, de maneira a se
envergonharem de as ter aceito em algum momento. O frade afirmava seguir o exemplo
de alguns dos grandes pais da Igreja, como Santo Agostinho, de como se proceder com
aqueles que se desviavam da verdade em matéria de fé. Mas quem, para o frei da ordem
dos frades menores, eram os ditos libertinos? Para ele, tratava-se de homens ímpios,
mas singularmente dotados de bom entendimento. Porém, esse bom entendimento era
tumultuado por paixões, tais como a soberba, o orgulho, a impostura, a vaidade e a
indiferença perante a verdade e as autoridades. Justamente por estes libertinos serem
pessoas dotadas de Luzes, continua o frade, em algum momento poderão ser
convencidos pela razão a se curvar à verdade cristã, desde que racionalmente
1
ZARAGOZA, Bruno, fr. (OMS). Instruccion católica y convencimento racional de los heterodoxos y
libertinos, compuesta sobre um sermon panegírico, dogmático y moral del Apóstol San Pedro. Por el M.
R. P. Fr. Bruno de Zaragoza, ex-provincial de capuchinhos de Aragon, ex-comisario general de las
misiones de Cumaná, visitador general que fue de los capuchinhos de Mallorca, calificador del Santo
Tribunal de La Inquisicion, y examinador sinodal del obispado de Albarracin, &. Segunda Impresion.
Com licncia. Cuenca: por d. Fernando de la Madrid. Año 1804. Digitalizado por Complutense University
Library
of
Madrid.
Disponível
em
Europeana
Collections
https://www.europeana.eu/portal/pt/record/9200110/BibliographicResource_1000126614905.html?q=libe
rtino. Acessado em mai./2018. p. 167.
2
Tradução minha. Ibidem. p. 174
308
demonstrada. No entanto, no estado em que tais heterodoxos estão, as “ideias novas”
sempre aparecem de forma mais atraente que as antigas e eternas verdades da
Revelação. Nas suas palavras, as ideias seguidas pelos libertinos não passam de
"desordenada aglomeração de sistemas ímpios, infundados e livres, que hoje”, no caso,
nos finais dos séculos XVIII e princípio do XIX, “turvam a boa ordem do estado e
religião". Isso se dá, continua, porque os libertinos, insubmissos à autoridade revelada
na qual se fundam a Igreja e a razão natural, movidos por paixões tocantes aos seus
espíritos – como a ambição – e aos sentidos – como a luxúria – se obstinavam em agir
enganados por seus sistemas errôneos. A partir disso, utilizam-se deles para fazer as
mais graves críticas em matérias como religião e política. Esse tipo de "depravação" dos
libertinos fazia com que eles aderissem às doutrinas que "fecham ao entendimento
perceber verdades de maior vulto", fundadas na tradição, razão, lei natural e a
Revelação. 3 Assim, os libertinos tratam os princípios universais e verdadeiros, como a
própria noção de verdade e a religião, com indiferença, e nem viam o que faziam e
pensavam como matéria grave ou como crime suficiente para condená-los. E a causa
que levava os libertinos a esta atitude era muito clara para o frei: o libertino, concluiu,
se encontra “apaixonado pelo brilho deste século”, reduzido a “tal alucinação que não
pode perceber a profundidade das verdades mais sólidas”, cravadas, como se depreende
do texto, na tradição.4
3
4
Ibidem, p. 154-155.
Ibidem, p. 157-158.
309
Figura 5- ZARAGOZA, Bruno, fr. (OMS). Instruccion católica y convencimento racional de los heterodoxos y
libertinos, compuesta sobre um sermon panegírico, dogmático y moral del Apóstol San Pedro. Capa da segunda
impressão.
Não se trata de uma argumentação nova, no contexto das Luzes ou anterior a ele,
a respeito da necessidade de se convencer por meio de argumentos os obstinados nesse
tipo de “erros de fé”, que são os heterodoxos. Entretanto, no sermão, Bruno de Zaragoza
aponta para algo que via como inédito, em sua época: nas suas palavras, os libertinos
eram uma “novidade” em matéria de perigo ao Catolicismo e à integridade de suas
tradições, àquela altura. Para ele, o seu “miserável século” era “uma época triste [em]
que de forma mais descoberta foram inflamadas e desenfreadas as paixões”. Estas, “com
um espírito faccionário de novidade, para fazer valer as máximas sediciosas”, levavam
as pessoas, “com pretextos de humanidade”, a “acabar com os homens, com as legítimas
potestades e com a religião”. Bruno de Zaragoza via que, no seu século, “corre o estrago
310
contagioso da liberdade e soberba”, que têm levado os homens a se pensarem “capazes
de emendar as leis de Deus, de ser seus conselheiros”.5 Concluía, dizendo que, de meio
século até quando escrevia, cresceu e se formou um “insaciável apetite de novidade”,
que tomava grande parte das pessoas no mundo ibérico, referindo-se, especialmente, à
Espanha. Segundo ele, no seu contexto, “nada se aprecia se não é novo”. O século das
Luzes é, na sua visão, um “século apaixonado e solícito por novidades” e, dessa
maneira, trazia transformações aos costumes, à religião e ao Estado, representando um
grande perigo que deveria ser combatido.6
Embora no sermão de Bruno de Zaragoza se encontrem apontamentos e
percepções específicos de seu tempo, que definia como um “século de novidades” que
trazem ideias e fomentam críticas ao que havia de mais tradicional, o religioso se valeu
de definições a respeito dos libertinos que revisitam tópicas existentes desde o tempo de
Calvino, às quais ele revisita. Segundo o frade, no seio da Cristandade, desde os tempos
bíblicos, passando pela Antiguidade Tardia, por suas querelas teológicas e pela Reforma
protestante, esse tipo de desvio da verdade existe. Mesmo assim o religioso insiste que,
na época das Luzes, os sistemas que “corrompem os costumes dos incautos, os separam
de Jesus Cristo”, que desacreditam as verdades católicas e conduzem mais pessoas aos
vícios que levam à “cegueira e desobediência”, com efeitos perversos em toda a ordem
social “natural”, conforme determinada pelas Escrituras; eles, então, eram mais agudos
que em qualquer outra época.7 Havia ali o materialismo, o deísmo e outras “novidades
do século”, que ele se propunha a discutir, de maneira a desconstruí-las, a partir dessas
chaves de leitura, ao longo do sermão. Tais novidades, nas palavras de Bruno de
Zaragoza, formavam a base do indiferentismo da atitude dos libertinos perante todas as
verdades e autoridades universalmente reconhecidas e ameaçavam toda a integridade do
urbe católico, na medida em que o bom entendimento desses heterodoxos e o “espírito
do século” serviam de arcabouço e cenário para que suas doutrinas se disseminassem.
O ponto colocado pelo regular vai ao encontro de algumas constatações feitas
pela historiografia, tocante aos libertinos. Conforme foi dito supra, algumas de suas
tópicas remontam ao século das Reformas. Jean-Pierre Cavaillé, em artigo sobre os
conceitos de “libertino” e “libertinismo” na literatura escocesa no século XVII,
demonstra haver uma sequência diacrônica no processo de construção desse arquétipo
5
Ibidem, p. 222.
Ibidem, p. 225.
7
Ibidem, p. 184-187.
6
311
entre os séculos XVI e XVIII, na qual se sucedem, sem exclusões mútuas, a
caracterização de um "libertino espiritual" – estigmatizado por Calvino no panfleto
Contre a secte phantastique et furieuse des libertins qui se nomment spirituels (1545) –,
o “libertino erudito”, na figura do "filósofo cético" ou “espírito forte”, e o "libertino de
costumes" ou hedonista – no que toca uma grande liberdade em matéria moral. A partir
desse contexto, nas polêmicas entre diversos pensadores e teólogos partidários ou
refratários à Reforma protestante, os ditos termos assumem dupla acepção: em primeiro
lugar, a de libertinos como uma seita dentre várias outras – ainda que se deva considerar
que muitas das seitas nomeadas nas ditas polêmicas religiosas jamais tenham, de fato,
existido –; em segundo, a de que eles seriam uma espécie de "espírito de desobediência"
e apelo por liberdade, sobretudo quanto à liberdade sexual, tendo esta reflexos diretos
na desobediência religiosa e política, criticada como "falsa liberdade" pelos teólogos,
que, em princípio, atribuíam significados negativos e acusatórios ao “libertino” e
“libertinismo”.8
Já Tulio Gregory, ao analisar a figura do “libertino erudito” do século XVII,
observa o desenvolvimento do “libertino” como arquétipo e conceito com origens na
Baixa Idade Média, nas obras de pensadores que releram e ressignificaram escritos
literários e filosóficos greco-romanos da Antiguidade clássica. Segundo Gregory, essa
releitura teve grande contribuição no sentido de “secularizar” discussões sobre tópicas
como a tirania política, a origem das religiões, entre outras, tendo Maquiavel como um
nome central. A despeito do desenvolvimento da conotação negativa do “libertino”,
Gregory sintetiza que, já no início do Seiscentos, sobretudo nos círculos letrados
católicos da Europa continental, “libertinismo” se definia a partir de cinco
características centrais: a) uma erudição que recupera e faz uso da Antiguidade clássica,
além das tradições do Humanismo renascentista, tocantes a reconciliar o Cristianismo e
paganismo greco-romano; b) um destacado ceticismo, que rejeita o dogmático e que
encontra no exercício crítico da razão sua própria função, que é natural da condição
humana, sintetizado no ideal da libertas philosophandi – grosso modo, a liberdade de
pensar –; c) o relativismo radical fortalecido pela experiência da diversidade que nega
valores universais e reduz normas éticas e práticas religiosas às suas origens
"históricas", no sentido de terem sido criadas pelo homem; d) um entendimento elitista a
8
CAVAILLÉ, Jean-Pierre. Libertine and Libertinism: polemic uses of the terms in sixteenth-and
seventeenth-century English and Scotish literature. The Journal for Early Modern Cultural Studies, v. 12,
n. 2, p. 12–36, 2012. p.13-17.
312
respeito da posse da cultura letrada, sabedoria e conhecimento pelos "espíritos fortes",
homens livres e, portanto, não comunicável nem com o homem comum iletrado, nem
com letrados escravizados pelos costumes, preconceitos e tradições; e) constante apelo à
ideia de "natureza", onde todos os fenômenos se localizam e podem ser explicados,
como o lugar propriamente dito da humanidade.9
Libertino e libertinismo, assim, englobavam, na Idade Moderna, significados que
envolvem desobediência a autoridades – letradas, religiosas, teológicas e políticas –, às
regras morais e ao próprio dogma. Trata-se de múltiplos apelos por liberdade, vistas
como perigosas em conjunto, pelos seus críticos, e que também constituíam elemento de
ataque a adversários em polêmicas. Tal ataque poderia constituir uma base ética sobre a
qual se poderia viver em sociedade a despeito de verdades universais estabelecidas.
Além disso, englobava sociabilidades específicas, nas quais “espíritos fortes” e
esclarecidos faziam parte, deixando de lado o vulgo e também outras pessoas
esclarecidas, mas contaminadas pelos séculos de submissão ao dogma. Daí, tomando
por base o sermão analisado acima, acrescenta-se um último elemento na caracterização
do libertino, que é sua capacidade de “sedução dos incautos”, não contraditória,
essencialmente, com algum elitismo típico das suas sociabilidades – assunto a ser
retomado à frente, por ser aspecto identificável na documentação inquisitorial.
O termo “libertino”, na língua portuguesa, aparece na definição feita por um
acusado e condenado por libertinagens e outros delitos pela Inquisição de Portugal, o
dicionarista Antônio de Morais e Silva. No Diccionario da língua portuguesa, Silva
define “libertino” como, em primeiro lugar, partindo de uma definição de Roma antiga,
aquele que “sendo cativo se forrara”, e também “aquele que sacudiu o jugo da
Revelação, e presume, que a razão só pode [se] guiar com certeza no que respeita a
Deus, à vida futura”. Acrescenta que o termo também define “aquele que é licencioso na
vida”, “neste sentido moderno”.10 A insubmissão à fé revelada e mesmo a irreverência
com a fé, com a autoridade eclesiástica e com os dogmas da religião dão a tônica da
conhecidíssima obra Cathéchisme Libertin à l’usage des filles de joie et des jeunes
demoseilles qui se décident à embrasser cette profession, publicado pela primeira vez
em 1792, sendo assinado, na sua segunda impressão, por Theroigne de Méricourt –
hoje, considera-se que a obra teria uma autoria incerta. O próprio termo “catecismo”,
GREGORY, Tullio. “Libertinisme érudit” in seventh-century France and Italy: the critique of ethics and
religion. British Journal for the History of Philosophy, v. 6, n. 3, p. 323–350, 1998. p. 329.
10
SILVA,
Antônio
de
Morais.
Diccionario
da
lingua
portuguesa.
Op.
Cit.
http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/2/libertino. Acessado em mai./2018. p.221
9
313
tradicionalmente usado na doutrina católica como um conjunto de meios para se educar
pessoas na fé e doutrina católicas ou para sua conversão, utilizado nesta obra, denota
que a perpassa uma relação irreverente e insubmissa à autoridade religiosa. O
Cathéchisme consiste numa série de questões e respostas sobre de como se deve
comportar uma prostituta para exercer seu ofício, intercaladas com várias imagens de
teor erótico (Figuras 6). Quanto à forma, o texto se organiza de maneira bem similar
aos catecismos, comuns a partir do século XVI, no contexto das reformas católica e
protestante. Os catecismos, no geral, eram textos sintéticos, organizados em perguntas e
respostas pertinentes à religião, cuja finalidade era instruir na doutrina e preparar o fiel
para a vida dentro de uma comunidade de fieis.11 Assim, em seu texto introdutório, a
junção conteúdo e forma denota uma liberdade perante o dogma, a moral e a religião,
que se materializa no argumento e na estética da publicação. Este era a Oração à Santa
Maria Madalena, com a qual o texto orienta o leitor a ler, antes de passar para o
conteúdo do restante da obra:
ORAÇÃO
À SANTA MADALENA,
antes de ler o catecismo
Grande Santa, Padroeira das Putas, fortalecei meu espírito e dai-me a
força do entendimento para melhor compreender e absorver as razões
e preceitos contidos nesse catecismo; fazei que a vosso exemplo eu
me torne, dentro de pouco tempo, pela prática, uma Prostituta tão
célebre em Paris quanto tu fostes na Judeia, e eu te prometo, como
minha Padroeira e Protetora, dedicar-te meus primeiros golpes de
sorte
em sua honra e glória.
Que assim seja12
(Tradução minha)
11
RODRIGUES, Rui Luís. Os processos de confessionalização e sua importância para a compreensão da
história do Ocidente na primeira modernidade (1530-1650). Tempo, vol. 23, n. 1, p.1-21, jan-abr/2017.
p.4-5.
12
Texto original: ORAISON/ A SAINTE MAGDELEINE/ avant lire le catéchisme/ Grande Sainte,
Patronne des Putains,/ fortifiez mon esprit, et donnez-moi la/ force de l’entendement, pour bien com/prendre et retenir tout le reffinement des/ préceptes contenu dans ce Catéchisme:/ faites qu’à votre
exemple, je devienne,/dans peu, par la pratique, une Garce/ aussi célèbre dans Paris que vous l’étiez/dans
tout ela Judée, et je vous promets,/ comme à ma divine Patronne et Protec/trice, de donnes mes premier
coups de/cul em votre honneur et gloire./Ainsi soit-il. THÉROIGNE DE MÉRICOURT, Anne-Josèphe
(atribuído a). Cathéchisme Libertin à l’usage des filles de joie et des jeunes demoseilles qui se décident à
embrasser cette profession. Sur la copie imprimée à Paris, aux dépens de la veuve gourdan, 1792.
Digitalizes
by
Google.
Coleção
Americana.
Disponível
em
Archive.org:
<
https://archive.org/details/catchismelibert00unkngoog>. Acessado em mai./2018. p. 11-12.
314
Figura 6 - Figura, seguida do início do texto do Catéchisme, logo após a Oraison à Sainte Madaleine. THÉROIGNE
DE MÉRICOURT, Anne-Josèphe (atribuído a). Cathéchisme Libertin.... Op. Cit. p.13.
Libertino, no último quarto do século XVIII até início do século XIX, definia um
arquétipo que sintetizava a insubmissão ao dogma e à religião, mas também às
autoridades e à moral hegemônicas. Juntamente com a recusa intelectual e espiritual ao
status quo religioso e político, “libertino” também definia um corpo insubmisso à
moralidade dos costumes. Esses pontos vão ao encontro dos estudos de Luiz Carlos
Villalta sobre os libertinos luso-brasileiros no mesmo período, já que o autor aponta
para três acepções, não excludentes entre si, do termo, seja nas suas práticas, seja visão
dos críticos do “libertinismo”: a primeira, no sentido de depravado, sobretudo no campo
da moral sexual, significado também existente e disseminado no senso comum posterior
ao século XVIII; em segundo lugar, a de diletante mundano e incrédulo; e, por fim, a de
filósofo cético. Muitas vezes, esses três significados encontravam-se interligados,
estando a licenciosidade sexual associada à incredulidade e ao ceticismo. O libertino,
por fim, possui alguma coloração política na medida em que sua crítica universal às
315
autoridades conflui no arquétipo do monarcômaco, crítico à monarquia absoluta e a seus
sustentáculos tradicionais, como o clero e a aristocracia.13
A tolerância religiosa aparece na documentação inquisitorial do último quarto do
século XVIII como elemento importante das falas dos chamados libertinos. Nesse
momento, a irracionalidade de se perseguir pessoas em nome de dogmas religiosos, por
exemplo, é cada vez mais revisitada e reelaborada, e funciona como uma espécie de
articulador, nas proposições dos libertinos, de alguns dos elementos já analisados no
Capítulo 3 desta tese – que são a percepção “dividida” entre uma religiosidade exterior
e interior, a “resistência difusa” ao establishment católico e outras resistências mais
diretas e conscientes. Há, ainda, a constante presença de leituras e apropriações da
cultura letrada das Luzes, o que indica que os libertinos aturaram não somente como
meros tradutores de formulações pensadas nos Além-Pirineus, ao contrário do que diz
sobre os mesmos Luís Antônio de Oliveira Ramos.14 A isso deve se acrescentar um sem
número de práticas de leitura e debates que, em função da censura e vigilância
inquisitorial tinham espaços bem específicos para acontecerem, e que serão melhor
detalhados à frente. Formava-se, dessa maneira, um importante substrato de crítica
religiosa – mais ou menos radical –, que, mais e mais, foi sendo percebido pelas
autoridades como corrosivo às estruturas do Antigo regime português e luso-brasileiro.
Aqui, pode-se dizer que as críticas tocantes às disputas do campo religioso adquiriram
colorações mais gerais, formadoras de sociabilidades específicas e que definiram chaves
de percepções da realidade e de projetos e expectativas de futuro. O desejo por uma
tolerância religiosa, assim, funcionou, para muitos, como elemento de articulação de
leituras do passado e do presente, mas também para, de maneira mais ou menos factível,
imaginar-se a viver em sociedade de maneira mais livre quanto às tradições, religião e
estruturas políticas tradicionais.
Na trajetória do conhecido libertino Manuel Félix de Negreiros, observam-se
alguns dos pontos acima discutidos. Em maio de 1776, o reitor Manoel Pires de Castro
se apresentou à Inquisição de Coimbra, a fim de denunciar proposições que teriam sido
ditas por Negreiros. Elas lhe teriam sido passadas, segundo sua apresentação, pelo padre
13
VILLALTA, Luiz Carlos. Libertinagens e livros libertinos no mundo luso-brasileiro (1740-1802). In:
MEGIANI, Ana Paula Torres; ALGRANTI, Leila Mezan (Orgs.). O Império por escrito: formas de
transmissão da cultura letrada no mundo ibérico (séculos XVI-XVIII). São Paulo:
Alameda/FAPESP/Cátedra Jaime Cortesão, 2009, p. 511-550. p. 511.
14
RAMOS, Luís A. de Oliveira. A irreligião filosófica na província vista do Santo Ofício nos fins do
século XVIII: uma tentativa de exemplificação. Revista da Faculdade de Letras, 2ª série, volume 5, (p.
173-188). Porto, 1988. p. 181.
316
João Pedro de Lemos Montes. O denunciante disse que, pelas suas “obrigações de
católico e pároco”, foi denunciar Negreiros por ter “proferido proposições heréticas e
blasfemas”. Manoel Pires de Castro disse que Negreiros duvidava formalmente do
mistério da transubstanciação – da hóstia no corpo e sangue de Cristo –, pois se
indagava sobre “até onde podia chegar a religião católica crer que é aquilo que não é”,
ou, noutras palavras, obrigador a crer que o que estava ausente era real e o que estava
real era ausente. Também duvidava, segundo o reitor denunciante, do Inferno, pois dizia
“é incrível que um pecado sendo momentâneo se castigue com uma pena eterna”.
Também, conforme a denúncia, Negreiros comia carne durante a quaresma
publicamente à presença de várias testemunhas. Mais que isso, Negreiros deixava a
entender que a Igreja católica errou ao instituir os jejuns quaresmais, dizendo sobre isso
que “só os ingleses tinham as verdadeiras luzes porquanto comiam carne e mandavam
bacalhau” aos católicos portugueses. Questionava, ainda segundo a mesma denúncia, o
poder de Jesus Cristo “que veio no mundo, porquanto” seu poder, sendo supostamente
infinito, “convertera uma pequena porção de nações”. Concluindo a denúncia, o reitor
Manoel Pires de Castro disse que Negreiros é “certo que estima e, muito, a doutrina
diabólica [das] máximas de Voltaire e, com especialidade, o Dicionário Diabólico”,
possivelmente se referindo ao Diccionnaire Philosophique (1764). Além disso, ele “em
tudo parece conformar-se com o Materialismo”. Acrescentava, como já foi dito,
ademais, que tais proposições foram denunciadas pelo padre João Pedro de Lemos
Montes à Inquisição de Lisboa e que Manoel Félix de Negreiros vivia em casa do então
Marquês de Marialva.15
Em cópia de uma correspondência do reitor Manoel Pires e Castro, passada à
Inquisição por João Correa Xavier, constam algumas informações a respeito da
trajetória de Manoel Félix de Negreiros. O notório libertino era filho de Miguel Pinto,
formado em medicina e natural da Vila de Alfândega da Fé, região norte de Portugal e
atual sub-região do Alto Trás-os-Montes. Teria nascido “do tempo em que o pai teve o
partido da mesma Vila” e, “depois de passados alguns anos, [ambos] foram para a
cidade do Porto”, onde Negreiros vivia à época das denúncias. Do Porto, dizia ainda que
Manuel Félix de Negreiros, “só por ocasião da fábrica de azeite”, costumava ir à Vila
Flor, também ao norte de Portugal, “aonde tem um casal” – ou seja, um conjunto de
casas –, o qual “administra por morte do seu pai, que verdadeiramente era natural da
15
ANTT, Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. 130º CADERNO DO PROMOTOR, liv. 319.
Fls. 5-5v.
317
mesma Vila Flor”. Conta ainda que na mesma cidade do Porto, Negreiros aprendeu a
gramática e obteve quatro graus das ordens menores como eclesiástico. Assistiu a “todo
o curso de filosofia e retórica e passou a Coimbra, em cuja Universidade se matriculou
cinco anos”, na faculdade dos Sagrados Cânones. Na mesma faculdade, Negreiros “se
instruiu nas Belas Letras, Línguas e História” e, por isso, à data do documento, janeiro
de 1779, “é reconhecido por um homem sábio, e de grande talento”.16
À época, já constava uma apresentação, por escrito, com denúncias contra
Manuel Félix de Negreiros à Inquisição de Coimbra, feita pelo padre João Pedro de
Lemos Montes, que se apresentou em maio de 1779 ao tribunal de Lisboa. Lemos
Montes, presbítero secular e bacharel formado nos Sagrados Cânones, era natural de
Vila Flor e frequentava a Universidade de Coimbra e a casa do Marquês de Marialva à
mesma época em que Negreiros o fazia. Na apresentação, disse que, em 1775, aos seus
28 anos, começou a ler livros proibidos, tais como os escritos de Voltaire e Rousseau,
além de alguns manuscritos como o que identificou como “Filósofo Militar” – este,
provavelmente, Le militaire philosophe, ou difficultés sur la religion proposées au père
Malebranche, (1768), cujos autores são o Barão d’Holbach e Jacques-André Naigeon.17
Montes acrescentou que passou a “dizer várias heresias, que atacavam quase todos os
dogmas da Nossa Santa Religião”, pois ele havia deixado “interver [sic, entrever] o seus
sentimentos, que se inclinavam para” o que disse ser “um puro deísmo”. Com “um
Manoel Félix de Negreiros”, a quem “só manifestava francamente a religião e
consciência”, por algumas vezes, disse que, “por força dos argumentos deduzidos da
matéria” tocante ao que lia, “caminhava para o ateísmo, hesitando na existência de
Deus, pela confusão, que se lhe representava no mundo moral, condição oposta à
16
Ibidem, Fls. 6-6v e 7.
Esta obra, sinteticamente, traz um apanhado de argumentos materialistas, ateístas e anticristãos
constantes de publicações mais radicais, do ponto de vista religioso, da segunda metade do século XVIII.
É interessante observar que, já no início, há uma menção ao Santo Ofício como motivador de uma
reflexão contrária a todo o tipo de religião instituída: “A Inquisição & todas as violências que ela exerce
para submeter os espíritos, sob o pretexto da religião & para privar o gênero humano de toda a liberdade,
me deram em seguida as ideias mais desvantajosas dos padres e do sacerdócio, no geral”. Daí se conduz
uma argumentação na qual se equiparam as perseguições dos cristãos pelos romanos, à dos reis católicos
contra “hereges” e à dos protestantes contra outras confissões. Essa argumentaçao assentava-se no
pressuposto segundo o qual as religiões instituídas somente servem à tirania. A legitimidade desse tipo de
perseguição, em teoria desenvolvida para se manter a unidade do Estado, é duramente questionada. A
própria razoabilidade das religiões é criticada com base num vocabulário bastante vincado nas ciências
naturais. Vários aspetos, tais como a morte da alma assim que morre o corpo, ou a irracionalidade de se
tomar alguma religião como universal, já que o pertencimento a alguma confissão religiosa depende,
acima de tudo, do lugar onde se nasce, são ressaltados. NAIGEON, Jacques-André; d’HOLBACH, Paul
Henri Thiry, Barão [1768]. Le militaire philosophe, ou difficultès sur la religion proposées au r. père.
Malebranche. Par um ancien officier. Londres, Nouvelle Edition. Disponível em Gallica <
https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k86225z/f1.image> . Acessado em jul./2018. p. 15 e 13 a 43.
17
318
sabedoria infinita, que se nos persuade do que ser supremo”.18 Concluía, na
apresentação, dizendo que:
Enfim, todos os cultos religiosos estabelecidos em o Universo, se lhe
representavam todos para ele indiferentes, e obras da política dos
homens.19
É muito clara a proximidade do conteúdo de sua proposição com argumentos do
Le militaire philosophe, embora a relação entre a elaboração de uma e a leitura de outra
precise ser problematizada. Antes da discussão nesse sentido, é importante ressaltar as
proposições de Montes e suas outras menções a Negreiros. O presbítero secular, na sua
apresentação, disse que duvidava do mistério da Santíssima Trindade, argumentando
“que não poderia crer num Deus de três cabeças encastoado em pão”. Também declarou
que se persuadiu contra a Encarnação, dizendo ser impossível “um Deus, de tamanho
que não cabe no mundo, reduzir-se ao ventre de Maria”. Pela mesma razão, duvidada da
Eucaristia. Afirmava, ainda, que todo e qualquer culto cristão é uma invenção humana e
que “se pode dar o mesmo culto que os chineses e japoneses dão a Deus como cada um
bem quiser”, questionando, assim, a universalidade da Revelação.20 A partir daí, Montes
também questionou a Divina Providência, pois disse que, se ela existisse, haveria de
existir uma uniformidade de culto. Afirmou ainda que cria que todas as coisas no
mundo aconteciam por um mero mecanismo casual de evolução da matéria. Ainda,
Montes duvidava da existência de Purgatório, do Inferno e dos castigos pós-vida,
considerando-os contraditórios com a misericórdia de Deus.21 Por fim, João Pedro de
Lemos Montes disse que duvidava da graça de divina, já que, se o homem não se
salvasse sozinho, a culpa não seria sua, e sim de Deus. E em consequência dessas
proposições teria feito muitas outras, das quais não mais se lembra.22
Contudo, dois elementos da apresentação e denúncia servem como uma espécie
de atenuante. Em primeiro lugar, os livros e, juntamente com eles, sua proximidade a
Manoel Félix de Negreiros. Lemos Montes disse que, depois desse tempo que viveu
com esses erros, “em sossego, recebendo no São Matheus”, no ano de 1777, “a ordem
de diácono e, logo na Santa Luzia, imediata, a do presbítero”, viveu por seis meses em
Braga, e o recolhimento no seminário despertou em seu espírito “sentimentos de
18
ANTT, Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Processo do Padre João Pedro de Lemos
Montes, proc. 6661. Fl. 2v.
19
Ibidem, p. 1v.
20
Ibidem, Fls. 12-12v.
21
Ibidem, Fl. 13.
22
Ibidem, Fl. 13v.
319
verdadeira piedade”, com o qual “principiou a formar os santos projetos de extrair-se a
esta vida tão cheia de remorsos”. Assim, confessou-se, e declarou que seu confessor o
recomendou que comparecesse em mesa para fazer sua confissão à Inquisição de
Coimbra, no mesmo ano de 1778 ele pediu audiência, comparecendo em mesa para se
apresentar e fazer as devidas denúncias. Porém, o padre, “vendo-se [depois de sua
confissão] na Corte a favor da liberdade que dá a multidão, esqueceu os santos
propósitos com que tinha saído de casa”(no caso, o de se apresentar à Inquisição), e
continuou a ler livros proibidos, os quais lhe foram emprestados por Manoel Félix de
Negreiros, com quem falava livremente sobre as ditas matérias. 23 Os livros, que
identificou como “Sermão dos cinquenta filósofos” e “Exame importante da religião”,
provavelmente eram Sermon des cinquante, de Voltaire, e Examen de la réligion, de
César Chesnau du Mersais, respectivamente publicados em 1749 e 1745. O primeiro,
sobretudo, merece atenção, por causa de algumas proximidades com os argumentos das
proposições. No curto texto atribuído a Voltaire, há um diálogo no qual um
personagem, religioso, reunido a “cinquenta pessoas instruídas, pias e razoáveis”, numa
espécie de assembleia, desenvolve um sermão, no qual analisa, à luz da razão ilustrada,
uma crítica às Escrituras, a diversos dogmas, a ações e a falas atribuídas a Deus, e a
vários pontos de religião. Fica claro, no sermão, que os diversos crimes e violências
contidos na Bíblia, ou mesmo nas ações de diversas autoridades, em nome dela ou da
religião,
são
avaliados
como
sendo
superstição,
extravagância
e
grandes
monstruosidades opostas à razão. Dessa forma, o Sermão acaba por defender uma
espécie de religião universal, tolerante, universalista e calcada na razão, e não em
convenções humanas, que definem cultos demasiado exteriorizados e empreendem
perseguições a outros grupos religiosos.24
Mais detalhes ainda a respeito de Manuel Félix de Negreiros, sobretudo suas
falas heterodoxas, vêm de uma outra apresentação, seguida de denúncia. Trata-se da
apresentação dada por Francisco Antônio de Mesquita Monteiro, em 23 de novembro de
1779, por escrito, à Inquisição de Lisboa. O denunciante, como consta numa das
margens do documento, era tenente dos regimentos do Porto e, à época da denúncia,
fora a Lisboa a serviço para, depois, recolher-se novamente no Porto. Porém, sabendo
que na Corte estava preso Manoel Félix de Negreiros, foi até a mesa do Santo Ofício
23
Ibidem, Fl. 2, 10 e 12.
VOLTAIRE, François Marie Arouet. Dialogues satiriques & philosophiques: suivis du sermon des
cinquante [1749]. Paris: E. Dentu Éditeur Libraire de la societé des gens de lettres, 1890. Disponível em:
< https://archive.org/details/dialoguessatiri00voltgoog>. Acessado em jul./2018. p. 273-302.
24
320
levar a denúncia. O mesmo teria feito, segundo declara, outro homem identificado como
Luiz Caetano de Campos,25 morador no Porto, que teria remetido sua denúncia à
Inquisição de Coimbra.26
O tenente disse que, “passeando em uma tarde junto à noite” e “vendo passear
gente que ia para a novena da Senhora do Carmo”, encontrou com o dito Manuel Félix
de Negreiros, “em conversação” sobre a “história da França de Luís 14, de que
sumamente gostava pela instrução”. A instrução notável de Negreiros, segundo o
denunciante, o entreteve em diversos assuntos, nos quais conversaram até a noite, “em
que fazia um muito bom luar e deixando a conversação até aquele ponto”.
Prosseguindo, o denunciante disse a Negreiros “que estimaria saber a razão por que a
Lua não se podia ver toda, assim como em outras noites”, ao que o libertino respondeu
que “era obra da natureza, assim como tudo o mais que havia”. Negreiros, continuando
a sua resposta, disse que “este conhecimento só tinham homens estudiosos e
iluminados”. Francisco Antônio de Mesquita Monteiro, então, perguntou quem seriam
esses homens iluminados, ao que Negreiros prontamente respondeu “que eram aqueles
que obravam conforme a lei que cada um tinha no seu coração escrita” e também
“seguindo os sentimentos a que ele se inclinasse, que eram os da liberdade do homem”.
Depois de dizer isso, continuou o denunciante, Negreiros foi abordado por um sujeito a
quem, conforme a denúncia, se referia como “francês”. Após se abraçarem, Negreiros
disse ao denunciante que o referido homem era um dos homens aos quais ele chamou de
“iluminados”. Depois disso, o denunciante disse que se despediu “para ir fazer oração”
como era seu costume, para a mesma Senhora do Carmo, “onde ia todas as noites”, ao
que Negreiros e o dito “francês” “se puseram a rir”, dizendo “que desse saudações à
Maria”. Num outro encontro que teve, em uma casa próxima da igreja onde o
denunciante disse ter feito suas orações de costume, Manoel Félix de Negreiros teria
dito ao denunciante, depois de tê-lo pedido para se sentar, que o iria “desenganar” de
sua “hipocrisia” e que “ouvisse ler aquele livro que tinha em mãos”, ao qual o
denunciante não identificou, mas declarou ter prestado atenção à sua leitura. Disse que,
após isso, Negreiros começou seu discurso, que “era como um sermão, em que se
25
O mesmo romancista português autor, em 1790, de Viagens de Altina, nas cidades mais cultas da
Europa e nas principais povoações dos Balinos, povos desconhecidos de todo o mundo, e, em 1806, da
polêmica tradução do espanhol da obra Filósofa por amor. Sobe os diversos contratempos que esta última
obra teve com a censura portuguesa, há um detalhado trabalho a seu respeito publicado por Márcia Abreu.
ABREU, Márcia. O controle à publicação de livros nos séculos XVIII e XIX: uma outra visão da censura.
Fênix – Revista de História e Estudos Culturais. Out.-dez/2007. (1-12), vol. 4, ano IV, nº 4.
26
ANTT, Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. 130º CADERNO DO PROMOTOR, Op. Cit.
Fl. 79 [margem].
321
dilatou pouco mais ou menos [uma] hora”, “lendo pelo mesmo livro”, no qual se dizia
que “Jesus Cristo era um impostor”, além de tratar “a Santíssima Virgem por impura e
outros ditos” de que não se lembrava.27
O denunciante Francisco Antônio de Mesquita Monteiro descreveu um segundo
encontro com Negreiros, na mesma denúncia, acontecido dias depois, quando estava
perto do quartel fazendo seus exercícios militares. Disse que Negreiros principiou “as
mesmas blasfêmias que tinha dito na noite em que” estivera “lendo o livro” ao qual se
referiu. O denunciado teria tentado ler um outro, sem sucesso devido à ocupação, no
momento, do denunciante. Porém, um ou dois dias depois, segundo a mesma denúncia,
Negreiros foi à casa do tenente “dando princípio às mesmas proposições”, ao que
Monteiro “lhe disse que tivesse cautela com a sua língua, que certamente o haviam de
prender pelo Tribunal do Santo Ofício”. A isso, Negreiros teria respondido que “não
temia porque o mesmo” que proferia o fazia de forma oculta e dizia, ainda, “que se o
chamassem [...] que fora a coisa meio mal feita admitir-se este Santo Tribunal, que
podia haver que não queriam outra coisa mais do que prender os homens e chegá-los ao
fogo só por lhe ficarem senhores dos seus bens”. Além disso, Negreiros teria tido que a
Inquisição agia “não querendo deixar pensar os homens, mais do que tê-los no jugo da
ignorância”, ao que o denunciante não mais o quis ouvir.28
A trajetória de Manoel Félix de Negreiros foi estudada e cobre praticamente
todo o reinado de d. Maria I. Segundo Luís Antônio de Oliveira Ramos, trata-se de um
homem formado pela Ilustração, que evoluiu no sentido das ideias republicanas,
tornando-se um adepto ferrenho do que chamou La Grande Nation, o que lhe trouxe
sucessivos encarceramentos. Por isso, no início do reinado mariano, foi penitenciado
pela Inquisição por “ser um heterodoxo leitor dos filósofos, em período coincidente com
a Revolução francesa distinguiu-se entre os mações e jacobinos portugueses que
apoiavam as experiências parisianas”.29
Vários elementos similares aos encontrados na documentação sobre Manoel
Félix de Negreiros podem ser vistos no importante processo de José Anastácio da
Cunha, militar e, tempos depois, lente de Geometria da Universidade de Coimbra.
Nascido em Lisboa em 1744, Cunha estudou junto à Congregação do Oratório, na Casa
27
Ibidem, Fl. 79
Ibidem, Fl. 79v.
29
RAMOS, Luís Antônio de Oliveira. Um marginal do século XVIII: o jacobino Manuel Negreiros In.:
Centro de História da Universidade do Porto (org.). Estudos de história contemporânea portuguesa:
homenagem ao professor Víctor de Sá. Porto: Universidade do Porto, 1991. p. 83-91. p. 83.
28
322
das Necessidades. Em 1762, no curso da Guerra dos Sete Anos (1753-1763) e em
ocasião da invasão de Espanha e França a Portugal – de 1762, terminada no mesmo ano
–, o futuro lente de Coimbra aceitou o posto de oficial artilheiro no Porto, sendo
aquartelado em Valença do Minho. Atendendo à demanda do oficial britânico Simon
Fraser, José Anastácio da Cunha escreveu alguns apontamentos importantes, em que
analisava manuais de balística estrangeiros, apontando-lhe alguns erros. A boa recepção
desses escritos valeu-lhe uma promoção ao cargo de tenente, recomendada pelo Conde
de Schaumburg-Lippe, em 1764.30 O conflito militar mencionado anteriormente, é
necessário sublinhar aqui, impactou significativamente a organização militar em
Portugal. Dele decorreu uma reforma estrutural substantiva, levada a cabo pelo
mencionado Conde de Lippe, general de origem alemã a serviço da Coroa britânica e
patrocinada pelo Conde de Oeiras.31 Foram criadas auditorias de guerra e atribuiu-se um
papel mais relevante às milícias e às ordenanças para a defesa terrestre do território,
sobretudo o colonial. Tais ações estiveram de acordo com formulações teóricas que
visavam ao fortalecimento do poder do Estado e das elites políticas, bem como à
reformulação da força militar que se colocava como mais um meio de se operacionalizar
um modelo de sociedade no qual todos – nobreza, clero e povo – submetiam-se a uma
monarquia absoluta, distinta do absolutismo tradicional dos séculos anteriores. 32 A
presença de José Anastácio da Cunha em Valença do Minho, em companhia de muitos
estrangeiros, é decisiva para que se consiga entender sua trajetória nas malhas
inquisitoriais. Antes disso, fora nomeado pelo próprio Sebastião José de Carvalho e
Melo como lente de Geometria em Coimbra, no ano 1773, e posteriormente teve
importantes publicações, tanto na poesia como na Matemática.33
A passagem do lente pelas malhas inquisitoriais deu-se no contexto de uma
devassa maior ocorrida no final dos anos 1770, já após a queda do Marquês de Pombal.
As matérias que foram levantadas em seu processo e no de vários outros que foram
presos à mesma época e lugar remetem a situações acerca de sua passagem em Valença
do Minho. Como observou João Pedro Ferro, ali Cunha encontrou-se com um
regimento composto em grande parte por estrangeiros de diversas nacionalidades, como
ingleses, franceses, italianos e alemães, boa parte deles protestante. Tratava-se de um
30
QUEIRÓ, João Filipe. José Anastácio da Cunha: a forgotten forerunner. The Mathematical
Inteligencer. vol. 10, nº, p. 38-43, 1988. p.38-39.
31
MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal. Op. Cit. p.119-123.
32
WEHLING, Arno; WEHLING, Maria José. Exército, milícias e ordenanças na Corte Joanina:
permanências e modificações. DaCultura, ano VIII, nº 14, p. 26-32, jun. 2008. p.27
33
QUEIRÓ, João Filipe. José Anastácio da Cunha: a forgotten forerunner. Op. Cit.
323
grupo composto de muitos oficiais mercenários que foram a terras lusitanas em busca de
regalias que não conseguiram em seus países, aproveitando a oportunidade, já
mencionada, que se abriu na sequência da reorganização do exército português. Ainda
para o autor, esses estrangeiros “eram normalmente pouco disciplinados”, apesar de
notáveis conhecedores de seu ofício, e “sua conduta como livres pensadores e
protestantes escandalizava frequentemente o establishment religioso do país”.34 É o que
se observa em muitos pontos e no perfil de muitos dos demais que tiveram destino
parecido com o de Cunha.
O processo se desenrolou de maneira rápida, tendo sido iniciado e terminado em
1778, entre junho e outubro. Foram, ao todo, doze denúncias contra José Anastácio da
Cunha, duas apresentando-se livremente e outras, ao longo das averiguações. As
primeiras informações vieram das declarações de José Madeira Monteiro, em janeiro do
ano do processo. No processo, consta que esse denunciante, preso por culpas de
libertinismo desde 7 de janeiro de 1778, apresentou algumas culpas contra o lente. Disse
que Cunha manteve, durante os anos em que conviveu com ele em Valença do Minho,
“muita amizade, trato e familiaridade com todos os oficiais do dito Regimento” da
mencionada cidade, que eram “hereges protestantes, e que com eles e com os mais
libertinos, comia carne em todos os dias proibidos”. Mais ainda, disse que o então
tenente do Regimento “conservava em sua casa uma manceba, a quem não deixava ir à
missa” – sobre a qual, mais à frente no processo, se acrescenta que seu nome era
Margarida. Disse que José Anastácio “não tinha outra lição mais que livros proibidos,
digo franceses e ingleses” e que “era tido na dita Praça por herege e um dos mais ímpios
e depravados libertinos”. Acrescentou ainda que Cunha escarnecia das cerimônias
católicas, detalhando o fato de ele ter participado, com o capitão Ricardo Muller, em
ocasião da morte de um cachorro, de uma encenação de ritos fúnebres para o animal.35
Seguiram-se falas de outros presos pela Inquisição de Coimbra por culpas de
libertinismo: José Leandro Miliani da Cruz36 e do cirurgião-mor Alexis Vachi, que
aparece na documentação como Alexis Vacchi.37
34
FERRO, João Pedro. O processo de José Anastácio da Cunha na Inquisição de Coimbra. Introdução,
transcrição e notas de João Pedro Ferro. Revista História. Ano IX, nº 100, p. 4-35. Fev./1987. p.5.
35
Ibidem, p. 13.
36
Foi considerado “herege, apóstata de Nossa Santa Fé Católica, e que incorreu em sentença de
excomunhão maior, confiscação de todos os seus bens para o fisco e câmara real de Sua Majestade”, mas
teve a pena atenuada por ter abjurado de erros e se confessado em mesa. Em fragmento de sua sentença, é
mencionado sua descrença em castigos eternos e o convívio com libertinos por muitos anos de maneira a
sustentar sua condenação. Foi sentenciado em participar de um auto-de-fé, abjuração em força e reclusão
na Casa da Congregação da Missão do Sítio de Rilhafoles, além penas espirituais. O documento não tem
324
Com três testemunhas e mais cinco outras confirmações a respeito do
comportamento heterodoxo de José Anastácio da Cunha em Valença, em 26 de junho de
1778 foi expedida sua ordem de prisão e, em 1º de julho do mesmo ano, o lente já
estava preso. Em 9 de setembro de 1778, confirmaram-se as acusações feitas a ele e, em
parecer da Mesa do Santo Ofício da Inquisição de Coimbra, afirmou-se que José
Anastácio da Cunha era convicto dos crimes de heresia e apostasia, de se persuadir
quanto ao deísmo, tolerantismo e indiferentismo, crendo que se salvaria somente pela
observação da lei natural. Juntamente com outras dez pessoas condenadas em Valença,
o lente foi condenado a sair em auto de fé, que foi realizado em 11 de outubro de 1778.
Teve bens confiscados, e também foi condenado a três anos de reclusão na Casa das
Necessidades da Congregação do Oratório e a penitências espirituais. Efetivamente,
cumpriu dois anos dessa reclusão e foi perdoado, em 1781, dos quatro anos de degredo
em Évora. Além disso, perdeu seu cargo de lente na Universidade de Coimbra. Ele veio
a ocupar o cargo de professor e diretor de estudos na Casa Pia de Lisboa, a convite de
Diogo Inácio Pina Manique, Intendente Geral de Polícia. Na Corte, ao que tudo indica,
permaneceu até o fim de sua vida, em 1787.38 Importam aqui, além de sua confissão,
alguns detalhes importantes das denúncias contra José Anastácio sobretudo aqueles que
indicam a relação das linhas gerais, discutidas até aqui, sobre a caracterização do
libertino e a defesa da tolerância religiosa.
Em primeiro lugar, nas falas dos denunciantes e dos depoimentos colhidos pelo
Santo Ofício, nota-se que se faz uma relação quase que direta entre o convívio de José
Anastácio da Cunha com os “hereges” protestantes de Valença do Minh e sua
irreverência em relação às cerimônias e preceitos da Igreja católica, além de suas
leituras proibidas. Nas culpas contra ele que constam no processo de Henrique Leitão de
Souza, então preso por libertinismo, isso fica claro. Ele disse que, havia “mais de um
ano”, em que ele, indo à casa de Jose Leandro Miliani da Cruz, onde também estavam
“quatro oficiais do mesmo Regimento Protestantes”, o mesmo José Leandro lhe
mostrou “uma oração, que ele réu lhe pareceu ter alguns erros ímpios contra a Verdade
da Religião Cristã”, os quais “ouviu depois também repetir alguns dos mesmos oficiais
dada, mas, provavelmente, ocorreu em 1778, ano em que outros condenados do mesmo grupo de Valença
tiveram sorte similar. ANTT, Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Fragmento da sentença do
processo de José Leandro Miliani da Cruz, proc. 13646.
37
Não foi possível acessar este processo nesta pesquisa. ANTT, Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de
Coimbra. Processo de Aleixo Vachi, proc. 8078.
38
FERRO, João Pedro. O processo de José Anastácio da Cunha na Inquisição de Coimbra. Op. Cit. p. 78.
325
protestantes”. Ele teria achado a mesma oração em um dos livros de Voltaire, a oração
Deo, Optimo, Maximo, traduzida por José Anastácio da Cunha, que circulava entre os
soldados protestantes livremente.39 O réu a repetiu de cor, no processo.40 No mesmo
processo, aparece em denúncia do próprio José Leandro, menção a uma tradução, que
teria sido feita pelo lente, de poemas de Pope, nos quais se exaltam a liberdade e
tolerância humanas e pode ser entendido, também, como exaltação à religião natural. Há
constantes menções à circulação dessas traduções entre os demais membros do
Regimento, sobretudo protestantes.41 Porém, a tradução mais conhecida feita por José
Anastácio da Cunha é a de Le fanatisme ou Mahomet le profete, de Voltaire, tragédia
em cinco atos, escrita em 1736 e encenada, pela primeira vez, em 1741. Existe uma
versão, da mencionada tradução, de 1775 e outra publicada em 1795 na tipografia da
Academia Real de Ciências, em Lisboa, sob o título de Mafoma, ou Fanatismo. Trata-se
de uma história a respeito de Maomé, em tempos de sua conquista da Meca, e o
personagem Zopir, então líder da cidade – que hoje faz parte da Arábia Saudita –,
grande defensor da liberdade. A trama se desenvolve no conflito entre o arbítrio do
profeta e a resistência do defensor da liberdade, até que a filha deste último prefere
cometer o suicídio a aceitar o tirano profeta. Dessa maneira, Maomé e o fanatismo – a
figura do primeiro personificando o segundo – são colocados na posição antagônica a
Zopir da tragédia, ficando claro o potencial crítico da obra em relação às sociedades
cristãs do Setecentos.42 Sobre Mafoma, Luiz Villalta diz que:
(...) Voltaire, que em outro escrito louvou a religião como um freio
necessário, na tragédia Le fanatisme ou Mahomet, le Prophète, de
1741, veio a denunciar que o despotismo poderia valer-se da religião.
Com efeito, para Maomé, o abominável protagonista, a religião seria
um freio indispensável para a coesão da sociedade e a sustentação do
poder político, tendo ele sintetizado para Zopire, seu antagonista, sua
proposta político-religiosa para a Arábia: “Sob um rei, sob um Deus,
eu venho reuni-la [a pátria];/ E para torná-la ilustre, é preciso subjugá-
39
Ibidem, p.13.
“Oh, Deus a quem tão mal o homem conhece/Oh Deus a quem todo Universo aclama/As palavras
escuta derradeiras/Que a minha boca forma. Sem me enganar foi tua santa lei buscando/Pode o meu
coração de boa estrada perder-se/Mas ti sempre está cheio/Sem me atemorizar diante dos seus olhos. /A
Eternidade vejo e crer não posso/Que sejais um Deus que o ser me deu/Lançado tem sobre os meus
dias/Agora, extintos eles, finalmente/Haja de atormentar-se eternamente”. BAIÃO, Antônio. Episódios
dramáticos da Inquisição Portuguesa. Op. Cit. p. 98.
41
FERRO, João Pedro. O processo de José Anastácio da Cunha na Inquisição de Coimbra. Op. Cit. p. 16.
42
OLIVEIRA, Antônio José de [Voltaire, pseud.]. Nova tragédia intitulada Mafoma ou Fanatismo. Trad.
De Le Fanatisme ou Mahomet le profete. Trad. Provável: José Anastácio da Cunha. Lisboa: Off. da
Academia Real de Sciencias, 1785 (existe outra ed. de 1775). 1795. Disponível em Biblioteca Nacional
de Portugal < http://purl.pt/16461> . Acessado em ago./2018.
40
326
la”. Zopire, em resposta, o acusa de ter por Deus o interesse, enquanto
o Deus dele seria a “equidade”.43
Dessa maneira, por analogia, a obra de Voltaire, traduzida por José Anastácio da
Cunha, poderia ser associada ao clero e demais autoridades religiosas de realidades
europeias. Esse potencial crítico estava na relação feita na obra pelo uso da religião no
âmbito político a fim de manter a sociedade obediente e coesa, revelando, assim,
mecanismos de um uso tirânico da instituição religiosa.
A falta de reverência do lente de Geometria a preceitos e cerimônias católicos,
conforme as culpas encontradas contra ele nas falas de outros réus e denunciantes,
também se cruza com sua amizade com pessoas de outros credos. Segundo José
Antônio Ramos, artífice de fogo na companhia de bombeiros do regimento de Valença,
José Anastácio da Cunha é um homem “cheio de um espírito libertino, mostrando fastio
a todas as coisas sagradas e funções da Igreja”, numa constante inobservância dos
“preceitos da lei de Deus”, paralela à amizade que demonstrava “passeando e
conversando” com diversos membros do dito regimento, “todos protestantes”.
Juntamente com isso, comia carne em dias proibidos, não frequentava a missa
regularmente e dizia não acreditar no “Paraíso Terreal”, onde teriam sido criados Adão
e Eva, entre outras proposições.44 Alexis Vacchi mencionou que Anastácio lhe disse
para ir à missa, justificando-se “porque tenho espias para observarem se a ouço, ou
não”, e, “se faltar a ela, receio que me acusem” ao Santo Ofício.
45
O mesmo José
Antônio Ramos, entre outros, acrescentou às culpas do lente o fato de ele viver
“publicamente amancebado” com uma mulher chamada Margarida,46 ao que o sargento
do mesmo regimento José Maria Freire acrescentou que Cunha “bem claramente” fazia
“gala de seu pecado”.47
Tais apontamentos se repetem, em grande parte, nas falas das demais
testemunhas. Elas apontam que a acusação de libertinismo, em finais dos anos 1770, no
caso de José Anastácio da Cunha, foi construída em cima de diversos pontos: a
liberdade de leituras e circulação de textos proibidos, o ambiente de debates e tolerância
– de ideias e religiosa – e a liberdade perante as diversas obrigações impostas pelo
Catolicismo, em contexto de uma ortodoxia vigiada. Alguns desses aspectos aparecem
43
VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do livro no mundo luso-brasileiro sob as Luzes. Op. Cit. p. 96.
FERRO, João Pedro. O processo de José Anastácio da Cunha na Inquisição de Coimbra. Op. Cit. p. 19.
45
Ibidem, p. 14.
46
Ibidem, p. 19-20.
47
Ibidem, p. 22.
44
327
na confissão do lente. Em audiência dada ao inquisidor Manoel Antônio Ribeiro, em
julho de 1778, Cunha mencionou seu convívio e familiaridade com oficiais protestantes
em Valença do Minho. Por virtude dela, “assentindo com erros contrários à fé”, comia
carne em dias de preceito, lia livros defesos, entendia ser a justa tolerância em matéria
de religião e entendia que quem errasse nesse ponto, sem malícia, se salvaria. Duvidou
da justiça das leis eclesiásticas, negou a tradição e duvidou de vários outros pontos.
Além disso, confessou a tradução do Mafoma, de Voltaire, de quem também se disse
um leitor, “vendo nas suas obras o zelo com que ele queria estabelecer que todos os
homens reconhecessem um Deus, se amassem mutuamente e vivessem todos como
irmãos, sem se perseguirem”. Disse que se tornou partidário do tolerantismo,
entendendo como impiedade e tirania o fato de se obrigar os homens a “cativar os seus
entendimentos e discursos a algumas regras, leis e preceitos”.48
No processo de Jerônimo Francisco Lobo, de trajetória bem distinta em relação à
de José Anastácio da Cunha, há elementos similares aos encontrados no processo do
lente, a respeito da caracterização do libertino. Chamando atenção, também, o vínculo
entre os núcleos de Valença do Minho e da Universidade de Coimbra. Segundo Luís
Antônio de Oliveira Ramos, a primeira denúncia contra Lobo fora dada quando José
Maria Teixeira, então estudante do quinto ano de Cânones na Universidade de Coimbra,
havia sido preso pela Inquisição coimbrã em dezembro de 1777. Tido por “ateísta,
ímpio e blasfemo”, foi condenado, sobretudo, por terem entendido seu engajamento em
convencer outros estudantes de sua libertinagem.49 Antes de analisar o de Jerônimo
Francisco Lobo, é importante trazer algumas informações referentes ao processo de um
outro réu, datado de pouco mais de um ano depois da prisão de Lobo, o processo do
bacharel João da Costa e Sousa. A Inquisição de Lisboa solicitou diversas culpas contra
à Inquisição de Coimbra, sendo a maioria delas referente a estudantes da Universidade
da mesma cidade. Tais estudantes, como Francisco José de Almeida, Diogo de Morais
Calado, o próprio Jerônimo Francisco Lobo, entre outros, fizeram parte de outro núcleo
de libertinos que caiu nas malhas inquisitoriais à mesma época, sobre o qual me deterei
mais à frente, neste capítulo. Preso em dezembro de 1779, apresentou-se ao inquisidor
fr. Vicente Ferrer em janeiro do ano seguinte, confessando culpas de deísta e seguidor
da religião natural, pontos que comunicava com outros colegas, dentre os quais
48
BAIÃO, Antônio. Episódios dramáticos da Inquisição Portuguesa. Op. Cit. p. 108-109.
RAMOS, Luís A. de Oliveira. Sobre os ilustrados da academia de Coimbra. In: ________. de Oliveira;
RIBEIRO, Jorge Martins; POLÔNIA, Amélia (Eds.). Estudos em homenagem a João Francisco
Marques. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2001. p. 312–326. p. 318.
49
328
destacou o próprio Jerônimo Francisco Lobo. Ele foi ouvido em várias sessões, sendo
em algumas considerado diminuto na confissão, sobretudo em relação a possíveis
denúncias de seus colegas. João da Costa e Sousa jamais sairia da prisão, tendo falecido
no cárcere em 30 de março de 1780, com sinais, na descrição, que indicam um possível
suicídio. Ainda assim, o réu continuou sendo julgado, até ser condenado a um auto-defé de 16 de setembro do ano seguinte, a confisco de bens e a sufrágios.50
Na apresentação de Jerônimo Francisco Lobo dada aos 15 de dezembro de 1779
– dias após a prisão de Joao da Costa –, há algumas informações importantes sobre a
sociabilidade que construíram entre Valença, Lisboa e Coimbra, embora com muito
menos detalhes que a confissão do próprio Jerônimo Lobo e o resumo da mesma no
130º Caderno do promotor – documentos que serão analisados aqui. Em forma de carta,
Jerônimo da Silva Lobo se dirigiu aos inquisidores de Lisboa, fazendo referências à sua
confissão, dada na forma de uma apresentação à Inquisição em Coimbra. A origem de
seus erros é, geralmente, associada, ao longo da carta, aos tempos em que manteve
amizade com João da Costa e Sousa, a quem conheceu nas aulas de gramática Latina,51e
a José Maria Teixeira, a quem conheceu em Valença do Minho, “nas férias do ano de
1777”. Sobre esses dois amigos, declarou que ali “principiamos a comunicar os nossos
erros: ele (José Maria Teixeira), os que havia [na] Cidade; eu os devia à comunicação de
alguns moços de Valença”, onde disse ter ido a fim de se empregar na milícia.52 Nessa
carta de confissão, Jerônimo Lobo elenca algumas de suas proposições e
comportamentos heterodoxos, o que foi considerado suficiente pelos inquisidores, ao
contrário do que diz respeito de seus mencionados cúmplices.53 Em relação a tais falas e
ações consideradas libertinas, há muito mais detalhes em sua apresentação, anexada no
mesmo processo.
No Caderno do Promotor acima mencionado, há um resumo para auxiliar os
inquisidores de Lisboa a avaliar o estudante, que era natural de Vidais, termo de Óbidos
e que, à data, 1778, estava em Lisboa, após suas passagens por Valença e Coimbra,
Consta que o carcereiro encontrou João da Costa e Sousa morto na sua cama, “afogado” com uma “liga
da meia com três voltas e dois nós à volta do pescoço”. Disse ainda ter desapertado o nó e tentado
reanimar o preso, em vão. ANTT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo do bacharel
João da Costa e Sousa, proc. 3250. Fl. 72.
51
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Processo de Jerónimo Francisco Lobo.
Tribunal do Santo Ofício, proc. 6111. Fl. 4. A mesma carta de confissão foi publicada por Luís Antônio
de Oliveira Ramos, anexo documental de artigo. RAMOS, Luís Antônio. Soldados, fidalgos e estudantes
voltairianos. Diacrítica, nº 15, 189-211, 2000. O anexo documental se encontra entre as páginas 201-211.
52
Ibidem, Fl. 4v.
53
Ibidem, Fl. 8v.
50
329
onde concluiu seus estudos. Trata-se de um grupo de 53 proposições, apresentadas de
maneira resumida, que se encontram na íntegra nas culpas anexadas ao processo. 54 Na
apresentação feita ao inquisidor Antônio Veríssimo de Larre em abril de 1778 e
remetida ao tribunal lisboeta, em 11 de dezembro do mesmo ano, há partes muito
similares à da sua carta de confissão, sobretudo no que toca às suas sociabilidades. Ele
disse que grande parte da sua concordância nas matérias heterodoxas de religião se
deveu ao temor de perder a amizade com João da Costa e Sousa e outros estudantes de
Coimbra, concordando sempre de maneira externa com as proposições ali colocadas.55
No detalhamento de suas proposições, Jerônimo fez uma retrospectiva de sua trajetória,
voltando ao ano de 1771, em que, no sítio da Junqueira, teve conversa com Manoel
Rodrigues, professor de Retórica, à época, na cidade da Guarda. Disse que o mesmo lhe
teria falado que Voltaire dizia que a confissão auricular era invenção de um Papa e que
Deus não condenava ninguém ao Inferno, ao que Jerônimo Lobo “deu assenso interno”.
Menciona, também, um colega chamado José Batista de Souza, com quem estudou no
Colégio de Jesus da terceira Ordem da Penitência, que, em sua presença, ouvia e
aplaudia tais proposições.56 Mas o momento crucial deu-se em 1776, na sua passagem
por Valença do Minho, onde, como foi dito, foi tentar carreira militar e teve contato
com José Maria Teixeira, com quem morou por um tempo. Disse que, em “uma
caminhada nas muralhas da dita Praça” com Teixeira, ouviu dele que “não era
verdadeira religião alguma e, para debilitar lhe a crença”, à qual “ele declarante tinha
professado no batismo”, Teixeira teria usado diversos argumentos: que Moisés e Jesus
Cristo foram impostores, que Maria Santíssima não havia concebido por obra do
Espírito Santo, “mas por ter dito relações com (...) um alferes chamado Rafael”, entre
outros pontos. Disse que, depois disso, “se persuadiu do Libertinismo”.57 Ali, em
Valença, continuou, ao lado de José Maria Teixeira. Jerônimo Francisco Lobo viveu
num ambiente onde identificou grande liberdade de se falar de forma heterodoxa em
muitos pontos. Os envolvidos, todavia, estavam cientes do risco de corriam. Por
exemplo, em ocasião que ele e Teixeira visitavam a casa de Manoel do Espírito Santo –
preso pela Inquisição à época em que Lobo se apresentou –, disse que um dos vários
soldados e estudantes, que com ele estavam a falar de diversos pontos sobre a religião,
54
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. 130º CADERNO DO PROMOTOR. Op.Cit.
Fls. 67-69.
55
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa Processo de Jerónimo Francisco Lobo. Op. Cit.
Fls. 5 e 10v-12.
56
Ibidem, Fls. 19-20.
57
Ibidem, Fls, 20-20v.
330
mandou-os se calar, ao ver um familiar do Santo Ofício passar por perto do local.58
Voltando a Lisboa, disse que contou tudo o que aprendera a João da Costa e Sousa e a
outros vários estudantes, alguns dos quais caíram, posteriormente, nas malhas
inquisitoriais. Nesse momento, disse Jerônimo, havia em si “tanta desgraça e cegueira,
de uma alma enlodada no vício”, que, mesmo diante de seus amigos presos pela
Inquisição de Coimbra, ao invés de se apresentar prontamente, planejou somente sair de
Coimbra ou mesmo do Reino, o que não fez. No Domingo de Ramos de 1778,
“reflexionando seriamente sobre si, sobre o homem interno, viu e pasmou em quanto
havia sido rebelde à Igreja que o criou”; também “lhe ocorreu que ela, como piedosa
mãe, o receberia outra vez”, e decidiu, assim, se apresentar.59
Daí em diante, depois de voltar a Lisboa, enunciou muitas outras proposições,
que envolvem aspectos dos mais diversos, que vão do ateísmo à defesa da tolerância
religiosa, passando por proposições heterodoxas baseadas na história sagrada e
eclesiástica, leituras proibidas diversas e crítica sobre a política em Portugal. Jerônimo
Francisco Lobo descreveu que havia, na Corte, em diversos espaços, um ambiente de
liberdade no falar de pontos de religião com colegas e amigos. Há alguns momentos em
que sobressaem algumas ideias constantes nas proposições e que remetem a algum
ceticismo. A seu grupo, era comum, segundo a apresentação, a proposição de que “não
havia Deus”, que disse ter ouvido de João da Costa e Sousa e de José Maria Teixeira.
Jerônimo Lobo, segundo contou, ficou “inteiramente persuadido desse ponto, suposto
que, algumas vezes, disse que não havia Deus diante dos sobreditos e mais algumas
pessoas”, sem intenção de as persuadir, mas “para condescender com o espírito de
erudição que queria mostrar”. Repetia-se, nessas ocasiões, conta, um verso em francês
“Le crainte a fait les Dieux, le audace a fait les Rois”,60 que afirmou aos inquisidores ser
do “Tratado sobre a opinião”, sem lembrar precisamente autor e obra. 61 Na margem, os
inquisidores anotaram não saber ao certo qual seria a obra. Porém, é bastante possível
que a frase seja a atribuída ao escritor Prosper Jolyot de Crébillon, ou Crébillon père, na
peça Xerxes (1714). A relação entre a vontade de demonstrar acesso ao saber e erudição
perante os amigos e colegas, continuou Jerônimo, acabou por levá-lo a defender que os
animais lhe pareciam mais obra do acaso que criação divina e que “os brutos animais”
não foram criados para servir ao homem. Entendia que a diferença entre o ser humano e
58
Ibidem, Fl. 20v.
Ibidem, Fl. 22
60
A crença fez os deuses, a audácia fez os reis. Tradução minha.
61
Ibidem, Fl. 22v.
59
331
os irracionais seria somente uma “pouca sagacidade” e que, “talvez houvesse na
Natureza, uma gravação desde o homem até os brutos”. Além de contar que comunicava
frequentemente as proposições, sobretudo com os mencionados José Maria Teixeira e
João da Costa e Sousa, disse que teria desenvolvido tais ideias a partir das leituras do
Filósofo de Sans Souci (1749), obra de Frederico II, rei da Prússia, publicada por
Voltaire, do Instituições políticas (1760), do Barão de Bielfeld, e do Sistema da
Natureza (1770), do Barão D’Holbach. Ele afirmou que debatia sobre tais obras
frequentemente com os demais estudantes e soldados da praça de Valença, já citados.62
Este mesmo ceticismo aparecia, também, em proposições, como a de dizer que os
milagres de Cristo e dos “bem aventurados” eram mentirosos e que “não era conforme a
razão Deus mandar (...) seu filho ao mundo para a salvação dos homens”. Tal
proposição é mencionada juntamente com a de que a Virgem Maria teria concebido por
ter relações com um alferes chamado Rafael, e não por obra do Espírito Santo.63
A partir desses pontos, Jerônimo da Silva Lobo, em sua confissão, narra que ele
e seu grupo, sobretudo José Maria Teixeira e João da Costa e Sousa, desenvolveram
uma relação de indiferença com os preceitos católicos e com a fidelidade que lhes era
devida. Conta que, em Valença do Minho, costumavam se referir às pessoas que faziam
orações e eram rigorosas com os preceitos católicos por “fanáticos”. Eles chegaram, em
1776, na mesma cidade, a planejar colocar tinta de escrever na pia de água benta da
capela onde o pai de Jerônimo Lobo rezava.64 Também disse que não ia à missa e, mais
que isso, conta de um dia, em 1777, em que entreteve, propositalmente, dois irmãos
vizinhos seus com o objetivo de os fazer também faltarem à missa.65 Mas o desacato
que Jerônimo mais destacou em sua confissão se refere a um ato em que disse ser um
“fato que toda a sua vida aterrorizará”, que fez motivado pela crença de que a
Santíssima Trindade era somente uma ficção humana. Disse que, movido por sua
descrença,
chegou a desacatar (...) o triângulo com que os Santos Padres indicam
o princípio sem fim da mesma Trindade Santíssima; porquanto, sendo
convidado por José Inácio da Silveira Cordeiro, Estudante do primeiro
ano Jurídico, natural de Évora, para que escrevesse uma carta de dar
composição, não se lembra a quem, entre outras parvoíces que na dita
carta escreveu, nela pintou o referido triângulo, metendo-lhe no meio
as partes genitais do homem com um letreiro = É a Trindade = 66
62
Ibidem, Fls. 23v-24.
Ibidem, Fls. 27v-28.
64
Ibidem, Fl. 30.
65
Ibidem, Fl. 32.
66
Ibidem, Fl. 23.
63
332
Os desacatos e a descrença descrevem, nas palavras de Jerônimo Lobo, também
um ambiente de discussões constantes sobre livros proibidos diversos. Narra que isso
acontecia em situações cotidianas, como, por exemplo, em ocasião em que dizia,
juntamente com José Maria Teixeira, que a Igreja não era infalível, enquanto “tem
louvado [a] Voltaire e a Rousseau, o Rei da Prússia e Mirabeau, e outros ímpios autores
do libertinismo”, acrescentando ainda que Teixeira estendeu os elogios a Martinho
Lutero. Sobre este último autor, numa ocasião em que “o penteava um cabelereiro
chamado Manoel José, assistente no Colégio de São Boaventura [disse] = que tomara
que houvesse um Lutero em Portugal para lhe tirar do trabalho de ir à missa”.67
Também atribuiu à sua leitura e discussões sobre as Cartas Persas (1721), de
Montesquieu, a proposição de que “o obrar mal não era culpável ao homem”, pois ele
“não tinha liberdade de obrar”, uma vez que Deus prevê suas ações ad aeternum.68
Além dos vários autores até aqui mencionados, mais comuns entre as leituras
proibidas relacionadas à cultura das Luzes – Voltaire, Rousseau, Bielfeld, Montesquieu
e Frederico II – aparecem outras obras e autores que Jerônimo da Silva Lobo relaciona
com suas proposições. Por exemplo, disse que teve para si que o Apocalipse de São
João parecia ser obra de um filósofo “que forma quimeras”, e que “o fim do mundo por
um incêndio universal era pensamento de Heráclito e outros filósofos da antiga Grécia”.
Esse ponto teve para si, ao passo que outra proposição, que repetia aos colegas, segundo
a apresentação, “por gracejo”, era a de há “liberdade para toda a fornicação”, baseado
numa interpretação das cartas de São Paulo, que disse ter lido no livro “A história de
Dom Bougre”.69 Este último livro, certamente era a obra atribuída ao advogado francês
Gervaise de Latouche, intitulada L’Histoire de Dom Bougre, portier des Chartreaux,
escrita em francês e publicada em Londres, em 1741 – informação que aparece no
próprio documento citado. Trata-te de um romance libertino, desenvolvido em narrativa
semelhante a memórias autobiográficas, em que se narra uma série de desventuras de
natureza sexual do protagonista, Saturnin, em meio ao clero regular e dentro de um
convento. Foi uma obra que, de acordo com estudo a seu respeito publicado por
Charlote Galves e Márcia Abreu, contou com muitas edições desde sua primeira
publicação, além de diversas outras em que o nome Dom Bougre era trocado por outros,
como, por exemplo, Gouberdom. Em Portugal, as pesquisadoras encontraram menções
67
Ibidem, Fl. 31v.
Ibidem, Fl. 24v.
69
Ibidem, Fl. 28.
68
333
desses títulos na documentação censória de finais do século XVIII, entrando e
circulando de maneira clandestina, além de uma tradução anônima publicada no Brasil
de 1842.70 O que se observa é que existiu, no círculo do qual Jerônimo Francisco Lobo
fazia parte, um circuito dinâmico, ainda que restrito, de circulação de livros – vários
deles proibidos – e de debates em torno deles. Em meio a esses debates e por meio das
leituras inventivas que essas pessoas faziam no final do século XVIII, diversas
proposições heterodoxas vinham à luz. Deve-se frisar que os livros empregados para a
formulação das proposições, como demonstra Luiz Carlos Villalta, não eram
necessariamente livros defesos ou tidos então como “libertinos”.71
Nesses debates e reflexões, continua Jerônimo Francisco Lobo, seu círculo
defendia algumas proposições a favor da tolerância religiosa, muitas vezes desvelando
possíveis leituras que a respeito do Catolicismo e da forma como ele era vivido em
Portugal. Diziam, por exemplo, que os princípios do Cristianismo tinham sido os
mesmos que os das demais religiões e que “era impossível”, conforme a razão, “que
diante de tantos povos escolhesse Deus somente o judaico”.72Também disse que se
persuadiu que toda religião revelada era invenção política dos homens e que Moisés e
Jesus Cristo não teriam sido nada mais que “uns sábios legisladores”. Disse, ainda, em
desdobramento da proposição anterior, que a lei de Maomé era boa pela simplicidade de
seus dogmas, sem especificar de qual livro tirou esses pontos.73 Disso vieram algumas
de suas críticas à Inquisição. Jerônimo Lobo declarou que teve para si que a Inquisição
não era um tribunal reto, “mas que fazia grassar a ignorância”. Disse ainda que “era
bem feito por fugir da Inquisição quando o Tribunal estivesse junto”, e também “soltar
os presos que nele estivessem, por ser tirania mandar entregar ao fogo um herege
pertinaz, parecendo ser melhor justiça dar-lhe tempo para a conversão”. Afirmou
também que o Marquês de Pombal havia feito muito mal em não extinguir os tribunais
do Santo Ofício. Conversando a respeito do reestabelecimento do tribunal de Goa numa
loja no arco de Almedina, disse que esse fato “destruiria aquela cidade, aludindo que as
prisões do Santo Ofício arruinariam o seu comércio”. Sobre esse ponto, teria
conversado com um brasileiro que nomeou por “fulano de Morais” – alusão provável a
GALVES, Charlote; ABREU, Márcia. A circulação clandestina de romances e o mistério do “anônimo
brasileiro”. Remate de Males, 27(1), 109-125, jan./jun. 2007.
71
VILLALTA, Luiz Carlos. Montesquieu’s Persian Letters and Reading practices in the Luso-Brasilian
World (1750-1802). In: PAQUETTE, Gabriel. Enlightened Reform in Southern Europe and its Atlantic
Colonies, c. 750-1830. Cambridge: Ashgate e-book, 2009. p. 119-144.
72
Processo de Jerónimo Francisco Lobo. Op. Cit. Fls. 28 e 26v.
73
Ibidem, Fl. 25v-26.
70
334
Antônio de Morais e Silva, do qual falo mais à frente –, que lhe disse que “mais
conversões faziam as medidas de arroz, que mandavam dar os nossos reis, do que as que
haviam de fazer a Inquisição”.74 A essas críticas, somavam-se algumas reflexões que,
aparentemente, se valiam de leituras sobre a História, sobretudo a da Igreja. Teria
escutado na Praça de Valença que São Domingos, fundador da ordem dos dominicanos,
estaria no Inferno por ter perseguido os albigenses, numa alusão ao início dos tribunais
inquisitoriais. Juntamente a isso, mencionou conversas nas quais se diziam que as
Cruzadas se deram por “política dos papas para afastarem os turcos da Itália”,
questionando a autoridade pontifícia,75 além de dizer que o sacramento da penitência foi
invenção papal,76 que a bula cruzada fora instituída da mesma forma somente para
conseguir dinheiro77. Ele declarou que tinha aprovado “haverem os imperadores pagãos
perseguido a Igreja”, no caso, os primeiros cristãos.78 O que se infere, aqui, é que,
talvez, entre esses libertinos, o método proposto por Verney, analisado no Capítulo 2,
em que um uso propedêutico da História em função do aprendizado da Filosofia e
Teologia, vinculando-as ao empirismo, subvertia-se ao levar a diversas reflexões
heterodoxas.
Jerônimo Francisco Lobo sofreu somente penas espirituais, possivelmente
devido ao fato de suas confissões terem sido voluntárias e das completas delações que
fez contra seus companheiros heterodoxos que, como mencionado supra, tiveram
destinos bem mais trágicos em suas passagens pela Inquisição – sobretudo o bacharel
João da Costa e Sousa.79 Após sua passagem pela repressão inquisitorial, fica patente,
também, não existir uma linearidade na trajetória dos libertinos. Assíduo frequentador
dos vários circuitos de debates de pontos que contrariavam a ortodoxia e de leituras
proibidas, e com tantas críticas à religião e Igreja em sua juventude, em 1805 o mesmo
Jerônimo Francisco Lobo foi nomeado adjunto do intendente geral de polícia Lucas de
Seabra da Silva, assumindo o cargo quando este último foi demitido, em 1810,
permanecendo nele até sua morte, em 1811. Foi um notório agente da “setembrizada”,
entre 10 e 13 de setembro de 1810, evento marcado por uma ferrenha perseguição a
maçons, “afrancesados” e outros livres-pensadores. Ali, cerca de 50 pessoas foram
presas, sem processo, e remetidas à Ilha Terceira, no arquipélago dos Açores. Alexandre
74
Ibidem, Fl. 31.
Ibidem, Fl. 31v.
76
Ibidem, Fl. 28
77
Ibidem, Fl. 28v
78
Ibidem, Loc. Cit.
79
RAMOS, Luís A. de Oliveira. Sobre os ilustrados da academia de Coimbra. Op. Cit. p.323.
75
335
Mansur Barata mostra que foram dadas notícias ao príncipe regente d. João sobre as
ações de Lobo no evento, para garantir “a segurança e a paz públicas”. 80 No Ensaio
para servir à História da Intendência Geral de Polícia de Lisboa – não assinado, mas
de provável autoria de José Liberato Freire de Carvalho, editor do jornal –, publicado
em O Campeão Portuguez, em 1820, a “Setembrizada” é descrita como evento “que
fará época nos anais do despotismo”; Jerônimo Francisco Lobo é chamado “lobo
carniceiro” e descrito como “ardiloso perseguidor de portugueses e participante de
intrigas, sacrificando amigos e aliados em função de ascensão social”, entre diversas
outras pechas nada lisonjeiras.81
Para Stuart Schwartz, Negreiros, José Anastácio da Cunha e Jerônimo Francisco
Lobo e suas atitudes perante as autoridades representavam o espírito de dissidência,
visto em Portugal e nos vários rincões de suas colônias. Ele seria o resultado de uma
perda de respeito pela religião, que era, a rigor, produto indireto e involuntário das
políticas centralizadoras do Marquês de Pombal, que enfraqueceram o ultramontanismo
e tornaram a Igreja um braço dócil do Estado.82 Já Samuel J. Miller, em obra clássica a
respeito do Iluminismo católico português, entendeu que o embate diplomático entre
Portugal, sob o pombalismo e sob as políticas regalistas posteriores, e a Santa Sé de
Roma, desviou os dois lados daquilo que representava a verdadeira ameaça ao
Catolicismo, que era, na sua visão, os veementes ataques dos philosophes às religiões,
no geral.83 Por sua vez, João Pedro Ferro relaciona a perseguição a esses libertinos a
uma reação da “Viradeira” após a queda do Marquês de Pombal, em 1777.84 Entendo,
porém, que esses três aspectos precisam ser pensados em conjunto, a fim de se evitar
uma análise demasiado reducionista.
Não é possível separar os libertinos do último terço do século XVIII, espalhados
por Portugal e em alguns espaços luso-brasileiros, do processo de secularização
ocorrido a partir da segunda metade do Setecentos e que tocou instituições como a
Inquisição, a censura, a educação formal e as posições do clero. A respeito da primeira,
80
BARATA, Alexandre Mansur. Sociabilidade Ilustrada & Independência no Brasil. Op. Cit. p. 153154. A respeito do contexto da setembrizada, ações de Jerônimo Francisco Lobo nela e uma análise de
caso de um dos presos sem processo por ele, ver; D’ALOCHETE, Nuno Daupias. La terreur blanche a
Lisbonne (1808-1810): Jacques Ratton et la “Setembrizada”. Annales historiques de la Révolution
française, 37e Anné, nº 181, p. 299-331, juillet-septembre 1965.
81
O Campeão Portuguez ou O amigo do Rei e do Povo. Jornal político publicado mensalmente para
advogar a causa, e interesses de Portugal. Nº XXV. – Vol. III, 16 de julho, 1820. Londres: Impresso por
L. Thompson, Great St. Melens. p. 84-93.
82
SCHWARTZ, Stuart. Cada um na sua lei. Op. Cit. p. 353-355.
83
MILLER, Samuel J. Portugal and Rome c. 1748-1830. Op. Cit.
84
FERRO, João Pedro. O processo de José Anastácio da Cunha na Inquisição de Coimbra. Op. Cit. p.8.
336
é importante ter-se em conta que ela perdeu, progressivamente, o status que possuía até
o reinado de d. João V, a partir do momento em que o Marquês de Pombal passou a
submetê-la, cada vez mais, à Coroa. O Santo Ofício perdeu parte de seu poder policial
com a criação da Intendência Geral de Polícia, em 1768,85e também tocante à censura,
quando se criou a Real Mesa Censória, em 1768, limitando-se a ação inquisitorial nesse
ponto somente quando leituras e livros proibidos relacionavam-se a heresias.86
Também, no sentido de se reabilitar a Inquisição, submetendo-a mais à autoridade régia,
foram colocados em posições chave da hierarquia inquisitorial várias pessoas de total
confiança de Sebastião José de Carvalho e Melo, já na década de 1750. 87 Mas dois
outros fatores impactaram mais fortemente na Inquisição portuguesa, secularizada sob
os auspícios do regalismo pombalino. Em primeiro lugar, ocorreu o fim da distinção
entre cristãos-velhos e cristãos-novos, classificada como “sediciosa e supersticiosa”, e
produto da “terribilidade jesuítica” pelo Regimento de 1774.88 O fim dessa diferença,
tão marcante ao longo da história dos procedimentos inquisitoriais ibéricos, impactou
substantivamente pelo menos duas frentes principais referentes à posição dos tribunais
de fé em Portugal e colônias, a saber: o enorme enraizamento dos estatutos de pureza de
sangue nas sociedades portuguesa e coloniais, nas quais a Inquisição teve papel central
como organismo de validação e verificação,89 e a própria perda de sentido de muitos dos
procedimentos inquisitoriais, fortemente identificados ao longo da história dos tribunais
com a vigilância do judaísmo, o que Francisco Bethencourt chamou de “regime de
monocultura”.90 Em segundo lugar, deu-se a própria promulgação do Regimento de
1774, que além de ratificar as várias mudanças procedimentais, em diversos pontos
coevos aos debates sobre justiça e crime da cultura das Luzes,91 eliminou algumas
85
MAXWELL, Keneth. Marquês de Pombal. Op. Cit. p. 99.
Ibidem, p. 100.
87
MARCOCCI, Giuseppe; PAIVA, José Pedro. História da Inquisição portuguesa. Op. Cit. p. 334.
88
SIQUEIRA, Sônia (org.). Os regimentos da Inquisição. Op. Cit. p. 970-971.
89
Sobre o fortalecimento institucional da Inquisição portuguesa com seu enraizamento, ver.
MARCOCCI, Giuseppe; PAIVA, José Pedro. História da Inquisição portuguesa. Op. Cit. p. 243 e
seguintes.
90
BETHENCOURT, Francisco. A Inquisição. In: Yvette Kace Centeno (coord.), Portugal: mitos
revisitados, Lisboa: Edições Salamandra, 1993. p. 99-138. p. 104. As estatísticas sobre o funcionamento
da Inquisição de Portugal até 1750 dão respaldo ao uso desse termo pelo historiador. Robert Rowland
observa que tipologias de delito relacionadas ao judaísmo representam 83% dos processos do tribunal de
Coimbra, 84% dos de Évora – entre 1553 e 1629 – e 69% dos de Lisboa – entre 1536 e 1750.
ROWLAND, Robert. Cristãos novos, marranos e judeus no espelho da Inquisição. Topoi. V. 11. N. 20, p.
172-188, jan.-jun. 2010. p 176.
91
No que diz respeito ao ideal de fé moderada, contrária à piedade barroca, alguns pontos, como o fim da
possessão demoníaca como categoria válida para delitos de bruxaria, fizeram-se ver no Regimento de
1774. Sobre o mesmo tema, é importante também acrescentar que, a partir do mencionado regimento, tal
delito somente poderia ser punido por prisão e açoite se comprovado o uso da crença na bruxaria de
86
337
práticas que lhe garantiam enorme poder simbólico, como os grandes autos de fé e o
segredo processual.92
Por sua vez, outros autores, como Roger Chartier, relacionam a questão das
querelas religiosas internas ao Catolicismo a um processo maior de dessacralização do
mundo, marcante no XVIII – retomo este ponto ao longo do capítulo. Todos esses
aspectos precisam ser levados em conta ao se analisar a profusão das sociabilidades dos
libertinos, no mundo luso-brasileiro, no final do Setecentos. Tais sociabilidades e as
proposições e ações heterodoxas evidenciam uma disputa pelo religioso, balizada por
substratos culturais e também por aparatos filosófico-teológicos que se desenvolveram
internamente às dinâmicas desse processo secularizador do Iluminismo católico
português. Assim como alguns dos blasfemadores e outros cometedores de delitos de
fala, analisados no capítulo anterior, esses libertinos disputavam o religioso para além
das fronteiras especificadas pelo dirigismo cultural, que marcou parte do reformismo ali
proposto. No entanto, os libertinos caracterizaram-se por agir nesse sentido por uma via
mais próxima à do Cavaleiro de Oliveira, de John Coustos ou dos religiosos degredados
para Angola, também analisados no capítulo anterior, pois suas ações tomam uma
incipiente
esfera
pública,
tornando-a
um
pouco
mais
robusta,
e
alteram
significativamente as relações e representações com valores e instituições do Antigo
regime português.
Uma das maneiras pelas quais isso se conduz é pela avaliação tanto contextual
como histórica de um mundo posterior às reformas do Marquês de Pombal, e neste
ponto tenho uma leitura distinta da de João Pedro Ferro. As fontes sugerem que a
maneira a conseguir vantagem de alguém – nos demais casos, onde se verificam credulidade em feitiços e
práticas afins, ela seria tratada somente por instrução ou internação no Hospital da Misericórdia. É
importante também se observar menções indiretas a Cesare Beccaria nos títulos de condenação à tortura,
além das condenações ao fanatismo e obscurantismo, atribuídos a diversos estilos inquisitoriais – o
segredo processual, penas públicas, crédito à testemunha única (permitido, a partir daí, somente aos
delitos de solicitação no confessionário, dentre outros). ROCHA, Igor Tadeu Camilo. O Regimento
Inquisitorial de 1774: modernização e dirigismo cultural nos tribunais de fé no reformismo pombalino.
Cadernos de Pesquisa do Cdhis, Uberlândia, MG, v.30, nº2, p.198-219, jul./dez.2017.
92
Os grandes autos de fé, o segredo processual, penas como o degredo e o confisco de bens, para
Bartolomé Benassar, explicam muito melhor o poderio e a estabilidade dos tribunais inquisitoriais durante
toda a Idade Moderna, em comparação com o papel, em si, das penas de morte ou das torturas. Para ele,
formaram, no seu conjunto, uma “pedagogia do medo” bastante eficiente, que reproduziu e enraizou, no
campo simbólico, grande temor e reverência a esses tribunais. BENASSAR, Bartolomé. L’Inquisition
espagnole. Op. Cit. p.105-141. A relação entre a progressiva supressão desses procedimentos, em
Portugal, e uma dessacralização do Santo Ofício português ao longo da segunda metade do Setecentos, é
um tema que explorei no segundo capítulo da minha dissertação de mestrado. ROCHA, Igor Tadeu
Camilo. Libertinos, tolerância religiosa e inquisição sob o Reformismo ilustrado luso-brasileiro:
formulações, difusão e representações (1756-1807). [Dissertação-mestrado em História]. Belo Horizonte:
Programa de pós-graduação em História UFMG/Universidade Federal de Minas Gerais, 2015. p.64-134.
338
impressão de uma reação conservadora ou de “faltar algo” no reformismo anterior é um
traço importante das visões de mundo desses libertinos e constitui uma parte de sua
disputa pelo religioso. Mais ainda, confere certa coloração política às suas ações e ao
modo como eram percebidas pelas autoridades. Esses pontos serão desenvolvidos nos
próximos tópicos.
4.2 “E lá disputavam com muita liberdade sobre pontos de religião”:
sociabilidades libertinas no mundo luso-brasileiro
Os libertinos luso-brasileiros do final do Setecentos eram marcados pela
liberdade de falar em matérias sensíveis, tais como as relacionadas aos dogmas e à
doutrina católicos, e por suas sociabilidades. Seus núcleos de sociabilidade se
multiplicaram, sobretudo, a partir da década de 1770. É possível relacionar sua difusão
com algumas das políticas do contexto do reformismo, tocantes às diversas instituições.
Um dos locais mais profícuos para se investigar tais relações é a Universidade de
Coimbra, cuja reforma em 1772, ocorrida no âmbito da Ilustração católica portuguesa,
tornou-se um marco importante. Essa importância diz respeito tanto ao projeto de
reforma – isto é, ao campo institucional em si mesmo – e ao das mentalidades, constante
na agenda reformista do pombalismo. É um exemplo um núcleo de pessoas que foram
acusadas de libertinagem em fins dos anos 1770. Esse núcleo foi revelado por denúncia
de José Maria da Fonseca, estudante do terceiro ano de leis da Universidade de
Coimbra, ao se apresentar em mesa para confessar culpas em agosto de 1779. Ele
começou seu relato com as seguintes palavras: "Primeiramente, exporei a que pertence à
minha parte e, depois, o que me lembrar de outras pessoas” (grifos meus). José Maria
da Fonseca disse, na denúncia, que:
A origem da minha desgraça esteve no 1º ano da Universidade: então
é que meus ouvidos se acostumaram a familiarizar com questões e
disputas, que não obstante o especioso véu da Filosofia com que se
cobrem, a experiência me mostra o quanto são às vezes perigosas. Ao
princípio, gostava eu sumamente de as tratar com o único fim de
rebater as razões que se produzissem em contrário à minha Religião;
mas logo depois, eu senti-me pouco a pouco ir entrando numa tibieza
sobre aquelas mesmas coisas que pretendia defender e, ultimamente,
cheguei a duvidar: a lição de uma parte do 'Rosso' [Rousseau] me
ministrou novos motivos. Porém não foram tais que me precipitassem
na obstinação. A Misericórdia de Deus não permitiu que eu desse mais
um passo adiante para a incredulidade: o miserável estado de dúvida
339
foi o que me atormentou por todo aquele tempo. Neste estado é que a
minha alma, ansiosa por saber a Verdade, não cessava de meditar
todos os instantes que tinha livres, até que, vindo me às mãos umas
cartas de uma mãe para um filho em francês, cujo autor não sei, o
socorro das suas doutíssimas razões, vi prostradas as dos ímpios, e
cheguei cabalmente a certificar-me da sua falsidade e soberba. Esta foi
a origem, progresso e fim dos meus erros. Mas como eles não pararam
em mim, só porque com outros sujeitos, algumas vezes os
comuniquei; por isso, esses mesmos agora pretendo declarar e, como
em cada um deles, acho diversas circunstâncias que os façam mais ou
menos cúmplices de cada um por mais clareza, falarei
individualmente.93
Disputas de religião, com liberdade de argumentos, leitura de Rousseau e
debates com outros estudantes aparecem na denúncia e apresentação do estudante, que
atribui a esse tipo de sociabilidade, no qual viveu a partir de seu primeiro ano em
Coimbra, o estado em que se encontrou de dúvidas em relação à fé católica. Ele
prosseguiu seu relato dando nomes e atribuindo-lhes comportamentos e proposições
diversas, que apresentam indícios importantes da sociabilidade dos acusados de
libertinagem. Fonseca denunciou outro estudante chamado Diogo José de Morais
Calado, formado em leis àquela altura, sendo este, declarava: “um daqueles com quem
eu creio que”, por algumas vezes, “falei em pontos de Religião: não me pode lembrar as
matérias, nem o número certo das ocasiões, o certo é que as matérias seriam
pertencentes ao Deísmo”. Ainda denunciou o irmão de Diogo de Morais Calado,
Lourenço Justiniano: com quem “menos comunicação teve ainda comigo e, à exceção
de se achar ele presente quando eu andava lendo o Rosso [sic] e o de ouvir algumas
questões sobre as suas razões, ainda alguma coisa poderia dizer, que não me lembra”.
Também denunciou outro estudante, Francisco José se Almeida, do 3º ano de
Matemática. Segundo o denunciante: ele “foi que, ao princípio e, ainda depois, se
alargou comigo mais ocasiões sobre esta matéria; mas para o fim agora já grande parte
do ano, eu o vi diferente em opinião, porque, indo eu visitá-lo uma noite, o achei
sumamente triste e pensativo”. Ao ser perguntado sobre: “a causa, ele me respondeu
certificando-me do que eu muito presumia; então lhe fiz eu grandes instâncias para
colher se seriam disfarces fingidos, mas, por fim, acertei em ser realidade e ter-lhe
deveras Deus tocado o seu coração”. Antônio Caetano, Nuno de Freitas e Vicente Júlio
foram mais denunciados, que segundo Fonseca “assistiram também muitas vezes e
presenciaram às ditas conversas com diligência”. O último, Vicente Júlio, segundo o
93
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. 130º CADERNO DO PROMOTOR. Op.Cit. Fl.
137
340
denunciante, “às vezes lia em alguns livros proibidos [e] mostrava a todos os instantes
contrariedades consigo mesmo e, inconstantíssimo nos seus pensamentos, negava hoje o
que amanhã havia de defender”. Disse que “o mesmo Francisco José de Almeida
afirmo[u] ouvir-lhe dizer sinceramente que, de tantos argumentos que encontrara contra
a nossa religião, nenhum só o satisfizera”.94 Em trecho final de sua primeira
apresentação, retomando alguns dos nomes acima citados, uns como verdadeiros
adeptos dos sistemas que considerava heréticos e libertinos, outros, que apenas
acompanhavam as ditas disputas. E quanto a si, José Maria da Fonseca diz:
Enquanto a mim, nunca me poupei a estes miseráveis divertimentos e,
até dizendo, com segurança, o que apenas me era duvidoso, só
desejava agradar aos ouvintes: muitas vezes, a consciência me
advertia e, então, eu ficava por um pouco pensativo e triste; mas logo
um capricho louco, um vão respeito, sufocava a minha razão. Esta foi
a guerra em que sempre andei depois; que a verdade eterna não foi a
minha diretora: mas, graças lhe sejam dadas, ela torna outra vez a
tomar posse do meu coração: a paz do Senhor vem outra vez
habilitado. Este Deus prometeu perdoar àqueles que se arrependem: a
mim pesa-me de todo o tempo que perdi força dele: a minha
confissão, ele, que vê desde a eternidade o meu interior, conhece que é
sincera, conhece que não tem por objeto enganar e conhece que,
enquanto a sua graça me assistir, não será o meu coração mais presa
da incredulidade e que nunca cessará de repetir as devidas ações de
graças pelo seu livramento.95
Tal núcleo de acusados de libertinagem é o mesmo que aparece no processo
contra o abade Luiz Mourão. Em processo datado de 1779, são elencadas algumas
culpas que lhe foram atribuídas, constantes noutros processos, referentes a estudantes
denunciados na apresentação de José Maria da Fonseca, na Inquisição de Coimbra.
Mourão, o abade, era, assim como Fonseca, estudante do terceiro ano de leis na
Universidade de Coimbra, mas, no documento, aparece que ele também era formado em
teologia em Toulouse, França. Nesse documento, aparecem culpas contra Mourão que
constam nos processos contra vários outros estudantes, alguns já mencionados acima:
Francisco José de Almeida, estudante do terceiro ano de Matemática; Diogo José de
Morais Calado, bacharel em leis; Antônio Caetano de Freitas, estudante do segundo ano
jurídico; e Vicente Júlio Fernandes, estudante do primeiro ano do mesmo curso jurídico;
além de ser citado um número considerável de estudantes, sem que sejam mencionados
seus respectivos processos, tais como Francisco de Melo Franco, Manoel Joaquim
Henriques de Paiva, Antônio de Morais e Silva, dentre outros. Nessas culpas, consta que
94
95
Ibidem, Fls. 137-143.
Ibidem, Fl.137.
341
tal núcleo em torno do abade Mourão, em Coimbra e na França, tinha o costume de
comer carne em dias de preceito sem qualquer constrangimento, assim como disputar
“argumentos de hereges” – termo que aparece no documento – com muita liberdade,
criticando inclusive os procedimentos do Santo Ofício “por sua severidade”. Os estilos
da Inquisição, segundo as culpas contra Mourão que estiveram no processo de Diogo de
Morais Calado, teriam sido mais fortemente criticados quando Mourão soube das
apresentações de seus colegas, despertando-lhe preocupação. A isso, ele acrescentou
que tanto ele como seu pai e toda a sua família teriam partido para a França por medo
dos procedimentos inquisitoriais. Declarou que de lá vieram “chamados por insinuação
do Marquês de Pombal”, e que seu pai “receava [não] ser provido como pretendia em
algum benefício da Patriarcal” por ter “nota de judeu”.96 Também consta que os
estudantes denunciados liam e discutiam avidamente o Emílio (1762), de Rousseau,
além de obras do Marquês D’Argens e de Montesquieu, dentre outros livros defesos.97
Eles manifestarem dúvidas quanto a diversas matérias a respeito da fé católica – embora
na denúncia se reforce que não exprimissem “sentimentos contrários a ela” –, somadas a
críticas à Inquisição e a seus procedimentos.98
O núcleo do abade Mourão era o mesmo do notório processo do gramático e
dicionarista Antônio de Morais e Silva, denunciado pela primeira vez em 1779, por
herético, maçom, libertino e apóstata. Morais Silva apresentou-se posteriormente ao
Santo Ofício, em 1785 e, depois, sofreu mais um processo, que durou de 1806 a 1810.
Ele fora denunciado pelo estudante Francisco Cândido Chaves, que disse ao inquisidor
Manoel Antônio Ribeiro que conheceu Morais e Silva numa república de estudantes,
brasileiros e portugueses, localizada na Travessa de Sub-Ripas, em Coimbra. O futuro
dicionarista, que à época era estudante do 5º ano de leis, e vários outros estudantes –
dentre os quais, reforço, vários dos denunciados no processo do abade Mourão, como
Francisco de Melo Franco e diversos outros, a serem analisados mais à frente – comiam
livremente carne nos dias de preceito, liam e debatiam obras de Voltaire e Rousseau,
referindo-se a este último por “profundíssimo filósofo”. Consta que era comum veremse Morais e Silva e os demais estudantes discutirem sobre proposições, tais como que a
alma morreria quando se morre o corpo, que diversos pontos das Escrituras existiam tão
somente para controlar socialmente os povos, sendo nada mais que “fábulas” e outras
96
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Processo de Luís Mourão, proc. 5636. Fl. 3v.
Ibidem, Fls. 1 e 5-6v.
98
Ibidem, Fls. 3 e 5-5v.
97
342
passagens bíblicas com fatos pecaminosos. Além disso, criticavam a venda de
indulgências, o clero e a autoridade do Papa, a virgindade de Maria Santíssima, entre
diversas outras proposições. Da mesma forma que aparece no processo do abade
Mourão, havia críticas contra os tribunais do Santo Ofício. Morais e Silva, em uma de
suas apresentações, declarou, por exemplo, que teria dito que a razão da existência dos
tribunais de fé era meramente política, em função de manter os súditos do Reino com
apenas uma religião. Disse ainda que se persuadira de que a Inquisição era contrária às
Escrituras, pois nelas não se orientava que a conversão ao Catolicismo poderia dar-se
pela coerção violenta. Em função disso, Morais e Silva acreditava, segundo declarou em
Mesa, que entendia que cada um deveria seguir a religião que melhor conviesse a seu
entendimento. Ao fim do primeiro processo, antevendo que poderia ser preso, Antônio
de Morais e Silva fugiu para a Inglaterra.99 No segundo, ao se apresentar à Inquisição de
Lisboa, devido à sua defesa da tolerância religiosa e ataques contra a Inquisição, tomado
por maçom, tolerantista, deísta e outras culpas, foi condenado a abjurar de seus
heréticos erros em forma, instrução na fé católica, penitências espirituais, pagamento de
custas, em sentença dada em mesa em 1785.100
Outro núcleo no qual se encontram elementos similares, de estudantes de
Coimbra acusados de libertinagem, encontra-se no documento referente à confissão do
estudante Inácio José Aprígio da Fonseca. Este, natural de Pernambuco, então com
dezenove anos e estudante do terceiro ano jurídico na dita universidade, fora acusado de
libertinagem juntamente com outro brasileiro, José Bonifácio de Andrada, estudante do
terceiro ano de letras e natural de São Paulo, e mais dois portugueses: Antônio de
Carvalho, estudante do segundo ano de medicina e natural da Ilha da Madeira, e José
Álvaro Coelho Branco de Souza Bento, também estudante do terceiro ano de letras e
natural de Peniche. Na confissão de Aprígio da Fonseca, ele detalha que viu e participou
de várias conversas, sobretudo envolvendo José Bonifácio de Andrada e Antônio de
Carvalho, além de “ter praticado algumas libertinagens”, conversando-se livremente em
pontos de religião. O confitente dizia que, “por lhes agradar, mostrava aprovar, se bem
que nunca” persuadir, “do que eles diziam”, referindo-se a dizerem-se contrários ao “1º
mistério da Santíssima Trindade”, que diziam ser “falso, pois repugnava à razão e à
noção de Divindade”. Também declarou que os estudantes negavam a imortalidade da
99
BAIÃO, Antônio. Episódios dramáticos da Inquisição Portuguesa. Volume II. Op. Cit. p. 102-126;
BARATA, Alexandre Mansur. Sociabilidade Ilustrada & Independência no Brasil. Op. Cit. p. 60-63.
100
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Processo de Antônio de Morais, proc. 2015.
343
alma, além de criticarem “o monaquismo, metendo-o a ridículo”, dizendo “ser danoso à
sociedade e contrário aos fins da criação”. Acrescenta que negavam a divindade de
Jesus Cristo, pois diziam que “era impossível a união de duas naturezas”, humana e
divina, “n’uma só pessoa”. Em consequência disso, continua Aprígio da Fonseca,
negavam-se a ouvir missa em dias de preceito, refutavam a virgindade de Maria
Santíssima e furtavam-se, ainda, a confessar seus pecados. Iam mais longe, segundo a
confissão e denúncia, declarando que não havia pecados.101
Em carta assinada pelo notário do Santo Ofício Clemente José da Cunha, datada
de 28 de janeiro de 1780, apresentam-se detalhes da confissão de João da Costa e Sousa,
na qual há elementos contra Antônio Soares de Mendonça e Antônio Manuel Félix,
estudantes de Coimbra. Este último, saliente-se, foi citado por José Maria da Fonseca,
denunciante de vários estudantes da Universidade de Coimbra por libertinagem. Ele
disse que se encontrou com José Manoel Félix em suas férias em Lisboa, a pedido de
Francisco José de Almeida, o qual lhe teria enviado quatro cartas pedindo que
encontrasse com Félix na Corte. Nas cartas, pedia-lhe para que, a Felix, “dissesse de sua
parte, que, [se] algumas vezes, em moral, ou religião, tivessem conversado, ele
entendesse que era só como filósofo”: ou seja, ele registrou que as proposições que
tinham em suas conversas não passavam de discussões filosóficas, que não implicariam
a aceitação interna por parte dos estudantes. Fonseca disse que, ao procurá-lo e ter-lhe
dito o que Francisco José de Almeida pediu, Félix respondeu “que sabia bem os seus
pensamentos” e, nas conversas posteriores entre os dois, o denunciante disse que
sempre fugiu “de averiguar seus equívocos e suas questões, mudando logo para outras
coisas a conversa, o mais depressa que podia”.102 Voltando à carta, nela foi repassada à
Inquisição de Lisboa a acusação de deísmo contra Antônio Soares de Mendonça e
Antônio Manuel Félix, pela confissão mencionada supra, do estudante que se
encontrava nos cárceres inquisitoriais, preso por culpas de heresia.103
Cabe destaque, ainda, um documento de 1779, no qual se elencam algumas
culpas do estudante Manuel Galvão, brasileiro natural da Bahia e formado em Filosofia
na Universidade de Coimbra. Muitos dos nomes que aparecem no documento também
se encontram nos anteriormente analisados. Por exemplo, no documento, aparece uma
101
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Confissão de Inácio José Aprígio da Fonseca,
proc. 13556.
102
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. 130º CADERNO DO PROMOTOR. Op.Cit.
Fl. 137v-138.
103
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Correspondência de Antônio Manuel Félix,
proc. 13801.
344
fala do já mencionado Diogo de Morais Calado sobre Antônio de Morais e Silva. O
primeiro se encontrava preso, por heresia, nos cárceres inquisitoriais e apresentou-se em
mesa. Disse que Morais e Silva, antes de sua ida à Inglaterra por receio de ser preso
pelo Santo Ofício, dissera-lhe que outro motivo que o levara a sair de Portugal era o de
não correr o risco de ser obrigado a denunciar o colega de universidade Joaquim José da
Silva, que “queria fazer Medicina nesta Universidade, e o estudava para esse fim nela
Matemática em terceiro ano”, e era também “natural da América”.104 Disse ainda que
fora companheiro de Morais e Silva em Coimbra, “assistiram no Terreiro da Esperança,
junto à Couraça dos Apóstolos, e que foi com outros condiscípulos” nomeado para irem
fazer descobertas na América “ou como Matemático ou como Filósofo”. Com ele,
foram: um aluno da Universidade, formado em Medicina, ao qual se referia como
“Mello” (tudo indica tratar-se de Francisco de Melo Franco) e Manuel Galvão, entre
outros.105 Na fala de Francisco José de Almeida, também preso por heresia, a essa
altura, Manuel Galvão era descrito como “loquaz” leitor do Sistema da Natureza, ou
Système de la nature ou des loix du monde physique & du monde moral (1770),
publicado pelo Barão D’Holbach, em francês, sob o pseudônimo de Mirabeau. Na
mesma fala, o apresentado diz que Galvão tivera com os demais estudantes, entre os
quais nomeia novamente Francisco de Melo Franco, além de outros, tais como
Lourenço Justiniano e Joaquim Cavalcante, “comunicação” sobre “sobre pontos de
religião”. Nessa discussão, com Melo Franco e Galvão, Almeida “disputava sobre o
Materialismo”. Também contara que Morais e Silva teria comunicado a todo o núcleo
de estudantes que se ausentaria do Reino por receio de ser preso pelo Santo Ofício.106
Além do mais, deu detalhes da amizade de Galvão com João Laureano, Diogo José de
Morais Calado e Lourenço Justiniano – presos pela Inquisição de Coimbra –,que
frequentavam, em quase todas as noites, a casa do dito Galvão, então já formado em
Filosofia. Em tais encontros, comiam carne em dias de preceito e disputavam em
matérias de religião. Galvão, por exemplo, defendera que a alma “não era somente
mortal, mas material”, em complemento a falas de colegas contra a imortalidade da
alma. Manuel Galvão, ainda segundo a denúncia, dissera que tais asserções que
defendia era de homens “de grande juízo”.107
104
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Correspondência de Antônio Manuel Félix,
proc. 13801. Processo de Manuel Galvão, proc. 13367. Fl.1
105
Ibidem, Fl. 1v.
106
Ibidem Fls. 4v-6.
107
Ibidem, Fls. 6-6v.
345
Há denúncias contra estudantes da Universidade de Coimbra ainda no início do
século XIX, relacionadas à libertinagem. É o caso da que foi feita contra o estudante
Cipriano da Costa, que tinha 20 anos de idade à data em que foi denunciado. O sacristão
da capela de Nossa Senhora da Graça, em Lisboa, compareceu diante do inquisidor
Francisco Freire de Melo, em agosto de 1803, para dizer que o estudante “lê os livros de
Voltaire e de outros hereges, o que sabia por ele mesmo lhe ter dito, e dá mostras de
acreditar nas falsas doutrinas deles”. Porém, o estudante “não quisera declarar-se com
ele, denunciante, com medo de ser denunciado”, conclui.108
Os documentos analisados anteriormente mostram que, entre estudantes da
Universidade de Coimbra entre a década de 1770 e princípio do século XIX, existiram
núcleos de leitores de obras do Barão D’Holbach, de Voltaire e de Rousseau. Tais
estudantes discutiam sobre a materialidade da alma, a natureza divina ou humana de
Cristo, criticavam a Inquisição e defendiam a tolerância religiosa. Quanto a este último
ponto, usavam argumentos que remetiam à cultura das Luzes e à tradição católica. –.
Aqui, mostra-se haver, de maneira bem documentada, sociabilidades um tanto amplas e
complexas entre acusados de libertinagem, na universidade coimbrã. Ao se deparar com
essas verdadeiras redes de estudantes tomadas por libertinos, envolvendo brasileiros e
portugueses, pode-se ter o ímpeto de associá-la às reformas pelas quais a mesma
universidade passou em 1772, dentro de um conjunto maior e anterior de reformas
referentes ao pombalismo. Afinal, entendendo-se o conjunto de alterações nos estatutos
e nos métodos de ensino, e todo um conjunto de mudanças que afinaram a Universidade
de Coimbra com um projeto modernizador e secularizador pombalino, coevo a
desenvolvimentos bem marcantes do Iluminismo católico em Portugal, seria possível
pensar-se que a multiplicação de libertinos, cuja crítica ao status quo católico
ultrapassava em muito as balizas do dirigismo cultural pombalino, fosse, então, uma
espécie de efeito colateral.
De fato, as reformas que atingiram a Universidade de Coimbra fizeram parte de
um conjunto maior de mudanças, que, segundo Keneth Maxwell, visavam secularizar a
educação em Portugal, trazendo-a fortemente para o controle da Coroa.109 Antônio Leite
observa que esse processo remonta à expulsão dos jesuítas, em 1759, e à posterior
extinção das escolas ligadas aos inacianos. Estes últimos, inicialmente, foram
108
ANTT.Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Denúncia contra Cipriano da Costa, proc.
13539.
109
MAXWEL, Kenneth. Marquês de Pombal. Op. Cit. p. 104.
346
substituídos pelos oratorianos, mas também tiveram seus colégios suprimidos entre
1768 e 1769, acusados de inconfidência pelo fato de a ordem ser refratária às “doutrinas
jansenistas, regalistas e antipapais que o Marquês pretendia impor”. Esse conflito
culminou com quatro oratorianos, “de mais evidência”, sendo desterrados de Lisboa,
entre os quais o padre Teodoro de Almeida.110 Cobrir o espaço na educação deixado
pela proibição das ordens em ensinar se tornou uma prioridade. Houve, num primeiro
momento, uma reforma visando contornar esse problema e, num segundo, outra, que
envolveu a Real Mesa Censória, criada em 1768, a Universidade de Coimbra e os
estudos menores. Segundo Francisco Falcon, a Igreja católica, sobretudo setores mais
ligados à Sé romana e contrários às tendências regalistas do pombalismo, “tinha em
suas mãos a educação em todos os níveis, da família ao nível das representações e
orientação e a cultura”,111 mas teve, no curso do reformismo, sua posição posta em
xeque. Pensando as reformas de Coimbra dentro de um processo secularizador mais
amplo, Maria Eduarda Cruzeiro sintetiza:
A reforma (da Universidade de Coimbra, de 1772) não pode deixar de
ser vista como uma peça, capital aliás, de um conjunto de medidas
pedagógicas, fazendo parte, por sua vez, de uma ação global que,
marcada por uma forma particular de reinterpretação das orientações
iluministas então correntes na Europa, procurava mudar a face da
realidade nacional, dentro dos limites que o regime monárquico
absoluto impunha, utilizando coerentemente os meios que este
proporcionava e favorecia e, fechando o círculo, buscando ainda
produzir, do mesmo passo, a sua consolidação.112
Dessa maneira, indica a autora, sob o pombalismo, existiu uma articulação entre
as reformas do ensino – no geral, e da Universidade de Coimbra, em particular –e um
"projeto iluminista de secularização", que atingia a todas as instâncias da sociedade,
criando uma "competência privilegiada do Estado" quanto à educação, em detrimento
do clero e das ordens religiosas, sobretudo os inacianos.113 É fundamental lembrar que
tal projeto não passava por uma supressão do religioso, mas por sua reformulação
segundo uma linguagem iluminista católica, regalista e conformada com um
Catolicismo “racionalizado”, segundo valores das Luzes e bem calcado na defesa do
Absolutismo, da religião, de uma ordem estamental de sociedade, ainda que
modernizados. Outro ponto a se levar em conta é que Coimbra continuou sob o jugo
110
LEITE, Antônio. Pombal e o Ensino secundário. Brotéria: cultura e informação. No bicentenário do
Marquês de Pombal, (I). Lisboa. Vol. 114. Nº 5-6, Maio-Junho, p. 590-606. 1982. p. 598-599.
111
FALCON, Francisco Calazans. A Época pombalina. Op. Cit. p. 423-424.
112
CRUZEIRO, Maria Eduarda. A Reforma Pombalina na História da Universidade. Análise Social, [s.
l.], v. 24, n. XXIV-100, p. 165/210, 1988. p. 173.
113
Ibidem, p. 174.
347
eclesiástico, embora não o inaciano, associado ao atraso e objeto de duras críticas por
parte das publicações que deram sustentação histórica e teórica à Reforma de 1772.114
Quanto aos aspectos das reformas na Universidade, Maria Beatriz Nizza da Silva
explica que se objetivou, sobretudo, aumentar o número de médicos, matemáticos e
naturalistas. “Eram estas três Faculdades que concentraram as maiores inovações na
Universidade reformada”, respectivamente, Medicina, Matemática e Filosofia – esta,
englobando ciências naturais. Continua a autora dizendo que, no tocante à Medicina,
considerou-se que muitos dos males do seu ensino na Universidade tinham resultado da
tradicional separação entre Medicina e Cirurgia, divisão que deixava as elucubrações
teóricas para os médicos e a parte prática, para os cirurgiões. A respeito da Matemática,
entendia-se que, além de habituar o entendimento a “pensar sólida e metodicamente em
quaisquer outras matérias”, ajudava no desenvolvimento de outras “artes úteis ao
Estado”, como “a cartografia, operações práticas da campanha da Marinha, a
Arquitetura naval, civil e militar; as máquinas, artifícios e aparelhos que ajudam a
fraqueza do homem”. Por fim, referindo-se à Filosofia, a reforma pombalina alterou
profundamente a própria concepção dela, considerando a Filosofia Natural tão ou mais
importante que a tradicional Filosofia Racional e Moral. Demonstra-se essa valorização
da Filosofia Natural com várias iniciativas: a criação do Gabinete de História Natural,
que recolhia produtos dos reinos vegetal, animal e mineral, que constituíram um grande
acervo de animais, plantas e minerais na Universidade de Coimbra; o Jardim Botânico,
“para a cultura das plantas úteis às Artes em geral e em particular à Medicina”; o
Gabinete de Máquinas, “para se fazerem as experiências de Física”; e, por último, o
Laboratório Químico, para “as preparações destinadas, sobretudo, aos estudos da
Medicina”.115 Maria Eduarda Cruzeiro entende que tal primazia das ciências naturais e
exatas, tidas como foco principal das reformas, valia-se do entendimento segundo o
qual elas seriam fundamentais para se superar um atraso percebido em Portugal e suas
colônias, em relação às demais nações da Europa Essa orientação valia-se da
“concepção confiante sobre o papel das ciências”, no Iluminismo: “as exatas e naturais,
as da observação e da experiência, sobretudo, ainda que não exclusivamente –, na
felicidade dos povos e engrandecimento das nações”.116 De toda maneira, essas ciências
114
Por exemplo, o Compêndio, publicado pela Junta de Providência Literária, em 1771, ou o Verdadeiro
Método, de Verney, ambos analisados no Capítulo 2 desta tese.
115
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. A Cultura Luso-Brasileira: Da reforma da Universidade à
independência do Brasil. Lisboa: Editorial Estampa, 1999. p.17-18.
116
CRUZEIRO, Maria Eduarda. A Reforma Pombalina na História da Universidade. Op. Cit. p. 188.
348
desenvolver-se-iam submetidas “a servir às razões do poder”, vindo a encontrar seu
“controle, externo e interno, na existência de Deus ou no serviço do rei”, como
estabeleciam os Estatutos e demais documentos da referida reforma, bastante
comprometidos com o dirigismo cultural pombalino.117
Sob o reinado de d. Maria I, que abrange maior parte das fontes analisadas
acima, comumente chamado de “Viradeira” – termo que indica ter havido, após a queda
do Marquês de Pombal, uma virada conservadora e um consequente “retorno” de
Portugal a um estado anterior a d. José I –, não houve, em termos teóricos e práticos,
grandes rupturas com o pombalismo, embora ele tenha constituído uma reação contra
ele. Como explica Luiz Carlos Villalta, o governo mariano pautou-se, em linhas gerais,
pela continuidade de princípios e nomes, pela inovação e pela reparação, em relação ao
anterior. No tocante à Universidade de Coimbra, houve um retorno de conservadores à
sua administração, não implicando, todavia, o impedimento da continuidade das
reformas iniciadas nas décadas anteriores. De fato, “a gestão mariana e a regência
joanina”, entre 1772, informalmente, formalizada em 1799 e encerrada em 1816, com o
falecimento da rainha “na Universidade, nem asfixiaram o espírito reformista, nem
selaram supostas vitórias definitivas dos refratários ao cientificismo e à modernização
do Reino”. Isso não implicou, todavia, “livrá-la do controle e das violências que
sufocavam a disseminação de ideias e de contestação” mais radical à ordem.118 Maria
Eduarda Cruzeiro admite que, paralelamente à secularização e à modernização da
Universidade, houve a permanência e a continuidade tanto de ritualismos do Antigo
Regime, como da vigilância inquisitorial e dos órgãos de censura no sentido de se
limitar essa mesma modernização ao serviço da Coroa e Igreja – esta última submetida à
própria Coroa. Entende também que isso não impediu, por exemplo, a consolidação de
substantivas reformas tocantes ao curso de Leis e ao próprio pensamento jurídico
português, afinadas com debates das Luzes, de maneira relativamente contínua entre o
pombalismo e o reinado mariano.119
Isto posto, não é de se estranhar que, numa documentação coeva aos processos,
esteja presente uma preocupação a respeito da liberdade, tanto de debates e de leituras,
quanto de trato com moral e com a religião, por parte dos alunos da Universidade
reformada. É isso o que se nota, por exemplo, no início do reinado de d. Maria I,
117
Ibidem, p. 189.
VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do livro no mundo luso-brasileiro sob as Luzes. Op. Cit. p. 142 e 147.
119
CRUZEIRO, Maria Eduarda. A Reforma Pombalina na História da Universidade. Op. Cit. p. 202-206
e p.209.
118
349
quando d. Francisco de Lemos, reitor da Universidade de Coimbra, enviou a Relação do
Estado da Universidade de Coimbra de 1772 a 1777. Nessa Relação, veem-se elogios
relacionados às reformas no ensino bastante afinados com o vocabulário da Ilustração
católica portuguesa: por exemplo, observam-se claramente, de um lado, elogios aos
métodos, ao ensino de ciências e aos saberes “úteis à república”, entre outros pontos, e,
de outro, sutis elogios à política regalista pombalina e críticas a seus detratores, além do
tom antijesuítico. Porém, o documento contém um tópico dedicado ao “que pertence aos
Costumes e doutrina dos estudantes”. Lemos começa dizendo que as “Universidades
são escolas não só de Letras, mas também de Virtudes. Por isso não se deve haver nelas
menos cuidado em ilustrar o Espírito dos Estudantes” pelas ciências, mas também
“formar seus Corações com a prática das Virtudes”. Sem essas duas pedras angulares, a
formação científica e a de boas virtudes, “é claro que seria arruinar a Educação
Nacional”, que “deve merecer a primeira atenção e vigilância dos Soberanos”, pois esta
educação é “princípio e origem da felicidade Pública” dos Estados. 120 Tais virtudes,
continuando a Relação, foram muito mal cultivadas durante a primazia jesuítica na
Universidade,121 tendo seu curso corrigido após a reforma de 1772. Todavia, mesmo
depois disso, Lemos afirma que problemas permaneceram existindo. Segundo o reitor, a
Relação não podia “deixar de refletir sobre a grande dificuldade que há de guardar-se
uma disciplina exata”, a respeito tanto dos costumes e moral, quanto de aspectos
doutrinários dos estudantes da universidade coimbrã. Tudo porque, continua, “sabe-se
muito bem, que os estudantes não vivem em Colégios”, isto é, internatos, “mas estão
dispersos pela cidade em casas particulares, que alugam”. E, por isso, “não se podem
haver cautelas humanas, que segurem inteiro depósito dos costumes da Mocidade”. E
depois de sugerir, para contornar tal problema, a instalação dos ditos “colégios”,
acrescenta que, naquilo “que pertence à Doutrina, consta-me também que são acusados
os estudantes da Nova Reforma”, isto é, de entrada posterior a 1772, “de pensarem
livremente em pontos de Religião”. Essa constatação acontece devido “às declamações
vagas que têm feito nos Púlpitos alguns Pregadores incautos e pouco advertidos”,
espalhando sobre esse ponto o que d. Francisco de Lemos chamou de “falsos rumores”,
sobre esses novos estudantes, por uma parte do clero que se opunha “à torrente de todas
as novidades, que segundo dizem se espalham e se ensinam na Universidade” de
120
LEMOS, Francisco de, d. Relação geral do estado da Universidade (1777). Coimbra: por ordem da
Universidade de Coimbra. II Centenário da Reforma Pombalina, 1980. p. 198.
121
Ibidem, p.198-204.
350
Coimbra.122 Em suma, o reitor fazia uma sutil defesa dos estudantes que eram mal
reputados pelo baixo clero, com suas falas conservadoras e opostas às “novidades do
século”, falas segundo as quais a Universidade ocupava o lugar de centro irradiador que
pervertia os jovens.
Algumas informações contidas na Relação convergem com alguns aspectos
presentes na documentação inquisitorial, no que diz respeito aos estudantes acusados de
libertinagem, a partir da década de 1770. Primeiramente, certa difusão da ideia de que,
na Universidade, aos estudantes ensinavam-se “novidades”, ou seja, ideias heterodoxas.
Luís Antônio de Oliveira Ramos, ao analisar o mesmo documento, trata-o como um
indício significativo de uma reação antipombalina, após a queda de Sebastião José de
Carvalho e Melo, por parte de setores reacionários da clerezia, afinados com ideias
ultramontanas, contrárias ao regalismo e favoráveis ao papado.123 Retomo este ponto
mais à frente. Além disso, os estudantes hospedavam-se em casas que alugavam em
Coimbra e tinham lugares para se reunir, o que era entendido como um problema sério
de vigilância da disciplina – moral e doutrinal. Esse quadro assemelha-se bastante ao
cenário descrito na documentação do Santo Ofício referente aos estudantes. Além disso,
observando que os processos de estudantes coimbrãos envolvem, na sua maioria, alunos
de leis e de ciências naturais, e, ainda, considerando-se as próprias sociabilidades e
trajetórias documentadas pela Inquisição de Portugal, é possível se inferir que a crítica
religiosa que faziam esteve afinada com o pensamento das Luzes e com uma
efervescência cultural e intelectual que marcava uma Universidade em processo de
secularização. Essa efervecência, também, se fazia ver noutros ambientes de
sociabilidade nos quais os estudantes frequentavam e se encontravam, e algumas vezes
saiam da própria Universidade e dos seus entornos. Antes de desenvolver mais
amplamente esse ponto, é fundamental destacar que as sociabilidades dos libertinos se
faziam ver e despertavam atenção das autoridades régias e inquisitoriais em vários
outros lugares. Diante disso, é necessário explorar alguns elementos distintos na cultura
das Luzes, que se fazem ver nos estudantes libertinos de Coimbra e que possuem
algumas particularidades, quando observados noutros lugares de sociabilidade.
Um primeiro grupo que salta aos olhos são os acusados de libertinagem que
estavam em conventos e eram eclesiásticos, seculares e regulares. Os comportamentos
heterodoxos dos acusados de libertinagem pertencentes ao clero ou de formação
122
123
Ibidem, p. 210-211.
RAMOS, Luís A. de Oliveira. Sobre os ilustrados da academia de Coimbra. Op. Cit. p. 315.
351
eclesiástica possuem similaridades com os diversos analisados entre os estudantes da
Universidade de Coimbra – muitos até coincidem entre um meio e outro –, com
algumas particularidades que devem, aqui, ser marcadas. No processo movido contra o
frei Henrique de Jesus Maria – sacerdote que, à época do seu processo por libertinagem,
proposições e solicitação, morava no Convento de Santo Antônio da Convalescença, em
Lisboa, em Benfica –, nota-se liberdade, tanto nas proposições como na leitura de livros
defesos, além de indícios de sociabilidades típicas dos chamados libertinos. Em 27 de
julho de 1792, o frei Henrique de Jesus Maria teve uma denúncia, passada à mesa do
Santo Ofício de Lisboa, pelo comissário João Monteiro Contrim. A denúncia deu início
a um processo que durou até outubro do ano seguinte. Ele foi denunciado por “falar
libertinamente e com grande escândalo, em pontos de nossa Santa Religião”, pelo padre
mestre frei José do Amor Divino, que disse que, uma certa vez, o frei falava com
tamanha liberdade sobre religião, tendo “um seu condiscípulo lhe” dito: “= tu es pior
que Voltaire!”.124O frei era descrito como leitor contumaz de livros proibidos, dentre os
quais se incluíam os de philosophes das Luzes francesas e de teóricos do regalismo.
Além disso, ele era defensor da liberdade de consciência e da tolerância religiosa,
crítico da Inquisição, tendo enorme disposição para confrontos, com outros religiosos,
sobretudo, em termos de argumentos sobre a fé católica.
A respeito das leituras proibidas, o frei Jesus Maria fora denunciado por ser
leitor de Voltaire e, ao final do processo, quando se apresentou para confissão em mesa,
acrescentou à lição do pensador francês, autores que remetem ao regalismo, a saber:
Justinus Febronius, Frederico II, da Prússia (com Cartas) e o pouco conhecido pensador
alemão Johann Friedrich Zöllner.125 O primeiro, como mencionado no Capítulo 2, é o
nome com o qual o escolar de Lovain Nicolaus von Honthein assinou sua principal
obra, De Statu Ecclesiae et legitima potestate Romani Pontificis liber singularis (1763),
com a qual se tornou um dos principais teóricos do regalismo em meados do século
XVIII. A respeito da obra mencionada de Frederico II intitular-se Cartas, é provável
que estivesse se referindo à Oeuvres de philosophe de Sans Souci, publicadas em três
volumes entre 1749 e 1750 – Sanssouci era o nome do palácio de verão que Frederico
havia construído nos arredores de Berlim, entre 1745 e 1747. Essa obra é composta por
um conjunto de poemas – entre os quais figura o Le Palladion, conhecido pelo tom
124
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Processo de Henrique de Jesus Maria, proc.
6239. Fls. 3-3v.
125
Ibidem, Fls. 44v-45.
352
satírico com o qual se refere a figuras do período e à religião cristã – fez parte de um
conjunto maior de publicações que constavam na pastoral do então bispo de Coimbra, d.
Miguel da Nunciação, de 8 de novembro de 1768, na qual se indicavam aos diocesanos
diversos autores que deveriam ser evitados, na sua maioria, franceses. Essa pastoral,
todavia, motivou a prisão do referido religioso por ordem do Conde de Oeiras, por tê-la
considerado como uma usurpação das atribuições que seriam da Real Mesa Censória.126
Quanto ao último autor, Zollner, tratava-se do reformador educacional, clérigo luterano
e francomaçom que, apesar de ter vasta obra, ficou mais conhecido por uma nota, que
consta em artigo seu publicado em 1783, no qual argumentou contra a instituição do
casamento civil. Na referida nota, colocava a pergunta: Was ist Aufklärung?, ou “O que
é o Esclarecimento?”. Tal pergunta foi respondida por Immanuel Kant no próprio
Berlinische Monatsschrift, mesmo periódico no qual Zollner havia publicado seu artigo
sobre o casamento civil e tornou-se notável no pensamento das Luzes. Além disso,
Zollner, motivado por grande interesse na educação formal de adultos, entre 1782 e
1804, publicou uma vasta coleção de pequenos artigos sobre tópicos variados,
objetivando levar discussões sobre “ciências naturais e sociais para uma audiência mais
ampla”.127
Sobre as proposições, o frei Henrique de Jesus Maria foi acusado de declarar
sentir-se “mal da criação dos Tribunais do Santo Ofício, porque era obrigar ao homem a
seguir uma Religião”, o que iria contra a razão. Tal oposição entre a criação da
Inquisição e a razão baseava-se no pressuposto segundo o qual “o homem nasce livre e
dotado de razão e, como esta é boa, já que é dada por Deus, dela podia o homem usar
para escolher aquela Religião que melhor se parecesse” e que, “para isto, devia
experimentar ora uma ora outra”.128 No testemunho do frei José de São Romão,
religioso da Ordem de Santo Antônio dos Capuchos do Convento do Campo de
Santana, consta que Jesus Maria se portaria com grande liberdade ao falar em pontos de
religião, costumando dizer que, para se ter conhecimento se a religião era verdadeira ou
não, ditava a razão para que experimentasse outras, a fim de as comparar com a lei
126
JOHNSON, Martinho, d. (O.S.B.). Dois bispos do século XVIII: D. Miguel da Anunciação, bispo de
Coimbra e D. Frei Manuel da Ressurreição. Revista História -USP. V.51, nº10 (107-125), 1975. p.113 e
109.
127
Johann Friedrich Zöllner (1753-1804). The Dictionary of Eighteenth Century German Philosophers, 3
vols., edited by Manfred Kuehn and Heiner Klemme (London/New York: Continuum, 2010).] Disponível
em: < http://users.manchester.edu/FacStaff/SSNaragon/Kant/bio/FullBio/ZollnerJF.html> . Acessado em
Ago./2018.
128
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Processo de Henrique de Jesus Maria. Op.Cit.
Fl. 4.
353
católica e seguir qual fosse melhor. Quando repreendido, atribuía suas proposições a seu
gênio forte e ríspido, atenuando, assim, seu erro.129 A questão sobre os livros proibidos
volta noutros testemunhos, como o do lente de teologia frei José do Amor Divino, que
cita o religioso denunciado, novamente, como leitor de Voltaire. Entretanto, diz que ele
teria um número ainda maior de obras defesas, não se lembrando quais seriam os seus
autores e títulos.130
O frei Bernardo de Santa Bárbara, por sua vez, disse ter vivido com o frei
denunciado por três anos, sem tê-lo visto confessar-se. Afirmou que o via rezar “a missa
com velocidade de oito a nove minutos”, bem como se opor à religião católica naquilo
que, segundo Henrique de Jesus Maria, “excedia à nossa razão e que não havia razão
natural que as provasse, mas assim a Igreja tinha determinado”.131 Em todas os
testemunhos, aparece como importante elemento o “escândalo”, ou, no caso, a
publicidade com a qual o frade falava de tais matérias com outros religiosos. E na
averiguação da credibilidade das testemunhas contra ele, para o que foram ouvidas,
como era de praxe, outras testemunhas, o frei Simão da Conceição disse que elas eram
todas de “boa vida e bons costumes”. Elas defendiam, porém, “que as doutrinas antigas
são rançosas e que sempre as modernas prevalecem”, ponto que aparece em falas
atribuídas ao próprio Jesus Maria.132 Por fim, o próprio frei Henrique de Jesus Maria
compareceu para se confessar aos 9 de julho de 1793. Declarou ter tido “opiniões que
favorecem a impiedade”, como, por exemplo, crer na “Predestinação absoluta” –
doutrina pertencente ao Calvinismo e com fundamentação teológica na própria obra de
João Calvino –, negar o poder temporal do papa e ler livros proibidos. Entre estes, ele
citou: “As correspondências do 2º Rey de Prússia, algumas obras de Zoller” – que ao
que tudo indica seria Zollner, como dito supra – “e as obras de Justino Febrônio”. Jesus
Maria, ademais, confessou que, “fora da confissão teve conversações ilícitas com uma
pessoa do sexo feminino”, solicitando-a para “pecados desonestos” e, por conseguinte,
agindo de maneira contrária ao voto de castidade dos eclesiásticos, mas não cometendo
a solicitação, crime de alçada inquisitorial.133 No sumário do processo, “vista a pouca
prova, que resulta das testemunhas do sumário junto, contra o delato Fr. Henrique de
Jesus Maria”, e por entender que o acusado de libertino “proferia” as proposições “em
129
Ibidem, Fls. 16-18.
Ibidem, Fls. 9-9v.
131
Ibidem, Fls. 22-23.
132
Ibidem, Fls. 31-31v.
133
Ibidem, Fls. 44v-45.
130
354
forma de argumento e, por assim entender, que por contradizendo-lhe, logo cedia e
conhecia a razão como as testemunhas depõem”, os inquisidores entenderam que “fica a
justiça satisfeita, sendo o delato asperamente repreendido e [obrigado a] assinar termo
de emenda” de seus erros.134
O processo do frei Henrique de Jesus Maria, tomado por libertino que, além das
proposições e leituras de obras defesas, mostrava comportamentos que indicavam
irreverência com a religião e com o clero, tais como recusar-se a pregar sobre as chagas
de são Francisco, alegando que “não queria descer do púlpito e ouvir de alguém que
pregou mentiras”135, ou fazer piadas com religiosos quando faziam procissão, dizendo
que a ela acorriam apenas com “panos de honestidade”136. Além disso, o processo
contém algumas informações importantes à discussão aqui proposta sobre as
sociabilidades características dos libertinos. Há indicativos de que conventos e outros
lugares ligados ao clero regular – cujos membros, em grande parte, tinham formação de
nível superior em Teologia, obtida em seminários diocesanos, conventos e em
universidades, entre estas, frequentemente a Universidade de Coimbra – havia, por
exemplo, circulação e leitura de livros proibidos. Nas proposições, contudo, não se nota
uma mera tradução das leituras. No caso de Jesus Maria, por exemplo, a única relação
mais óbvia entre as proposições e leituras estaria nas críticas ao poder temporal do Papa,
ponto central do febronismo. É importante lembrar que com as reformas pombalinas da
Universidade, no Curso de Cânones, adotou-se o compêndio Instituições Eclesiásticas,
de Justino Febrônio, claramente regalista e afinado com a linha oficial do
pombalismo.137 A obra, que foi condenada pelo Papa Clemente XIII e permaneceu no
Index até, pelo menos, 1766, dava trabalho aos mestres – que, nas aulas, se viam
obrigados a suprimir as explicações de alguns de seus parágrafos –, o Reitor Principal
Mendonça, em 1780, ordenou sua substituição por Instituições de Jurisprudência
Eclesiástica, de Paulus Josephus Riegger. Com isso, o regalismo pombalino cedeu lugar
a um regalismo eclético, sem qualquer marca jansenista.138 Por sua vez, faltam detalhes
que possam permitir, por exemplo, ligar suas críticas à Inquisição e sua defesa da
tolerância e da liberdade religiosas com algum dos demais autores mencionados, ou o
134
Ibidem, Fl. 49.
Ibidem, Fl. 4.
136
Ibidem, Fl. 44.
137
RODRIGUES, Manuel Augusto. Tendências regalistas e episcopalistas nas bibliotecas de Coimbra do
século XVIII. Revista de história das ideias. Vol. 10, p. 319-326, (1988). p. 319-320.
138
PEREIRA, José Esteves. O pensamento político em Portugal no século XVIII: Antônio Ribeiro dos
Santos. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 2005. p. 24.
135
355
mesmo com algum nível de descrença mostrado nas proposições do grada e sua postura
irreverente com o religioso. Além disso, a ênfase que as testemunhas dão ao
“escândalo” com o qual Jesus Maria se portava nos seus argumentos e a indicação de
que alguns dos padres que testemunharam diziam, costumeiramente, que as doutrinas
antigas eram “rançosas” e as novas prevaleciam sempre, podem ser tomadas traços de
um ambiente onde existiam, também, espaços para uma crítica religiosa mais radical,
dialogando mais ou menos com o que se dava em certas publicações das Luzes. Trata-se
de pontos um tanto similares aos que foram observados entre os estudantes da
Universidade de Coimbra.
Indicativo de quadro semelhante se observa também no além-mar. Por exemplo,
o comissário do Santo Ofício, frei José Barreto Coutinho, recebeu denúncias do viceprefeito dos religiosos capuchinhos italianos, o frei Félix Maria de Cremona, contra
outros religiosos do convento do Carmo, no Rio de Janeiro, em agosto de 1778,
conforme consta no Caderno do Promotor. O primeiro denunciado, o dr. Tomé Joaquim
Gonzaga, "faltava pouco para ser herege" e andava com livros proibidos, dizendo que
"tinha faculdade para tê-los e lê-los". O denunciante também afirma ter sido informado
pelo frei Francisco de Santa Tereza que João Ferreira Luvas, familiar do Santo Ofício,
era casado com uma mulata. O frei Félix Maria de Cremona apresentou ainda mais
denúncias. Disse ter ouvido dizer de Francisco da Costa Cordeiro que o padre José da
Mota, do hábito de São Pedro, o tenente Francisco Roberto, irmão do cônego e cura da
Sé, negavam a existência do Inferno e de seus tormentos, dizendo que lá apenas havia a
privação da visão de Deus. Denunciou também que o alferes Vicente Vaz Ferreira
Serigueiro disse que o dr. Tomé da Silva Gonzaga, citado na denúncia anterior, defende
"com argumentos" que não há Inferno e outras proposições.139 Ainda no Rio de Janeiro,
em São Cristóvão, outra denúncia sobre libertinagem envolveu religiosos. No início de
janeiro de 1780, o padre Manoel Ferreira de Oliveira Porto, presbítero secular formado
pela Universidade de Coimbra, natural do Rio de Janeiro, e morador na freguesia de
Nossa Senhora da Candelária, foi denunciado por proposições heréticas. Manoel de
Jesus, da freguesia de São Tiago, mestre sapateiro, administrador regente e enfermeiro
do Real Hospital dos Lázaros, disse que o dito presbítero foi ouvido a "dizer e provar e
teimar" sobre "que não havia Inferno, nem fogo que atormentasse e que não havia os
mais tormentos [de] que nós temos por fé: que tudo isto era uma mentira", pois, segundo
139
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. 130º CADERNO DO PROMOTOR. Op.Cit.
Fls. 24-25.
356
o denunciado, "que o que diz a Sagrada Escritura e os livros, os pregadores e o que se
pinta em pinturas era só para nos atemorizar, mas que não havia tais coisas", e "que o
Inferno só consistia em não ver Deus". O denunciante, que se disse, diante das
proposições, “escandalizado e, tentando contradizer o padre, alumiado pela luz da fé",
retrucou-lhe: "que não fosse patife como os havia havido [sic] até agora e que este
século estava muito claro [e,] portanto a arte libertina tinha apurado tudo". Acrescentou
ainda que o conflito deles a respeito do Inferno tem sido falso, "assim como houveram
(sic) muitas epístolas falsas na primitiva Igreja fazendo distinções destes tempos". Ao
ser repreendido pelo denunciante e por sua mulher, ainda na discussão sobre o Inferno,
o padre teria questionado "quem [...] tinha ido ao Inferno para nos dizer o que lá se
passa [?]". O padre teria dito, ainda segundo a denúncia, diante de testemunhas, que o
Sumo Pontífice era um bispo como os mais e que São Pedro não teve mais poder que os
demais sínodos, e provava isto mostrando trechos dos Evangelhos. Nessas ocasiões,
falava ainda seguindo a mesma argumentação, que o rei era governador somente na
cidade que mora e que era apenas um fidalgo como os mais. Não há indicativos de
andamentos da denúncia.140 O presbítero Manuel Ferreira de Oliveira Porto foi
denunciado, uma segunda vez, pelo padre Antônio Barbosa Leão, sobre a proposição
mencionada referente à autoridade do pontífice.141
Na apresentação do frei João Constantino de Matos, há também a menção a
diversos religiosos, em sua maioria regulares, que viviam segundo “sistemas”
irreligiosos. Ele se apresentou em 13 de janeiro de 1807 diante do inquisidor Luiz
Rabelo de Albergaria, tendo à época 30 anos de idade. Matos, religioso da terceira
ordem de São Francisco, disse que, oito anos antes da apresentação, ele vivia em
Lisboa, no colégio de São Pedro, em função dos seus estudos – estudava, então,
Teologia dogmática. Antes disso, adquiriu uma “íntima amizade” com outro religioso, o
frei Tibúrcio José da Rocha, da mesma ordem que Matos, no colégio do Espírito Santo,
em Évora, tendo-o encontrado no dito colégio de São Pedro. Com Tibúrcio, Matos
declarou conversar sobre vários pontos a respeito da religião, e seu amigo o tentou
persuadir diversas vezes que “a Nossa Santa Religião não é verdadeira”. Matos disse
que, não tendo ele “instrução suficiente para conhecer os sofismas e argumentos” de seu
amigo, convenceu-se da falsidade do Catolicismo, do qual se apartou. Disse que viveu
dessa maneira durante cerca de dois anos, tempo em que progrediu em cargos
140
141
Ibidem, Fl. 286.
Ibidem, Fl. 287.
357
eclesiásticos menores e apenas começou a principiar em “aborrecer a vida desgraçada
em que andava” após esquecer de celebrar o que seria sua primeira missa. Conservou-se
nessa descrença até estar próximo de receber a ordem de presbítero, o que o motivou a
apresentar-se e confessar-se ao Santo Ofício. Depois disso, passou a denunciar vários
outros religiosos do seu convívio, que viviam na mesma descrença, por um espaço de
cerca de oito anos: o frei Eleutério da Rocha, irmão do Tibúrcio e também da mesma
ordem; o mestre frei Antônio Pacheco, segundo Matos “seculariado” [sic. Secularizado,
no caso] à época da apresentação; outro frade da mesma ordem de São Francisco, frei
João Pacheco, que era morador no Convento de Jesus, na cidade de Lisboa, que já havia
falecido à época da apresentação; e outro chamado Francisco Homem, que era natural
do Porto, segundo a apresentação, e que, além de ter conversado com ele sobre pontos
de religião, teria lhe entregue “papéis ímpios e lhe disse que não acreditava em coisa
alguma de Nossa Santa Religião”. Todos eles, segundo o apresentado, praticavam
exteriormente os preceitos católicos, mas, internamente, não acreditavam em seus
mistérios, preceitos e dogmas. O frei João Constantino de Matos foi sentenciado com
um auto-de-fé privado, abjuração em forma, absolvido da excomunhão que incorria,
penitências espirituais e pagamento de custas.142 No mês seguinte, a Inquisição de
Lisboa enviou um documento à de Coimbra a fim de averiguar possíveis culpas dos
frades Eleutério José da Rocha e de seu irmão, o frei Tibúrcio José da Rocha,
denunciados na apresentação de João Constantino Matos.143
Não foi possível acessar o processo de Eleutério José da Rocha, indisponível no
site do Arquivo da Torre do Tombo. Mas há uma minuta da apresentação de seu irmão,
datada de 6 de janeiro de 1807, feita ao inquisidor Manoel Estanislau Fragoso. Ele disse
que, “educado na Religião Católica Romana” até os dezesseis anos, entrou na Ordem
Terceira de São Francisco no Colégio do Espírito Santo, de sua ordem, em Évora. Lá,
“satisfizera o ano do noviciado, mas também outro no qual estudara grego e
Geometria”. Aos dezoito anos, passara ao Colégio de São Pedro, da Universidade de
Coimbra, “a fim de estudar neste os três anos de Filosofia racional e moral, conforme o
plano de sua ordem”. Disse que manteve, “no fundo de seu coração e mesmo nos seus
pensamentos até o dito tempo, a pureza da doutrina católica”, até o segundo ano “da
142
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Processo de João Constantino Matos, proc.
7120.
143
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Pedido de informação feito pelo secreto do
Santo Ofício de Lisboa à Inquisição de Coimbra, sobre o frei Tibúrcio José da Rocha e do frei Eleutério,
proc. 13490.
358
mesma Filosofia”, e quis dilatar os conhecimentos desta com o estudo da História
natural”. Por isso, pediu para “receber lições desta na aula acadêmica da Universidade”,
junto com outros religiosos.144 Nas aulas de História natural, que assistia ao lado de seu
irmão, Tibúrcio José da Rocha diz que ambos:
(...) se viam necessitados de conviver com os seus condiscípulos
seculares, na entrada e na saída da mesma aula, que havia diversas
conversações, nas quais, por desgraça da parte dos seculares versavam
quase sempre sobre libertinagem dos costumes e censura acre dos
Preceitos da Religião e da Igreja, que requerem e mandam
procedimentos morais, atacando a mesma autoridade da Igreja sobre
os seus Mandamentos pelo que respeita a proibição do uso de comer
carne em dias de preceito e de confessar anualmente, ao da
continência [pois] eles [os estudantes seculares] só queriam e
persuadiam compreender o adultério e não a fornicação simples, e
todo o mais exercício de prazeres libidinosos, e outros muito absurdos,
que pela inteiridade do tempo lhe não lembram.145
Nesse cenário, que ele declarou ver com horror a princípio, foi progressivamente
se familiarizando com todos os pontos debatidos com os colegas seculares e, segundo
suas palavras, “foi diminuindo insensivelmente o seu horror”. A partir disso e motivado,
depois, como consta na apresentação, pela leitura de “Bergier”,146 começou a debater
sobre pontos de religião com João Constantino Matos e seu irmão, donde partiram
muitas de suas críticas religiosas. Disse que, depois de tantos debates, os três
“vacilavam sobre a verdade ou falsidade” de muitos preceitos católicos, “persuadindose mutuamente sobre a força da razão natural que obstava a crença” sobre vários
mistérios, entre os quais destacou o celibato. Mas ainda, afirmavam “que não era
compreensível a existência de um Deus em três pessoas realmente distintas”, que seria
falso também “o Mistério da encarnação da segunda pessoa da Trindade”, que “o
celibato parecia opor-se ao preceito de Direito natural” e mesmo à constituição e
organização do homem, e que tal regra só é observável por homens doentes ou
velhos”.147 Não consta na documentação andamento ou sentença do processo.
Outro religioso da Ordem de São Francisco aparece em denúncia feita em 25 de
janeiro de 1790, contra o frei Francisco de Santa Cecília, pelo beneficiado Mateus
144
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa Minuta da apresentação e confissão do frei
Tibúrcio José da Rocha, proc. 16435. Fls. 2v-3.
145
Ibidem, Fls. 3v-4.
146
Que se refere a Nicolas Sylvestre Bergier, padre e teólogo francês, consagrado ao combate da
incredulidade, autor de vasta obra, dentre elas Déisme réfuté par lui-même. C.f. VILLALTA, Luiz Carlos.
Usos do livro no mundo luso-brasileiro sob as Luzes. Op. Cit. p. 442.
147
Novamente, Nicolas Sylvertre Bergier, mencionado na nota anterior. ANTT. Tribunal do Santo Ofício.
Inquisição de Lisboa Minuta da apresentação e confissão do frei Tibúrcio José da Rocha, Op. Cit, Fls.
4v-5
359
Coelho da Rocha. O denunciante diz que Faustina Leonarda, mulher de Joaquim
Francisco, e sua família relataram que, por algumas conversas e proposições defendidas,
o frei Francisco de Santa Cecília foi tomado por herege e libertino. O frade teria dito
"que o homem não tinha diferença dos brutos, senão em ser racional e superior a eles,
porquanto a Alma morria com o mesmo homem”. Teria dito também, justificando a
primeira proposição, que “até agora não constava que alguém visse, como dizem, subir
a Alma do corpo". Teria dito também que "suposto nos ensinem [que] há Céu, Inferno e
Purgatório, ainda ninguém nos tinha trazido essa notícia certa", e também "que parecia
abuso venerar os Santos, ou as suas Imagens dos Altares, porque postas as ditas no
fogo, tanto se reduzem a cinzas, como outro qualquer pau". Por fim, teria dito que
"parecia supérfluo rezar contas” ou “Rosários, [sendo] bastante somente rezar uma Ave
Maria".148
Também frei da Ordem de São Francisco era Francisco de São Joaquim,
morador no convento de São José de Ribamar, em Portugal. Ele foi denunciado por
Mariana Joaquina, casada com o oficial de carpinteiro Manoel José, disse que o frade
lhe teria dito que o ajuntamento de homem com mulher alheia não era proibido, pois
Deus criou o homem para a mulher. Teria dito ainda que dirigira espiritualmente uma
mulher de "tanta virtude que a toda hora falava com Deus e tinha recebido do Senhor
poder para dispensar na sua Lei e seita"; e "dizia a alguém que havia salvar
infalivelmente se (...) tratava desonestamente com essa mulher, por vontade de Deus,
[por] três anos". Além disso, o frei teria dito à denunciante que castigava tal mulher se
ela "tivesse divertimentos com outros homens" e falava sobre essa virtude de se falar
com Deus a qualquer mulher. Uma dessas suas mulheres teria engravidado dentro dos
cárceres do Santo Ofício e, depois da criança nascer e ser criada pelos inquisidores, ela
foi degredada para Évora. Dizia ainda que as mulheres que tivessem trato ilícito com ele
não precisariam contar a seus confessores e que também fazia isso por vontade
divina.149
Todos esses processos e denúncias referentes a eclesiásticos, mencionados
anteriormente, exigem algumas considerações. A primeira diz respeito aos locais de
formação dos clérigos, como, por exemplo, João Constantino Matos e os irmãos
Eleutério e Tibúrcio José da Rocha. Em tais locais, como os colégios mencionados,
148
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. 130º CADERNO DO PROMOTOR. Op.Cit.
Fl. 473.
149
Ibidem, Fl, 135.
360
também havia uma certa circulação de livros proibidos, de modo similar ao sucedido na
Universidade de Coimbra. Isso se nota, igualmente, no processo de Henrique de Jesus
Maria. Nesses locais, desenvolviam-se sociabilidades típicas de libertinos, pelas quais
as pessoas disputavam com alguma liberdade em matérias de religião. Ademais, havia
apenas uma fronteira tênue entre essas sociabilidades relacionadas a eclesiásticos e as
dos estudantes analisados anteriormente. O próprio destaque que o clero possuía, a essa
altura, a despeito do processo de secularização em curso, também o colocava em
posição de estar em meio a redes que envolvem seculares, de trajetórias, ocupações e
letramentos os mais distintos, aos quais eram atribuídos comportamentos chamados
libertinos. Não menos importante é o fato de que também não se estabelece uma relação
direta entre leituras e proposições aqui, tal como se observou nos estudantes coimbrãos.
Enquanto a estes últimos não se pode atribuir uma tradução das ideias dos filósofos
franceses de pontos críticos ao Catolicismo, nos religiosos se observa de uma maneira
muito rica a relação de suas disputas com interpretações heterodoxas de teólogos ou das
próprias Escrituras. Isso se faz ver no conteúdo de suas críticas à religião em geral. Por
vezes, eles recorrem a argumentos que exaltam, de forma mais ou menos direta, a
tolerância e/ou liberdade religiosas, bem como a críticas à Inquisição a partir de
perspectivas variadas, que vão desde a confluência de suas proposições com críticas à
intolerância institucionalizada, nas quais se cruzam um substrato popular de tolerância
religiosa com matrizes mais eruditas, próprias das Luzes,150 ou falas, como no caso do
abade Mourão, que se atrelam relativamente a uma memória particular e familiar que
sustentam uma perda de temor quanto a Inquisição. Observa-se, por exemplo, nas falas
atribuídas ao frei Henrique de Jesus Maria, proposições que o denunciado associa a
leitura de teóricos regalistas, ao passo que os três frades da Ordem de São Francisco, na
confissão de Tibúrcio José da Rocha, fazem a mesma relação com disputas de
150
Aqui, retomo, de maneira breve, alguns pontos que já foram apresentados ao longo desta tese. O
primeiro, em concordância como o trabalho de Stuart B. Schwartz, refere-se ao século XVIII no mundo
ibérico atlântico, momento em que observam cruzamentos entre debates tributários das Luzes e matrizes
populares de tolerância religiosa. Isso se verifica nas proposições documentadas pelas Inquisições. Um
segundo, é a considerável possibilidade de que as leituras proibidas, admitidas pelos libertinos nas suas
confissões, dadas aos inquisidores, fossem uma maneira de atenuar possíveis culpas e penas que lhes
fossem aplicadas, de forma a “colar-se” as proposições às ditas leituras. É um ponto já analisado por
Anita W. Novinsky e Luiz Carlos Villalta. Este último autor traz um terceiro ponto importante que é uma
leitura inventiva por parte dos mesmos libertinos, que sustentariam suas proposições a partir de
entrecruzamentos dos mais complexos entre elementos diversos, que passam por leituras proibidas, mas
se valem de substratos culturais distintos e anteriores às Luzes ou mesmo de leituras consideradas
ortodoxas, no Setecentos. SCHWARTZ, Stuart. Cada um na sua lei. Op. Cit. p. 315-384; NOVINSKY,
Anita Waingort. Estudantes brasileiros “afrancesados” na Universidade de Coimbra. Op. Cit.;
VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do livro no mundo luso-brasileiro sob as Luzes. Op. Cit.p.432-457.
361
argumentos motivadas pela leitura de Nicolas Sylvestre Bergier. Este, teólogo, é
sublinho novamente, publicou obras de teor veementes contrário, por exemplo, ao
deísmo e ao materialismo, além de criticar duramente alguns dos philosophes.151
Entre os acusados de libertinagem no final do século XVIII, encontram-se
também muitos indivíduos e grupos de pessoas que, ao contrário dos estudantes
coimbrãos e religiosos seculares e regulares, não estiveram – ou é possível presumir que
não estiveram – tão próximos de uma cultura letrada. É o caso dos acusados que se
ocupavam na marinhagem na ocasião dos seus processos. Em grande parte das
denúncias, processos e acusações aqui analisados, o que se nota é que juntamente com
as proposições e falas heterodoxas, o “viver de forma libertina”, que era associado a
eles, também permeia a narrativa desses documentos. Outro elemento a se notar é a
presença dos trânsitos entre países e culturas, à semelhança do que foi analisado no
Capítulo 3.
Esses aspectos aparecem, por exemplo, na denúncia de Bernardo da Costa
Carvalho, piloto dos navios da Companhia Geral do Grão Pará e Maranhão e familiar do
Santo Ofício, contra Sebastião da Cunha Sotto Maior, governador de Guiné Bissau e
outros adjuntos, entre os quais nomeou o capitão de infantaria, “chamado por
antonomásia Capitão Mazagão”, e mais dez pessoas. Segundo o denunciante, o
governador e demais denunciados se reuniam “por várias tardes na horta do dito
governador e, embriagados de vinho e aguardente, imitavam a cerimônia da missa”. Em
“uma ocasião entraram na igreja, no Domingo de Ramos, com copos nas cabeças e
ramos nas mãos e botando água benta por algum jarro, que ali se achou, com pouco
respeito ao dito local, fazendo irrisão da mesma ação”. 152 Na denúncia, de janeiro de
151
Existe uma tradução de uma obra do autor para o português. Consta, por exemplo, título entre a lista de
livros que tiveram licenças autorizadas pela Mesa Censória em 1796, remetidos para Pernambuco, como
listado por Gilda Maria Whitaker Verri. A obra em questão é O deísmo refutado por si mesmo ou exame
dos princípios da incredulidade ... mr. Bergier, traduzido por José Antônio da Silva, impressa em Lisboa,
na Régia Officina Typografica em 1787. Segundo Fernando Augusto Machado, em estudo a respeito da
circulação do autor em Portugal na segunda metade do Setecentos – reconhecido como principal teólogo
do século, uma espécie de sucessor de Bossuet –, Bergier tentou nessa obra uma refutação do Émile, de
Rousseau. Uma recepção positiva dele e as várias traduções, tanto de obras inteiras como de textos curtos,
em língua portuguesa, se explicam, segundo o autor, em grande parte pela tentativa de se combater a
penetração de ideias do pensador genebrino em terras lusas. MACHADO, Fernando Augusto. Um
herético em país de frades, ou como Rousseau invadiu Portugal. Diacrítica – Braga, v. 26, n. 2, p. 324352, 2012. p. 343-344; VERRI, Gilda Maria Whitaker. Tintas sobre papel: livros em Pernambuco no
século XVIII.1769-1807. Catálogo. Recife: Editora Universitária UFPE-Secretaria de Educação e Cultura
de Pernambuco, 2006. p. 79.
152
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. 130º CADERNO DO PROMOTOR. Op.Cit.
Fl.114.
362
1775, Bernardo da Costa Carvalho ainda indicou diversos membros da mesma
companhia como possíveis testemunhas.
Sobre funcionário da mesma Companha de Comércio do Grão Pará, aparece
outra denúncia, dada no próprio Grão Pará, a um comissário da Inquisição e repassada a
Lisboa. Trata-se da apresentação de Manoel José da Silva, que começa sua fala
afirmando que deveria ter entregue a apresentação antes, mas foi transferido de Lisboa,
do Arsenal da Ribeira das Naus, para o Pará, para fazer os navios para a companhia de
comércio de lá. Disse que, durante uma discussão com o padre Antônio da Silveira
Belo, natural da já extinta praça de Mazagão e que tinha o costume de frequentar o
arsenal para conversar com os trabalhadores de lá, o religioso tocou no assunto sobre o
"desamparo e pobreza" da praça mencionada, o que motivou o apresentado a dizer que o
rei fizera bem em extingui-la. Em resposta, o padre teria argumentado que aquilo seria
de grande prejuízo espiritual para os habitantes "mouros, alegando que, por ocasião da
entrega da Praça, deixariam de salvar-se", ao que Manoel José da Silva respondeu que
"os mouros se podiam salvar-se". Desenvolveu-se, com isso, uma longa discussão com
o padre sobre a validade do batismo, questionando se "o padre havia recebido alguma
carta do Inferno", depois de o clérigo dizer que todos os não batizados iriam para lá.
Segundo o apresentado, em vingança, o padre o denunciou ao prelado diocesano, que
era o cônego Luiz Pereira de Souza, que era também comissário do Santo Ofício. E
refletindo sobre suas palavras, concluiu, procurou ele mesmo ao comissário e
apresentou suas proposições.153
Já em Lisboa, na denúncia contra Manoel Joaquim, feita em 1780 em data não
especificada, que era capitão de navio e morador na casa de Francisco Alves, fanqueiro
– ou seja, um vendedor de tecidos –, na rua dos Fanqueiros, Lisboa, há algumas
proposições em defesa de uma maior tolerância religiosa. Elas teriam sido feitas pelo
denunciado diante de Ana Joaquina Rosa e foram denunciadas pelo frei Inácio de Jesus
Maria. Segundo a denúncia, Manoel Joaquim teria dito que "não podíamos julgar se os
hereges se salvavam ou [se] perdiam e, se se perdessem, que seria necessário maior
Inferno; e como haviam de caber tantos no Inferno, e que eles também louvam a Deus".
Ele teria completado, dizendo que "também as aves do céu o louvam" e que um herege,
em alguma das suas viagens, lhe teria dito "que já tinha ouvido Missa por que sua Missa
era seca e a nossa molhada", mais outras coisas que o denunciante não se lembrava.
153
Ibidem, Fl. 156.
363
Mas, segundo a denúncia, teria dito que "abraçava a nossa Religião" católica e que Deus
era de infinita misericórdia.154 Pontos similares são encontrados na denúncia contra
Antônio Quaresma. No título da denúncia, consta "presunção de judaísmo", mas no
corpo dela há diversos delitos e proposições denunciadas pelo frei Domingos Motta,
dada no Rio de Janeiro em junho de 1780. Nela, o religioso carmelita calçado, morador
no Hospício da sua ordem, no Rio de Janeiro, diz que o denunciado, capitão de navios –
chamados Nossa Senhora de Penha de França, Boa Hora e mais um, que diz ter
naufragado – é denunciado por ter comportamentos impróprios com sua tripulação nos
navios, como ter sido visto urinando em um urinol e jogado seu conteúdo no barril de
água que dava aos passageiros. Também, "em certa viagem pusera um pouco de doce
por cima da alcorosa imundícia que se achava em um vaso, para dar do dito doce
disfarçado a um passageiro, e assim se executara, levando o enganado uma colher à
boca". Juntamente com essas troças de natureza escatológica, o capitão de navios
denunciado fazia proposições em favor da tolerância e contra a Inquisição. Teria dito,
segundo a denúncia, na mesma viagem em que o denunciante vira tais atos, "que o
Tribunal do Santo Ofício não era reto, porque não castigava (...) os pequenos, e que
ele”, denunciado, “sabia de vários que tinham crimes, e destes não tomava
conhecimento". Teria proferido, também, que "neste Reino, os nossos pais nos
obrigavam a seguir a Religião cristã, e [que] não era como em outros Países, que
deixavam a cada um seguir a Religião que lhe parecia”. Ele defendeu ainda “que devia
ser livre a cada um, depois de ter bastante conhecimento das coisas", escolher a religião
que melhor entendesse. Depois, o frei carmelita declarou que o denunciado é natural de
Lisboa e listou algumas testemunhas, descrevendo o denunciado como homem
grosseiro, dado a falar sempre mal dos sacerdotes.155
Noutra denúncia, também registrada no mesmo Caderno do Promotor, dada em
Ribeira Nova, Portugal, mencionam-se navios e viagens como ambientes e ocasiões em
que falas e discussões sobre pontos de religião aconteciam com notável liberdade. Na
denúncia contra José Tavira, feita por Inácio de Sousa e Meneses, o denunciante,
embarcando em direção a Belém, em um navio em que todos conversavam entre si,
ouviu que o dono da embarcação, chamado Pedro, que trabalha na fundição, estava
muito doente. Quem teria dito isso era o denunciado. O denunciante, então, disse que o
dito Pedro deveria receber a confissão, ao que recebera a resposta de José Tavira "que
154
155
Ibidem, Fl. 300.
Ibidem, Fl. 314.
364
não se confessava a um homem como ele” e ,“dizendo também, que não rezava, e
porque isso era desconfiar da misericórdia de Deus'". Inácio de Sousa e Menezes teria
tido para Tavira que não dissesse semelhantes coisas, pois poderiam fazer-lhe mal, ao
que o denunciado respondeu que "aquilo era graça".156
Na apresentação de Gonçalo Garcia, dada em abril de 1799, em Lisboa, o
constante trânsito entre lugares diversos foi pano de fundo para uma confissão de
libertinagem, por parte de outro marinheiro. Natural da Paraíba, o marinheiro das forças
armadas portuguesa e inglesa, de quarenta anos de idade, apresentou-se diante do
inquisidor Manoel Estanislau Fragoso. Depois de ser admoestado, disse que, haveria
dez a doze anos, “para ganhar sua vida”, se alistou na marinha da Inglaterra “em praça
de marinheiro”. A partir dali, “no giro do comércio que tem feito por todo o mundo no
referido tempo”, afastou-se dos preceitos católicos, comendo carne em dias de preceito,
não se confessando e apenas ouvindo missa quando as embarcações demoravam-se em
algum porto de país católico romano. Fora essas culpas, Gonçalo Garcia confessou ter
praticado “outra mais grave”, que consistia em “inumeráveis atos sodomíticos
completos com pessoas do mesmo sexo”, tendo, inclusive, tentado “pôr em execução o
mesmo depravado apetite com diversos animais”.157 O homem, analfabeto,158 declarou
que, mesmo no tempo em que vivia tal “miserável vida”, conservou em seu ânimo a
religião católica e, por isso, se apresentou. Esse ponto, somado com o fato de ter vivido
tanto tempo em meio a homens de outras religiões, serviu como justificativa para que o
frei José da Conceição de Monte Alverne emitisse parecer favorável ao marinheiro ser
absolvido da excomunhão em que incorria e lhe recomendasse penas espirituais.159
Trajetória similar a de Gonçalo Garcia se observa na apresentação de outro
marinheiro, da mesma naturalidade e que também passou pelas terras inglesas. Trata-se
da apresentação de Geraldo Garcia, marinheiro, nascido em Paraíba, bispado de
Pernambuco, e morador em Lisboa. A apresentação foi feita aos 30 de julho de 1785.
Nela, o marinheiro disse que, em ocasiões em que embarcou nas docas da Inglaterra, em
navios ingleses, e vindo falar com eles em pontos de religião e a respeito do
Catolicismo, "entrara a vacilar, vendo que eles falavam contra o viver dos preceitos da
Igreja Católica, contra os santos e outras semelhantes práticas”, as quais, “todas, foram
156
Ibidem, Fl. 371.
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Apresentação de Gonçalo Garcia, proc.
13638. Fls. 1 e 2-5v.
158
Ibidem, Fl.4.
159
Ibidem, Fl.7.
157
365
a causa de ele apresentado se ir esquecendo de nossa santa Religião pouco a pouco”, de
maneira “que, haverá quatro ou cinco anos, que não se confessa, mas que algumas vezes
ouvia Missa”. O marinheiro acrescentou, em conclusão, que “ainda que lhe parecia ser a
Lei dos Protestantes boa, como tudo, muitas vezes, lhe lembrava a dita Religião como
sua própria". Disse que, havia cerca de quatro anos, sido desenganado, após sofrer um
acidente em que quebrou a perna, quando, então, contou essa sua história para um
padre, em Rilhafoles.160
Ainda tendo como ambiente e ocasião as viagens náuticas, aparece na
documentação a descrição de possíveis contatos com a maçonaria, somado a outros
aspectos levantados supra, como questionamentos sobre a religião a partir da
observação e contato com culturas distintas. Na apresentação do padre José Aires de
Casal, dada em 27 de outubro de 1780, em Lisboa, ao inquisidor Alexandre Janssen
Müller, o religioso fez algumas denúncias. Disse que, viajando do porto da mesma
cidade para o da Bahia, cinco anos antes da apresentação, no mesmo navio, havia um
homem chamado Antônio Bernardo ou Bernardes, natural das Minas e morador na
Bahia. Este, segundo o denunciante, "dissera (...) na dita viagem que a Alma do homem
não podia perder-se, porque, sendo espiritual e uma parte do mesmo Deus, devia salvarse”. Segundo o padre, o denunciado teria dito isso várias vezes, não em resposta a quem
o contradissesse ou o provocasse. Também afirmou, na denúncia, ter ouvido mais
proposições, das quais não se lembrava pela distância no tempo e por não poder
especificá-las debaixo do juramento, mas se lembra de ouvir Antônio Bernardo ou
Bernardes dizer "que não era certo ter sido o dilúvio universal, porque ninguém sabia se
ele tinha chegado à América". O padre acrescentou que, na mesma viagem, lhe deram
uma escrivaninha, no navio, e que demorou a denunciar por não haver Inquisição na
Bahia. Também disse que, fazia um ano e meio, aproximadamente, da apresentação,
indo em uma embarcação de Calicute à Goa, já na Índia, ouvira dizer que Tomaz José
de Queiróz, "que ia na mesma embarcação, as prerrogativas e utilidades que tinham os
que entravam na sociedade dos Pedreiros livres" e completou dizendo: "que se ele
referido entrasse também entraria”. Dias depois, Queiroz lhe dera “uma patente para a
tresladar, com a qual se mostraria ser Pedreiro Livre (...)". O padre José Aires de Casal
declarou ter ficado com essa patente por muito tempo, até ser advertido "que poderia
não ser coisa boa a dita sociedade". Também disse ter recebido um catecismo, em um
160
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. 130º CADERNO DO PROMOTOR. Op.Cit.
Fl. 404.
366
quarto de papel, pertencente à sociedade dos pedreiros livres, do último denunciado.
Nela, segundo o religioso, havia "em si coisa alguma de doutrina e tão somente coisas
de duas dúzias de perguntas e respostas, tocantes à ação de entrar naquela Sociedade, e
seus respectivos sinais". O apresentado disse também tê-lo rasgado, tal como o fez com
a patente. Disse também que, vendo e ouvindo, na Ásia as "verdades morais” e as
"penitências" que os "Infiéis ali praticavam, e que estas lhe eram ditadas pelo uso da
razão e direito natural”, ocorria ao padre que “(....) parecer-lhe que eles não ficariam
condenados pela falta da verdadeira crença, visto viverem bem conforme aos ditames da
sua consciência e não terem notícia do que era melhor”, mas “igualmente se lembrava
de que não poderiam salvar-se por lhes faltar a água do Batismo".161
Assim como na marinhagem e nos meios náuticos, houve muitas acusações de
libertinagem entre militares. Elementos como a liberdade em falar de pontos de religião,
trânsito entre culturas e religiões distintas, e leituras proibidas são, também, ressaltados
nas descrições de alguns de seus comportamentos. É o que aparece na denúncia contra
Mâncio da Fonseca, dada em fevereiro de 1780, por falta de crença. Mâncio da Fonseca,
natural da vila de Tomar, era soldado da praça de Mazagão e, à época em que foi
denunciado, morava em sua terra natal. No documento não assinado, enviado à
Inquisição de Lisboa e denunciando o soldado, dizia-se que Mâncio, "seduzido pela luz
da razão e alheio da verdade católica, e falto de fé", defendia proposições, tais como:
“que Deus não é onipotente e nem pode reduzir a nada a matéria do mundo”; que não há
Céu e nem Inferno; que as Almas vivem eternamente com o corpo na sepultura e que a
encarnação do Verbo Divino fora uma traição. Também, segundo o papel, somava-se a
isto o fato de que "afirmava sempre (...) apesar da grande autoridade da Santa Inquisição
com quem desejaria disputar estas questões, que ele a convenceria, pela forma da Terra,
pelo Ar e pela palavra". O papel com a denúncia foi entregue pelo oficial José Nunes,
de Serra da Beira, aos inquisidores, que também denunciou que Mâncio não ouvia missa
fazia muito tempo.162 Na apresentação do partidista da academia militar Antônio José
Monteiro, dada aos 7 de outubro de 1778, ele confessou que, estando no Rio de Janeiro,
em casa do religioso Manoel Barbosa, disse que chamaria o coronel de seu regimento
para absolvê-lo, quando estivesse no leito de morte. Também confessou que, na botica
de José Batista Figueiredo, situada no canto do senhor do Bonfim, disse que haveria de
161
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. 130º CADERNO DO PROMOTOR. Op.Cit.
Fl. 403.
162
Ibidem, Fl. 174.
367
evitar confissão com padres, porque eles utilizam dos sacramentos para satisfazer suas
paixões.163
Já na denúncia de José Adorlo “Bráu” – possivelmente alguma corruptela de um
nome estrangeiro –, denuncia-se Alberto “Albak” – mesmo caso –, militar agregado ao
regimento da praça de São Sebastião, na vila de Setúbal. O denunciante disse que, numa
conversa sobre o seu próprio pai, que também servira ao exército, teria dito ao
denunciado que ele nascera protestante e morrera católico. A isso, Albak teria dito que o
pai do denunciante "obrara mal em mudar de lei, pois em todas havia salvação". Teria
dito, ainda, na mesma conversa, que “no Concílio Tridentino, faltaram somente dois
votos para se negar que havia Espírito Santo”.164 Outra denúncia referente ao Rio de
Janeiro, dada em 1778, mostra ambientes onde se falava livremente em pontos de
religião e nos quais havia presença de militares. Aos 11 de outubro do mencionado ano,
Joaquim Gonçalves da Costa, presbítero secular do hábito de São Pedro, deu denúncia
ao comissário da Inquisição Felix José de Aquino, contra Paulo João Guedes e contra
Francisco de Paulo. Paulo José Guedes, alferes do primeiro terço auxiliar do Rio de
Janeiro, segundo o denunciante, teria dito várias proposições em conversa com o
religioso. Segundo a denúncia, Guedes, chegando na casa onde estava hospedado o
denunciante, perguntou por ele, já que não o conhecia. A partir daí, continuou o
eclesiástico, o alferes disse que "os ingleses seguiam sua seita, e que várias nações
viviam em diversas seitas, porém, que todas passavam a vida". E perguntou ao partidista
engenheiro do mesmo regimento que ele, que o acompanhava à ocasião, chamado
Antônio José, se ele queria seguir "a seita de Lutero ou de Calvino", ao que ele
respondeu que “sim”. Quanto a Francisco de Paulo, em ocasião em que o denunciante
lhe explicava os efeitos da excomunhão maior, o denunciado, que era furriel do mesmo
regimento no Rio de Janeiro, dissera que "excomunhão era coisa inventada para causar
medo" e, advertido pelo denunciante de que poderia ser denunciado à Inquisição por
dizer isso, respondeu que "queria ser transportado para Lisboa". Quando o denunciante
disse que seria transportado para ser punido, ele respondeu que, "para ser punido", o
denunciante deveria denunciar que ele "queria seguir a seita dos ingleses". O
denunciante disse que, em ambos os casos, não denunciara antes – a primeira denúncia
se refere a algo que, segundo ele, acontecera oito meses antes da denúncia – por “fazer
163
164
Ibidem, Fl. 12.
Ibidem, Fl.40.
368
escrúpulo” em saber se eles falavam determinadas proposições por graça e, também, por
saber depois que incorria em delito por não denunciar tal matéria à Inquisição.165
Tais sociabilidades e circulação de livros proibidos e ideias heterodoxas
aparecem no processo contra o tenente Hermógenes Pantoja, figura conhecida pelo seu
envolvimento na Inconfidência Baiana, de 1798166 – documento que será retomado mais
à frente, nesta tese. Na denúncia remetida ao comissário José Nunes Cabral em 20 de
dezembro de 1797, o frei Manuel do Sacramento solicitou providências contra o dito
tenente e outros militares de seu regimento por proposições heréticas e suspeitas de
heresia que, nas palavras do frei, “se encaminham a destruir a revelação Divina”.
Dizendo que Hermógenes Pantoja seria “o doge ou Chefe dos Libertinos de toda a
Cidade” da Bahia, teria defendido livremente “não haver céu, santos, Inferno” e,
também, “negava a divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo, a pureza de Nossa Senhora
e imortalidade da alma, dizendo que ela acaba com o corpo”. Mais ainda, “ensinava aos
soldados do seu Regimento que a simples fornicação não era pecado, mandando-os
fornicar e comunicando-lhes a todos (sic) (...) sentimentos acima expostos”. Conta que
suas doutrinas circularam de tal forma que um conhecido seu contou sobre ter visto
mulheres que teriam assado um leitão, enquanto escarneciam das chagas e membros de
Cristo, convidando para isso “usualmente entre os amigos libertinos desta cidade” da
Bahia, forma com a qual haviam de “convidarem e adquirir número grande de
sequazes”. Falava também que tais libertinos proibiam seus filhos de confessarem e deu
notícia de uma pessoa que, “ainda menino, negava a pureza de Nossa Senhora”. 167 Na
devassa ordenada após a inconfidência da Bahia, ficou patente que, no regimento de
Pantoja, formou-se um núcleo onde circulavam obras de Voltaire e muitos outros
autores, traduzidas em grande parte, além de manuscritos diversos,168 tendo o tenente a
posse, por exemplo, do Dicionário Filosófico do pensador francês.169
165
Ibidem, Fl. 41.
TAVARES, Luís Henrique Dias. Da sedição de 1798 à Revolta de 1824: estudos sobre a Sedição de
12 de agosto de 1798, o soldado Luís Gonzaga das Virgens, os escravos de1798, Francisco Agostinho
Gomes, Cipriano Barata e Levante dos Periquitos. Salvador/São Paulo: EDUFBA/UNESP, 2003. p. 24-54
em especial 38 em diante; VILLALTA, Luiz Carlos. O Brasil e a crise do Antigo Regime português
(1788-1822). Rio de Janeiro: FGV Editora, 2016. p. 63-85.
167
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Denúncia contra o tenente Hirmógenes e
outros, proc. 13.541. Fl. 2 e 3-3v.
168
IGLESIAS MAGALHÃES, Pablo. O tradutor dos abomináveis princípios: José Pedro de Azevedo
Sousa da Câmara e a circulação dos escritos de Voltaire em Portugal e no Brasil (1790-1834). História
(São Paulo, vol. 35, p. 1-39, 2016.
169
Em importante trabalho sobe a Sedição de 1798, Kátia Mattoso identificou 12 das 26 obras
encontradas na biblioteca do tenente Hermógenes Pantoja. Como foi dito, uma delas foi o Dictionaire
Philosophique, primeiro tomo, de Voltaire. Porém, trata-se de uma biblioteca com títulos bastante
166
369
Pedro Manuel Bernes, adido do serviço militar do rei de França, apresentou-se
em março de 1795 à Inquisição, dizendo que havia se separado da Igreja devido ao
“espírito de libertinagem em que vivia” e que defendia pontos como a incoerência de
um deus justo castigar eternamente suas criaturas, além de disputar sobre esse ponto
pelo prazer de enfurecer os eclesiásticos. Ele acrescentou que, sem estudos, não teve
acesso à leitura de nenhum “heresiarca” para sustentar seus desvios, situação em que,
conclui-se, ele se difere de Pantoja. No caso, disse “que isto não era mais do que um
produto das conversações, que na sua mocidade tinha com gente moça naturalmente,
amantes todos da liberdade da Religião”.170 O soldado Valério Antônio Barreto, por sua
vez, entre fevereiro e março de 1780, teve várias testemunhas contra ele ouvidas pelo
Santo Ofício. Unanimemente, elas ligaram sua vida “libertina e com desprezo à
religião” à sua íntima amizade com um comerciante inglês e protestante, chamado
Carlos Alder. Foi dito que o soldado comia carne em dias proibidos e, em tom de
zombaria, indo sempre que não estava no exercício de sua função, em Funchal, na Ilha
da Madeira, à casa do dito inglês, onde também costumava dormir. As testemunhas
destacaram que nunca o viram fazer “ações de católico”, como confessar-se ou ouvir
missa. No testemunho de Salvador Muniz de Figueiredo Calheiros, além dessas mesmas
informações, consta que, certa vez, ele presenciara o soldado “em uma manhã”, estando
“o dito réu ainda na cama, no forte onde estava preso” o mencionado comerciante
inglês, “cantando cantigas de uma comédia”. Então, a testemunha lhe perguntara “se
eram aquelas cantigas seu sinal da cruz e as orações que devia fazer ao levantar”, ao que
o soldado lhe respondera que “tudo era o mesmo”.171
Existem denúncias de libertinagem contra funcionários da administração régia,
em Portugal e no Brasil, assim como de “libertinos” que exerciam diversos tipos de
variados, entre os quais autores da Ilustração. Destes, é possível destacar a Instituitiones Metaphysicae,
do ilustrado italiano Antonio Genovese, publicada em 1768, ou ainda as Letters peruviennes, de Françoise
Grafigny, que retrata a sociedade francesa da primeira metade do Setecentos em estilo similar ao das
Cartas Persas, de Montesquieu. Mas a biblioteca não se restringe a autores ilustrados. Possuía, por
exemplo, As aventuras de Telêmaco, de Fanelon; obras do autor latino Ovídio; a Prosódia de Bento
Pereira, do jesuíta seiscentista português padre Bento Pereira. MATTOSO, Katia Queirós. Presença
francesa no Movimento Democrático Baiano de 1798. Salvador: Itapuã, 1969, p. 28-33. A respeito das
práticas de leitura identificáveis na Inconfidência baiana, nos quais se relacionam estudos sobre a
biblioteca de Hermógenes Pantoja e outros envolvidos na mesma sedição, como Cipriano Barata: HIRSH,
Irene. Traduções na América portuguesa: as bibliotecas dos revolucionários brasileiros. Tradterm, 17, (p.
31-43), 2010; VILLALTA, Luiz Carlos. A revolução cruza o Atlântico: aproveitando-se da frouxa
vigilância, franceses fizeram circular ideais libertários no fértil terreno da sociedade baiana. Revista de
História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, p. 16-20, 15 jul. 2015.
170
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Processo de Pedro Manuel Bernes, proc.
9744.
171
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Processo de Valério Antônio Barreto,
proc.12.513. Fls. 5 e 5 A.
370
profissões liberais, que exigiam algum nível de letramento. Um exemplo é a denúncia
feita pelo padre Antônio José Cavalcante contra o bacharel Francisco Luiz de Mariz
Sarmento, que era secretário do governo da capitania do Ceará, datada de 1802 e
repassada ao Santo Ofício em janeiro de 1803. Na denúncia, o religioso se refere a
Mariz Sarmento como “miserável e desgraçado homem, que, por libertino e sectário das
doutrinas condenadas e proibidas pela Igreja”, já teria sido condenado e penitenciado
pela Inquisição, em Lisboa – documento este que não foi encontrado ao longo da
pesquisa para esta tese. São destacados seu desrespeito contra dogmas e disciplinas da
Igreja e também o seu “universal escândalo”, que fazem com que todos no seu entorno
fiquem “duvidosos da sua fé, persuadidos de sua libertinagem”.172 A partir daí, o
religioso lista cinco comportamentos libertinos do bacharel, que vão de proposições a
blasfêmias, passando por diversos pontos de seu comportamento público: não assistia a
missas e consentia que sua esposa fizesse o mesmo; dava demonstrações públicas e
mesmo movia perseguições a pessoas que se mostrassem mais religiosas, acompanhado
de beneficiar, a partir de sua função pública, os menos religiosos; lia livros proibidos,
tais como Philosophie du bon sens (1768), do Marquês D’Argens e L'Antiquité dévoilée
par ses usages (1766), de Boulanger, obras que Mariz Sarmento teria adquirido na
livraria do então ouvidor da comarca da Paraíba Manoel Leocádio Rademaquer;
cometera, “depois da confissão e comunhão, o gravíssimo pecado da molície com um
índio párvulo”, na casa do padre seu confessor; e, por fim, blasfemara em frente à
igreja, na vila de Aracati, ao comparar uma pomba que representava a terceira pessoa da
Trindade com seu cavalo (disse que se aquela pomba fosse o Espírito Santo, seu cavalo
roça-pombo também o era).173 Também no então norte (hoje, nordeste) brasileiro no
início do século XIX, mais precisamente no ano de 1806, o vigário da vila de São José,
capitania do Rio Grande do Norte, denunciou o capitão mor e governador Lopo
Joaquim de Almeida Henriques. Segundo a denúncia, o governador referia-se
publicamente à bula cruzada como “peta”, fazia ridículo das indulgências da Igreja e
tinha diversos cúmplices entre funcionários da Coroa e militares da mesma capitania.174
Ainda no Brasil, na Vila Rica de Ouro Preto, nas Minas Gerais, em setembro de
1782, Tomás Gomes de Sá fez uma denúncia contra Mario da Silva Porto, escrivão de
172
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Denúncias contra Francisco Luís de Mariz
Sarmento, proc.13977. Fl. 2.
173
Ibidem. 2v-3.
174
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Denúncia do padre João Dias Pereira no
Brasil., mç. 61, n.º 8.
371
órfãos, por proposições. Porto teria dito por algumas vezes que Cristo fora um homem
penitente, que não havia lei melhor que a dos libertinos e, lendo um livro intitulado
"Monte Líbero", disse que não cria nessas doutrinas, pois cada qual dizia o que lhe
parecia melhor, além de ter "pouca vocação de católico" no ouvir missa, especialmente
com o sacramento da Eucaristia.175 Ainda nas Minas Gerais, na vila de Pitangui, em 21
de outubro de 1782, Pedro José Joaquim Soares fez denúncia contra Manoel Ferreira,
doutor, por proposições, ao dizer que não havia Purgatório e que ele somente era
invenção dos padres para terem missas. O denunciado também teria dito que, se não
tivesse filhos, se mudaria, não sabia para que terra, onde pudesse viver mais livre em
matéria religiosa. O denunciante diz que o irmão do denunciado, o padre Antônio
Ferreira da Silva, teria dito que temia que seu irmão caísse em alguma heresia, "já que o
conhecia inclinado a certas seitas de hereges".176 O tabelião Antônio Bernardo da Rocha
se apresentou em fevereiro de 1779 ao Santo Ofício, em Lisboa, referindo-se a
proposições que teria proferido na Vila do Lagarto, no Sergipe. Disse que teria lido um
livro francês, quando esteve em Portugal, e que ele “continha heresias”, por ele narradas
a “pessoas rústicas”. Em carta, detalhou que se tratava do Sistema da Natureza, do
Barão D’Holbach.177
Há elementos similares na denúncia dada em 1778 por Francisco Hilário
Bitencourt contra João Ricardo Galhardo, juiz de fora de Vila das Velas de São Jorge,
nos Açores, Portugal, por viver de forma libertina e falta de crença. Segundo acusação,
Bitencourt o vira "abusar da bula da Santa Cruzada, negando absolutamente que dela
tiram os fiéis que por ela se dispõe", dizendo publicamente que a “missa não vale nem
para os vivos e nem para os mortos, mas apenas para os celebrantes, pelas esmolas
temporais que recebem”. Teria dito, ainda, que o Jubileu do ano santo fora uma “arenga
do Papa”, "e com este nada conhecia senão fazer que as mulheres andassem à mostra
pela Vila". Tão pouco era o valor que dava à data, que não teria consentido que pessoa
alguma de sua casa fosse ao exercício da procissão do Jubileu. O juiz manifestava,
também, duvidar da jurisdição da Igreja de Roma, chegando a dizer, ao padre pregador
Frei Manoel de São João e ao padre vigário João Manoel da Silveira, que Henrique VIII
da Inglaterra fizera bem em se levantar contra o Pontífice, "porque semelhantes homens
em nada lhe eram sujeitos". Na acusação, ainda consta que ele “tem desatendido às
175
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. 130º CADERNO DO PROMOTOR. Op.Cit.
Fl. 383.
176
Ibidem, Fl. 392.
177
Ibidem, Fl. 29-30v.
372
imagens dos santos, em ocasião vendo a imagem da Virgem Maria com a invocação da
piedade, a chamou de tartaruga", além de o acusar também de fazer uma sinagoga em
sua casa e descrever uma série de práticas de suspeição de judaísmo.178
Em Lisboa, em 1789, foi denunciado Jose Marcelino Jorge de Figueiredo
Sarmento, alcaide mor de Bragança, por Rosa Caetana de Meireles. Ela o acusou de
proferir as proposições seguintes: ouviu-o dizer que "os ingleses não tinham obediência
ao sumo Pontífice, pois se firmavam em dizer que o delegado não podia delegar neste
país”, e ainda “dando indícios de lhe achar a eles razão". Além disso, o denunciado,
vendo pinturas do Senhor dos Passos, disse que eram uns caramujos; também o ouvira
dizer que somente eram proibidos, na Lei de Cristo, atos carnais feitos com mulher
casada, e, quanto aos feitos com mulher "livre", a Igreja proibiu por decência e outros
fins, mas não era preceito divino; mais ainda, que alguns santos que eram venerados
estariam nos infernos; que ele era conhecido por mau cristão, principalmente devido a
não respeitar os jejuns, dizendo "que ele era juiz de sua consciência", e "que fosse o
Pontífice jejuar, que ele mandava comer de peixe aos mais e jejuar a ele, que se regalava
em boa carne”, e por isso “que jejuasse o Papa, que a vida deste não era menos
interessante do que a sua".179
Entre 1796 e 1797, a Inquisição de Lisboa mandou que se averiguasse algumas
denúncias contra o juiz de fora da vila da Cachoeira, comarca da Bahia, Joaquim de
Amorim e Castro, além do advogado da mesma comarca Luís Tavares dos Santos. Nas
denúncias feitas pelo reverendo Gonçalo Manoel de São Boaventura, o juiz de fora era
acusado de praticar sodomia com um escravo seu e com outra escrava de nome Maria
Feijão, além de comer carne em dias proibidos com grande escândalo. Já ao advogado
foi atribuída a culpa de impedir que sua mulher praticasse os preceitos da quaresma.180
No auto de justiça contra o médico José Antônio do Couto, documento que trata de uma
série de averiguações de culpas de libertinagens entre 1799 e 1802, há alguns pontos
que remetem aos comportamentos libertinos que têm sido analisados até aqui. O
médico, morador de Lisboa na rua da Saúde, era casado com uma inglesa – não
nomeada no documento. A denunciante, d. Ângela Micaela de Souza, disse que o
médico teria falado, em sua presença, “que duvidava da presença real de Jesus Cristo no
Santíssimo Sacramento e que não sabia se Deus era branco, preto ou vermelho”.
178
Ibidem, Fl. 121-121 A.
Ibidem, Fl. 434.
180
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Processo de Joaquim de Amorim e Castro e
de Luís Tavares dos Santos. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 7035. Fls. 2 e 3.
179
373
Também, continuando a denúncia, tinha o costume de se referir aos padres, frades e ao
papa como impostores, e escarnecia das cerimônias da missa.181 Teria, diante de outra
testemunha citada, rido ao ouvir que “a mãe de Deus era a melhor entre todas as
mulheres” e comia carne em dias de preceito, coisa que declarava fazer somente em
casa a fim de evitar escândalo. Numa discussão com a denunciante, na qual ela o
repreendia pelas proposições e falta aos preceitos obrigatórios do Catolicismo, assim
como o médico “estar em sua casa louvando [...] muito as obras que [se] representam
em teatro, profanas”, e ela lhe dizendo que aquilo “não se achava na Escritura” e “nem
Jesus Cristo o tinha deixado recomendado” aquilo que o médico lia para “ensino das
gentes”, José Antônio do Couto teria dito que “Jesus Cristo era um asno”.182
A documentação aqui analisada leva a conclusões que remetem a uma série de
estudos, feitos por historiadoras e historiadores diversos a respeito da História do livro e
da leitura em Portugal e Brasil colonial, durante a Idade Moderna. 183 Em linhas gerais,
as conclusões desses estudos podem ser sintetizadas em três pontos: em primeiro lugar,
a de que havia, tanto em Portugal como no Brasil colônia a circulação de textos
proibidos e não proibidos, impressos ou manuscritos, em português ou em língua
estrangeira, mormente em língua francesa, apesar da censura; em segundo lugar, havia a
discussão e o debate intenso travado em torno desses textos, havendo da parte do leitor
uma marcada inventividade, seja no sentido de desobedecer às proibições, ou de ter
relativa autonomia em relação aos textos, que se via quando os leitores os
ultrapassavam, retirando deles apenas o que era conveniente, ou mesmo subvertendo
seu caráter ortodoxo ou sua leitura ortodoxa ditada pela tradição, como no caso da
Bíblia ou publicações refratárias a tendências modernas; em terceiro lugar, e talvez mais
importante aqui, tais estudos mostram haver diversas sociabilidades desenvolvidas nos
espaços mais diversificados, que acabavam por alcançar sujeitos cuja presença não seria
181
ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Auto de justiça contra o doutor José Antônio
do Couto, proc. 18018. FL.1
182
Ibidem, Fls. 2v-3.
183
ABREU, Márcia. Trajetórias do romance: circulação, leitura e escrita nos séculos XVIII e XIX. 1. ed.
Campinas / São Paulo: Mercado de Letras / FAPESP, 2008. v. 1; ALGRANTI, Leila Mezan. Livros de
Devoção, Atos de Censura - ensaios de história do livro e da leitura na América Portuguesa. São Paulo:
Hucitec, 2004; _____________. Escritura Feminina no Brasil Colonial: os arquivos eclesiásticos e a
relação das mulheres com a escrita. Revista Brasileira de Pesquisa Histórica, Curitiba, v. 20, p. 05-12,
2001. KANTOR, Iris. As academias brasílicas e a transmissão do conhecimento no Brasil colônia.
Revista da Biblioteca Mário de Andrade, v. 63, p. 99-114, 2007; _______. A Academia Brasílica dos
Renascidos e o projeto de escrever a História Universal da América portuguesa (1759). Revista de
História das Ideias (Coimbra), Coimbra, v. 24, p. 51-84, 2003; VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do livro no
mundo luso-brasileiro sob as Luzes. Op. Cit.
374
de se esperar nesses embates de ideias, tais como mulheres, trabalhadores manuais e, no
caso de clérigos, leigos.
Assim, os vários acusados de libertinagem apresentam alguns pontos em comum
que precisam ser ressaltados aqui. O principal deles refere-se à característica mais
fortemente associada ao libertino do final do século XVIII, isto é, assuas sociabilidades,
e não exatamente ser adepto de algum sistema ou doutrina, ou necessariamente ser um
letrado. No caso, essas sociabilidades, entendidas como espaços e ambientes,
proliferaram-se nesse período no mundo luso-brasileiro, onde se discutiam livremente e
de forma crítica pontos de religião. Quanto à possível relação entre, de um lado, tais
proposições e comportamentos e, de outro aquilo que liam, não se pode afirmar que
comportamentos e proposições derivassem necessariamente da leitura dos philosophes
ou de outros autores “heréticos”. Quanto a isso, o que os caracteriza melhor são a
liberdade na interpretação e a formulação de ideias a partir do que leem, além da
verbalização disso nos mais variados espaços de sociabilidade. Afinal, em casos como o
do frei Tibúrcio José da Rocha, seu irmão Eleutério José da Rocha e João Constantino
Matos, os embates dos quais saíram suas proposições foram atribuídos à leitura da obra
de um teólogo católico. No caso de outro religioso, Henrique de Jesus Maria, as
proposições se associaram, nas suas falas e confissão, à leitura de autores regalistas.
Assim, sublinho, mais que a leitura em si, o ambiente propício a debates e disputas em
matérias de religião teve uma relação mais visível com as proposições e
comportamentos libertinos. Além disso, tal como foi analisado no Capítulo 3,
sobretudo em relação aos acusados de libertinagem que trabalhavam na marinhagem e
em cargos militares, a circulação em locais de culturas e religiões distintas e o convívio
com estrangeiros indicam que a experiência e vivências com diversidade se mantiveram
como pontos importantes naquilo que toca a argumentos presentes nas proposições
favoráveis à liberdade e à tolerância religiosas. E a presença de pessoas de pouco
letramento no rol dos acusados de libertinagem faz com que esses libertinos de finais do
Setecentos se afastem, em alguma medida do arquétipo construído ao longo da Idade
Moderna sobre ele, ou seja, como aqueles que possuem acesso privilegiado ao
conhecimento e saber, sujeitos destacados do vulgo e libertos das peias do establishment
da cultura letrada, eivada dos vícios do Antigo Regime. Compôs-se, dessa maneira, um
ethos libertino do final do século XVIII, que definia práticas e sociabilidades
específicas, reconhecida pelas autoridades e por várias pessoas dos mais variados
estratos sociais. O que se percebe, em suma, é que o libertino é mais definido pela
375
atitude, o “estilo de vida libertino”, caracterizado pelo viver e falar livre e com relativa
publicidade, a despeito das estruturas de vigilância, sobretudo a Inquisição e
Intendência Geral de Polícia. Em síntese, os libertinos, não atuando como reles
tradutores passivos de uma cultura letrada das Luzes – sobretudo francesas –,
elaboraram proposições nas quais há uma nítida articulação de elementos tradicionais de
defesa da tolerância religiosa e críticas ao Catolicismo, como a descrença em castigos
eternos e críticas à Inquisição, com aspectos que constam como características de uma
“era da conversa”,184 que marcou as sociabilidades típicas do Iluminismo. Nela, os
domínios das informações circulantes, de maneira cruzada e sobreposta em diversas
mídias – oralidade, mídia impressa, canções, livros e outros – tornavam-se menos
herméticos e fomentavam ambientes de debate.
A tolerância religiosa, expressa de maneira explícita e direta – como na adesão a
ideias tolerantistas, na defesa de que cada um se salva em sua própria lei, na exaltação
de países onde se pode viver cada qual na sua religião, livremente, entre outros – e não
direta – nas críticas à Inquisição, ao sentido dos preceitos cristãos e católicos, às funções
dos eclesiásticos, papa, bulas e outros pontos –, presente nas várias proposições
analisadas neste subtítulo, possui uma importância central nas falas desses libertinos, de
origens e trajetórias diversas. Isso porque tais proposições se dão dentro de um contexto
no qual o Catolicismo e sua unidade são fundamentais ao status quo a ser mantido.
Nelas, dá-se uma disputa pelo religioso vincada na crítica direta a essa unidade, a seus
dogmas e à sua centralidade no tecido social. Isso mostra que, a partir de diversos
núcleos de livres-pensadores – uma das acepções do termo libertino –, as demandas por
uma relação mais branda com a religião predominante – a católica – e tolerante, tanto
com desvios dela ou com outras confissões, faziam-se ouvir no último quarto do
Setecentos. Nos próximos títulos, serão explorados documentos a respeito das outras
duas acepções do termo, na Idade Moderna: o libertino como licencioso em matéria
moral, sobretudo relacionado ao sexto preceito do Decálogo, e o libertino como
monarcômaco, crítico à monarquia absoluta, mas cuja crítica política atinge também a
outras autoridades.
184
SOARES, Luiz Carlos. A Albion revisitada no século XVIII. Op. Cit. p. 199; DARNTON, Robert.
Uma precoce sociedade da informação: As notícias e a mídia em Paris no século XVIII. Varia Historia,
Belo Horizonte, nº 25, p. 9-51, Jul/2001. p. 18-21.
376
4.3 A “Natureza”, o dogma e a moral cristã-católica: libertinos contra o
sexto mandamento
Aqueles definidos como libertinos tinham um comportamento marcado, segundo
palavras do notório libertino Antônio de Morais e Silva, por “sacudir o jugo da razão” e,
nas palavras do frei Bruno de Zaragoza, pela “paixão pela novidade”. Como foi
abordado anteriormente, o processo secularizador ganhou força a partir do reformismo
pombalino, com as reformas na censura e na Inquisição, levando a uma circulação
maior de impressos e de pessoas em diversos pontos da Europa e do império luso. Nesse
contexto, no mundo luso-brasileiro, multiplicaram-se os ambientes de sociabilidade nos
quais se observaram, de maneira mais livre, os usos da razão para uma crítica universal,
menos reverente às autoridades religiosa e política. A exaltação da liberdade para se
criticar matérias diversas, independentemente da autoridade que representassem sob
quaisquer pontos de vista, muitas vezes tocava na crítica à moral cristã. Com isso,
apareceu com mais evidência o licencioso sexual, um tipo de uma das três acepções de
libertino do final do Setecentos. Possivelmente, esse significado é o que permanece de
maneira mais significativa nos dicionários contemporâneos.185 Nas falas e
sociabilidades libertinas, a crítica universal, que existia aliada e permeada pelas defesas
da liberdade e da tolerância, incidiam, de forma quase que natural, em questionamentos
a respeito do pecado. Essas críticas foram, muitas vezes, reorganizadas e reelaboradas
pelos pensadores das Luzes a partir de tradições e críticas anteriores. E, no caso dos
libertinos, isso também se fez ver com grande frequência.
Grande parte dos questionamentos a respeito da moral sexual, nas falas dos
libertinos, vale-se de críticas feitas às definições que a tinham por alvo, advindas do
Concílio de Trento. Jean-Louis Flandrin, analisando a formação e as transformações do
que chamou de uma moral sexual do Ocidente cristão, teve a época do referido concílio
como referência. Ele, porém, abordou o tema num recorte temporal mais amplo. Em sua
análise, chegou a três conclusões importantes a respeito do tema. Primeiramente, ele
concluiu que existiam, “na ideologia dominante” europeia ocidental da Idade Moderna,
“dois arquétipos de conduta sexual”, quais sejam, o que devia ter a procriação por
finalidade e, com reservas, era aceito pela Igreja, e seu oposto, considerado culpável
185
No dicionário Priberam, maior dicionário online de língua portuguesa da contemporaneidade,
aparecem em destaque, como palavras relacionadas ao termo “libertinagem”, os termos “devassidão”,
“salacidade”, “licenciosidade”, ‘desenfreamento” e “desregramento”, além de “devassidão”. Dicionário
Priberam. Disponível em: < https://www.priberam.pt/dlpo/libertinagem> . Acessado em ago./2018.
377
pela Sé romana e enaltecido pela literatura profana. Segundo esse arquétipo, a
procriação não era o fim da relação sexual. A segunda conclusão de Flandrin é a de que
houve uma certa confusão, ao longo do período, em relação a esses dois arquétipos e
que isso foi constante objeto de escândalo e de preocupação dos teólogos e mesmo de
moralistas não eclesiásticos e outros homens de letras. Por fim, segundo o autor, boa
parte desse debate deu-se em torno do conceito teológico de “pecado contra a natureza”
– contra naturans –, que amalgama uma variedade considerável de pecados, mais ou
menos toleráveis, ainda que condenados.186 Em torno desses problemas, desenvolveu-se
a ideia de se “domesticar” a pessoa pela via da célula familiar, inibindo comportamentos
como o concubinato, bigamia e sodomia. Deu-se também a reafirmação de códigos
respeitantes à hierarquia eclesiástica, à disciplina do clero e à homogeneização das
pastorais.187
É importante associar tais tentativas de disciplinarização aos processos de
confessionalização, que marcaram as monarquias europeias, como foi falado no
Capítulo 1. Dentro desse contexto, formou-se uma considerável literatura moralista,
que associava a licenciosidade a uma corrupção mais ampla dos costumes, fosse nas
monarquias católicas, fosse nas protestantes. Nas palavras de Henrique Carneiro, a
“corrupção dos costumes foi o tema chave, a viga mestra do discurso moralizante da
época moderna”, constituindo-se como uma reação “às rupturas profundas de ordem
cultural” que marcaram o período entre os séculos XVI e XVII. Assim, os textos
moralistas, que articulavam uma visão apocalíptica do pior dos mundos, em termos
morais, com uma visão nostálgica de um mundo ordenado, formaram um importante
filão literário, em meio às publicações de leigos e de eclesiásticos. A partir do século
XVII, tais textos se valeram fortemente de apropriações do discurso médico e de
releituras de nomes da medicina clássica, tal como Galeno, no sentido de uma
patologização do prazer sexual e de associá-lo a desvios mais agudos em toda a ordem
social.188A difusão desse tipo de ideário moral na Idade Moderna portuguesa pode ser
bem exemplificado na circulação do Guia dos Pecadores (1553), do frei Luiz de
Granada, teólogo e confessor dominicano espanhol e radicado em Portugal por ter sido
perseguido por místico, pela Inquisição da Espanha. A luxúria, tratada como doença
186
FLANDRIN, Jean-Louis. O sexo e o Ocidente: evolução das atitudes e dos comportamentos. Trad.
Jean Progin. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1988.
187
Ibidem, p. 119-135; VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados. Op. Cit. p.8-12.
188
CARNEIRO, Henrique. Amor, sexo e moral médico-clerical na Época Moderna. Revista HistóriaUSP. 132, p. 29-42, 1995. p. 32-33.
378
física, moral e social, era duramente combatida no texto, que objetivava instruir o bom
cristão na arte de vencer os vícios. Henrique Carneiro observou argumentos idênticos,
praticamente plagiados do dominicano pelo padre Angelo Sequeira, em texto publicado
em 1754 a respeito do mesmo tema.189Célia Maia Borges mapeou sua grande circulação
em toda a Ibéria, entre os séculos XVI e XVII.190 Muitas das proposições que constam
no rol de críticas dos libertinos incidiam, também, na questão moral, sobretudo na
sexual, uma vez que a transgressão da mesma era vista em conjunto com as demais,
tocantes à ordem político-social e a religiosa. Essas críticas se deram de formas bastante
diversas.
Nas várias críticas à moral sexual cristã escritas no contexto da Ilustração,
sobretudo nos livros libertinos – mas não somente neles –, é importante se notar que os
argumentos frequentemente são desenvolvidos a partir de uma ideia chave, importante,
a de “natureza”. Na pena de alguns ilustrados, a natureza era tomada por aquilo que
existe em comum entre todas as pessoas, sendo, essencialmente, um conceito
universalista. Por isso, ela se opõe à ideia de costume, que seria, ao contrário, aquilo
que diferencia e separa as pessoas e as coletividades definidas e construídas
culturalmente. A razão, também universalista, seria a forma de se buscar,
criteriosamente, o conhecimento dessa natureza nos seus mais diversos aspectos. Assim,
cabia aos ilustrados, capazes de alcançar a natureza por meio da razão, interpretar suas
leis e propriedades e organizá-las de modo que seus princípios pudessem ser
apresentados e entendidos por todas as pessoas. A natureza, entendida dessa maneira,
era colocada num patamar superior às autoridades do dogma ou dos costumes, uma vez
que ela era universal e racionalmente compreendida e formulada. Nesse quadro, a
consequência lógica do uso da ideia de natureza era a dedução, a partir de uma axiologia
advinda da compreensão da natureza, dos diversos normativos morais, políticos e éticos
para se viver em sociedade. Por isso, nos tratados sobre diversos temas escritos por
iluministas, é comum encontrarmos termos como “religião natural”, “moral natural”,
“economia natural”, entre outros, contrapostos a outros, como “religião revelada”, ou a
sistemas morais, éticos e filosóficos instituídos pela tradição ou costume.191
189
Ibidem, p. 36.
BORGES, Célia Maia. A circulação e leitura das obras de Frei Luís de Granada nos séculos XVI e
XVII na Península Ibérica. Itinerantes. Revista de Historia y Religión. v. 1 (enero/deciembre), p. 77-99,
2011. p. 78 e seguintes.
191
BLANCO MARTINEZ, Rogelio. La Ilustración em Europa y em España. Op. Cit. p. 73-75.
190
379
Na obra considerada uma das mais emblemáticas dos livros chamados libertinos,
A Filosofia na alcova, ou, Os preceptores imorais (1795), do Marquês de Sade, essa
relação entre crítica moral e reflexões sobre a natureza fica patente. A obra, composta
de sete diálogos e apresentada como uma peça de teatro, narra a história da jovem
Eugénie. A protagonista, ao longo das cenas, compostas por longas reflexões filosóficas
intercaladas por narrativas sobre relações sexuais, é ensinada por outros personagens a
abandonar quaisquer virtudes, que são reduzidas a meras criações humanas e tidas como
“contrárias à natureza”, a saber: a piedade, virtude, castidade e outras. Todas as lições
no sentido da educação da jovem para o abandono da virtude são dadas, sobretudo,
pelas personagens da madame de Saint-Ange, que recebe os demais personagens na
alcova – onde se passa praticamente toda a história –, do seu irmão e amante Cavaleiro
de Mirvel e, sobretudo, por Dolmancé, que se ocupa da maior parte das digressões
filosóficas sobre a natureza do homem, da religião, dos costumes e da sociedade – daí o
título da obra.
A “natureza”, ao longo da obra, é definida de maneira muito clara, sobretudo nas
falas do “cínico Dolmancé”,192 como eterna, imutável e implacável, organizada num
sistema eterno de criação e destruição. Assim, a propensão a buscar o prazer seria um
imperativo natural, similar nos homens e nos animais, inclinados a buscá-lo sem
qualquer barreira que não a força do seu objeto de prazer a impedi-la. Dito de outra
forma, ainda que o prazer do indivíduo provocasse a dor e a morte do outro, ele estaria
agindo de acordo com aquilo para que fora determinado pela natureza.193 As virtudes,
instituídas pela religião e costumes, apenas afastavam as pessoas dos verdadeiros
desígnios da natureza, enfraquecendo-as e escravizando-as, institucionalizando tiranias,
que controlavam corpos e mentes a partir de propósitos completamente contrários à
razão.194 Dessa forma, uma moral sexual, conforme a razão e de acordo com o que
determinava a natureza, pela narrativa de Sade, não teria quaisquer limites. Todo e
qualquer ato ou comportamento, ainda que prejudicasse a integridade própria ou alheia,
estaria de acordo com a ordem natural, que determina, como explica o próprio
Dolmancé, que o ato mais virtuoso possível de qualquer indivíduo seria inferior aos
192
SADE, Marquês de. A Filosofia na alcova, ou, Os preceptores imorais [1795]. Trad. Contador Borges.
São Paulo: ed Iluminuras, 1999, 4ª reimp, 2012 (coleção Pérolas Furiosas). p. 5.
193
Ibidem, p. 30 e seguintes.
194
Ibidem, p. 44-45.
380
mínimos segundos que outro pudesse ter de prazer.195 É possível, todavia, interpretar-se
ao menos uma passagem como uma contradição em relação à forma como o argumento
da obra foi arquitetado: numa fala de Saint-Ange à Eugénie, a dona da alcova instrui a
jovem a manter, fora dali, uma máscara de castidade e virtude, curvando-se ao seu
entorno social, ainda contaminado pelos “vícios” da tradição, da religião e dos
costumes.196 Há dois pontos, porém, nessa forma de se entender tal aspecto da obra, que
são bem coerentes com o arquétipo do libertino e com esse tipo de literatura, que serão
retomados mais à frente.
O uso da natureza, como parâmetro para a construção de uma moral sexual
crítica à cristã, encontra-se, também, na obra Teresa Filósofa ou memórias (1748),
comumente atribuída ao Marquês D’Argens, embora de uma maneira absolutamente
distinta da obra de Sade. O romance, narrado em primeira pessoa, conta a trajetória da
personagem Teresa, entre sua infância e o momento em que cede ao desejo de manter
relações sexuais com o Conde, personagem para o qual, aparentemente, as memórias
são narradas. As diferentes passagens da obra denotam duas relações, aparentemente
antagônicas, entre a moral sexual e a natureza: primeiramente, os impulsos sexuais são
vistos como incontroláveis pela vontade humana, e a tentativa de sublimá-los, em nome
de regras sociais ou princípios morais, seria antinatural e causaria efeitos danosos; em
segundo lugar, porém, o aprendizado a respeito dessa naturalidade dos desejos era parte
da construção da autonomia do indivíduo, com o que a personagem torna-se “filósofa”
por meio do conhecimento da natureza, de si mesma e das reflexões desenvolvidas a
195
Um exemplo disso está numa situação, no Terceiro Diálogo, que envolve Eugénie, madame de SaintAnge e Dolmancé. Nesse trecho, Dolmancé se dirige à Eugénie: “Ora, a virtude não passa de uma
quimera cujo culto consiste em imolações perpétuas, em inúmeras revoltas contra as inspirações do
temperamento. Serão naturais tais movimentos? Aconselhará a natureza o que a ultraja? Eugénie, não te
deixes enganar por essas mulheres que ouves chamar virtuosas. Se queres, elas não servem às mesmas
paixões que nós, mas possuem outras quase sempre bem mais desprezíveis: a ambição, o orgulho, os
interesses particulares, e frequentemente uma frieza de temperamento que nada lhes aconselha. Devemos
alguma coisa a semelhantes seres? Não seguem apenas as impressões do amor próprio? Será então
melhor, mais sensato e apropriado, sacrificar-se antes ao egoísmo do que às paixões? Para mim, creio que
um vale bem o outro. Mas quem só ouve esta última voz provavelmente tem muito mais razão, já que ela
é apenas o órgão da natureza, enquanto o outro o é da tolice e do preconceito. Eugénie, uma única gota de
porra ejaculada por este membro é mais preciosa do que os atos mais sublimes de uma virtude que
desprezo.” Ibidem, p. 26.
196
Nesse trecho, do Terceiro Diálogo, madame de Saint-Ange discorre a Eugénie a respeito da não
naturalidade do dever, imposto às mulheres, sobretudo, de se manterem castas devido a imposições da
sociedade e de suas famílias. “Não escolhe lugares, tempo ou pessoas: todas as horas, todos os lugares,
todos os homens devem servir às tuas volúpias. A continência é uma virtude impossível, cuja natureza,
violada em seus direitos, imediatamente nos pune com mil desgraças. Enquanto as leis continuarem sendo
o que são, devemos usar certos véus; a opinião obriga-nos a isso. Mas compensemo-nos, em silêncio,
dessa cruel castidade que somos forçadas a manter em público.” Ibidem, p.33. Dolmancé, no último
diálogo, diz aos demais personagens também que, fora da alcova, ele era tido por virtuoso, apesar de ele,
no seu interior, apresentar-se como “o mais celerado de todos os homens”. Ibidem, p. 77.
381
partir desse conhecimento. Porém, segundo análise de Natania Meeker, o espaço da
narrativa do livro também se torna um espaço de solução desse aparente paradoxo, na
medida em que intercala “provas” materiais do poder inexorável da natureza, no sentido
de impelir o indivíduo ao desejo carnal. Ao mestmo tempo, também mostra o percurso
do uso da razão, o conhecimento e a reflexão na busca de um entendimento que indica
relativa autonomia possível diante deles.197
Um exemplo dos males que causa a tentativa de conter os impulsos sexuais, em
nome da virtude e da religião, aparece na primeira parte da narrativa. Teresa,
descobrindo sua sexualidade na infância e pré-adolescência, é surpreendida por sua
mãe, aos onze anos, masturbando-se. Depois disso, é colocada em um convento onde é
ensinada a resistir aos impulsos naturais. Devido a seus esforços para sublimar seus
desejos carnais, Teresa adoece e quase morre, aos vinte e três anos.198A ingenuidade em
relação ao erotismo também aparece como um pano de fundo dos abusos sofridos pela
personagem Eradice, cometidos por seu preceptor, o padre Dirrag, que a fazia crer que o
ato sexual que fazia seria uma espécie de purificação.199 E num dos diálogos do Abade
T. e da Senhora C., personagens centrais na obra no sentido de instruírem Teresa, o
primeiro fala sobre a necessidade de dar vazão aos desejos, necessidade tão natural
quanto qualquer outra.200 Na instrução dada pelos dois mencionados personagens à
Teresa, fica claro haver uma diferença substancial em relação à obra de Sade,
mencionada anteriormente: defendem-se limites na vazão dos desejos, em razão da ideia
de “bem comum”. A busca do prazer, de acordo com as leis naturais, deveria estar
MEEKER, Natania. “I resist it no longer”: Enlightened Philosophy and Feminine Compulsion in
Thérèse philosophe. Eighteenth-Century Studies, v. 39, nº 3 – New Feminist Work in Epistemology and
Aesthetics, p. 363-376 (Spring, 2006).
198
D’ARGENS, Marquês, Jean Baptiste Boyer. Teresa Filósofa. [1748]. Trad. Carlota Gomes. Porto
Alegre, RS: L&PM, 2015. (Coleção L&PM Pocket). p. 33-43.
199
Ibidem, p. 46-55.
200
A passagem em questão tem o título “Prática do Abade T., cujo uso ele aconselha aos homens
sensatos”. Ele principia o diálogo com a senhora C. dizendo: “não valho nada quando não executo a tarefa
que mais fortemente afeta a minha imaginação”, no caso, referindo-se aos atos sexuais. Por isso, contou
que: quando vivia em Paris, ocupando-se “quase unicamente da leitura e das ciências mais abstratas, logo
que sentia o aguilhão da carne me atormentar, tinha uma menininha, como quem tem um penico para
mijar, com quem, duas ou três vezes, eu fazia o trabalho pesado”. Depois disso, “com o espírito tranquilo,
as ideias nítidas, recomeçava a trabalhar”. Dessa forma, conclui o argumento, qualquer homem que
tivesse “um pouco de temperamento” deveria “utilizar desse remédio, tão necessário à saúde do corpo
quanto da mente”. Caso contrário, o mesmo homem poderia se afastar de seus deveres e procurar dar
vazão à sua sexualidade de maneira descontrolada, causando danos a outras pessoas próximas. Na fala
seguinte, o abade T. desenvolve um argumento similar para mulheres: entende que elas possuem a mesma
pulsão sexual que os homens, mas as regras sociais as impediam de usar o “remédio” de maneira similar
ao que eles faziam. Portanto, aconselhava que apenas tomassem cuidado quanto à ruptura do seu hímen,
pensando no escândalo social e na própria desonra, uma vez que não conseguiriam, posteriormente, um
casamento. Ibidem, p. 82-85.
197
382
limitada pelo limite definido pela necessidade de não causar mal a si ou à sociedade.
Trata-se, em síntese, de um limite estabelecido conforme a razão, diferentemente dos
criados e instituídos pelo costume e tradição.201
Esse tipo de construção moral, crítica à moral cristã e vincada na ideia iluminista
de natureza, aparece noutras publicações, que não os romances libertinos. Aparece na
pena de philosophes que, a rigor, também recebiam a alcunha de libertinos,
frequentemente, das autoridades portuguesas. Isso fica claro, por exemplo, no verbete
“Onan, Onanisme”, de Voltaire, em seu Dicctionaire Philosophique. O onanismo, para
Voltaire, era “um efeito desordenado do amor próprio”, sendo apresentado como uma
patologia. Valendo-se da publicação sobre o tema do médico suíço Samuel AugusteTissot, o filósofo francês descreve algumas doenças causadas pelo mencionado vício e
remédios necessários para curá-lo. Mas, nesse ponto, dirige sua crítica a uma das causas
desse mal, segundo ele, que são os “temerários votos de castidade”, que os cleros
regular e secular são obrigados a respeitar.202 Abrindo mão do matrimônio e do dom
natural de procriar, conclui Voltaire, muitos jovens, de ambos os sexos, reclusos em
conventos, acabam por ser dominados por doenças causadas por este vício, cuja causa
era a recusa antinatural do sexo. A própria obra com a qual Voltaire dialogou,
L’Onanisme: dissertation sur la maladie (1760), de Tissot, é indicativo importante
dessa concepção de moral sexual. A obra, apresentada academicamente, segundo a
descrição de Voltaire, seguia o método experimental e teria sido baseada na observação
e no estudo feito pelo médico, em Lausanne, de vários casos de jovens masculinos
masturbadores. Daí, construiu o argumento de que o desperdício de sêmen em grandes
quantidades estaria relacionado a vários tipos de doenças debilitantes, como gota,
reumatismo, perturbações no apetite, na visão e sistema nervoso, entre outros.203
Thomas W. Laqueur e autores como Tissot e Voltaire dialogavam com o pressuposto da
medicina iluminista segundo o qual o corpo sofre quando a ordem natural é violada. As
práticas sociais, como o desregramento sexual ou seu extremo oposto, o celibato, eram
É a reflexão que aparece nos títulos “Exames das religiões pelas luzes naturais”, “Origem das
religiões” e “Origem da honra”. Segundo esse argumento, honra, castidade, ou as diversas regras morais,
criadas pelo homem e reforçadas pela religião, não são conforme a natureza, mas mecanismos de
manutenção e perpetuação do poder pelas autoridades. Ibidem, p. 96-103.
202
VOLTAIRE, François Marie Arouet. Ouvres completes de M. de Voltaire. Diccionaire Philosophique,
tome 61. A Basle: chez J. J. Thourneisen, Imprimeur-Librarie. 1792. p. 112-116.
203
TISSOT, Samuel Auguste. L’Onanisme. Dissertation sur les maladies produites par la masturbation.
Par M. Tissot, docteur em Médicine, de la Société Royale de Londres, de l’Académie Médico-Physique
de Basse & de la Société Économique de Berne. A Lausanne: chez Marc Chapuis, et Compagnie, 1760.
3ème edition.
201
383
o que agia mais sistematicamente para a ruptura desse ordenamento. Dessa maneira,
ainda que a condenação moral a determinadas práticas sexuais não fosse,
explicitamente, o objetivo dessas publicações, havia o sentido de se preservar o que
estaria naturalmente determinado, de maneira que a saúde do indivíduo e a vida social
pudessem fluir plenamente.204
O que pensadores do século XVIII viam, dessa maneira, era um processo de
secularização que atingia também um terreno comumente associado ao religioso, que
era a moral, inclusive a sexual. Essa mudança, todavia, não significou uma ruptura com
o religioso, mas, novamente, uma disputa desenvolvida em torno dele a partir de um
outro campo específico. Os autores analisados aqui, exceto o Marques de Sade e Tissot
– este último, muito em função da linguagem médica e científica que adotou na obra e
nos objetivos ali delimitados –, fundaram suas análises em concepções de natureza e, a
partir destas últimas, desenvolveram reflexões sobre os impulsos carnais de figuras
bíblicas ou sobre regras que a tradição vinculou à Revelação e às Escrituras. A partir
disso, sustentavam a defesa de uma moral sexual que refutava regras que eram
contrárias à razão, ainda que não fosse desregrada. O uso da razão os levava a condenar
o celibato e um ideal de triunfo do espírito sobre a carne, de castidade. Uma obra que
sintetiza perfeitamente essa linha de pensamento, com as diversas particularidades do
Iluminismo católico luso, foi a Medicina Theológica, publicada em 1794 e atribuída
erroneamente por muitos autores a Francisco de Melo.
Rosana Agostinho Nunes, em estudo recente a respeito das ideias do médico
mineiro Francisco de Melo Franco – que será analisado mais à frente – demonstra que
apesar de ele jamais ter admitido a publicação da Medicina Teológica e nem de outros
anônimos atribuídos a ele, como o Reino da Estupidez – que será analisado mais à
frente nesta tese –,
205
mas que existe alguma coerência entre as sociabilidades
intelectuais de Melo Franco, o conteúdo das obras e o próprio percurso de publicação
delas, dentro de um contexto de censura. Não existe entre as obras anônimas e as
autorais de Melo Franco argumentos que se contradigam ou defesas de ideias opostas.
Em todas elas, “se sobressai a valorização das ciências da natureza, mediante o uso de
um pensamento racional, pautado na experiência e na observação e, logo, não submisso
204
LAQUEUR, Thomas W. Solitary sex: a cultural History of Masturbation. New York: Zone Books,
2003. p. 40-42.
205
Outros anônimos, que não foram utilizados na pesquisa que deu origem a esta tese, são atribuídos a
Francisco de Melo Franco. São eles Resposta ao Filósofo Solitário e Segunda Resposta ao Filósofo
Solitário, ambas de 1787.
384
às autoridades”. A autora, porém, sustenta e prova que o verdadeiro autor de Medicina
Theologica é Caetano Alberto Dragazzi, ao invés de Mello Franco, como estabeleceu a
tradição oitocentista.206
Assim, enquanto o Reino da Estupidez ironizava o retorno da deusa
(Estupidez) e a desvalorização das “sublimes ciências da Natura”, a
Medicina Teológica destacava a necessidade dos confessores
conhecerem as ciências físicas e as enfermidades da natureza humana
para realizarem sua função. (...) O mesmo se visualiza nas obras
autorais. Em 1790, o Tratado de Educação Fysica afirmava que “a
Medicina nunca deo passos pela mão de vans especulações: a sua base
he a observação e a experiência.”207
Embora trabalhos recentes tenham jogado alguma luz sobre a figura de Caetano
Alberto Dragazzi, sua trajetória ainda é um tanto quanto nebulosa. Rossana Nunes
demonstrou que ele foi, de fato, autor da Medicina Teológica, mas, além disso teve
outros problemas com a Intendência Geral de Polícia. Dragazzi foi preso em outubro de
1791, ou seja, três anos antes da publicação da Medicina Teológica, sendo solto
somente na véspera do Natal do mesmo ano sob a condição de deixar o Reino – algo
que não cumpriu – pela posse de uma obra proibida. Tratava-se de Estado presente de
Portugal e pretérito do Ministério passado, provável tradução da obra anônima Letters
from Portugal on the Late and Present State of that Kingdom, impresso em Londres, em
1777, e atribuído a John Blanket (1740-1801), que mesmo com um tom elogioso ao
Marquês de Pombal, descreve um panorama bastante sombrio do reino do qual Pombal
fora ministro. Na obra, composta por 17 cartas, destacavam-se críticas à Inquisição,
problemas econômicos, falhas diversas dos reis, clero e nobreza, bem como a descrição
de uma população excessivamente supersticiosa e submissa à Igreja. Pombal, na
narrativa, teria sido nada mais que um momento mais iluminado, porém efêmero, dos
portugueses.208 Já Cláudio Denipoti revela uma importante ligação de Dragazzi com o
então cônsul dos Estados Unidos em Portugal, dentre outras redes de sociabilidade tidas
por suspeitas de serem agitadores, revolucionários, “pedreiros-livres”, entre outros.209
Voltando à obra de Dragazzi, é importante dizer que a circulação da Medicina
Teológica não esteve isenta de problemas com a censura. A obra saiu à venda em 20 de
206
NUNES, Rosana Agostinho. Nas sombras da libertinagem: Francisco de Mello Franco (1757-1822).
Entre luzes e censura no mundo luso-brasileiro. Dissertação (Mestrado em História). Rio de Janeiro:
Instituto de Ciências Humanas e Filosofia – Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2011, p. 187 e 261.
207
NUNES, Rosana Agostinho. Nas sombras da libertinagem. Op. Cit. p. 76-77.
208
__________. Discursos “ímpios e sediciosos” em Portugal no final do século XVIII. Topoi (Rio J de
Janeiro), vol.20, n.40, p.40-63, 2019. p. 48-49.
209
DENIPOTI, Cláudio. O embaixador; o livreiro e o policial circulação de livros proibidos e medo
revolucionário em Portugal na virada do século XVIII para o XIX. Varia História, Belo Horizonte, v.
30, n. 52, p. 129-150, 2014.
385
novembro de 1794, como livro anônimo. Meses antes, fora enviada à Real Mesa da
Comissão Geral, buscando sua aprovação. Foi mandada imprimir em 29 de maio de
1794, destacando-se que deveria voltar para ser conferida.210 Posta à venda, causou
enorme escândalo. Inocêncio Francisco da Silva destaca que, em pouco tempo, ela foi
proibida e ordenou-se seu confisco, o que lhe aumentou o valor. O alarde causado pela
Medicina Theologica motivou investigação conduzida pelo intendente geral de polícia
Diogo Inácio de Pina Manique para se encontrar seu verdadeiro autor.211 A própria Real
Mesa de Comissão Geral sofreu consequências, sendo dissolvida e extinta, retomandose o sistema tripartite de censura, formado pelo Desembargo do Paço, Inquisição e
Ordinário.212
Considerando-se os propósitos desta tese, cumpre destacar alguns pontos a
respeito da Medicina Theologica. De fundo, o que se observa é uma secularização da
própria moral cristã, especialmente a relacionada à sexualidade, que aparece na obra
dialogando com outras do pensamento iluminista e em conformidade com um
Iluminismo católico. Deve-se sublinhar que o ponto central da obra é elaborar uma
espécie de concepção secularizada do pecado e, em consequência disso, do próprio
confessor e do sacramento da confissão. Nos quatro primeiros capítulos, a obra
aproxima a figura do confessor da do médico. Em seguida, a própria concepção de
pecado é reelaborada num sentido semelhante. Refletindo sobre a causa dos pecados e
como os enfrentar, Dragazzi coloca a confissão auricular como elemento central dessa
tarefa. Este sacramento “foi o que logo se ofereceu como um entre todos o mais
proporcional e eficaz”, pois “descobrindo-se nela as chagas todas do coração humano,
facilmente podem ser conhecidas e podem ser inteiramente curadas pelos médicos, que
as observam e examinam em segredo”. Acrescenta que “estes médicos são os senhores
confessores e diretores”, pois toda a teologia, durante séculos, os considerava como
210
NUNES, Rosana Agostinho. Nas sombras da libertinagem. Op. Cit. p. 49.
Inocêncio Francisco da Silva detalha a busca de Diogo Inácio de Pina Manique pelo verdadeiro autor
da Medicina Theológica, em verbete sobre o livro no seu Dicionário biográfico. Ele transcreveu, no
mesmo verbete, um ofício do mesmo intendente geral de polícia ao ministro Marquês de Ponde de Lima.
É importante frisar que o autor não menciona o nome de Francisco de Melo Franco como autor. SILVA,
Innocencio Francisco da. Medicina Theologica ou Supplica Humilde ... In: __________. Diccionario
Bibliographico
Portuguez.
Op.
Cit.
Disponível
no
site
BrasilianaUSP
<
https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/5423>.
Acessado em set. 2018.p.175-179. Ver também:
VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do livro no mundo luso-brasileiro sob as Luzes. Op. Cit. p. 154.
212
A respeito do impacto da publicação de Medicina Theologica e das publicações de Francisco de Melo
Franco, no final do século XVIII: NUNES, Rosana Agostinho. Nas sombras da libertinagem. Op. Cit. p.
70-108.
211
386
tais.213 Assim, um confessor somente poderia ser bom nessa tarefa se fosse um bom
médico. Diz Dragazzi que “os dois traços da medicina são a razão e a experiência” e,
assim, os confessores também devem “exercitar o seu ministério com esses dois
braços”. Eles deveriam tratar o pecado não somente baseados na interpretação das leis
divinas, mas também avaliando todas as circunstâncias que influem nele. Ele entende
que “muitos pecados humanos têm sua origem não digo só nas enfermidades da
natureza em geral, mas ainda em doenças particulares do corpo”.214
Particularmente, os confessores, segundo a Medicina Theologica, deveriam
saber a neurologia. Ainda que deixe claro que os confessores não precisassem de um
conhecimento dos mais aprofundados neste ramo da ciência médica, uma iniciação
básica nele se fazia necessária, pois “saber que os nervos são uns cordões que tomam
sua origem no cérebro e da medula espinhal” e “que se distribuem por todas as partes do
corpo” seria fundamental para se entender “que fenômenos poderão apresentar as
paixões humanas”.215 Tal conhecimento é imprescindível para se conhecer – e se tratar –
elementos que independem do livre arbítrio e que levam o homem ao pecado,
comparando essa pulsão natural aos vícios com reações, como cócegas e outros.216 Essa
construção implica, de maneira muito direta, uma concepção acerca de corpo, que é
fundamental para se entender a forma como ela argumenta a respeito dos pecados contra
o sexto preceito. Dragazzi entende corpo e alma como interdependentes, não vendo o
primeiro submetido ao segundo. Diz que a crença de que a pureza da alma depende de
domar-se o corpo conduz a um entendimento que reduz este último à condição de
“escravo rebelde” da alma, “merecedor somente de ser dilacerado com tormentos, por
concorrer algumas vezes para a execução do pecado”. Essa concepção, continua, “tão
longe está de poder servir de fundamento para que, com a verdade, se chamem os
confessores de médicos do espírito”, caracterizando-os mais como “destruidores da
humanidade”, diante da impossibilidade de se operar uma inteira separação corpo e
alma e, por consequência, curar-se apenas uma delas.217
Dragazzi constrói sua argumentação a respeito dos pecados de natureza sexual
na Medicina Teológica, obra que, também, nas suas partes posteriores, se ocupa dos
vícios da cólera e da bebedice. Todos eles seriam não meros produtos da fraqueza
213
FRANCO, Francisco de Mello [atribuído a]. Medicina Teológica. São Paulo: Editora Giordano, 1994.
Coleção Memória. p. 4.
214
Ibidem, p. 23.
215
Ibidem, p. 31.
216
Ibidem, p. 33.
217
Ibidem, p. 12.
387
humana em cair em erros e da sua pertinácia em permanecer neles, mas produtos de
forças naturais, que deveriam ser entendidas e observadas, para serem, depois,
administradas pelos confessores. Deve-se ressaltar que aquela ideia de fragilidade
humana, como se analisou no Capítulo 3, era o cerne das definições dos desvios de fé,
conforme as concepções de pecado e de heresia encontradas no direito canônico e nos
manuais inquisitoriais. Segundo Dragazzi, os eclesiásticos que ignoraram a atuação das
forças naturais no sentido de levar ao pecado, fazendo, por isso, o contrário do que
orienta a Igreja: esta, segundo o autor, quer “que os senhores confessores conheçam os
homens física e moralmente” e, com isso, “evitem aqueles erros do fanatismo e
superstição” nos quais “caíram tantos escritores que ignoraram os modos com que a
natureza obra”, contrariando, dessa maneira, a necessidade do uso da razão e da
observação metodicamente conduzidas para o combate de todos os erros.218
Os vícios associados à sexualidade humana, seguindo essa linha argumentativa
dos primeiros capítulos, são apresentados como produtos da sensibilidade dos neurônios
humanos. São, conforme a Medicina Theologica, resultado da propensão natural do
homem em reagir a estímulos externos, buscando aquilo que lhe propicia boas
sensações, e afastando-se do que lhe causar as más.219 Essa relação das pessoas com
aquilo o que lhes causa fixação ou repulsa proporciona uma série de males físicos –
convulsões, catalepsia, tétano, tísica e mesmo a morte – ou espirituais – a melancolia,
nostalgia, entre outros – de maneira que Dragazzi define o amor – divino ou humano –
como sempre uma patologia.220 Um segundo grau dessa patologia, continua, é a que
Dragazzi define sob o conceito de “erotomania” ou “loucura amorosa”. Este estado seria
“quando os amantes se encontram” e “se tratam com respeito singular” que os levam a
entregar-se “a extravagâncias fantásticas, imitando enfim ao valente d. Quixote nas
loucuras que lhe sugeria seu amor à sua amada Dulcinéia”. Existe, segundo ele, uma
erotomania pacífica, que “produz nos enfermos tristeza e o retiro” e outra, “que produz
efeitos mais vivos, onde os enfermos perdem o apetite de comer e dormir, sustentam
uma inquietação oculta que os devora”. Sob essa inquietação, os efeitos físicos e
espirituais levam os amantes a cair “em um delírio frenético, a que sucedem o furor e a
raiva que os conduzem a precipícios funestos”.221
218
Ibidem, p. 31.
Ibidem, p. 35-36.
220
Ibidem, p. 39.
221
Ibidem, p. 54-55.
219
388
O confessor, segundo Dragazzi, deveria perceber, pelos sinais descritos na
Medicina Theologica e pelas culpas confessadas pelos penitentes, seus desvios
relacionados à erotomania. Mais que isso, o mesmo confessor deveria estar ciente que
“assim as donzelas e rapazes que hão chegado à puberdade, as freiras e religiosos, os
eclesiásticos e todas as mais pessoas que como eles têm uso livre das ações” são
comumente atacados por esta patologia.222 Ou seja, a propensão humana à erotomania
seria natural, e a compreensão desse fato, por parte dos confessores, seria
imprescindível para que ela fosse administrada de maneira a não causar sofrimentos na
pessoa que se confessa. A partir disso, conforme o estado do penitente, o confessor deve
indicar os remédios apropriados. O melhor remédio, segundo Dragazzi, seria o
matrimônio, e não o estado do celibato. O confessor deveria indicar-lhes a procura do
matrimônio mais adequado a seu estado e ministrar-lhes remédios moderados, de forma
que não percam severamente seu desejo carnal, necessário à sua vida de casado e para
ter filhos. Por sua vez, quem estivesse sob votos de celibato poderia tomar remédios
mais severos, de forma a aliviar os sofrimentos causados pelo desejo ao corpo e à alma.
Leva em conta, assim, o impedimento de quem vive em voto de castidade de realizar
tais desejos, que lhe são naturais, para orientar os confessores a prover a essas pessoas o
alívio espiritual da confissão, aparada pelos saberes médicos.223
A erotomania, de toda forma, poderia atingir mesmo aqueles que já tivessem em
estado de matrimônio. Para Dragazzi, a satiríase – nos homens – e a ninfomania – entre
as mulheres – deveria ser evitada a todo custo. Juntamente com a “permissão de se
buscar no uso do matrimônio o remédio para a concupiscência”, vêm “mil enfermidades
quando dele abusam”. Ele defende, assim, “um uso moderado do matrimônio”, que é,
“sem dúvidas saudável, não somente para a alma, como para o corpo”.224 Nesse ponto,
nota-se um diálogo importante do autor com Samuel Auguste-Tissot, um entre vários
médicos renomados do século XVIII – como Boehaarve, Haller, Le Camus e Ribeiro
Sanches – que são mencionados na obra. Tal como Tissot, Dragazzi associa o
desequilíbrio na circulação dos fluidos corporais, causado pelos excessos sexuais, à
fraqueza física e diversas doenças, que vão de sintomas como náuseas e contrações
musculares, até a problemas no coração e no cérebro. Assim, o confessor, percebendo
esse comportamento dos nubentes ou de qualquer outro penitente – celibatário, no
222
Ibidem, p. 56.
Ibidem, p.57-59.
224
Ibidem, p. 70-71.
223
389
sentido de solteiro, ou sob voto de castidade –, ministraria remédios conforme o estado
do penitente – sobretudo no que toca à sua possibilidade ou não de casar-se um dia.
Tudo isso teria por fim moderar seus desejos, restaurando o equilíbrio ideal dos fluidos
corporais e evitando-se os diversos males descritos ao longo da obra.225 Da mesma
forma que faz Tissot, Dragazzi atribui algumas das causas da erotomania a algumas
“curiosidades perigosas”, tais como “a lição de livros amatórios, painéis lascivos”, o
consumo de bebidas e de “comidas especializadas como pimenta, gengibre” e outras.226
O que se observa é que os argumentos da Medicina Theologica são construídos
em conformidade com aspectos do Iluminismo católico. A “súplica aos confessores”, no
sentido de executarem seu papel de “médicos das almas”. percorre uma argumentação
que passa pela valorização da observação, da experiência e é sempre pautada pelo
conceito de “natureza”. À semelhança de Teresa Filósofa ou outros tratados e romances
do período, entende-se que a natureza produz efeitos impossíveis de serem sublimados.
Se o ser humano está à mercê desses efeitos, o conhecimento deles indica possíveis
caminhos para uma relativa autonomia diante deles. A tentativa de fazê-lo desaparecer,
simplesmente, é equiparada à superstição quando baseada no dogmatismo, mais que na
experiência ou no uso da razão. O mesmo se diria ao colocar os desejos carnais como
controláveis apenas pela vontade humana, e seus desvios e excessos associados à
fraqueza ou “tentação diabólica”. Assim, quando o confessor ignora o conhecimento
médico e insiste nos tradicionais castigos e nas ideias de celibato ou de continência,
amparado somente no princípio do livre arbítrio e a despeito do entendimento da
natureza humana, tende a fazer um papel contrário ao de médico das almas, causando
mais danos que benefícios ao penitente e à doutrina. Isso se fundamenta, ao longo da
obra, em constantes usos da História eclesiástica, de argumentos de teólogos e da leitura
das Escrituras, estabelecendo-se diálogos com pensadores clássicos e contemporâneos,
filiados às Luzes. Assim, Dragazzi, ao invés de esvaziar completamente o sentido
religioso da confissão, busca moldá-la em acordo com um ideal racionalizado e
moderado segundo a razão iluminista. Faz o mesmo em relação aos princípios morais
católicos.
Medicina Theologica, em sua primeira parte, em síntese, é uma tentativa de
articulação da moral sexual cristã católica com a iluminista. Tal articulação busca uma
autonomia e uma moderação fortemente ancoradas na ideia de natureza, ideia que une
225
226
Ibidem, p. 72-89.
Ibidem, p. 61.
390
autores tão diversos, tais como Tissot e o Marquês de Sade, que concordam nesse ponto,
apesar das enormes diferenças que há em suas obras quanto às implicações desse
entendimento de natureza. E há, por fim, na obra de Dragazzi, uma reflexão sempre
vincada na realidade prática portuguesa, fundada na diferenciação de estado dos
penitentes, para os quais se recomendam diversos remédios. Pode-se entender, na obra,
uma crítica velada ao celibato clerical, uma vez que ele é colocado abaixo do ideal do
matrimônio, tido como solução à erotomania. Nota-se, aí, algum nível de aproximação
de proposições heterodoxas, analisadas no Capítilo 3 e também neste capítulo, e que
aparecem ao longo de toda a Idade Moderna,227 que fazem a mesma asserção. Porém, a
diferenciação dos remédios, por exemplo, indica uma percepção do lugar social e do
bem comum como determinantes para se pensar sobre remédios morais e sobre a busca
da autonomia quanto aos desejos carnais, de maneira similar ao que aparece,
novamente, em Teresa Filósofa.
Segundo Stuart B. Schwartz, houve, na Idade Moderna, uma proximidade, em
termos de percepção do religioso, entre as dúvidas heterodoxas a respeito do sexto
preceito do decálogo – se a fornicação simples era pecado ou não e sobre a virgindade
de Maria, na concepção e/ou após o nascimento de Cristo, entre outras – e um clamor
por religiosidades mais tolerantes e livres.228 Essa compreensão lança uma luz para se
entender um rico campo de proposições dos acusados de libertinagem no fim do XVIII.
Soma-se a isso o estado “dividido” — conforme categoria pensada por Anita W.
Novinsky229 e discutida no Capítulo 3 —, importante para se entender que a crítica à
moral cristã pauta-se em reflexões que intercalam, de um lado, matrizes populares de
dúvidas, tidas como heréticas e, ainda, um tolerantismo popular e, de outro, debates
letrados, que remetem a uma cultura das Luzes. Com isso, conclui-se que essa crítica
moral faz parte do mesmo campo de disputas pelo religioso em que viceja a defesa de
uma maior tolerância em termos de religião.
A defesa de que a fornicação simples não era um pecado foi uma das
proposições mais comuns, como se observou nos documentos analisados, referentes ao
tenente Hermógenes Pantoja e a alguns estudantes do núcleo de Coimbra, entre outros.
Como demonstra Ronaldo Vainfas, houve na Idade Moderna – especialmente no Brasil
227
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados Op. Cit. p. 49-68 e 93-106.
SCHWARTZ, Stuart. Cada um na sua lei. Op. Cit. p. 231-241 e 50-57.
229
NOVINSKY, Anita W. Cristãos-novos na Bahia. Op. Cit. p. 141-162; _________. Estudantes
brasileiros “afrancesados” na Universidade de Coimbra. A perseguição de Antônio de Morais e Silva. Op.
Cit.
228
391
colonial, enfoque central de sua pesquisa – um universo rico de contestações ou
verdadeiras inversões do sexto preceito do decálogo. Isso se deu pela difusão de
proposições nas quais se defendia que o sexo praticado com mulher não virgem e não
casada não seria pecaminoso, além de outras que iam além, defendendo que quaisquer
desvios nesse ponto poderiam ser perdoados pela infinita misericórdia divina.230 No
Regimento de 1774, no § 8, título VIII, havia uma disposição sobre a obstinação na
defesa dessa proposição. Quando a “pessoa que afirmar que a fornicação simples não é
pecado” for “rústica”, deverá ser “condenada a ouvir sua sentença no auto que lhe
destinamos, onde fará abjuração de leve suspeita de fé” e fará penitências espirituais.
Porém, “sendo pessoa de qualidade, fará abjuração na Mesa” inquisitorial.231 O que se
percebe aqui, conforme analisado no Capítulo 3, é os inquisidores diferenciam a
“blasfêmia herética”, com risco de heresia e muitas vezes entendida como produto da
rusticidade de quem a profere, das blasfêmias proferidas por pessoas “de qualidade”,
possivelmente letradas e de uma educação, em termos doutrinais, presumidamente mais
refinada. Nesses casos, incorre-se no risco mais agudo, segundo entendimento dos
inquisidores, da proposição estar articulada com um nível mais sofisticado de
elaboração de algum erro. O caso dos libertinos, frequentemente, pertence a esse
segundo grupo de percepções sobre a defesa da da fornicação simples não ser um
pecado.
Dessa maneira, a defesa da fornicação simples está relacionada, nas denúncias e
acusações de libertinismo, a um “viver libertino” mais amplo, no qual se relacionam as
sociabilidades, a crítica universal e o falar livremente sobre pontos de religião. É o caso
da denúncia de José Borralho contra Antônio de Almeida Nabarco, cirurgião, cristãonovo – classificado desta forma, mesmo depois do fim da distinção entre cristãos velhos
e cristãos novos –, por blasfêmia e proposição herética e judaísmo, dada em dezembro
de 1780, na freguesia de Aiuruoca, em Minas Gerais. O denunciado teria dito que a
fornicação simples não era pecado e que não há obrigação de guardar os dias de jejum.
Ao ser repreendido por não respeitar os jejuns obrigatórios, dizia: "Deus não entra em
minha barriga". Questionado por afirmar que a fornicação simples não era pecado, teria
falado ao denunciante que ele era um "cavalo, que não sabia gramática" e dizia que o
trecho da Bíblia que é interpretado como uma interdição à fornicação nada mais era que
230
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados. Op. Cit. 56-57.
SIQUEIRA, Sônia Aparecida. A disciplina da vida colonial: os Regimentos da Inquisição. Op. Cit. p.
944.
231
392
um impedimento ao adultério.232 Também em 1780 e com pontos similares, em
setembro, foi feita denúncia contra Francisco Reis Dantas, por João Pereira de Quadros,
na freguesia das Mercês, em Portugal. O denunciado teria dito que não era pecado a
fornicação simples, ou seja, "entre mulher [e] homem livre não era pecado, assim como
antigamente se praticava, e que por pondera[r] em concilio este ponto, se determinara
ser pecado". Completava dizendo "[qu]e, posto que venerava as decisões do concílio,
contudo, conhecia que não era aquele ato que fazia mal no mundo".233 Na denúncia feita
por Perpétua Dias em Abranches, em Portugal, em março de 1782, contra Francisco
Ferreira, este teria proferido que não era pecado qualquer homem ter cópula com
mulheres e que só o era tendo-a com animais.234 Elementos similares se encontram na
diligência para a averiguação de culpas contra José Antônio da Silva, estudante do
terceiro ano de Medicina em Coimbra, após quatro denúncias contra ele dadas em 1778.
Todos os denunciantes contam que José Antônio manifestava “ódio e raiva dos clérigos
e frades”, e também “não falava com um irmão que tinha, só por motivo de ser frade”,
comia carne em dias de preceito e não se ajoelhava durante a missa, exceto
discretamente para evitar escândalo, além de ridicularizar devoções dos outros.
Criticava a Inquisição, dizendo que era “asneira”, pois “portugueses e espanhóis”
obravam mal ao mantê-la, ao contrário de “França, Inglaterra e outros Reinos, em que
não havia Santo Ofício” e, por isso, “eram mais florentes e que ali se vivia com
liberdade de consciência e seguia cada um a religião que queria”.235 Acrescenta-se nas
denúncias que José Antônio da Silva, antes de voltar para a casa de sua mãe, no Rio de
Janeiro, após saber da prisão do lente José Anastácio da Cunha,236 teria instruído sobre
suas doutrinas a um amigo seu, nomeado por Manoel Ferreira, corista da Sé de Lisboa.
Ele, conforme a denúncia, instruiu o corista de que “as molícies”, ou a masturbação
praticada sozinho ou com outro homem, “não eram pecado, e mostrava o moço
persuadido desta doutrina”.237 Falava ainda que o sexto preceito do decálogo se referia
somente à fornicação.238
232
ANTT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. 130º CADERNO DO PROMOTOR. Op.Cit.
Fl. 293.
233
Ibidem, Fl. 308.
234
Ibidem, Fl. 373.
235
ANTT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de José António da Silva, proc.
13365. Fl. 4.
236
Ibidem, Fl. 4v.
237
Ibidem, Fl, 4
238
Ibidem, Fl. 10v.
393
Na denúncia de Domingos José de Barros contra José Francisco Baião, dada aos
4 de abril de 1785, no arraial da capela de Nossa Senhora dos Carijós, Minais Gerais,
consta que o denunciante, “compelido dos seus confessores denunciava um capitãomor”, de nome supracitado. Disse que Baião convidou “ele, denunciante, para um
pecado da molície”, e o denunciado “defendendo-se com a cristã e justa repulsa de que
não cometia tão enorme culpa, que podia conduzir ao Inferno”, o denunciado retrucara
“que nem aquela torpeza, nem a fornicação simples eram pecados” e que “nem havia
Inferno, depois que Cristo bem-aventurado veio ao mundo”. Disse, ainda, que tais
proposições eram ouvidas de outras pessoas, do mesmo arraial.239 O mesmo
denunciante fez uma denúncia anterior contra o mesmo capitão-mor João Francisco
Baião, sobre a mesma matéria e no mesmo ano, com a diferença de que, ao justificar
que nem a molície e nem a fornicação simples levavam ao Inferno, dizia que ninguém
mais era condenado por ele e que a Igreja encobria tal verdade.240
No estudo feito por Luiz Carlos Villalta a respeito do processo dos irmãos José
Joaquim Vieira Couto e José Vieira do Couto, juntamente com Maria Madalena
Salvada, cotejando informações dos processos com pontos do romance Teresa
Filósofa,241 fica patente uma sociabilidade constituída segundo os arquétipos do
libertinismo como entendido no final do século XVIII e em princípios do século XIX.
Nos processos dos irmãos supracitados, a crítica religiosa e moral e, ademais, a defesa
da tolerância aparecem de maneira destacada e como componentes de uma perspectiva
crítica ao status quo. O doutor José Vieira do Couto foi denunciado em 1773, pelo
médico Luiz José de Figueiredo, morador, à época, no Arraial do Tejuco, nas Minas
Gerais. O doutor teria dito várias proposições, entre as quais de que não haveria Inferno,
que não passava de “patranha portuguesa”, além do que “se jactava, ao contar a uma
concubina sua de que se estiveram em Holanda”, poderia se confessar à parede, e que a
“Holanda era terra boa”, já que “lá cada um vive na lei que queria e nada se
estranhava”. A Inquisição ordenou que fosse repreendido asperamente, o que não
ocorreu, pois não o encontraram.242 O destino de José Joaquim Vieira Couto foi mais
239
ANTT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa.130º CADERNO DO PROMOTOR. Op.Cit. Fl.
433.
240
Ibidem, Fl, 430.
241
VILLALTA, Luiz Carlos. Leituras Libertinas. Revista do Arquivo Público Mineiro. Ano 48, v. 1.
Jan/Dez. 2012. Belo Horizonte. p. 78-97.
242
ANTT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa Processo de Doutor José Vieira Couto, proc.
12957.
394
duro, ao ter caído nas malhas inquisitoriais duas vezes, envolvido com a
francomaçonaria, tendo vindo a falecer nos cárceres inquisitoriais em 1811.243
Maria Madalena Salvada, por sua vez, apresentou-se duas vezes ao Santo Ofício.
Na primeira, em janeiro de 1804, perto da primeira prisão de Joaquim José Vieira Couto
– em 1803, tendo saído brevemente em 1807 –, disse que, ainda casada com o piloto
Carlos José dos Prazeres, saiu de sua casa para “praticar ações libidinosas” com Vieira
Couto. Lá, consta na apresentação. Maria Salvada teria tido contato com ritos
maçônicos, além de ler, juntamente a Vieira Couto, romances franceses, os quais não
especificou. Na primeira audiência com os inquisidores, contou que “duvidava do
defeito do sexto preceito”, pois “Deus não se incomodava com ações libidinosas”,
acrescentando também ter ouvido e proferido que Deus não se envergonhava com a
visão do corpo humano,244proposição esta muito parecida com uma frase do mestre
Dolmancé, numa das cenas da Filosofia na Alcova, na qual convence a jovem Eugénie a
ficar nua junto a si e aos outros preceptores.245 Na segunda apresentação, feita após
carta denúncia do promotor Bernardo Barbudo Figueroa Seixas, reafirmam-se as
proposições retro e apresentam-se algumas outras culpas, tais como desacatos a
símbolos sagrados e leitura de livros proibidos. O promotor, por sua vez, denunciou que
Maria Salvada teria conseguido receber José Joaquim Vieira Couto em sua cela, por
meio de suborno dos guardas. Ela teria dito que os “ministros do Santo Ofício eram
quatro babosos que faziam do direito, torto, e do torto, direito”, além de ter afirmado o
comum mote maçônico de que “não haveria pecados, além de não dar socorro a quem
243
Sobre José Joaquim Vieira Couto, sua perseguição e prisão pela Inquisição e Intendência geral de
polícia: BARATA, Alexandre Mansur. Maçonaria, Sociabilidade Ilustrada & Independência do Brasil.
Op. Cit. p. 50, 56, 84-85 e 100-102.
244
ANTT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa.Apresentação de Maria Madalena Salvada,
proc. 9275.
245
Com a diferença de que Dolmancé não menciona o nome “Deus”, mas a natureza. No caso, ele
desenvolve o argumento de que o pudor seria inútil em uma sociedade livre e republicana, que deveria
organizar-se de acordo com o que a natureza determina. No monólogo Franceses, mais um esforço se
quereis ser republicanos, o personagem diz que: “o pudor, esse movimento pusilânime, contraditório aos
afetos impuros”, não faz sentido, pois se “estivesse nas intenções da natureza que o homem fosse pudico
seguramente, ela não o teria feito nascer nu”. Da mesma forma, diz que muitos povos “menos degradados
que a França”, pelos costumes da civilização e moral cristãs, “andam nus e não sentem vergonha disso”.
Observa-se, na sua fala, uma associação do pudor à figura feminina, já que diz que: “não duvidemos do
fato de que o costume de se vestir teve por única base a inclemência do ar e a vaidade das mulheres”.
Sobre estas, aliás, frisa que “entendiam que perderiam logo todos os efeitos do desejo se os
precipitassem”, e então “imaginaram que a natureza” as “teria assegurado todos os meios de agradar”,
disfarçando sua nudez com adornos. Depois disso, elogia a nudez, sobretudo a masculina, numa longa
exaltação das civilizações greco-romanas. Em sua argumentação, o pudor, em geral, e, especificamente,
em relação à nudez, não seria apropriado para a república, uma vez que conduz a diferenciação e
afetação, e não a uma valoração da figura humana, imprescindível aos valores republicanos. SADE,
Marquês de. A Filosofia na alcova, ou, Os preceptores imorais. Op. Cit. p. 106-112.
395
precisa, quando se pode o fazer”.246 Se quanto à primeira apresentação, Maria Madalena
Salvada fora absolvida ad cautellam, e recebera como penalidades receber instrução
espiritual e abjurar de seus pontos, na segunda, ela foi considerada diminutiva – em
outros termos, teria confessado menos do que os inquisidores esperavam que
confessasse, ocultando culpas suas ou de outrem – e foi reconduzida ao cárcere.
Outra tópica, constante na fala dos acusados de libertinismo, era tocante à
virgindade de Maria Santíssima. Este ponto foi estudado por Luiz Mott, que mostrou
haver uma relativa constância dessa matéria em proposições no Brasil colonial, entre os
séculos XVI e XIX, constatação também demonstrável para Portugal no mesmo
período.247 No caso dos libertinos, da mesma maneira que ocorria com os
questionamentos em relação à fornicação simples, havia uma articulação entre a
proposição referente à impureza de Maria Santíssima e a crítica religiosa que faziam.
Nessa articulação, os libertinos cruzavam a proposição sobre Nossa Senhora, de matriz
popular, com o uso de reflexões tipicamente iluministas, valendo-se de aspectos como a
liberdade de fala, o uso da razão e as críticas amparadas no saber científico. É o que se
observa na denúncia contra o estudante Nicolau Tolentino Sales, morador no bairro da
Alfama, em Lisboa, dada ao comissário Veríssimo Manoel de Azevedo Serra e passada,
por este, ao inquisidor João Justiniano Farinha, que mandou fazer averiguações sobre o
caso. Na averiguação – feita em 1796, mesmo ano da denúncia –, foram ouvidos o
mestre de ofício de salteiro Francisco Henriques e o latoeiro José Pedro de Abreu. Tais
depoentes descreveram o jovem como um “libertino, costumado a proferir e seguir
proposições heréticas, temerárias e escandalosas”. Declararam que ele era habituado a
frequentar várias festividades de diferentes paróquias a fim de entrar em disputas sobre
argumentos teológicos com os sermonistas. Disseram que, na quinta-feira santa do
mesmo ano, em conversa na loja do mestre de ofício de salteiro mencionado,
conversaram os dois denunciantes e Tolentino Sales. Este último teria dito que fora
assistir a um sermão no dia anterior e, ouvindo o pregador falar contra os libertinos, ele
lhe teria respondido que, entre eles, “havia muitos e espertos” e que os libertinos
“combatiam com mais força” três pontos, melhor dizendo, negavam “a existência da
Eucaristia, a imortalidade e a virgindade de Maria Santíssima”. Disse que os libertinos
fundamentavam esses pontos segundo as regras da Geometria. Quando os dois
246
ANTT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Carta do Promotor Bernardo Figueiroa
Barbudo Seixas sobre a ré Maria Madalena Salvada, proc. 16463. ANTT. Tribunal do Santo Ofício,
Inquisição de Lisboa. Processo de Maria Madalena Salvada. Tribunal do Santo Ofício, proc. 9276.
247
MOTT, Luiz. Maria, virgem ou não? Op. Cit.
396
denunciantes lhe retrucaram, dizendo aquilo ser produto de ignorância, Nicolau Sales
teria respondido que esse tipo de proposição “não nascia da ignorância, mas sim de
serem muito sábios”, pois, “se não o fossem, não falariam nesses pontos”. E ao ser
advertido de que poderia ser denunciado ao Santo Ofício, teria dito “que lhe não
importava isso e que já não havia excomunhões”.248
Noutra denúncia, dada pelo comissário da Inquisição João Coelho Soares contra
várias pessoas, em Lisboa, em 1779, a negação da virgindade de Maria também vem
associada com a descrição de um tipo de sociabilidade libertina. A denúncia foi feita a
partir de uma apresentação dada por Nicolau Gonçalves, instrumentista que estava fazia
seis anos no lugar de Elvas. Ele teria dito, segundo o comissário, que, em conversa com
um alemão, que identificou como João "Bragaxe", e um outro sujeito chamado
Henrique, cujo sobrenome afirmou ter esquecido e que era de nação francesa, os
denunciados teriam dito que passaram, ao longo dos anos recentes. por diversos reinos,
e viram pessoas professando diversas religiões e, ao verem que elas viviam
normalmente sob leis diversas, teriam levantado dúvidas sobre qual era a verdadeira.
Também teriam dito que duvidavam do sacramento da Penitência, que, segundo eles,
não passava de uma instituição da Igreja, não de Cristo. Nicolau Gonçalves foi descrito
como um homem dado aos vícios da bebedeira e luxúria, mas, fazia três anos, segundo
o denunciante, que por reflexão sobre seus atos e procurando se confessar, teria mudado
seu comportamento. Ele denunciou ao comissário, por fim, outro instrumentista,
identificado como Henrique Nunes. Disse que este último, diante de um outro
instrumentista de nação francesa, teria dito que Maria Santíssima não deveria ser
adorada, mas sim venerada, dado que “o Testamento determinava se adorar somente a
um deus”. Além disso, afirmara que os jejuns católicos não foram inventados pelo
Cristo e, sim, pela Igreja. Acrescenta ainda alguns "sócios" desses instrumentistas,
como um sapateiro identificado como “José, de nação inglesa”, que dizia que “Maria
Santíssima era igual às outras mulheres e que fora prostituída”, referindo-se a “ela como
‘puta’”.249
Na carta denúncia de dona Maria Barbosa du Bocage, contra o contador José
Diogo, datada de outubro de 1812, há também essa relação de libertinismo com a
negação da virgindade de Maria. A denunciante confessou, em carta, cerca de doze anos
248
ANTT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de Nicolau Tolentino Sales, proc.
13436.
249
ANTT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. 130º CADERNO DO PROMOTOR. Op.Cit.
Fl. 60.
397
antes, tivera “relações com José Diogo, contador de Argote” e morador em Lisboa.
Nesse tempo, ela disse que dele ouvira proposições que abominava, supondo que ele “as
dizia de pouco juízo e talvez com alguma má intenção”, tais como “que a Virgindade de
Maria Santíssima, depois do parto, se não podia capacitar”.250
O que se entende aqui, por fim, é que o viver libertinamente era relacionado ao
viver de maneira fora do que determina a moral sexual cristã, mas também somado a
outras críticas religiosas, inclusive a essa moral. Essas críticas não se restringem ao
século das Luzes, nem sequer aos libertinos. Sua novidade reside na forma como eles as
articulavam com noções tipicamente iluministas, tais como a de “natureza”, apelando ao
próprio uso da razão, à observação e ao empirismo – geralmente, na forma de uma
crítica livre e inventiva das Escrituras e da própria doutrina católica –, de sorte a
embasar algumas das proposições. No caso das falas dos libertinos, tanto brasileiros
como portugueses, é visível uma articulação típica desses pontos, mencionados acima,
com reflexões e dúvidas sobre o próprio Catolicismo, marcantes no Iluminismo
católico. Nessa articulação, a linha entre uma crítica erudita – como a da Medicina
Theológica – e as falas de pessoas comuns, dos mais diversos níveis de instrução, é
relativamente tênue. Portanto, no âmbito da moral vigiada pela ortodoxia católica e, por
conseguinte, pela Inquisição e pelos demais órgãos de censura, dava-se uma disputa
pelo religioso. Em tal disputa, na maioria das vezes, há, de forma sutil e indireta, uma
demanda por se atenuarem as restrições postas pelo dogma e pela aproximação entre a
moral estabelecida e as percepções mais brandas sobre a natureza e necessidades
humanas. Aqui, a defesa da tolerância, direta e indiretamente, cruzava-se com a
demanda por uma moral católica, regulada e humanizada pelo uso da razão.
4.4 Os libertinos, os fanáticos e os intolerantes num “reino de estupidez”
No começo deste último capítulo, analisei o sermão do frei Bruno de Zaragoza a
respeito dos libertinos. Nele, havia um diagnóstico sobre o contexto no qual esse tipo
delituoso de alçada inquisitorial, identificada com um arquétipo específico típico da
Idade Moderna e que recebeu uma roupagem e organização distintas nas Luzes, sendo
mais frequentemente presente na massa documental dos tribunais de fé. O “voluptuoso
250
ANTT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Carta de denúncia de d. Maria de Barbosa du
Bocage contra José Diogo, proc. 14684.
398
século” XVIII e seu “espírito de novidade”, de acordo com o frei, seduziam pessoas
pelo intelecto e pelos sentidos, desviando-lhes da fé. A compreensão disso, para
Zaragoza, era fundamental para se defender a religião do libertinismo que assolava seu
tempo. Essa preocupação do frei Bruno de Zaragoza remete a um “regime de
historicidade” específico, compartilhado pelos libertinos e por seus censores. O conceito
“regime de historicidade”, tributária da obra de François Hartog, visa contribuir para se
apreender o tempo e momentos de crise do tempo. Esses momentos são entendidos
como aqueles em que “as articulações entre passado, presente e futuro deixam de
parecer óbvias”, envolvendo, por isso, a busca de novos arcabouços de compreensão.251
Nas falas dos libertinos e nas preocupações de seus censores, conflitos entre a tradição,
os costumes e as novidades colocam-se muito dramaticamente. Nelas, a questão da
tolerância religiosa é uma espécie de fio condutor, sendo concebida como “novidade”
perigosa ao status quo ou, inversamente, como imperativo de modernidade e
civilização. A difusão dos núcleos de acusados de práticas libertinas por Portugal e
Brasil indicava que um mundo sem Inquisição e com liberdades morais, políticas,
religiosas e de pensamento, já era, para muitos, mais que um sonho distante, mas algo,
até determinado ponto, iminente. Percebia-se, todavia, alguma distância entre seu
presente e esse mundo possível de tolerância, ou mesmo retrocessos a um passado
identificado como um obscurantismo sempre à espreita.
Pelo viés do “risco das novidades do século”, observa-se um tom bem mais
sombrio e alarmista na também já analisada denúncia contra o tenente Hermógenes
Pantoja, dada na Bahia em 1797. Dirigindo-se ao vigário José Nunes Cabral, o frei
Manuel do Sacramento, após detalhar as diversas proposições contra o “doge ou chefe
dos libertinos”, envolvido, posteriormente, na Inconfidência Baiana, justificou sua
denúncia por se ver “obrigado a tomar razão do temperamento demasiadamente
escrupuloso que tem”, diante de todas as proposições que ouviu, “com tudo os rumores
públicos” que o deixavam “assaz perplexo”. Depois de detalhar algumas falas
heterodoxas, disse que aquilo serviria para evidenciar “o estado miserável em que se
acha esta cidade” da Bahia, do qual “se podem recear consequências funestas”, e “isto
se a nossa Fidelíssima Suserana não remediar” tal estado de miséria, “com tempo traga
251
HARTOG, François. Regimes de Historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2013. p.28-29.
399
mal [e] tão grande ameaça ao mesmo tempo a destruição já da Religião, já do Governo
como da República”.252
Uma relação entre libertinismo e “francesias”, “ameaças à república” e à religião
advindas das “novidades do tempo”, parece ter sido tópica recorrente na Bahia, na
virada do século XVIII para o XIX. É o que mostra o processo contra Rodrigo Sodré
Pereira, acusado de libertino, cujas averiguações de delitos ficaram inconclusas devido à
morte do acusado, antes da audição de testemunhas. Em novembro de 1792, o padre
Manoel Alberto denunciou Sodré Pereira, ao comissário da Inquisição lisboeta Manoel
Anselmo de Almeida Sande, por viver “escandalosamente e com muita libertinagem”. O
denunciante disse que ele injuriava imagens de santos, dizia que a alma morre junto
com o corpo “da forma dos irracionais”, negava a existência do Inferno, entre outros
pontos. Sodré Pereira, segundo a denúncia, vivia em trato ilícito com uma cunhada sua
– que era viúva – e instruía um sobrinho seu “pelo cego caminho da perdição”,
ensinando-lhe que não se deve confessar. Sobre este ponto, teria publicado –
aparentemente, com algum papel escrito – abaixo da janela da casa de um letrado na rua
do Tijolo – na atual cidade de Salvador – “que não se deve confessar pecados a um
sacerdote que come como eles”. Declarou ainda que o acusado “fazia gala de fazer ver
suas vergonhosas partes em público” e descreveu, ainda, encontros dele com outros
libertinos da cidade, no engenho de sua cunhada e concubina. Nesses encontros, houve
lugar para proposições e desdém com imagens sagradas e sacramentos católicos. Num
deles, regado a bastante vinho, Sodré Pereira “se pôs nu em pêlo diante da família”, na
casa do dito engenho na fazenda em Cachoeira, também na Bahia, bebendo diante dos
vários “sócios” do seu círculo de libertinos, disputando com liberdade em matérias de
religião. Em conclusão, o padre Manoel Alberto disse que Sodré Pereira, “judeu por
parte de mãe”, “não pensa mais que enganos e ladroeiras” e diz que, “pelo que tem
ouvido e presenciado”, o que disse “não é nada em comparação das suas libertinagens”.
Por isso, concluiu o padre que se persuadia “que, se à proporção da sua maquiavelice e
talento” para obrar o mal “tivera estudos, teríamos mais um heresiarca”. Constou, ainda,
que Rodrigo Sodré Pereira iria para a Corte nos primeiros navios que ali chegassem
àquela data, autorizado pelo governador d. Fernando de Portugal e Castro.253
252
ANTT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Denúncia contra o tenente Hirmógenes e
outros. Op. Cit. Fl. 4.
253
ANTT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de Rodrigo Sodré Pereira, proc.
1810. Fls. 2-4.
400
O heresiarca era, conforme os regimentos e manuais inquisitoriais, o patamar
mais perigoso possível de herege, pelos danos que causaria à religião e à república,
devido às suas formulações angariarem sectários. Assim, o religioso deixava implícito
que o comportamento de Rodrigo Sodré Pereira, por sua ousadia e artifícios, seria muito
mais danoso a todos se tivesse refinamento maior, dado pelo letramento. Essa mesma
associação aparece de maneira mais direta no processo contra Cipriano José Barata e
Marcelino Antônio de Souza, possivelmente em função da Conjuração da Bahia,
ocorrida no ano do processo – 1798. Os dois foram denunciados pelo padre José da
Fonseca Neves, capelão do engenho de Paulo Argolo por serem “formalmente
heréticos”, dizendo proposições como que, “fora o Ente supremo, tudo mais é
fantasma”, manifestando descrença no Inferno e no Purgatório. Diziam também que
alma morre com o corpo, “que os ministros da Igreja são uns impostores que destroem a
sociedade humana”, repetindo o mesmo sobre os monarcas, dentre outros pontos. Além
disso, diziam, segundo denúncia, que “estão prontos para morrer pelos erros que
seguem, que dizem hão de se retratar se forem presos pelo Santo Ofício, permanecendo
depois nas suas antigas crenças”.254 Cipriano Barata, segundo Marco Morel,
se
transformaria, posteriormente ao recorte temporal desta tese, em “um dos primeiros e
principais líderes políticos de âmbito nacional no Brasil”. Ele exerceria liderança “não
pelo seu poder burocrático, militar ou econômico, nem pelo peso da tradição ou pela
crença religiosa”, mas “pela palavra pública impressa e falada”, cuja trajetória política e
de vida perpassa toda uma crise do sistema colonial.255 O citado historiador possui
alguns estudos de fôlego que tocam a trajetória de Barata, importantes na
historiografia.256
254
ANTT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Sumário contra Cipriano José Barata de
Almeida e Marcelino Antônio de Sousa, proc. 13865. Fl. 2.
255
MOREL, Marco. Os escritos de Cipriano Barata. Observatório da Imprensa. 09/06/2009. Disponível
em: < http://observatoriodaimprensa.com.br/armazem-literario/os-escritos-de-cipriano-barata/>. Acessado
em set./2018.
256
Existem, por exemplo, trabalhos sobre Cipriano Barata como periodista, sobretudo referentes ao
Sentinella da Liberdade (1823, 1831-1834), nos quais se destaca a construção de uma linguagem e
retórica políticas importantes ao processo de Independência do Brasil. Nesse âmbito, destacam-se os
trabalhos de Marco Morel, sobre o assunto. Também não se pode deixar de mencionar textos que se
dedicaram à atuação de Cipriano Barata nas Cortes de Lisboa (1820-1823), versando sobre diversos
temas, como sua retórica cívico-humanista e valores republicanos constantes em seus discursos e
publicações, como demonstra Renato Lopes Leite. Não especificamente sobre Cipriano Barata, mas tendo
ele e sua atuação como parte de uma investigação sobre os discursos políticos e seu papel na construção
de identidades nacionais no contexto da independência e pós-independência do Brasil, neste país e em
Portugal, cabe menção aqui ao trabalho recente de Alexandre Bellini Tasca. Sobretudo porque nessa
análise de discursos e formação de identidades, o autor envolve diversos temas, tais como a posição de
Cipriano Barata quanto a temas como a escravidão e a inserção do liberalismo nos discursos e valores
político do período. MOREL, Marco. Cipriano Barata na Sentinela da Liberdade. Salvador: Academia
401
Ao que interessa aqui, é importante ressaltar algumas informações que aparecem
no parecer de João Lobato de Almeida, comissário da Inquisição. Ele faz associações
entre libertinismo e ameaças maiores ao status quo católico, de modo similar às
encontradas nos documentos anteriormente analisados. Depois de ouvir as testemunhas,
o comissário começa o parecer dizendo que nunca tivera diligência de que fosse
incumbido que lhe “determinasse mais perturbação” que a relativa a Cipriano e
Marcelino. Isso por perceber o quanto aquela diligência lhe mostrava que “a nossa Santa
Fé vai amortecendo com muita particularidade na mocidade presente” e “que, por falta
de disciplina, se vão engolfando na libertinagem e francesia”. Isso ocorria naqueles
tempos por falta de respeito às autoridades, completa. Mencionou episódios em que
havia evidentes sinais de comunicação entre as testemunhas inquiridas – em claro
desrespeito ao juramento de prestar segredo no que fosse tratado pelo Santo Ofício – e a
conivência do governador d. Fernando de Portugal e Castro com um ambiente de grande
desrespeito à Coroa, à religião e à Inquisição.257 Seu diagnóstico disso era bem claro e
severo, ao dizer que se “se Vossa Majestade não puser as forças necessárias a fim de
dissipar estes erros e arrancar-lhe as suas Raízes pelo futuro”, em pouco tempo “não só
se verá a nossa Santa Fé sepultada e, se não que, [a]té o mesmo Soberano pouco
Respeitado”.258 Este mesmo sumário já foi estudado por Luiz Villalta, que identificou,
nesse diagnóstico, uma perfeita síntese do comissário do Santo Ofício sobre a
dessacralização do trono, altar e demais instituições que compunham o complexo
quadro político-religioso luso-brasileiro no ocaso do Antigo Regime, descrevendo e
analisando, de alguma forma, seu processo de crise.259 O que se observa nessas
passagens dos documentos sobre três casos referentes a libertinos da Bahia, é que, entre
oficiais da Inquisição, havia uma percepção de crise – aqui, concordando com a análise
de Villalta. Cotejando suas falas com a leitura feita pelo frei Bruno de Zaragoza, a
chave de que esses eclesiásticos lançam mão para entender essa crise, relacionando-a à
de Letras da Bahia; Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, 2001; LEITE, Renato Lopes. O
republicanismo na independência do Brasil: a retórica cívico-humanista do jornalista Cipriano Barata.
Espacio, Tiempo y Forma, Serie V, Historia Contemporánea, t. 22, p. 67-78, 2010; TASCA, Alexandre
Bellini. Enredamentos: o constituir nacional entre Portugal e Brasil nas Cortes de Lisboa (1820-1822).
[Dissertação-mestrado em História]. Belo Horizonte: Programa de pós-graduação em História
UFMG/Universidade Federal de Minas Gerais, 2016.
257
ANTT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Sumário contra Cipriano José Barata de
Almeida e Marcelino Antônio de Sousa. Op. Cit. Fl. 12v.
258
Ibidem, FL. 13.
259
VILLALTA, Luiz Carlos. As imagens e o controle da difusão de idéias em Portugal no ocaso do
Antigo Regime. IICT| bH L| b l o g u e d e H i s t ó r i a L u s ó f o n a | A n o V I | M a r ç o 2 0
1 1. p. 33-80. Disponível em: < http://www2.iict.pt/?idc=102&idi=16996>. Acessado em set./2018. p. 7375
402
expansão das sociabilidades libertinas por todo canto dos domínios do rei de Portugal, é,
justamente, a da “novidade”. Ela sintetiza um campo vasto de críticas comumente
atribuídas aos libertinos, tais como a defesa da tolerância religiosa, a crítica aos dogmas
e aos sacramentos – e a recusa a eles – juntamente a uma insubmissão às tradições e às
autoridades, civis e eclesiásticas. Essas “novidades” podem ser organizadas em algumas
tópicas comuns encontradas na documentação referente aos libertinos.
Uma constante nas falas dos libertinos é a de que tanto a intolerância
institucionalizada na Inquisição quanto os excessos de religiosidade nos espaços
coletivos já não teriam lugar àquela altura dos tempos, significando atraso ou fanatismo.
Essas duas marcas da cultura lusa, segundo eles, eram anacrônicas naquele “século
iluminado”. Um exemplo disso está no já analisado processo do estudante de Medicina
em Coimbra, o brasileiro José Antônio da Silva. Juntamente com seus ataques ao clero
regular e a defesa da tolerância religiosa, Silva faz uma crítica política ao reinado
mariano articulando esses dois pontos. No processo, consta que o estudante proferira
que era “asneira” a jurisdição do Santo Ofício àquela sua época – 1778, início do
reinado mariano e momento posterior à queda do Marquês de Pombal –, e os reinos que
não a tinham eram “mais florescentes”. Na mesma ocasião, conforme a denúncia,
estando ele à “porta da aula de Medicina”, falava-se “que a Rainha nossa senhora”, d.
Maria I, “dera licença para se ordenar os clérigos que os bispos quisessem”. Então, o
estudante “disse (...) a um minorista, que também ali estava”, que “estudava a História
Natural”, que isso era “o mesmo que dar-se licença para haver outros tantos materiais” –
“materiais”, aqui, no sentido de inúteis, supérfluos260 – “e que, [se] ela cuidasse de
aliviar o Povo de tributos e estabelecer uma sólida paz no Reino, faria melhor”. Porém,
segundo ele, a rainha apenas “cuidava que houvesse frades e clérigos, com o que
entendia que estava o Reino seguro, quieto, pacífico, bem governado”.261 Juntamente a
isso, criticava a insistência dos eclesiásticos em pregar às pessoas sobre os tormentos do
Inferno. Para ele, não poderia haver fogo ou tormentos no Inferno “porque embaixo da
terra não havia lenha”; e essa forma de descrevê-lo, para o estudante, servia apenas
“para aterrar os rústicos”. Por isso, teria dito que, “quando proximamente andaram nesta
cidade” de Lisboa “pregando os Missionários, que os não podia ouvir por serem uns
Em Bluteau, “material” significa “grosseiro, sem sutileza, sem agudeza, sem descrição”. Aplicado à
medicina, “material” é como “chamam os médicos, quando no corpo enfermo há corrupção de humores,
ou muita matéria dele, que cozer, ou evacuar por suor”. BLUTEAU, Raphael. Vocabulario Portuguez &
Latino. Op. Cit. p. 364.
261
ANTT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de José António da Silva. Op. Cit.
Fl. 5.
260
403
materiais e pelas gritarias que faziam e que falavam senão em Infernos e mais
Infernos”.262 Assim, junto ao excesso de religiosidade, para fazer medo e controlar
pessoas menos letradas, os eclesiásticos não contribuíam para o bem governar da
república, e a rainha errava em os multiplicar. Errava, ainda, por não extinguir a
Inquisição, do que se depreende que tanto os tribunais de fé como a forma de se
professar a religião, baseada na crença nos castigos eternos, não traziam mais qualquer
tipo de aspecto positivo a ninguém.
Há pontos similares no sumário contra o boticário José Luís Mendes, no Rio de
Janeiro, documento analisado e transcrito por David Higgs. Nele, observa-se haver
conexão entre a crítica religiosa, pautada na ideia de que excessos e exteriorismos
religiosos eram signos de atraso, e a política. Nessa perspectiva, a crítica engloba visões
de mundo um tanto insubmissas às autoridades. Em carta denúncia de 4 de dezembro de
1794, dada pelo sapateiro Manoel de Jesus contra Mendes, sobrinho de sua esposa, este
e mais algumas pessoas são acusados de proferirem “proposições heréticas e
escandalosas, como duvidar da verdade das Escrituras Sagradas, tratando-as como
bagatela”. Eles, ademais, duvidavam dos santos, da superioridade do Papa, dizendo que
seu poder não é dado por Cristo, desdenhando também das indulgências, falando “que
antes querem ser irmãos do diabo que das irmandades”, entre outras proposições. O
denunciante disse que demorou três anos para denunciá-los ao Santo Ofício, em partes
devido ao parentesco. Descreveu longamente a botica de José Luís Mendes, na rua
Direita, no Rio de Janeiro, como “casa de adjuntos libertinos e heréticos”, onde várias
pessoas disputam sobre várias matérias heterodoxas na forma de uma “luciferina
assembleia”, na qual diz ter presenciado algumas discussões constantemente sem delas
fazer parte.263 O denunciante disse que José Luís Mendes, sabendo que Manuel de Jesus
possuía livros de devoção, como o do padre Manoel Bernardes 264 e outros, começou a
262
Ibidem, Fl. 12v.
HIGGS, David. O Santo Ofício da Inquisição de Lisboa e a “luciferina assembleia” do Rio de Janeiro
na década de 1790. Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Ano 162, n. 412,
p. 239-384, jul./set. 2001. p. 255-256.
264
A obra mais conhecida do padre Manuel Bernardes, Os últimos fins dos homens, salvação e
condenação eterna, foi publicada em 1728. É uma obra dividida em duas partes, sendo a primeira sobre a
“singular providência de Deus” e “salvação da alma”, e a segunda, acerca “das causas gerais da perdição
das almas ou estradas comuns do reino da morte eterna”. Na primeira, mais especulativa, são abordados
problemas como a contradição entre a vontade divina de salvar todo o gênero humano e o reduzido
número de eleitos, em comparação com os condenados no Juízo Final. Na segunda, de caráter mais
prático, o autor se ocupa de razões mais factíveis para que as almas caiam na perdição, tais como o mau
proceder de magistrados civis e eclesiásticos, os maus pregadores e pais, que não instruem ou instruem
mal aqueles sob sua tutela na lei de Deus, entre outros pontos. Uma análise completa da obra pode ser
vista em artigo de Maria Lucília Gonçalves Pires. PIRES, Maria Lucília Gonçalves. Os “últimos fins” na
263
404
tratá-lo por “fanático”, dizendo que “não usasse deste livro, nem de obras deste autor” e
outras similares, “reprovando todos os livros que tratam do espiritual e do horror que
devemos ter ao pecado”. Ele tratava por “petas e fanatismo também pontos como a
crença no Inferno, juízo particular e universal, eternidade e reforma da vida e
costumes”. Zombava das bulas do Papa e dava indícios de haver circulação de escritos
de Voltaire, pelo Rio de Janeiro, em meados dos anos 1790. Mendes, segundo a
denúncia, tratava eclesiásticos, sobretudo regulares, pelo nome de “impostores” e
“homens de petas”, além de chamar de maneira pejorativa a desobriga quaresmal de
“recibo”.265
Havia outros cúmplices nas “assembleias”. Entre eles, estavam Antônio Joaquim
de Santa Ana, “homem pardo, mas estudantaço”, o mestre de retórica grega Luís
Gonçalves, Manuel Ferreira, professor régio, José Jacinto de Sá e seu irmão João
Lourenço e outros, como José Martiniano. Este último, além das proposições, “louvara
os pedreiros livres de França, que eram a melhor gente que havia, e que eram bons
homens”.266 Algumas proposições do boticário José Luís Mendes remetem a ideias
regalistas. Por exemplo, na parte da denúncia em que consta que o boticário tratara
sobre a ocasião em que os franceses tomaram Avignon, ele teria dito: “coitadinho do
Papa, já lhe tiraram aquela maminha”. Nessa ocasião, todos os denunciados começaram
a discutir, sempre dizendo argumentos como que “os papas e cúria têm sido a causa das
heresias por muitas simonias (...) por repartirem terras e domínios aos reis”, e que “nada
lhes pertence do temporal e governo do mundo”. Outro denunciado, o boticário Antônio
Bandeira de Gouvêa, teria dito que, “enquanto os papas foram só papas, a fé era
recebida”, mas, depois que tiveram Estados, “as nações entraram a sair da Igreja e que
os luteranos, parecia[-lhe], tiveram razão para o fazer”. Afirmara, ainda, que os
pontífices não possuíam mais autoridade que os bispos.267
Denunciou ainda que José Luís Mendes teria dito que ia vender o hábito da
Ordem Terceira do Carmo, dizendo que não servia para nada, além de fazer diversos
insultos a eclesiásticos, que tratava sempre por “vadios” e outros termos. Contou,
também, que era comum ouvir da “luciferina assembleia”, em sua botica, que “a
Sagrada Teologia era uma peta [isto é, mentira], que ninguém sabia o que havia lá”,
cultura ibérica (XV-XVIII). Revista da Faculdade de Letras – Línguas e Literaturas. p. 173-186. Anexo
VIII. Porto, 1997.
265
HIGGS, David. O Santo Ofício da Inquisição de Lisboa e a “luciferina assembleia” do Rio de Janeiro
na década de 1790. Op. Cit. p. 257-260.
266
Ibidem, p. 261.
267
Ibidem, p. 261-264.
405
dizendo que os franceses fizeram bem de a tirarem das escolas. Os delatados
escarnecem, segundo a denúncia, de maneira repetida, “de toda a pessoa de oração,
penitente e beata, mas com a especialidade”, sempre a respeito das esmolas e do fato
dos sacerdotes não trabalharem. A isso, o denunciante atribuiu a leitura de Voltaire e
“de outros libertinos”. Acrescentou que, em ocasião em que comentou com José Luís
Mendes “que, antes se dava mais rosários que agora”, o boticário respondeu que isso
acontecia porque “os homens já iam abrindo os olhos”.268 Na “luciferina assembleia” do
Rio de Janeiro e nas falas atribuídas ao estudante José Antônio da Silva, as devoções,
crenças (como a sobre o Inferno), o estado eclesiástico e a própria relação íntima entre
poderes temporal e religioso aparecem como contrárias ao progresso dos tempos, sendo
uma permanência que deveria desaparecer. Mais ainda, todos esses aspectos serviam
para se manter os povos na ignorância, “enganar os rústicos” e contribuir negativamente
ao progresso.
Esses pontos também aparecem de maneira mais difusa na denúncia de João
Pedro Gomes contra várias pessoas no Maranhão, aos 2 de janeiro de 1779, por
acusações variadas, como libertinagem, proposições, heresia e “espalhar livros
danados”. João Pedro Gomes relatou, em ordem de diligências abertas pelo Santo
Ofício, vários comportamentos heterodoxos. Segundo João Henriques, oficial de
ourives, Aires Carneiro Homem, sargento mor dos auxiliares no Maranhão e natural de
Portugal, “tem falado publicamente que os Evangelhos podiam estar pervertidos e que
muitas [das] imagens [que] estariam nos altares adoradas por santos e as almas estariam
no Inferno”, já que foram canonizadas por homens e estes podiam errar. Disse ainda que
Aires Carneiro afirmou publicamente que, quando “o Pontífice queria dinheiro,
mandava umas poucas letras a El Rey senhor d. João V escritas em um papel”, no qual
dizia “que concedia muitas indulgências e que, logo, o Rei benigno lhe mandava
esmolas avultadas”. O sargento-mor afirmava também que os padres não serviam de
nada à república, por não trabalharem e “não fazia escrúpulo em lhe[s] dar pancadas,
pois dessas excomunhões não fazia caso”, e que “melhor viveu dois anos com os
ingleses, não tendo lá padres”. Aires Carneiro tratou alguns santos, cuja origem era a
Companhia de Jesus, por “mágicos”, segundo a denúncia. Ainda conforme a mesma,
estando Aires Carneiro com o prior do Carmo, o frei José Caetano de Almeida e Graça,
quando este rezava o ofício divino, perguntou-lhe o que fazia. O frei respondeu-lhe
268
Ibidem, p. 263-267.
406
sobre a oração que rezava e que ela fazia parte das lições da Sagrada Escritura, nos
salmos de Davi. A isso, Aires Carneiro teria questionado sobre quem teria dito e
provado ao religioso que aquela oração teria mesmo sido escrita por Davi. O religioso,
por sua vez, teria respondido que “tinha por certo e infalível” que sim, “pois a Igreja
assim o ensinava”. Aires Carneiro, então, teria retrucado, “dizendo, ora padre, deixe-se
disso, não seja fanático, nem Davi disse isso que Vossa Paternidade está pronunciando,
porque muitos séculos que têm passado” e “já não há sombras do que Davi disse, nem a
Igreja manda em Vossa Paternidade”. O sargento-mor, então, de forma enfática, teria
concluído dizendo que haveria de se “obedecer, e respeitar, em primeiro lugar a Deus,
em segundo o Rei e, no seu lugar, ao Marquês de Pombal”. O Prior, por fim, não sabia
dizer se o sargento-mor disse tais proposições por graça, apesar de declarar o ter
repreendido e ter ficado escandalizado.269
Além de Aires Carneiro Homem, foram acusados outras quatro pessoas:
Joaquim Antônio de Lone, por libertino, comer carne em dias de preceito e fazer mofa
disso, publicamente; Vicente Ferreira Guedes, “homem pardo que advoga”, por
questionar a jurisdição papal, dizendo que o Papa e os bispos eram iguais, dando a
entender que atrelou tal proposição à leitura da Tentativa Teológica (1765), do padre
Antônio Pereira de Figueiredo; o governador-geral Joaquim de Mello e Povoas, por
fazer pouco de fitas que mandava benzer na capela de Nossa Senhora da Madre de
Deus, mandando colocá-las nos pescoços de seus cavalos, além de, “com escândalo de
todo o povo”, introduzir “danças pela quaresma”; por fim, Marçal Inácio Monteiro, que
“não só usava de livros proibidos” como Voltaire, O Príncipe, de Maquiavel, além de
obras de Paolo Sarpi, mas também “os faz públicos a uns e os tem mandado vir para
outros”.270 Na ordem para diligência, assinada pelo Arcebispo da Lacedemônia e pelo
inquisidor Antônio Veríssimo de Larre, passada em mesa em março de 1778, consta
uma série de preocupações quanto a possíveis estragos que os denunciados poderiam
causar.
Sendo presente na Mesa do Santo Oficio, que muitas pessoas deste
Reino e Conquistas, posto que Católicas Romanas, nascidas no grêmio
da Igreja, educadas e nutridas com os verdadeiros sentimentos da mais
sã doutrina, guiando-se pela própria liberdade e pela que lhe tem
inspirado, e talvez defendendo, com absoluta temeridade e animosa
ousadia, alguns erros opostos ao verdadeiro Dogma que professaram,
com cujos feitos não só, tem sensível e lastimosamente, desordenado e
269
ANTT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. 130º CADERNO DO PROMOTOR. Op.Cit.
Fl. 19.
270
Ibidem, 19, 19v e 19 A.
407
denegrido as suas consciências, profanando com sacrílego insulto a
Sagrada Lei de Jesus Cristo, nosso Redentor, e a constante e firme
Tradição da Igreja, que protestaram venerar e seguir, mas gravemente
ofendido todo o Corpo dos mesmos Fieis, tanto pelo escândalo a que
provocam aos sábios e Livros, como pelo precipício a que expõem os
incautos e ignorantes: E desejando Nós, como próprio do nosso
Ministério de correr a um tão pernicioso sistema, fazendo severamente
castigar aos Réus de tão abominável delito e vigiar cuidadosamente
sobre ele, para que se dissipe e sufoque a pestífera cizânia que o
produzia e sustenta, e se acautele, que reproduzido contamine aos
sinceros, e os precipite no maior de todos os abismos.271
No último quartel do século XVIII, à necessidade de se sufocar as novidades,
para evitar as sedições e agitação social que viriam na medida que os “sinceros” na fé se
contaminassem pelas novidades do tempo – as libertinagens –, contrapunha-se um
campo complexo de críticas a instituições, tais como o clero, a Inquisição e a própria
religião.
Essas críticas se valiam de uma forma inédita de se organizar e reler problemas
religiosos que eram objeto de proposições heterodoxas lusas em toda a Idade Moderna,
referentes a questionamentos de preceitos, de dogmas, de sacramentos e da autoridade
do papa. Nessas críticas, a organização e a releitura dessas questões antigas deram-se
sob práticas e sociabilidades próprias das Luzes. O que chama a atenção, aqui, é que há
uma percepção e leitura do tempo histórico que perpassa suas ações. No caso de Aires
Carneiro Homem, por exemplo, fica claro que, juntamente a um questionamento sobre a
veracidade das Escrituras, baseado na distância temporal, há uma ideia de
incompatibilidade entre, de um lado, a religião vivida em Portugal e no Brasil até então
e, de outro lado, os novos tempos. Esta incompatibilidade, por sua vez, implicava uma
dupla percepção: primeiramente, de um processo de mudanças e, segundo lugar, de que
tal processo era recente na história portuguesa. As imagens de um d. João V “beato” –
tópica que aparece em publicações diversas, como, por exemplo, as de Voltaire,
problema focalizado nos capítulos 1 e 2 –, e de uma Igreja corrupta, que se enriquecia
através dele por meio de bulas, articulavam-se a proposições em que se veem tópicas
regalistas, críticas a tal relação do poder temporal com o do Pontífice e a outros tipos de
relação do poder eclesiástico e régio. Nesse conjunto de elementos, enfim, identifica-se
aquela articulação entre as Luzes e um substrato cultural anterior. A figura do Marquês
de Pombal, para quem deveria prestar obediência eventualmente no lugar do rei, nas
suas falas, é um elemento essencial nessa articulação.
271
Ibidem, Fl. 21.
408
O Marquês de Pombal e as reformas identificadas à sua figura são importantes
na análise dessa leitura do tempo presente nas falas dos libertinos. Um exemplo, já
analisado, são as proposições de Jerônimo Francisco Lobo. Ele, como se mostrou,
mencionava que, nas falas de seu círculo, aparecia a crítica de que a grande falha de
Sebastião José de Carvalho e Melo foi a de não extinguir os tribunais do Santo Ofício,
por eles fazerem “grassar a ignorância”. A isso, acrescentava outros pontos, como de
que era justo fugir dos cárceres dos tribunais de fé, “parecendo ser melhor justiça” dar
ao herege “tempo de conversão”. Mencionou, ainda, a tópica de que a Inquisição
arruinava o comércio de onde instalava – em conversa sobre o restabelecimento dos
tribunais em Goa –, sustentando que “mais conversões faziam as medidas que arroz, que
mandavam dar os nossos reis, do que as que haviam de fazer a Inquisição” – em
conversa que teve, aparentemente, com Antônio de Morais e Silva.272
Essa contraposição a um retrocesso conservador do presente com um passado
ilustrado como chave de ler a realidade é marca de um importante escrito português do
final do Setecentos: trata-se do poema Reino da Estupidez, de Francisco de Melo
Franco. O autor é o mesmo mencionado em vários dos processos de libertinos
analisados até aqui, como os do abade Mourão, Manoel Galvão, Jerônimo Francisco
Lobo e alguns outros. Nascido em Paracatu, Minas Gerais, em 1757, formou-se em
medicina em Coimbra – à mesma época, como se pode inferir, desse numeroso núcleo
de libertinos – e tornou-se, posteriormente, médico honorário da câmara do rei d. João
VI, sócio da Academia Real das Ciências de Lisboa, além de ter publicado várias obras
– e ter tido outras cuja autoria lhe foi atribuída. Antes de ir para Portugal, para terminar
os preparatórios para os estudos em Coimbra e depois entrar na Universidade, foi
estudante do Seminário de São Joaquim, no Rio de Janeiro. Em 1817, por ordem do rei
foi chamado a acompanhar a arquiduquesa d. Maria Leopoldina. Porém, no Brasil, teve
diversos problemas, chegando a ver vedada a sua entrada no paço – segundo Inocêncio
Francisco da Silva, devido à sua simpatia por ideias liberais, malvistas à época da
Revolução Pernambucana –, além de ter perdido, segundo o mesmo autor, todos os seus
bens. Veio a falecer em Ubatuba, no ano de 1823.273 A tese de que Francisco de Melo
Franco perdera seus bens, no entanto, é contestada por Luiz Carlos Villalta ao analisar,
272
ANTT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Sumário contra Jerônimo Francisco Lobo.
Op. Cit. Fl. 31.
273
SILVA, Innocencio Francisco da. Francisco de Mello Franco. In: _________. Diccionario
Biliographico Portuguez. Estudos de Innocencio Francisco da Silva aplicáveis a Portugal e ao Brasil.
Lisboa: na Imprensa Nacional, 1859. 2ª ed. 1924. Tomo II. Disponível em Biblioteca Digital do Senado
Federal – Brasil < http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/242995 >. Acessado em ago. 2018. p. 10-11.
409
por exemplo, documentação que indica a compra de sua extensa biblioteca pelo
Império, no Primeiro Reinado.274
A respeito de sua passagem na Inquisição de Coimbra, é sabido que ele foi
condenado, apesar de seu processo estar, aparentemente, perdido. Alberto Dines o listou
entre os participantes do auto de fé acontecido em 26 de agosto de 1781, condenado por
herege, naturalista, dogmático e por negar o sacramento do matrimônio. Junto com ele,
estavam mais oito estudantes, anteriormente mencionados nesta tese: Antônio Caetano
de Freitas, Antônio Pereira de Souza Caldas, Antônio da Silva Lisboa, Diogo José de
Morais Calado, Francisco José de Almeida, Lourenço Justiniano de Morais Calado,
Nuno de Freitas e Vicente Júlio Fernandes, por delitos variados, tais como tolerantismo,
deísmo, crer na “lei natural”, entre outros.275 Melo Franco foi condenado à confiscação
de bens, ao uso do sambenito e a passar quatro anos na prisão de Rilhafoles, dos quais
ele cumpriu um. Em 1782, voltou a Coimbra graças a visto régio assinado por d. Maria
I, formando-se em 1786.276
Voltando ao poema em questão, trata-se de um escrito anônimo atribuído a
Francisco de Melo Franco, intitulado O Reino da Estupidez (1785). Nele fica muito
clara a leitura de que um mundo pós-pombalino era visto, por alguns desses libertinos,
como uma era de retrocessos ao obscurantismo anterior ao reformismo. O poema foi
feito na forma de uma narrativa heroico-cômica dividida em quatro cantos, cuja história
conta o triunfo da deusa Estupidez, que fora antes destronada das “polidas nações
europeias”, pelo avanço das ciências e das Luzes, como aparece no Canto I, mas que
planeja retomar seu domínio sobre Portugal, começando justamente pela Universidade
de Coimbra. A universidade do Mondego é ridicularizada ao longo da narrativa, bem
como seus estudantes, lentes e, sobretudo, seu reitor, o Principal Mendonça.277 A Inveja,
a Raiva, o Fanatismo, a Hipocrisia e a Superstição, personificadas, formavam o séquito
274
VILLALTA, Luiz Carlos. O Brasil e a crise do Antigo Regime português. Op. Cit. p. 195.
DINES, Alberto. A Inquisição como farsa. In: FRANCO, Francisco de Mello [atribuído a]. Medicina
Teológica. São Paulo: Editora Giordano, 1994. Coleção Memória. p. XX-XXII.
276
Ibidem, p. XXXIII.
277
No caso, José Francisco Miguel Antônio de Mendonça (1725-1808), que foi o quinto Patriarca de
Lisboa a partir de 1786, e substituiu no cargo de reitor da Universidade de Coimbra a d. Francisco de
Lemos de Faria Pereira Coutinho, que voltaria anos mais tarde (de 1799 a 1821). Tornou-se cardeal pouco
tempo depois, em 1808. Sua estadia como reitor da Universidade foi entre 25 de outubro de 1779 e 2 de
dezembro de 1785, sendo empossado somente em 30 de abril de 1780. Foi depois substituído no cargo
por d. Francisco Rafael de Castro (1786-1799). MENDONÇA, José Francisco Miguel António de (17261808).
The
Cardinals
of
the
Holy
Roman
Church.
Disponível
em:
<
https://webdept.fiu.edu/~mirandas/bios1788.htm>. Acessado em out./ 2018; Reitores da Universidade de
Coimbra.
Universidade
de
Coimbra;
Disponível
em:
https://www.uc.pt/sobrenos/historia/reitores_xvii_xix. Acessado em mai./2019.
275
410
da Estupidez, auxiliando-a na retomada de sua glória. Esta obra é bastante estudada pela
historiografia,278 e, dentro dos propósitos desta tese, centro-me na análise em alguns
momentos, sobretudo relacionados a duas personagens, o Fanatismo e a Superstição. A
primeira aparece, inicialmente, lamentando suas perdas na Europa daqueles tempos,
diante do avanço da razão.
Então o Fanatismo, que tomara
Um ar sisudo e marcha compassada,
Vendo reinar somente a Humanidade,
De tristeza e rancor se despedaça;
Suas máximas duras assoalha,
Já entre o povo ou entre a sábia gente.
(...)
Minerva, que o ardil não desconhece,
Nos ânimos infunde novas luzes;
Luzes, que dissipando a fosca névoa
Com que a reta razão manchada fica,
Com próprias cores a Verdade pinta.
Da gálica nação, ligeira e douta,
Mil pragas vomitando, fogem todas.
Iradas ainda mais ligeiras buscam
A britânica gente; ataques novos
Em conselho ali põem; ferve de novo
Nos bravos corações, rancor funesto.
Fulminam tudo, a toda a parte correm.279
Nessa parte do Canto I, o Fanatismo lamenta que a reta razão e os ânimos dos
novos tempos o afastaram dos corações dos povos “da gálica nação, ligeira e douta”,
isto é, da França, e da “britânica gente”. Porém, após os lamentos, é o próprio
Fanatismo que sugere ao séquito da Estupidez que se avance naquele “País de toda a
Europa o mais ditoso” para seus fins, que era Portugal.280 O mesmo Fanatismo tem um
papel importante no Canto III, na sedução do reitor. Nesta parte, o Principal Mendonça
havia preparado uma grande solenidade para se receber a Estupidez com toda a honra e,
então, fala aos lentes e doutores da Universidade.
Muito ilustres e sábios acadêmicos!
Por direito divino e por humano,
Creio que deve ser restituída
À grande Estupidez a dignidade
Que nesta Academia gozou sempre.
278
Um estudo mais completo a respeito do Reino da Estupidez e sua relação com o Período Mariano, no
Reformismo Ilustrado português, pode ser lido em: VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do livro no mundo
luso-brasileiro sob as Luzes. Op. Cit. p. 157-163.
279
FRANCO, Francisco de Melo. Reino da Estupidez (1785). São Paulo: Editora Giordano, 1995.
Coleção Memória 21. p. 53-54.
280
Ibidem, p. 57.
411
Bem sabeis quão sagrados os direitos
Da antiguidade são; por eles somos,
Ao lugar que ocupamos, elevados.
Oculta vos não é a violência
Com que foi desta posse debulhada.
Vós, testemunhas sois dos sentimentos
Com que a vimos partir tão desprezada:
Porém sempre, apesar do seu desterro
Constante, tributei dentro em meu peito
Homenagens devidas à que fora
Na minha infância carinhosa Mestra
E na velhice, singular Patrona.281
A isso se segue, depois de uma longa fala em que o Principal deprecia a ciência
por ser produtora de heresias e blasfêmias, dentre outros pontos, o reitor sofre somente
uma contraposição dada pelo personagem Tirceu – lente de matemática, no poema, o
que pode ser uma alusão ao geômetra José Anastácio da Cunha ou ao então lente de
prima em matemática José Monteiro da Rocha. Tirceu faz uma exaltação ao Marquês de
Pombal e às ciências, sendo este um ponto importante que ressalta, também, a atuação
do Fanatismo na narrativa do poema.
Não é a glória vã de distinguir-me.
Quem me obriga a encontrar a tantos votos
Que, por serem conformes, talvez sejam
Ao parecer de muitos, verdadeiros.
A glória do meu rei, o amor da pátria,
São dois fortes motivos que me impelem
A dizer francamente quanto penso.
Trazei, sábios ilustres, à memória,
Aquele tempo em que contentes vistes
Entrar nesta cidade triunfante
O grande, invicto, o imortal [Sebastião José de] Carvalho [e Mello],
Às vezes de seu rei representando;
Daquele sábio rei, cujo retrato
Inda agora me anima e me dá forças
Para que, em seu favor, em sua glória,
Derramando o meu sangue, exale a vida.
Vistes ao grão marquês, qual sol brilhante
De escura noite, dissipando as trevas,
A frouxa Estupidez lançar ao longe;
E erigir à ciência novo trono
Em sábios estatutos estribado.282
Logo depois do impasse instaurado por essa única interpelação feita contra o
reitor ao receber a Estupidez na Universidade, o Fanatismo, após tomar a forma “d’um
pequeno rapaz”, “cujos ombros adornam duas asas”, então, atua de maneira decisiva ao
281
282
Ibidem, p. 75.
Ibidem, p. 78-79.
412
forjar uma visão na qual o aconselha a ordenar aos estudantes, lentes e doutores que
saíssem na tarde seguinte, para que se pudesse fazer as honras à Estupidez, o que o
reitor executou.283 A Superstição também parece caracterizada com elementos que
remetem, claramente, a uma religiosidade não regulada e excessivamente exteriorizada,
compondo o séquito da deusa Estupidez, no Canto II, quando se instalam em Lisboa.
Logo a Superstição em pé se põe,
Mas fazendo primeiro mil momices:
O chão prostrada por três vezes beija,
Outras tantas, rosnando certas coisas,
Faz sobre o coração quinhentas cruzes.
Debaixo da camisa também tira
Uma grande almofada que constava
De muitas orações, muitas relíquias,
Contra mal feitiços, contra a peste,
E muitas contra a tentação da carne.
Beija e rebeija o venerando
Breve E, com os olhos para o céu erguidos,
Com o mesmo se benze imensas vezes.
Deste modo disposta, principia
A dar conta fiel do que passara:284
Na sua fala, a Superstição ressalta seu desejo por retornar a Portugal, enfatiza
não reconhecer mais, com a mesma precisão, aquele país no qual se sentira tão à
vontade em épocas anteriores. Havia, ali, em relação à credulidade das pessoas, uma
diferença entre o presente e o passado, iluminado pelo Marquês. Isso aparece na
conclusão da fala, na qual, depois de uma longa descrição de uma sociedade
excessivamente beata, repleta de frades, freiras e conventos, a Superstição diz que:
Lisboa já não é, torno a dizer-vos,
A mesma que há dez anos se mostrava.
É tudo devoção, tudo são terços,
Romarias, novenas, vias-sacras.
Aqui é nossa terra, aqui veremos
A nossa cara Irmã cobrar Seu reino.285
No poema, fica claro haver uma leitura possível do período pombalino – ali, um
passado próximo – como tempo de prosperidade, que deveria ser guardado na memória.
Esta memória envolvia uma leitura do presente, em que se identificavam obstáculos aos
avanços de outrora, isto é, um verdadeiro retrocesso, um retorno ao atraso.286 Trata-se,
claramente, de uma chave de leitura sobre o tempo de que os libertinos se valiam para
283
Ibidem, p. 82-83.
Ibidem, p. 63-64.
285
Ibidem, p. 66-67.
286
ANTUNES, Álvaro de Araujo. Espelho de cem faces: o universo relacional de um advogado
setecentista. São Paulo: Anablume/PPGH-UFMG, 2004. p. 142.
284
413
uma leitura crítica das instituições portuguesas do final do século XVIII. Tal chave de
leitura era organizada num eixo que envolvia o “atraso”, observado na época presente,
em contraposição aos avanços de um passado relativamente próximo. Uma religiosidade
desregulada e a atuação dos clérigos – sobretudo relacionada à sua não inutilidade à
república, por não trabalharem, e a uma perniciosidade, por espalharem fanatismos e
obscurantismo – são tópicas que, a partir da observação do presente, reforçam, nas
proposições, a ideia de época de retrocessos e de permanência de aspectos indesejáveis,
que deveriam ter sido superados naqueles tempos de Luzes. Nessa chave crítica, na
construção de tal visão do tempo, a Inquisição tem um destaque. A sua existência é
questionada de maneira bastante aguda pelos libertinos. Cada vez mais, os tribunais de
fé são vistos como excrecências de épocas de obscurantismo, que não mais deveriam
existir, sob pena de se perpetuar um atraso percebido no presente. No entanto, é
necessário fazer algumas breves ressalvas. A começar que não há indicações que havia
alguma visão idealizada do pombalismo difundida entre os chamados libertinos. Pelo
contrário, as leituras sobre Pombal e seu tempo como ministro divergiam entre eles.
Além disso, a forma como o retrocesso é narrado no Reino da Estupidez, por mais que
toque em temas pertencentes a realidades que ultrapassam a Universidade de Coimbra,
indica uma percepção que surgiu a partir dela e que, salvo algumas similaridades com
outras narrativas encontradas em processos e outros documentos, não parece ter tido
uma difusão tão grande.
É possível encontrar elementos que remetem à chave crítica analisada supra em
denúncias como a feita contra Inácio José Pereira do Lago Marinho de Abreu, escrivão
de abertura da alfândega, na cidade do Porto, feita por José Caetano Moreira, em janeiro
de 1782. Nela, diz-se que o denunciado não crê em milagres, porque "são coisas da
Natureza, e que a ele (...) parecia que não havia Céu, nem Inferno, e que não havia mais
que este mundo, e o bem ou mal que cada um passava nesta vida". O mesmo escrivão
foi denunciado também por Antônio Lourenço de Almeida. Este disse que, em setembro
do ano anterior, Inácio de Abreu "(...) na Sexta feira de Passos próxima passada,
perguntando o Denunciante ao Denunciado se queria ir visitar os Passos do Senhor”,
respondeu ele, indagando: “que tenho eu que ir ver um homem que foi amarrado pelos
Judeus, Castigado e morto por eles, por dizer que era Filho de Deus não sendo”?
Acrescentou que o denunciado disse que, depois o “enterraram, e não ressuscitou como
ele dizia, e esses que escreveram que ele ressuscitara, escreveram o que lhes pareceu”.
Com isso, o denunciado insinuava que a ressurreição de Cristo era uma invenção
414
humana. Conforme a denúncia, "falando com o denunciado sobre a fuga do filho de
Deus para o Egito”, este lhe dissera: “pois, se ele era Deus, para que se escondeu e
fugiu, esse filho da puta, para o Egito?" Mencionou que o denunciado não ouvia missa
nem guardava mais obrigações da Igreja, comendo carne em dias de preceito e nos dias
da Quaresma, e costumava dizer que "não há Deus e, que se há Deus, quem é seu Pai
quem o gerou?" Complementava, denunciando que Inácio de Abreu também teria
respondido a esta sua indagação, dizendo que "esse homem velho a quem chamam
Deus, que só a terra o poderia gerar". Ainda acusou Inácio de Abreu, dizendo que "ele
não põe tudo isto [no caso, suas piadas e zombarias contra Deus] patente”, agindo dessa
maneira “porque, em Portugal, costumam prender e castigar aos que falam estas coisas”.
Acrescentava “que não havia Lei como a dos Ingleses” e que, “se ele estivesse em outra
parte”, onde houvesse tolerância religiosa e liberdade de opinião, “falaria e diria o que
entende". Zombava, ainda, de frades, da Bula Cruzada e da jurisdição papal. Dizia,
ademais, segundo a denúncia, que "rezar era vício e que não se acostumasse a isso: e
que melhor era ocupar em outra coisa o tempo que gastava em rezar”. Por fim,
sustentava que “os Mouros eram tão bons como os cristãos em matéria de Religião:
porque toda a Religião é boa” e “a escolha dela está na vontade livre do homem".287
Na denúncia contra Nuno Baracho, criado de D. Josefa de Montarroios, dada por
Manoel dos Santos, em Alenquer, em janeiro de 1782, constam proposições segundo as
quais a adoração aos santos era “história” e que ela deveria ser dada somente ao
Santíssimo Sacramento da Eucaristia. O denunciado dizia, ainda, que “isto de
Inquisição era uma mordaça para a gente não falar e dizer o que entende”, e “que a Lei
de Deus era livre e que não eram preciso penas e castigos para a seguir, como em
França e outros países [em] que seguia cada um o que melhor lhe parecia”.288 Segundo
denúncia do dr. José Luiz da Costa, ouvidor da vila de Abrantes e que também fora juiz
de fora da vila de Alenquer, essa mordaça que significava a Inquisição não impediu que
José Luiz de Magalhães e Menezes dissesse, na presença de várias pessoas, que não
havia Inferno, logo depois de um édito publicado pela Inquisição, na quaresma daquele
ano de 1779.289
Em julho de 1779, em Lisboa, Júlio César Perogeli, preso nas galés, prestou
denúncia contra outro preso chamado Lúcio José da Silva Bona, por "falar
287
ANTT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa.130º CADERNO DO PROMOTOR. Op.Cit. Fl.
339-348.
288
Ibidem, Fl. 430.
289
Ibidem, FL. 10.
415
atrevidamente do Santo Ofício". Na denúncia, o delator diz que o dito preso pretende
entrar com uma queixa contra a Inquisição, por meio de seu procurador José Rodrigues.
Ele, costumeiramente, falava contra os procedimentos do tribunal, dizendo que os
inquisidores agiam com dolo e malícia nos seus procedimentos, e que muitos inocentes
se encontravam presos, acrescentando que, à ocasião do falecimento do rei d. José I,
saíram dos cárceres inquisitoriais muitos presos, todos inocentes. Ao final, o
denunciante pediu providências para se evitar o escândalo "que o referido sujeito causa,
com suas falsas queixas, pois é muito necessária para que, em alguns ignorantes da
verdade, não haja alguma crença com as persuasões do dito, que é capaz de perverter até
as pedras”.290
Em Camacha, também em Portugal, em 1780, o padre José de Freitas Espínola
foi denunciado por pelo vigário Antônio Pestana. Ele teria colocado em dúvida os
procedimentos do Santo Ofício, proferindo algumas murmurações, num dia em que se
estavam lendo as sentenças de várias pessoas que foram penitenciadas pelos tribunais de
fé. Ao ser questionado sobre elas pelo vigário, o denunciado respondeu-lhe: "para [...]
vossa mercê dizer [que] aquele [é] um tribunal dos diabos porque procede sem a parte
ser ouvida. Além disso, disse que a Inquisição teve por princípio "um homem com uma
bula fingida, que depois foi aprovada”. O denunciante ouvira as proposições ao discutir
com o padre denunciado.291
Essas denúncias, processos e falas dos libertinos, em seu conjunto, denotam um
movimento que caracteriza o regime de historicidade dos libertinos. Nesse regime, no
entendimento dos libertinos, a Inquisição, no último quarto do século XVIII, caminha
para o nível do “intolerável”,292 valendo-me aqui da categoria sistematizada por Paul
Ricoeur, apresentada no Capítulo 1. Os acusados de libertinagem, mais e mais,
exprimem uma visão sobre aos tribunais de fé ancorada numa leitura que advoga sua
incompatibilidade ao presente, com os valores sociais, civis e imperativos éticos
daqueles “novos tempos”. Essa visão é definida de maneira dupla, por uma afirmação e
por uma negação: na afirmação, defende-se a naturalidade da tolerância e da liberdade
religiosas e, na negação, exprime-se uma abjeção aos procedimentos e, de resto, à
própria existência do Santo Ofício. A pena e a trajetória do acusado e condenado por
290
Ibidem, Fl. 102.
Ibidem, Fl. 289.
292
RICOEUR, Paul. Tolerância, intolerância, intolerável. Op. Cit. p. 174.
291
416
maçom Hipólito José da Costa sintetizam bem essa posição. Elas servem de exemplo
para de representá-la.
Pode-se tomar como ponto de partida para o enfoque da trajetória e pena de
Hipólito a análise de Thaís Buvalovas. Ela investigou a trajetória do fundador e editor
do Correio Braziliense ou Armazém Literário (1808-1822). Segundo Buvalovas, uma
parte substantiva do aprofundamento de Hipólito em termos de posições políticas,
sociais e religiosas, em boa parte amparadas num vocabulário político de cariz liberal,
teve origem em sua passagem por Filadélfia, Boston e Nova Iorque, entre 1799 e 1801,
por ordem de d. Rodrigo de Souza Coutinho a fim de coletar informações sobre
mineração, agricultura e cultivo do inseto da cochonilha nas antigas colônias britânicas
da América do Norte. A autora coloca em dúvida sua passagem pelo México, plano
original de viagem estipulado pelo ministro do Príncipe Regente. Hipólito José da Costa
Pereira Furtado de Mendonça nasceu na Colônia do Sacramento, na fronteira meridional
da América portuguesa com a espanhola, em 1774, em um contexto marcado por
disputas fronteiriças entre lusos e castelhanos. Isso levou a família de Hipólito da Costa
a diversos deslocamentos, como o que resultou em breve exílio em Buenos Aires. Muito
em torno dessa origem repleta de alguns percalços, a autora faz uma breve análise
biográfica sobre o início da trajetória do periodista. De maneira crítica, ela o toma como
membro de uma elite local ou elite colonial, sacudida pela constante instabilidade de
condições materiais e de trânsitos diversos.293
Hipólito da Costa formou-se em Leis, Filosofia e Matemática em 1798, em
Coimbra, num contexto em que se deu um importante desenvolvimento dos estudos das
ciências naturais na universidade. Para Ângela Domingues, Coimbra, nesse contexto,
foi um elemento central dentro de amplo investimento da Coroa em uma renovação
cultural e científica portuguesa. Tal renovação envolvia o fomento de academias de
ciências e de outros núcleos de formação, dos ensinos de Astronomia, Química,
Matemática e História Natural. Passava também por um trânsito de professores
estrangeiros em Portugal, bem como pelo fornecimento de meios técnicos para se
realizarem viagens para realização de estudos e missões na África, América e Ásia,
formando-se quadros para a administração e diplomacia portuguesas que, também, eram
homens de ciência. Estes, por sua vez, formavam complexas “redes de informação” que
permitiram “ao Estado português setecentista conhecer de forma mais aprofundada e
293
BUVALOVAS, Thais. Hipólito da Costa na Filadélfia (1798-1800). São Paulo: Hucitec, 2011. p.29-
60.
417
precisa os seus domínios”.294As chamadas “viagens filosóficas”, nas quais alguns
naturalistas e estudantes formados em diversas ciências percorriam diversos territórios
em busca conhecimentos das mais diversas áreas, consistiam em incursões de
estudantes e homens de ciências de diversas áreas do conhecimento a diversos
territórios, a fim de buscarem conhecimento sobre recursos naturais e, por conseguinte,
explorar suas potencialidades econômicas. Elas colocavam em diálogo uma
considerável diversidade de saberes e produção científica europeias do final do
Setecentos e início do Oitocentos, e se davam sob o viés de uma busca de uma
“felicidade”, no sentido iluminista do termo, entendida pela realização material visando
ao bem comum, através do conhecimento útil ao comércio e artes, e à busca de meios
considerados mais eficientes de exploração colonial.295 Viagens, como as de Hipólito da
Costa aos Estados Unidos, segundo Diogo Ramada Curto, fizeram parte de uma
“cultura diplomática portuguesa” no final do XVIII. À época, deu-se a reorganização de
um modo de agir presente desde a Restauração e que associava o cosmopolitismo com a
etiqueta cortesã, valorizando, em grande medida, a habilidade de observação de
aspectos diversos de outros países. A isso, somou-se a inserção desses homens de
ciências em redes de sociabilidade letrada e científica e em circuitos de circulação de
livros, por toda a Europa e, em parte, fora dela. Acrescenta-se, ainda, o próprio
entendimento de tais processos como parte da busca por modernização.296
A viagem de Hipólito da Costa para os Estados Unidos, dessa forma, pode ser
entendida como uma parte da inserção do “brasileiro” nesse meio de homens de
ciências, típico do final do XVIII e perfeitamente alinhado ao processo de busca por
modernização portuguesa desenvolvido desde, pelo menos, a época pombalina.
Retomando a tese central de Thaís Buvalovas, de que essa parte de sua trajetória
significou muito para o futuro editor do Correio Braziliense, em termos de formação de
posições – como o anti-escravismo e o anti-absolutismo – e de contato com valores
liberais de matriz britânica,297 entendo que tal passagem também contribuiu muito na
formação de alguns de seus pontos de vista, mais precisamente no que diz respeito à
294
DOMINGUES, Ângela. Para um melhor conhecimento dos domínios coloniais. Op. Cit. p. 20.
Um estudo mais detido sobre o tema: BOSCHI, Caio César. “Um hábil naturalista”, Joaquim Veloso
de Miranda. Op. Cit.
296
CURTO, Diogo Ramada. D. Rodrigo e a Casa Literária do Arco do Cego.pdf. In: ________. (Ed.).
Cultura Escrita: séculos XV a XVIII. 1a ed. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de
Lisboa/ Imprensa de Ciências Sociais, 2007. p. 239–280. p. 249-251; _____________. Mercado e agentes
do livro no século XVIII. In: _________. Cultura Escrita: séculos XV a XVIII. Lisboa: Instituto de
Ciências Sociais da Universidade de Lisboa/ Imprensa de Ciências Sociais, 2005. p. 199–238.
297
BUVALOVAS, Thais. Hipólito da Costa na Filadélfia (1798-1800). Op.Cit.
295
418
defesa intransigente da tolerância religiosa, marcante em publicações que aqui serão
analisadas.
O Diário da minha viagem à Filadélfia, publicado pela primeira vez pela
Academia Brasileira de Letras em 1955,298 traz anotações pessoais que cobrem
parcialmente a passagem de Hipólito da Costa pelos Estados Unidos, em Filadélfia –
então, capital do país, Boston e Nova Iorque, entre 1799 e 1801. São memórias, como
dito, na forma de diário, que cobrem parcialmente a passagem de Hipólito da Costa por
tais cidades entre dezembro de 1798, início da viagem, até dezembro de 1799. Logo no
primeiro mês, Hipólito da Costa faz menção à maçonaria. Era o dia 10 de novembro de
1798, dia em que o futuro periodista ainda estava em viagem, que lhe provocou
constantes enjoos e outros incômodos, como brigas entre a tripulação.299 Descrevendo o
cotidiano da viagem náutica, ele fala da “tripulação da corveta”, constituída “de um
capitão, um piloto, que é também contramestre, tem título ou tratamento de Mate, 7
marinheiros e 1 preto, cozinheiro”. Sobre este último, escreve: “segundo me disse o
piloto, é maçom, o que eu inferi”.300 Seu contato com a maçonaria, como consta em seu
processo inquisitorial, começou justamente nos Estados Unidos, ponto que voltarei
posteriormente a analisar. Aqui, quero chamar a atenção para a centralidade do
elemento religioso, na passagem do ilustrado brasileiro pela América do Norte.
Por exemplo, em 23 de dezembro de 1798, diz Hipólito da Costa que, após
escrever cartas para a Corte, foi à missa e elogiou a “decência e moderação da igreja”,
onde identificou ornatos que remetiam à Companhia de Jesus.301 Chama muita atenção a
avidez de Hipólito da Costa em observar e mesmo participar de cultos religiosos de
diversas Igrejas, mesmo cerimônias não cristãs, ainda que em muitos momentos deixe
claro seu cumprimento de preceitos católicos. Dois dias depois, no Natal, ele disse ter
ido à igreja católica e ouvido o sermão do pároco, pela manhã, e, depois, à noite, a uma
298
COSTA, Hipólito da. Diário da minha viagem para Filadélfia (1798-1799). Rio de Janeiro:
Publicações da Academia Brasileira de Letras, 1955. Para esta tese, foi utilizada outra versão, citada nas
próximas notas.
299
Do dia 25/11/1798: “O muito balançar do navio quebrou uma pipa de vinho branco, o que se
conheceu, era meia-noite, porque a água da bomba cheirava e sabia inteiramente a vinho. Foi o piloto
examinar, e, encontrando a pipa, aproveitaram ainda um barril, porém, os marinheiros todos, e mesmo o
piloto, furtaram e beberam tanto que, quando eram 4 horas da manhã, não havia nenhum capaz de pegar
no leme, nem fazer algum serviço; às 8 da manhã brigaram uns com outros – e foi notável encontrar eu,
dois, atrás da lancha, esmurrando-se um ao outro, com a cara e olhos sumamente ensanguentados, e ao
tempo que um deu sobre o outro um formidável murro sobre o olho, este lhe lançou uma grande golfada
de vômito sobre a cara. O navio faz tanta água hoje que trabalham ambas as bombas”. COSTA, Hipólito
José da. Diário da minha viagem para Filadélfia (1798-1799). Brasília: Edições Senado Federal, 2004.
Vol.33. Edição do Kindle. Posição 627-629.
300
Ibidem, posição 560.
301
Ibidem, posição 804.
419
igreja metodista. Entre outras coisas, apontou para a forma como elas arrecadam
recursos com os quais fazem a "sustentação das igrejas e eclesiásticos de todas as
religiões, e mesmo dos católicos", que consistia em se vender assentos para famílias
inteiras nas igrejas, que pagariam por eles uma taxa por ano. O fato de haver assentos
para todos os presentes também lhe chamou a atenção.302 Aos 14 de fevereiro de 1799,
descreve com brevidade sua ia a um meeting de “anabatistas, vulgarmente chamados
batistas”, comparando a Igreja em questão com a católica. Sobre a batista, disse que
“esta igreja não tem altar”, e “o púlpito está onde nas igrejas católicas está o altar”.
Sobre o culto, explica que consiste num homem que lia a Escritura numa cadeira,
fazendo explicações.303 Ao fim de julho de 1799, relata seu contato com a “seita dos
celibatários”, o que fez somente em “honra dos americanos”, sendo ela uma das mais
antigas da Pensilvânia, segundo conta. Ele a descreve como uma seita onde “há espécies
de conventos para homens e mulheres, onde vivem e se sustentam do trabalho de suas
mãos e algumas terras que têm”. Segundo sua descrição, o celibato não é um
mandamento da religião, mas os muitos impedimentos para o matrimônio resultam na
maioria dos sectários serem solteiros.304
No movimentado dia 9 de março, dia em que visitou o magistrado Mr. F. Smith
– citado, no processo contra Hipólito da Costa por Maçonaria, como quem o apresentou
à sociedade305 –, visitou uma sinagoga, sobre o que faz o seguinte relato:
9 (de fevereiro de 1799). Hoje, estive na sinagoga dos judeus: eram 10
horas e por isso estava o ofício Divino acabado. A casa era quadrada,
com bancos ao redor; em uma das paredes havia uma espécie de
armário que, sendo aberto, vi que tinha dentro uns como candeeiros de
prata, e o armário estava por dentro forrado de seda, e tinha cortinados
ricos, cortinas vermelhas e forro branco, e galões d’ouro; o armário
por fora era muito pouco ou nada decorado; na sumidade tinha um
escudo d’armas feito em talha de madeira doirada e pintada, que tinha
em cima uma espécie de coroa, e no escuto, que era azul, letras d’ouro
em hebraico; diante havia uma pequena lâmpada; no meio da casa
estava uma mesa alta forrada de vermelho, com duas cadeiras, de
modo que quem se sentava nelas ficava justamente virado para o tal
armário; (...) O único homem que ali encontrei me pareceu um
sacerdote, por que foi abrir tal armário e procurar não sei o que, e
tornou a fechar. Ele me disse que podia tornar sábado, às 9 horas da
manhã, ou 6ª feira à noite.306
302
Ibidem, posição 799-809.
Ibidem, posição 1047.
304
Ibidem, posição 2005.
305
Ibidem, posição 1127-1133; ANTT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de
Hipólito José da Costa, proc. 17981. Fl. 140.
306
Ibidem, posição 1133.
303
420
Ele voltou à sinagoga no dia 16 do mesmo mês, fazendo uma descrição bem
mais longa que a supracitada, entrando em pormenores do culto e dos frequentadores.
Chamou-lhe atenção toda cerimônia, desde os ritualismos do rabino – a quem ele se
referiu por “padre” – até o fato de que “os meninos soubessem ler hebraico”.307 Nas idas
de Hipólito da Costa a diversas e igrejas e a uma sinagoga, durante sua passagem pelos
Estados Unidos, não é possível observar uma propensão à tolerância religiosa. Não
somente por isso, no caso. O espírito de curiosidade e de observação do estrangeiro,
presente nas viagens filosóficas da segunda metade do XVIII, ao menos nesse aspecto,
explica melhor tal procedimento. Porém, noutros detalhes, sua simpatia a uma
sociedade onde há tolerância entre religiões faz-se bem mais visível.
No seu diário, sobre o dia 12 de março de 1799, Hipólito da Costa diz que foilhe feita uma observação a respeito da tolerância civil e religiosa que existia nos Estados
Unidos da América, sem mencionar quem a fez. Diz que “a revolução da América data
de Carlos II de Inglaterra”, “porque os puritanos fugiram para a Nova Inglaterra, os
quakers que se refugiavam em Pensilvânia e os católicos que se estabeleceram em
Maryland (...) todos estes (...) impelidos pelas opressões que receberam no tempo” do
dito rei “sempre tiveram uma tendência para a liberdade e para estabelecer a tolerância
religiosa, pela falta da qual eles tinham sofrido muitos vexames.”308 Porém, aos 25 do
mesmo mês, relata com certa estranheza o episódio em que um pastor luterano pede-lhe
para não se divertir jogando florete, por ser a primeira oitava da Páscoa: Hipólito da
Costa faz uma observação sobre haver uma tolerância do Estado – podem conviver
todas as religiões –, mas uma intolerância no trato de uma com a outra, referente a um
pastor querer obrigá-lo a observar um preceito da fé que ele não professa, como também
no desrespeito de pessoas com os cultos das outras religiões.309
Juntamente com a tolerância, são constantes os elogios de Hipólito da Costa à
pouca pompa dos cultos, como na descrição da missa, que foi já analisada acima. No dia
seguinte à sua segunda ida à sinagoga, por exemplo, menciona o fato de que, no
Domingo de Ramos, não houve procissão, e as “bênçãos de ramos” consistiram “de
murta e louro”, “e os ramos se dividiram pelo povo, depois da missa, que parecia ávido
de os querer alcançar”.310 E seu elogio à austeridade dos estadunidenses se estende à
sociedade, no geral. Em 15 de julho, por exemplo, elogia o fato de, em Nova Iorque,
307
Ibidem, posição 1167-1194.
Ibidem, posição 1157-1162.
309
Ibidem, posição 1224.
310
Ibidem, posição 1194.
308
421
não se darem dotes, “o que contribui muito para a igualdade de fortuna”, ao que
complementa com a observação de que a “limpeza sem riqueza, nos vestidos das
mulheres, é o mais nobre ornato” naquela sociedade.311 No geral, a tolerância religiosa e
a austeridade nos cultos religiosos e no comportamento das pessoas parecem ser, em
síntese, nas impressões de Hipólito da Costa, constituintes do que ele expressa ao dizer
que o “sossego é o caráter geral da Nação”, com o que sintetiza suas observações e faz
elogios sobre a América do Norte.312
Cotejando essas informações do Diário de Hipólito da Costa com a da
documentação até aqui analisada, o que se vê é a proximidade entre um ideal de
tolerância e a austeridade na prática da religião – no sentido de menos distinções e
afetação no espaço coletivo –, sendo ambos os elementos vistos como aspectos
positivos daquela sociedade. Ambos, ademais, complementando-se, fariam parte de uma
sociedade pacífica e próspera. Trata-se de pontos que aparecem nas posteriores defesas
que o ilustrado brasileiro fez da tolerância religiosa e, também, nos seus veementes
ataques à Inquisição.
Como é sabido, Hipólito José da Costa ficou preso nos cárceres da Inquisição
por aproximadamente três anos. No ofício de 28 de janeiro de 1803, consta a ordem
feita pelo deputado Manuel Estanislau Fragoso, do Conselho Geral do Santo Ofício,
solicitando que ele fosse transferido da Intendência Geral de Polícia, que o prendeu para
averiguação sobre envolvimento na francomaçonaria, para os cárceres da Inquisição.313
O documento é repleto de lacunas e não consta uma sentença por falta de um acórdão do
Tribunal de Lisboa, havendo nele informações constantes às várias sessões de
interrogatório, acontecidas entre 1802 e 1804. Por exemplo, Hipólito da Costa confessa
que entrou na francomaçonaria em Filadélfia, como já foi mencionado, além de haver
um breve detalhamento dos papeis que lhe foram apreendidos. Na documentação,
aparece que a razão de ter sido preso foi a de ter negócios com a Grande Loja de
Londres, em função de fazer parte da Grande Oriente Lusitano, indo para tanto a
Londres sem um passaporte. Os inquisidores ainda o pressionaram, mostrando
documentos que estariam entre seus papeis apreendidos, para que apontasse o
envolvimento de outros portugueses na “sociedade dos pedreiros livres”.314
311
Ibidem, posição 1915.
Ibidem, posição 969.
313
ANTT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de Hipólito José da Costa. Fl. 2-3.
314
Ibidem, Fl. 158-159.
312
422
Sobre seu envolvimento com maçonaria, confirmou que a conheceu na
mencionada viagem, embora diga no processo que ela aconteceu em 1797. Seu primeiro
contato, descreveu, deu-se em ocasião de um funeral de um membro da sociedade. Daí,
passou a ter curiosidade sobre a maçonaria, em vista dos aventais, ritos e códigos
observados durante parte da cerimônia. Hipólito da Costa disse que perguntou a um
padre irlandês, que ali residia, se havia, na francomaçonaria, alguma prática contrária ao
que ensinava a Igreja católica, pois havia lido os editais do Santo Ofício da Inquisição
para denunciar seus sequazes. O padre lhe respondeu dizendo que não havia nada na
maçonaria contrário ao Catolicismo, e a bula condenatória a ela promulgada pelo
Clemente XII lhe parecia “antiquada”, porque “não compreendia a sua disposição, se
não [n]os países em que se achava estabelecido o Tribunal do Santo Ofício”. Daí, disse
que se tranquilizou e procurou um senador dos Estados Unidos, com quem se encontrou
na ocasião, que era “pedreiro livre”, que o conduziu ao “grão mestre da lodge, chamado
Smith”, na “loja número 59, na Filadélfia”, que era juiz de um tribunal, que cuidou para
que ele entrasse na “seita”.315 Na segunda audiência, chegou a dizer, ao ser interrogado
pela Inquisição, que sabia das proibições baixadas pelos papas, mas desconhecia as
proibições de alçada civil e que não havia jurisdição das autoridades portuguesas sobre
essa matéria, dessa maneira.316 Sobre os papeis aprendidos consigo, Hipólito da Costa
disse que foram “dois tombinhos em doze escritos na língua francesa sobre maçonaria,
dois papeis com a cópia de uma constituição maçônica tirada por letra de um amigo
francês”, identificado apenas por “Hauther”, além de um resumo dos graus maçônicos,
de suas palavras e de papéis avulsos.317
Uma descrição em primeira pessoa do processo, seguida de violento ataque à
Inquisição de Portugal, está nas páginas da Narrativa de perseguição, originalmente
publicada em língua inglesa em 1811, tributária da, já discutida no Capítulo 3, tradição
de narrativas críticas contra os tribunais de fé que se espalharam pela Europa ao longo
da Idade Moderna. Os anos em que permaneceu preso são descritos por Hipólito da
Costa, que ressalta diversos aspectos do procedimento inquisitorial, suas várias e
cansativas sessões, o sofrimento do cárcere – no que se inclui a insistência do autor em
ressaltar seus vários problemas de saúde, agravados pela prisão –, bem como o mau
procedimento dos inquisidores. Após isso, faz uma reflexão mais longa para justificar
315
Ibidem, Fl. 140.
Ibidem, Fl. 154.
317
Ibidem, Fl. 158.
316
423
sua fuga de Portugal após sair do cárcere, reforçando suas pesadas críticas à Inquisição
e a incompatibilidade desta última com os valores civilizacionais.
Sobre o procedimento da Inquisição, há passagens importantes, que descrevem
seus agentes das piores maneiras possíveis. Manuel Estanislau Fragoso, com quem
prestou depoimentos nos vários interrogatórios, é descrito como alguém que se
mostrava como um homem gentil, mas que, na verdade, se movia pela pura hipocrisia.
Numa longa nota de rodapé, Fragoso é descrito por Hipólito da Costa como um homem
cuja “imoderação aparente era tão preternatural como artificiosa, de maneira que o
conheci logo que o havia o mais refinado hipócrita”. Ele era “um inquisidor de mui
limitados conhecimentos, mas de sutil penetração e de muito maior dissimulação”. Era,
segundo o autor, “bem aceito pelo Inquisidor Geral, o que necessariamente lhe
pressupõe uma má alma”. Hipólito, ainda, insinua que a amizade dele com homens
poderosos se dava em função de ascender socialmente.318 Outro inquisidor que recebe
uma nada lisonjeira descrição do editor do Correio Braziliense é o cardeal Cosme da
Cunha, que segundo ele “era um velhaco”, que criara um regimento moderado, o de
1774, “para aplacar o Marquês de Pombal, que meditava o fim desta hidra”, que era a
Inquisição.319 Toda essa hipocrisia o vitimara durante os anos em que permanecera no
cárcere, mesmo tendo se confessado já na primeira sessão. Ele diz que os inquisidores
procederam dessa forma para que denunciasse outros portugueses, considerando-o
diminutivo por não o fazer.320 Declara que “nada irrita os inquisidores tanto como um
homem que raciocina”, ao defender que vários dos argumentos que os inquisidores
usaram contra si não se sustentavam, ou se baseavam em falsos conhecimentos, do que
se defendia por meio do uso da razão.321 A Inquisição, segundo ele, vitima toda a
sociedade portuguesa, sobretudo em seu tempo, no qual se acreditava que ela agia de
maneira mais moderada que nas épocas anteriores. Para ele, o abrandamento dos
procedimentos era um engodo. Por exemplo, a não impressão da lista de penitenciados
impediu que se somassem e tivessem conhecimento do número de vítimas da
Inquisição. Além disso, os inquisidores usavam diversas artimanhas para burlar o fim
do segredo processual. Por fim, os inquisidores apenas não mandam queimar mais as
pessoas por necessidade, não mais conseguindo mobilizar a justiça secular para isso,
318
COSTA, Hipólito José da. Narrativa da perseguição. Brasília, DF: Fundação Assis Chateaubriand,
2001. p. 42.
319
Ibidem, p. 118-119.
320
Ibidem, p. 59.
321
Ibidem, p. 62.
424
mas matam pessoas nos cárceres, no mau tratamento, nas prisões perpétuas, entre outras
formas tão cruéis quanto o cadafalso.322
Dessa maneira, para Hipólito da Costa, a forma de aplicação da justiça
inquisitorial é, por ela mesma, injusta, arbitrária e feita somente para reproduzir
injustiças e manter a sede de vingança e poder dos inquisidores. Ela é, também, a maior
responsável pela religião ser desacreditada, não o sendo os filósofos, maçons e livres
pensadores, tal como os inquisidores defendiam. O próprio Cristianismo é, segundo
Hipólito da Costa, essencialmente vilipendiado pelo uso da força para manter a
fidelidade dos súditos. Assim, diz que “as crueldades da Inquisição não são o resultado
da má alma deste ou daquele inquisidor, mas vício intrínseco e inerente à
corporação”.323 Sintetiza esse ponto dizendo que:
A instituição da Inquisição, a crueldade com que os inquisidores
perseguem os que supõem serem de opiniões diferentes das suas, faz
pasmar; não são nada para eles os tormentos e a morte do seu inimigo,
queimam-no vivo, infamam-lhe a memória, perseguem os filhos, e
toda a posteridade desses infelizes, privam-nos das heranças de seus
pais, infamam e desonram os parentes, e finalmente no dia em que
fazem o auto da fé, ao mesmo tempo que os miseráveis estão exalando
o espírito no meio das chamas, os inquisidores estão das suas janelas
regalando os olhos com este espetáculo e banqueteando-se com os
seus convidados à custa dos bens das miseráveis vítimas, e tal é o
costume da Inquisição.324
O argumento anti-Inquisição traz em si uma defesa da tolerância religiosa como
natural, útil ao Estado e à fé. O comércio e os exércitos, por exemplo, são ambientes
onde pessoas de fé diferentes convivem e realizam ações úteis, o que o argumento dos
inquisidores de que “o trato com diferentes religiões já torna o católico suspeito de fé
“e, ao mesmo tempo, também serve, por analogia, como argumento para não se
condenar a maçonaria pelo mesmo motivo.325 Em algumas páginas do Correio
Braziliense, vê-se a defesa de algumas dessas ideias. Na resenha e crítica da obra de
Jean Pons de Nimes, Réflexions philosophiques sur la tolérance religieuse, sur le libre
exercice de tous le cultes, e sur l’Inquisition (1808), Hipólito da Costa critica alguns
apontamentos do autor contra o Catolicismo, embora concorde em grande parte com a
moderação dele e com a tolerância religiosa para a conservação do Estado. Hipólito da
Costa concorda com a premissa do autor, segundo a qual a tranquilidade pública só é
322
Ibidem, p. 120-122.
Ibidem p. 102-106.
324
Ibidem, p. 90.
325
Ibidem, p. 65-68.
323
425
possível quando se consegue tolerância em matéria de religião.326 Boas leis civis, nessa
linha de argumentação, só seriam positivas nessa matéria caso não se ocupassem da
resolução de querelas teológicas e da busca de verdades, mas da função de resolver
questões morais e políticas atinentes à felicidade dos povos. Ainda que venha a ser
desejável haver uma única religião no Estado, isso seria impossível, e se o mesmo
tentasse reduzir seus súditos a uma só fé, não faria fiéis, mas hipócritas que fingiriam
segui-la.327 Alguns pontos de discordância aparecem quando o autor francês aponta o
Catolicismo, especialmente o ibérico, como naturalmente intolerante. Hipólito busca,
por exemplo, na literatura e teologia portuguesas do século XVI, um contraponto a essa
premissa do autor, deixando claro que, no seu ponto de vista, a intolerância, mais que
produto de uma religião em específico, resulta da perversão da religião pelos vícios de
autoridades civis e eclesiásticas.328 Hipólito da Costa ainda tem uma crítica ao autor
francês a respeito da Inquisição. Para o editor, Jean Pons de Nimes falha por não
destacar a ação da autoridade civil, e somente a dos eclesiásticos, nos capítulos contra a
Inquisição. Ainda assim, critica os tribunais do Santo Ofício, porque a ação do clero
deveria reduzir-se à aplicação dos sacramentos e, da autoridade civil, em matéria de
religião e opiniões, a manter a tolerância necessária à paz pública. Os tribunais de fé,
assim, perturbam esse ideal. Isso porque não garantem a liberdade e tolerância religiosas
– pelo contrário, agem contra a moral cristã, tentando impô-la através da força –, e
representam uma ação da autoridade civil contrária à paz pública, pois os magistrados
seculares e o ministério da Igreja agem fora de seus domínios.329
No artigo intitulado O Investigador Portuguez contra os frades, Hipólito da
Costa responde a um artigo anônimo do periódico O Investigador Portuguez, em que é
feita uma defesa do fim do clero regular. Nela, existem algumas críticas contra si, no
que toca a uma possível contradição entre o editor do Correio Braziliense, por não
defender este mesmo ponto, mas defender a extinção do Santo Ofício. Ele argumenta
longamente sobre a utilidade do clero regular para o Catolicismo ao longo da História e
que o eventual mal que ele venha a obrar mereceria alguma emenda, e não a extinção. A
Inquisição era diferente, ao que sintetiza dizendo que:
A Inquisição deve extinguir-se; os frades devem reformar-se. Tal é a
nossa opinião; porque estas instituições são diferentes, e portanto o
326
Correio Braziliense ou Armazém Literário. Janeiro de 1811. Vol. VI. Londres: Impresso por W.
Lewis, Paternoster-row. p.331.
327
Ibidem, p. 334.
328
Ibidem, p.471-473.
329
Ibidem, p. 475.
426
que se diz a respeito de uma, não é aplicável ao que se julga da outra.
A Inquisição é oposta aos princípios do Cristianismo; os frades
seguem a perfeição Evangélica. A Inquisição pretende sustentar a
religião de Jesus Cristo pelo fogo e ferro; os frades pela prédica e
persuasão. A Inquisição exercita um poder imenso sobre a vida,
liberdade, e bens dos cidadãos: os frades não têm jurisdição sobre
ninguém. O respeito que se presta à Inquisição é extorquido pelo
temor de seus rigorosos castigos: o respeito que os povos têm aos
frades é voluntário e fundado na opinião que se tem da bondade de
suas instituições. A Inquisição sustenta-se dos tributos, que o povo é
forçado a pagar, e dos bens daqueles, que a mesma Inquisição
condena: os frades vivem das ofertas espontâneas, que lhes fazem. 330
Evidencia-se, assim, na pena de Hipólito da Costa, um ponto de vista que é
compartilhado em grande medida pelos libertinos do final do século XVIII, o de que a
Inquisição já não deveria fazer parte de seu mundo. Sua existência então seria signo de
um atraso e o fato de ainda existir, em si, constituiria um problema. Além disso, a
tolerância religiosa afirmava-se como uma necessidade para a conservação e
modernização da sociedade, embora ela estivesse ainda muito distante de ser
conseguida. Considerando a disputa em torno do campo religioso, a tolerância religiosa,
por mais nítida que estivesse a essa altura, entre finais do XVIII e início do XIX, como
imperativo para uma realidade que se desejava moderna, situava-se entre um indefinido
porvir e um passado, identificado com o reformismo pombalino, que se deu de maneira
incompleta. Tratava-se de uma nostalgia crítica, referenciada num presente repleto de
signos de obscurantismo, com a figura do Marquês de Pombal, no que tocava a
tolerância religiosa.
Além disso, há um ponto inquietante na impressão que Hipólito da Costa deixa
na conclusão de sua Narrativa de Perseguição: o eclesiástico, aqui tomado como a
figura das forças do obscurantismo, “é um camaleão”, conseguindo se manter “viscoso,
com sua cobiça e se vingar de seus inimigos”, mesmo quando lhe é subtraído o poder.
Assim, com o mínimo poder de influenciar a realidade, a intolerância, obscurantismo e
as trevas da Inquisição poderiam voltar, sendo falso que os tempos de Luzes do agora
lhes impedirão de tolher a liberdade de pensar e crer novamente.331 Dessa maneira,
concluo, havia na época uma visão segundo a qual a tolerância religiosa vivia sob a
tensão entre permanências de um obscurantismo do passado e as expectativas de um
porvir, que poderia ser melhor ou, pelo contrário, até pior que o “agora”. Desse modo, a
Correio Braziliense ou Armazém Literário. Janeiro – Junho 1815. Vol. XIV. Londres: Impresso por
W. Lewis, Na Officina do Correio Braziliense, St. John’s Square, Clerkenwell.
331
COSTA, Hipólito José da. Narrativa da perseguição. Op. Cit. 127-128.
330
427
liberdade e a própria tolerância eram entendidas como objetos de constante e
ininterrupto combate. Tal combate, por sua vez, dava-se em nome de princípios éticos
universais e premissas evangélicas de um Cristianismo extirpado dos vícios do arbítrio,
que o igualavam à tirania. Ao mesmo tempo, tal combate ressoava ideais das Luzes.
Com isso, conjugavam-se um Cristianismo bafejado pelas Luzes e o pensamento
ilustrado
em
geral.
428
Considerações finais
O tema central desta tese – a tolerância religiosa – tem sempre despertado
interesse nos mais diversos contextos históricos. Sua discussão parece ser inesgotável.
Tomando aqui um raciocínio que foi desenvolvido nas últimas páginas desta tese, no
qual Hipólito José da Costa dizia, na sua Narrativa de perseguição, que o “espírito
inquisitorial” permanece vivo ainda em épocas em que instituições como a Inquisição
não mais existam, tolerância e intolerância parecem ser parte de uma dialética própria
das relações humanas. Por essa chave, entende-se que nenhum avanço rumo a uma
maior tolerância no agora em relação ao passado – entendendo a própria tolerância
como valor central das sociedades democráticas modernas – será absoluto ou
irreversível. O seu par oposto, a intolerância, estará sempre latente, pronto para avançar
e reassumir o destaque que teve anteriormente. Por conseguinte, entender tal dialética
entre tolerância e intolerância aponta para esta última como algo que também jamais
será absoluto ou definitivo. Assim como tudo na história, o obscurantismo e todos os
valores contrários à liberdade humana são superáveis, ainda que isso leve muito tempo.
Em termos religiosos, tocando no tema da tolerância e intolerância, observo aqui
a complexidade de um atributo que muitos pesquisadores ao longo da história
atribuíram ao pensamento iluminista, que é o otimismo. A documentação indica que não
se trata de algum tipo de leitura que indica um porvir melhor que o agora em termos
absolutos ou numa perspectiva metafísica. As promessas da modernidade de avanços no
sentido de uma maior tolerância são sempre, também, produto de ação e agência
humanas. Nunca são dados, são conquistas, que devem constantemente ser reafirmadas.
Refletir sobre esse tema historicamente, analisando-se como que pessoas de
outros contextos lidaram com questões que parecem ser, sempre, tão atuais para
quaisquer sociedades, foi possível entender como que pessoas da Idade Moderna, dos
estratos sociais mais variados, pensavam um futuro sempre mais tolerante e libertário
que o presente em que viveram. É justamente esse ponto que melhor nos fornece os
arcabouços necessários para compreendermos problemas próprios de nossas realidades,
enfrentando-os. Afinal, o grande legado do pensamento das Luzes é a ideia de que
somente a ação e o engajamento do uso da razão no espaço público é capaz de
consolidar os valores modernos e a tolerância nas relações humanas, combatendo o
fanatismo, o irracionalismo e todas as ideias e estruturas antimodernas.
429
No contexto brasileiro atual, vemos vários elementos constituintes do que
historicamente se define por intolerância que assumiram forma de um projeto político.
Mais que isso, a antimodernidade tornou-se projeto de poder, ocupou a esfera pública e
ganhou consciências. Trata-se de um conjunto de valores e racionalidades organizados
politicamente que são um tanto semelhantes aos que foram combatidos e denunciados
por diversos pensadores iluministas, coevos ao recorte da pesquisa. A materialização
mais visível disso, hoje, se vê ocupando a presidência da república.
O obscurantismo, no momento em que finalizo a escrita desta tese, parece
onipresente, aparecendo, por exemplo, no culto demonstrado por diversos militantes e
autoridades públicas às ideias conspiratórias de um Olavo de Carvalho, ex-astrólogo e
autoexilado nos Estados Unidos. Ele também pode ser visto nos ataques às
universidades, seja por meio dos cortes de verbas, seja com redes absurdas de mentiras
intencionadas a caluniar suas instituições, professores e estudantes. O obscurantismo
pode ser visto também nos ataques feitos contra as ciências em si, por meio dos mais
vulgares negacionismos históricos, que do ponto de vista hermenêutico e
epistemológico são idênticos às irresponsáveis negações da crise climática ou de
campanhas anti-vacinação.
Há uma ignorância que grassa na sociedade e na política brasileira, e que
compõe um conjunto de discursos permeado por um visceral fundamentalismo
religioso, acompanhado por grande violência narrativa, que não raras vezes ultrapassa o
próprio campo discursivo. Enfim, assim como no poema atribuído a Francisco de Mello
Franco, O Reino da Estupidez – analisado no Capítulo 4 desta tese – , parece que a
própria deusa Estupidez colocou a faixa presidencial no seu menos inteligente sequaz, e
o restante de seu séquito – formado por Inveja, Raiva, Fanatismo, Hipocrisia e a
Superstição – se espalhou nos diversos âmbitos da sociedade brasileira, dando sinais
estridentes de sua onipresença de hora em hora nos noticiários políticos e nas redes
sociais.
Assim como na contemporaneidade, homens e mulheres da Modernidade
vislumbravam, de forma mais ou menos clara, um mundo onde fosse possível ter
liberdades quanto a seus corpos, espíritos e mentes. Mais ainda, idealizavam uma
realidade em que pudessem expressar tais liberdades na vida em comum, em sociedade,
e não houvesse a necessidade de se existir de maneira dividida entre o espaço particular
e o coletivo como forma se proteger. De fato, não alcançamos de forma plena esse
mundo ideal. Em grande parte, porque entre a tolerância que temos no presente e um
430
ideal de maior tolerância num futuro, há sempre muitas refrações, vistas desde as mais
tímidas resistências a se tolerar o diferente, até nos reacionarismos mais virulentos, que
buscam sentido num passado inventado para uma retórica bélica cujo princípio, meio e
fim são o de suprimir a própria existência do outro.
Esta tese teve por objetivo principal investigar a difusão das ideias sobre a
tolerância e liberdade religiosas no mundo luso-brasileiro – com destaque a Portugal,
mas sem perder de vista algumas dinâmicas do espaço colonial brasileiro – no período
das Luzes, entre o final da primeira metade do século XVIII até o as duas primeiras
décadas do XIX. A hipótese central defendida aqui é a de que, em meio a múltiplos
embates e formulações em torno de um ideal de tolerância religiosa, formado no
pensamento iluminista e com raízes anteriores no mundo luso-brasileiro, paralelamente
a um processo de secularização, desenvolveram-se, de um lado, uma vertente mais
radical da defesa da tolerância religiosa e, de outro, uma vertente ancorada numa
perspectiva moderada e “modernizada” de Catolicismo. Estas, de forma complementar,
desenvolveram-se em meio a processos complexos, fluidos e diacrônicos, e neles
evidenciaram-se disputas em torno de um campo religioso, alterando-o e
reestruturando-o, com importantes repercussões nas realidades políticas e culturais,
percebidas em todos os estratos da sociedade.
O que se viu ao longo da análise aqui desenvolvida é que tolerância religiosa, no
contexto da Idade Moderna, se não foi defendida por parte expressiva da cultura letrada
– já que chegou mesmo a ser combatida por considerável parte dela – integrou os
debates sobre as liberdades de consciência e de religião, desenvolvidos na incipiente
esfera pública que ali se formava. Acrescenta-se que, fora dessa cultura letrada, esses
debates se desenvolveram para além das balizas colocadas pelas autoridades e tomaram
rumos diversos entre agentes dos mais variados, articulando o que havia de mais recente
na cultura letrada das Luzes com aspectos tradicionais da mentalidade e religiosidade
ibéricas. A tolerância religiosa teve um espaço importante dentro de um amplo processo
de disputas em torno do religioso que marcaram o processo secularizador em Portugal e
também nos espaços coloniais, onde se criou uma matriz de tolerantismo bastante
particular dentro do Iluminismo católico. Esta conjugava leituras de mundo, do tempo
histórico e de realidades diversas do mundo lusófono.
Analisar como que homens e mulheres da Idade Moderna enfrentaram os
fanatismos e obscurantismos de sua época, portanto, também tem muito a nos dizer
sobre nós mesmos, enquanto sociedade. Fazer isso consiste num exercício de se
431
observar uma realidade distante a fim de vislumbrar possíveis chaves de compreensão
sobre problemas bastante vivos na contemporaneidade, que se se renovam e se
atualizam constantemente.
Embora a tolerância religiosa apareça em documentação anterior, grande parte
da historiografia busca respostas para origem de tópicas e argumentos que tenham
originado e sustentem seu sentido contemporâneo na Idade Moderna. A época das
Reformas e do Renascimento, marcada por conflitos como as guerras de religião, além
da reativação dos tribunais do Santo Ofício, trouxeram o problema do convívio com
outras religiões, no Ocidente, de maneira um tanto inédita. Os processos de
confessionalização, a necessidade de acordos mínimos entre Igrejas de maneira a se
contornar as guerras, a ampliação de visões de mundo com a conquista das Américas, as
descobertas científicas e outros pontos abalaram as formas de se ver a realidade até
então. A defesa da tolerância religiosa, nesse contexto, foi elaborada e reelaborada
desde as suas matrizes populares até vasta literatura, que envolve de textos literários às
polêmicas religiosas, além de tratados filosóficos e obras de prosa de ficção. Ela tornouse, assim, um problema religioso e político, filosófico e cultural, que envolvia diversos
âmbitos, que permeavam identidades ontológicas de sociedades inteiras e projetos de
vida em comum.
Durante a Idade Moderna, a dissolução progressiva do ideal de organização de
Estado baseado na fórmula “um rei, uma fé, uma lei”, dá-se quando ocorre a separação
entre as justificações políticas e as justificações teológicas da intolerância, distinção
dentro da qual se intercalam várias realidades, nos planos institucionais, no das
mentalidades, das tradições culturais, e muitos outros. Em boa parte da história do
Ocidente cristão, no plano político-institucional, sobretudo, em que houve um
entrecruzamento da unção eclesiástica e da necessidade da sanção política, observam-se
dois fenômenos que dão à noção de tolerância seu sinal negativo de abstenção. Nele,
observa-se a perda gradual, pelo poder político, da unção eclesiástica e sua
dessacralização, seguida da perda da sanção do braço secular pela instituição
eclesiástica, ou seja, seu poder de coerção física. A partir daí, ao longo da Modernidade
e sobretudo no contexto das Luzes, constrói-se o “tipo-ideal” de organização social
contemporânea, do qual procede a noção de tolerância pautada na ideia de uma
abstenção de se exigir e interditar o diferente, princípio que é político e sem a unção do
religioso. Esse processo a foi marca central dos vários processos de secularização
432
ocorridos em diversas partes do mundo ocidental. Dessa secularização derivaram-se
modos de se pensar as sociedades não necessariamente laicos, mas pautados por uma
razão que cada vez mais prescindia da tradicional fórmula que unia o corpo político ao
corpo religioso. Durante a Idade Moderna forma-se, também, grande parte do substrato
dos ideais acerca de uma necessidade, do ponto de vista moral e ético, de abstenção do
Estado em interditar assuntos de natureza religiosa ou de opinião, bem como as várias
correntes de pensamento, comportamentos, entre outros. Assim, paralelamente à ideia
de tolerância pelo negativo, idealizam-se noções de que deveria haver espaços livres de
expressão de crença e de pensamento, aspectos da realidade humana que não seriam da
alçada de controle da autoridade civil e nem, necessariamente, representariam riscos
para ela. Assim, noções de liberdade específicas e plurais foram elaboradas e se
disseminaram juntamente com outra elaboração da ideia de tolerância de sinal positivo,
pela qual se deveria afirmar determinada liberdade, que se tornou fundamento éticopolítico e, também, filosófico e teológico, de sociedades que se pensavam civilizadas e
modernas. Formou-se, igualmente, seu oposto, uma noção de caráter negativo, a partir
da qual sinais de intolerância tornam-se cada vez menos toleráveis, no sentido de
remeterem ao atraso e obscurantismo.
Durante a Ilustração, as diversas tradições e correntes que tiveram lugar no curso
do desenvolvimento de ideais de tolerância religiosa foram relidas, reapropriadas e
levadas às esferas de debate e de decisões políticas, religiosas, filosóficas e culturais das
mais diversas. Ainda que, muitas vezes, às Luzes fiquem entendidas como gênese de
um ideário moderno de tolerância e de liberdades de pensamento e religião, coube-lhes
apenas o trabalho de realizar uma reorganização, feita por agentes dos mais diversos e
por núcleos cosmopolitas e pulverizados, dentro e fora da Europa. O contexto iluminista
reorganizou tópicas e ideias que eram muito anteriores a ele e que foram elaboradas
nem sempre pelos círculos eruditos mais tradicionais. Ainda que os philosophes
tivessem grande importância na difusão da defesa da tolerância religiosa como
necessidade civilizatória, pensadores de diversos outros círculos – tais como
diplomatas, eclesiásticos e religiosos de diversas religiões e igrejas, estudantes, os
chamados libertinos e várias pessoas de diversos meios e estratos sociais – foram
agentes bastante ativos desse processo. Não se pode, por sua vez, tomar as tradições
populares de tolerantismo como externas ou inferiores a essa realidade. Quando se
pauta, como o fez esta tese, pela ideia de campo religioso, remetendo a categoria
elaborada por Pierre Bourdieu e trazida a trabalhos sobre a Idade Moderna de Roberto
433
Di Stefano, torna-se necessário entender que tais tradições delimitavam diversos dos
problemas religiosos enfrentados nessas elaborações que marcaram as Luzes. A ideia de
que uma religião verdadeira não poderia ser alcançada e vivida por meio da coação, pois
gerava e arraigava uma noção disseminada de haver uma religião privada, sincera e
verdadeira, oposta a outra externalizada em função de um teatro social e, por
conseguinte, para agradar agentes da vigilância e da repressão religiosas, já existia
muito antes da Ilustração.
Conforme o recorte espacial adotado nesta tese, que abrange Portugal e, em
menor medida, o Brasil, é fundamental levar em consideração a dimensão católica das
Luzes. Entender as matrizes de um Iluminismo Católico português permite identificar
algumas possibilidades para se analisar a Ilustração portuguesa, sobretudo levando-se
em consideração o lugar do Catolicismo em seu interior. Foram apresentados e
discutidos aspectos do que se define como um Iluminismo Católico. As discussões
feitas nos Capítulos 1 e 2 sustentam a conclusão de que a dicotomia feita entre o
Iluminismo e a religião é incorreta, uma vez que grande parte dos debates do dito
contexto sociológico e intelectual partiu de problemas formulados dentro de percepções
de realidade que não prescindiram da religião.
Tomar essa relação Iluminismo x religião, possibilita, por um lado, evitar a
generalização e a conotação pejorativa, muitas vezes presente em uma concepção
específica de “Luzes católicas” que é ancorada na oposição entre razão e religião, em
que à segunda confere-se uma espécie de papel de “contaminador” de um processo
marcadamente secular, que seria o Iluminismo. De outro, evita-se também a
desconsideração do lugar da religião no próprio processo das Luzes portuguesas, a quais
muitas vezes se ocuparam de diversos temas e problemas de fundo absolutamente
religioso. Considerando os casos especificamente português e luso-brasileiro, a forte
presença de agentes católicos e de questões oriundas do Catolicismo – tais como os
conflitos de alçada entre monarca e papa, o jansenismo, o regalismo, o antijesuitismo e
as críticas ao clero regular, a necessidade de haver ou não uma Inquisição, entre outros
– não os relega a uma condição inferior a outros desenvolvimentos das Luzes. Pelo
contrário, apenas indica trânsitos e especificidades do universo luso e diversas inserções
de vários dos seus agentes no contexto das Luzes, bem como seus processos de
reformismo.
Dessa maneira, a tolerância religiosa, na cultura erudita portuguesa de meados
do século XVIII, ainda que não tenha sido defendida abertamente na maioria das vezes,
434
teve lugar, sendo articulada a algumas tópicas. É preciso dizer que tal cultura erudita
esteve marcada por um substantivo dirigismo cultural, estando fortemente alinhada e a
serviço do reformismo empreendido pelo Marquês de Pombal. Ela se aproximava de
debates que existiram em diversos outros contextos europeus das Luzes, sobretudo ao
longo do reformismo do Marquês de Pombal. Na obra de pensadores como Antônio
Nunes Ribeiro Sanches, Luís Antônio Verney, d. Luís da Cunha, aparecia, de maneiras
diversas, um ideal de religião vincado numa “sã teologia”, fiel ao Catolicismo e
contrária ao que se definia como fanatismo, identificado com os exteriorismos e
excessos encontrados no chamado “barroco”. Aparecia também nas discussões a
respeito de se reformar o Santo Ofício e os órgãos de censura de maneira a se realizar
tal ideal ilustrado de Catolicismo, extirpado de qualquer coisa que lembrasse a irreligião
ou formas imoderadas de professá-lo. A necessidade de se reformar Portugal, para
retirá-lo de um atraso, quando as demais nações europeias também traziam consigo
alguns pontos da defesa iluminista da tolerância, uma vez que a intolerância prejudicava
o comércio, afastando estrangeiros “hereges”, trazia, por exemplo, rediscussões sobre a
necessidade de se rever a condição dos cristãos novos. Isso se relacionava à sua
expulsão da Península Ibérica devido à Inquisição e à consequente fuga de seus
cabedais e também ao entendimento segundo o qual a divisão entre cristãos novos e
cristãos velhos seria sediciosa segundo um ideal regalista. Isso implicava ainda a
própria discussão, que aparece ao longo da Ilustração lusa, sobre a condição do clero
regular, especialmente a Companhia de Jesus. No Iluminismo, no caso luso-brasileiro, o
clero regular, no geral, e em específico, os jesuítas, constituíram mais e mais
“antimodelos” de modernidade em campos variados, como o religioso, o econômico,
político e outros, sendo criticados fortemente na documentação. Eles, como tópico
discursivo, aparecem nos escritos dos letrados do período pombalino. Em tais escritos,
vê-se uma articulação bastante significativa entre sua atuação em Portugal e a tópica do
atraso, além da ideia de uma forte repercussão de um conspiracionismo, particularismo
e sectarismo, contraposto ao ideal centralizador do regalismo. Além disso, de fundo,
apareciam com vigor argumentos que buscavam conciliar o Catolicismo com a razão
ilustrada, em que pontos como o empirismo eram valorizados, por exemplo, em relação
à defesa de um amplo exame das Escrituras na instrução do clero, além da necessidade
de uso da persuasão racionalmente fundamentada – e não do dogmatismo ou da pura e
da simples repressão à “heresia” – para se converter “heréticos”.
435
Porém, ideias mais radicais de defesa da tolerância religiosa desenvolveram-se
paralelamente e para fora de qualquer dirigismo. Como já foi dito, existia um substrato
de tolerantismo vindo de estratos populares e que delimitava de maneira significativa as
disputas do campo religioso. No Capítulo 3, foi discutido que o homem da Idade
Moderna viveu no que bem definiu Lucien Febvre como um “mundo de teólogos”, ou
seja, um universo cultural em que questões como o pós-vida ou a materialidade da alma
eram objetivamente debatidos, e desses embates derivavam muitas chaves de leitura
necessárias para suas representações do mundo. O processo de secularização de que o
reformismo pombalino tomou frente, indiretamente, forneceu diversos elementos novos
para ideias em defesa de maiores liberdades de pensamento e em matérias religiosas.
Com ele, tópicas como da injustiça das perseguições inquisitoriais ou dos prejuízos que
a Inquisição causava para a própria religião foram reorganizados e tomaram espaço no
ambiente público, em formação. Os trânsitos de estrangeiros em Portugal e de
portugueses em contextos estrangeiros também são importantes para se entender tal
processo de reelaboração de ideias sobre a tolerância religiosa. O contato com contextos
religiosos distintos rearranjou esquemas antes fixos de tolerância e intolerância para
muitas pessoas, tornando-os mais móveis aos seus olhos. A presença de agentes, tais
como as primeiras lojas maçônicas instaladas em Portugal, assim como de obras como
as do Cavaleiro de Oliveira, contribuiu de maneira a colocar a tolerância religiosa e as
críticas à Inquisição como constituintes de uma narrativa crítica, que aproximava
sentimentos e ideias intimamente identificadas com a religião às tópicas secularizadas.
Ao fim do século XVIII, como foi analisado no Capítulo 4, a figura dos
libertinos aparece com maior destaque. Entendidos, no período, como aqueles que
envergam um arquétipo que alia uma crítica universal, que perpassa a moral, a religião e
a monarquia absoluta, suas sociabilidades, marcadas pela liberdade no falar e disputar
sobre diversos pontos, os libertinos se fizeram presentes em Portugal e na América
portuguesa. A defesa da tolerância religiosa apareceu em suas proposições, em grande
medida, amparada numa percepção específica do tempo, calcada em grande parte sobre
a tensão entre um reformismo incompleto de um passado recente e a urgência da
tolerância na modernidade, identificada com o porvir. A Inquisição e outras formas de
cerceamento da liberdade de fé e de opinião foram colocadas progressivamente no
campo do intolerável. Ao mesmo tempo, sua extinção, tornou-se um pressuposto
civilizatório. Os libertinos tornaram-se agentes formuladores e divulgadores de uma
436
defesa da tolerância que tomou parte de um processo amplo de corrosão de valores do
Antigo
Regime,
de
forte
teor
crítico
às
suas
instituições.
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Real Mesa Censória/ Real Mesa da Comissão Geral para a Censura de Livros/
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outros. Censuras - Pareceres - Caixa 4, 1786.
Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. 121º CADERNO DO PROMOTOR.
Livro 313.
Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. 122º CADERNO DO PROMOTOR.
Livro 314.
Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa.130º CADERNO DO PROMOTOR.
Livro 319.
Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Apresentação de José Caetano de
Miranda, proc. 4.070.
Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa.Apresentação de Maria Madalena
Salvada, proc. 9275.
Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Auto de justiça contra o doutor José
Antônio do Couto, proc. 18018.
Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Carta de denúncia de d. Maria de
Barbosa du Bocage contra José Diogo, proc. 14684.
Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Carta do Promotor Bernardo Figueiroa
Barbudo Seixas sobre a ré Maria Madalena Salvada, proc. 16463.
Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Confissão de Inácio José Aprígio da
Fonseca, proc. 13556.
Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Correspondência de Antônio Manuel
Félix, proc. 13801.
Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Denúncia contra Cipriano da Costa,
proc. 13539.
Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Denúncia contra Francisco José, proc.
38/0785.
Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Denúncia de Lourenço Ferreira, proc.
1561.
469
Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Denúncia contra o tenente Hirmógenes
e outros, proc. 13.541.
Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Denúncia do padre João Dias Pereira no
Brasil., mç. 61, n.º 8.
Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Denúncias contra Francisco Luís de
Mariz Sarmento, proc.13977.
Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Minuta da apresentação e confissão do
frei Tibúrcio José da Rocha, proc. 16435.
Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Pedido de informação feito pelo secreto
do Santo Ofício de Lisboa à Inquisição de Coimbra, sobre o frei Tibúrcio José da
Rocha e do frei Eleutério, proc. 13490.
Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de Aleixo Escribot, francês de
nação, proc. 1900.
Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de Antônio de Morais, proc.
2015.
Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa Processo de Doutor José Vieira Couto,
proc. 12957.
Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de Feliciano de Oliveira,
proc. 5344.
Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de Henrique de Jesus Maria,
proc. 6239.
Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de Hipólito José da Costa,
proc. 17981.
Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Processo de Jerónimo Francisco Lobo.
Tribunal do Santo Ofício, proc. 6111.
Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Processo de Joaquim de Amorim e
Castro e de Luís Tavares dos Santos, proc. 7035.
Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de João Baptista Brace, proc.
4189.
Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de João Constantino Matos,
proc. 7120.
Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de João Custon, proc. 10115.
Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de João Guibert, proc. 9694.
470
Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de João Tomás Brulé, proc.
10683.
Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de José António da Silva
Freire, proc. 9069.
Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de José António da Silva,
proc. 13365.
Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de Maria Madalena Salvada,
proc. 9276.
Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de Luís Mourão, proc. 5636.
Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de Manuel Galvão, proc.
13367.
Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de Miguel Gregue, proc.
9840.
Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de Nicolau Tolentino Sales,
proc. 13436.
Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de Rodrigo Gree, proc. 5168.
Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de Rodrigo Sodré Pereira,
proc. 1810.
Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Processo de Valério Antônio Barreto,
proc.12.513.
Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo do bacharel João da Costa e
Sousa, proc. 3250.
Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Processo do padre Anastácio dos
Santos, proc. 9070.
Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo do padre Boaventura de
Santiago, proc. 9066.
Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo do padre Jacinto José
Coelho, proc. 9068.
Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Processo do Padre João Pedro de
Lemos Montes, proc. 6661.
Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Sumário contra Cipriano José Barata
de Almeida e Marcelino Antônio de Sousa, proc. 13865
471
Arquivo Histórico Ultramarino (AHU)
1758, agosto, 12, rio Pardo. AHU-Santa Catarina, cx. 3, doc. 2
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SOARES, João. O ódio chega às ruas. Levantamento mostra que pelo menos 70 casos
de agressões e ameaças foram registrados nos últimos dez dias, e apoiadores de
Bolsonaro são responsáveis por 50 deles. Mulheres e LGBTIs são os alvos mais
frequentes.
Deutsche
Welle
-online.
11/10/2018.
Disponível
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https://www.dw.com/pt-br/o-%C3%B3dio-chega-%C3%A0s-ruas/a45838154?maca=bra-Red-WhatsApp>. Acessado em 11/10/2018.
The Knox Bible. New Advent. Disponível em: http://www.newadvent.org/bible/
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Imagens
Figura 1: Contracapa da Dedução Cronológica e Analítica, de José Seabra da Silva.
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http://purl.pt/12183/3/>. Acessado em jun./2018.
473
Figura 2: Contracapa do poema épico-polêmico Triumpho da Religião, de Francisco de
Pina e de Sá e de Mello. Digitalizado por Google Books e disponível em: <
https://books.google.com.br/books?id=gqRbAAAAcAAJ&hl=ptBR&authuser=0&pg=PP1#v=onepage&q&f=false> . Acessado em jun./2018.
Figura 3- Frontispício da versão, também em inglês, das memórias de John Coustos, na
versão publicada em 1820. À esquerda, uma ilustração sobre a chegada do lapidário
suíço á Inquisição de Lisboa. COUSTOS, John. The Mysteries of Popery Unveiled in
the Unparalleled Sufferings of John Coustos at the Inquisition of Lisbon: To which is
Added the Origin of the Inquisition, and Its Establishment in Various Countries, and
The Master Key to Popery. By Anthony Gavin, one of the Roman Catholic priests of
Saragossa. Hartford: printed for the Publisher R. Reynolds & H. Thompson, 1820.
Digitalizado
por
Google
Books
e
disponível
em
<
https://books.google.com.br/books?id=QIIXAAAAYAAJ&hl=ptBR&authuser=0&pg=PP6#v=twopage&q&f=true> Acessado em jul./2018.
Figura 4- Ilustração sobre uma das seções de tortura contra Jonh Coustos. Ibidem, p.
137.
Figura 5- Capa da segunda impressão. ZARAGOZA, Bruno, fr. (OMS). Instruccion
católica y convencimento racional de los heterodoxos y libertinos, compuesta sobre um
sermon panegírico, dogmático y moral del Apóstol San Pedro. Cuenca: por d. Fernando
de la Madrid. Año 1804. Digitalizado por Complutense University Library of Madrid.
Disponível
em
Europeana
Collections
https://www.europeana.eu/portal/pt/record/9200110/BibliographicResource_100012661490
5.html?q=libertino. Acessado em jul./2018.
Figura 6- Figura, seguida do início do texto do Catéchisme, logo após a Oraison à
Sainte Madaleine. THÉROIGNE DE MÉRICOURT, Anne-Josèphe (atribuído a).
Cathéchisme Libertin à l’usage des filles de joie et des jeunes demoseilles qui se
décident à embrasser cette profession. Sur la copie imprimée à Paris, aux dépens de la
veuve gourdan, 1792. Digitalizes by Google. Coleção Americana. Disponível em
Archive.org: < https://archive.org/details/catchismelibert00unkngoog>. Acessado em
mai./2018.
Outras mídias
Monty Python'sLife of Brian. Dir. Terry Jones. Produção: John Goldstone. Escrito por:
Monty Python. Cinema International Corporation (UK), Orion Pictures/ Warner Bros.
(US), 1979. 93 min
474