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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA IGOR TADEU CAMILO ROCHA ENTRE O ‘ÍMPETO SECULARIZADOR’ E A ‘SÃ TEOLOGIA’: TOLERÂNCIA RELIGIOSA, SECULARIZAÇÃO E ILUSTRAÇÃO CATÓLICA NO MUNDO LUSO (SÉCULOS XVIII-XIX) Belo Horizonte 2019 IGOR TADEU CAMILO ROCHA ENTRE O ‘ÍMPETO SECULARIZADOR’ E A ‘SÃ TEOLOGIA’: TOLERÂNCIA RELIGIOSA, SECULARIZAÇÃO E ILUSTRAÇÃO CATÓLICA NO MUNDO LUSO (SÉCULOS XVIII-XIX) Trabalho final de Doutorado no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais. Tese, apresentada junto ao Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais, para a obtenção de título de doutor em História. Linha de pesquisa: História e Social da Cultura. Orientador: Prof. Dr. Luiz Carlos Villalta Belo Horizonte 2019 __________________________________________ Profa. Dra. Laura de Mello e Souza (Sorbonne Université) __________________________________________ Profa. Dra. Marie-Noëlle Ciccia (Université Paul-Valéry/Montpellier 3 UPV-3) __________________________________________ Prof. Dr. Aldair Carlos Rodrigues (UNICAMP) __________________________________________ Profa. Dra. Adriana Romeiro (UFMG) _________________________________________________ Prof. Dr. Álvaro de Araújo Antunes (UFOP) Em memória do Museu Nacional do Rio de Janeiro, vítima de um dos nossos grandes e piores dogmatismos – o neoliberal. 1 Agradecimentos Começo meus agradecimentos, com toda justiça, ao meu orientador tanto desta tese como da minha dissertação de mestrado, Luiz Carlos Villalta. Não cabem aqui todas as contribuições que foram dadas a esta pesquisa, muito menos tudo o que aprendi ao longo desses anos de orientação, séria e dedicada. Agradeço também aos professores e funcionários – Maurício Mainart, Gustavo Monteiro e Francelina Gonçalves – do Programa de Pós-graduação em História da UFMG que, mesmo vivendo num contexto de cortes expressivos e um desmonte das universidades e da produção científica no Brasil, assim como ataques contra as liberdades de pesquisa e de cátedra, e contra a autonomia universitária, conseguiram conduzir, com todo esforço, este programa a nível de excelência e grande reconhecimento. Sobre os professores, destaco alguns com quem tive mais contato, embora reforce aqui meus agradecimentos a todos: Adriana Vidotte – professora da UFG, que enquanto esteve aqui foi minha orientadora de iniciação científica, Adriana Romeiro, Douglas Attila Marcelino, Ana Paula Caldeira, Regina Helena Alves, Luiz Arnaut, José Newton Coelho Meneses, Douglas Cole Libby, Priscila Brandão e Kátia Gerab Baggio. Como estudioso das Luzes, não poderia deixar de incluir, em meus agradecimentos, pessoas que, à sua maneira, mantêm viva a ideia de que espalhar a razão e o conhecimento são ferramentas para se transformar o mundo num lugar melhor e emancipar a humanidade: são pessoas como Alexandra Elbakyan – fundadora do Scihub, Brewsler Kahle – fundador do Internet Archive, ao Library Genesis, Aaron Swartz – in memorian, fundador do Reddit, e todas as demais iniciativas nesse sentido. Incluo aqui a política de expansão das universidades e institutos federais no Brasil, sob os governos Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, importantes e raros investimentos na educação e ciência brasileiros, sem os quais talvez eu e muitos colegas não pudéssemos fazer curso superior e pesquisas de qualidade – sobretudo, considerando o risco que essas políticas correm com o avanço do obscurantismo neste país. Agradeço também a meus familiares, que comigo estiveram e estão por esses anos e sem os quais não estaria aqui. Especialmente, agradeço minha avó falecida em março de 2016, Eurídice Ferreira da Cruz, com quem convivi, felizmente, por muitos anos da vida. Agradeço, aqui, também, minha mãe Marta, minhas irmãs Maíra e 2 Marina, meu irmão Frederico, meus cunhados Luana e Eric, além dos sobrinhos Benício e Joaquim. Quero também agradecer aos vários amigos que fiz nessa minha passagem pelo curso de História da UFMG, graduação, mestrado e doutorado. A começar pelas iniciativas discentes das quais faço parte – a Oficina de Paleografia, na qual estou com Fabiana Léo, Natália Casagrande Salvador, Mateus Frizzone, Gabriela Sarmento, Elisa Sales e Ygor Gabriel –, bem como nas que passei por alguma gestão – Encontro de Pesquisa em História da UFMG e Revista Temporalidades. Fico feliz e orgulhoso de participar de cada uma dessas iniciativas, que tanto contribuem para construir uma pósgraduação mais coletiva e colaborativa na sua produção do conhecimento. Aproveito aqui para deixar minha admiração a outros grupos discentes dos quais não faço parte, também de discentes do mesmo programa, como o Núcleo Interdisciplinar de Estudos de Imagem (NINFA) e o Núcleo Interdisciplinar de Estudos Teóricos. Aos meus amigos do “grupo” (que não sei qual o nome dele hoje), deixo agradecimentos especiais: Douglas de Freitas Pereira, Gabriela Galvão, Thiago Lenine Tolentino, Felipe Malacco, Luiz Guerra – a este, um agradecimento especial pelo Campari –, Alexandre Bellinni Tasca, Alysson Faria da Costa, Marcelo Alves, Hugo Rocha, Raziel Miranda e Matheus Arruda, obrigado por tudo. O mesmo digo a todos os que podem voltar a nós, no caso, Bruno Carvalho Corrêa, Thiago Prates e Warley Alves. Ainda entre as pessoas que conheci ao longo da minha formação na História, colegas de UFMG e fora dela, agradeço a Ana Tereza Landolfi Toledo, Allysson Lima, Luísa Marques, André Pedroso Becho, Flávia Chagas, Bruno Vinicius de Morais, Isabel Cristina Leite, Alexia Nascimento, Igor Barbosa Cardoso, Douglas Lima, André Mascarenhas, Conrado Salazar, Lorena Lopes, Marcos Vinícius Gontijo, Cairo Barbosa, Débora Cazelato, Marcus Vinícius Duque Neves, Marco Girardi, Rafael Fonseca, Lucas Pereira, Ailton di Paula Junior, Robson Freitas de Miranda Junior, Raul Lanari, Mariana de Morais Silveira, Leandro Faluba (in memoriam), Denise Duarte, Weslley Rodrigues, Breno Mendes, Gabriel Pereira, Rute Torres, Hugo Palmier, Virgílio Coelho de Oliveira Junior, Hudson Públio, Gislaine Gonçalves, Mateus Rezende, Rodrigo Paulinelli, Matheus Frizzone, Ana Carolina Viana, Deborah Brait Gonçalves, Breno Gontijo, Diego Prata, Rafael Leite, Edson Junior, Cinthya Oliveira e todos os demais membros de minha turma de graduação, Lourival Cavalcante Junior – este, começando sua 3 trajetória nos estudos históricos – e Júlia Helena – e suas ótimas tirinhas do Mundo de Julhelena. Não poderia me esquecer, claro, de pessoas como William Rabelo, Dina Flávia Costa, Raider Marzo, Lucas Simon Magalhães, Gustavo Lopes de Oliveira, Gustavo Matheus, Diogo Dias Soares, Diogo “Belial”, Bernardo Sardinha, Luiz Vitorino e tantas outras várias pessoas que conheci nos bares e cenas rock e metal de Belo Horizonte, suas passagens pela universidade ou nos diversos encontros que a vida proporciona. Incluo aqui também um outro grupo de amigos que conheci recentemente e que são muito queridos por mim: Fabrício Soares, Nathan, Victor Kalin, Vitor Saes, Leonardo Ribeiro, Pedro Ferreira e Renato Araújo. Por fim, dentro de um contexto de desmonte da ciência e da universidade empreendido pelo projeto de governo implementado após o golpe parlamentar de 2016, devo aqui agradecer o privilégio – que, no meu mundo ideal não deveria ser privilégio – de ter contado nesses quatro anos com uma bolsa de doutorado da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES/Proex), por todo o suporte material que me proporcionou, viabilizando a realização da pesquisa dentro dos prazos estipulados. 4 Resumo: Esta tese é fruto de um trabalho investigativo sobre as formulações e defesa da tolerância religiosa no Iluminismo católico de Portugal, em maior medida, mas tocante também a alguns trânsitos com o Brasil. Parte-se do pressuposto que o processo secularizador pelo qual o reino ibérico passou, ao longo do século XVIII, foi um elemento fundamental de articulação de vertentes anteriores de defesa de maior tolerância religiosa com debates pertinentes às Luzes. Dessa forma, essa tolerância religiosa foi produto de sínteses bastante complexas, apresentadas em espaços e sociabilidades típicas do Setecentos e foram, em alguma maneira, agentes de mudanças numa realidade marcada pela vigilância em matérias de opinião e religião. Tais formulações sobre a tolerância religiosa fizeram parte, de maneiras mais radicais ou mais moderadas, de tensões próprias da disputa por um campo religioso – entendido, aqui, como o acesso legítimo aos chamados “bens de salvação”, na terminologia de Pierre Bourdieu, que englobam de interpretações reconhecidas e autorizadas das Escrituras a ritos e preceitos religiosos –, formando, assim, um substrato crítico fundamental para se pensar a dissolução de algumas instituições basilares do Antigo Regime. Palavras-chave: Tolerância religiosa; Iluminismo católico; Secularização. Abstract: This thesis is the result of an investigative work on the formulations and defense of religious tolerance in the Catholic Enlightenment of Portugal, to a greater extent, but also touching on some transits with Brazil. It is assumed that the secularization process through which the Iberian kingdom passed, during the eighteenth century, was a fundamental element of articulation of previous strands of defense of greater religious tolerance with debates pertinent to the Enlightenment. In this way, this religious tolerance was the product of quite complex syntheses, presented in typical spaces and sociabilities of the Seventeenth and were, in some way, agents of change in a reality marked by vigilance in matters of opinion and religion. Such formulations of religious tolerance were part of the more radical or more moderate forms of tension inherent in the struggle for a “religious field” – understood here as legitimate access to the so-called “assets of salvation” in Pierre Bourdieu's terminology, which encompass from 5 recognized and authorized interpretations of the Scriptures to religious rites and precepts –, thus forming a fundamental critical substrate for thinking about the dissolution of some basic institutions of the Ancient Regime. Keywords: Religious tolerance; Catholic Enlightenment; Secularization. 6 SUMÁRIO SUMÁRIO ................................................................................................................................... 7 Introdução.................................................................................................................................... 9 Capítulo 1 – O Iluminismo na historiografia e no contexto luso-brasileiro ......................... 21 1.1 As sínteses historiográficas e os problemas de um único Iluminismo .................. 22 1.2 O mundo luso-brasileiro e as Luzes ecléticas e católicas ....................................... 27 1.3 As Luzes ecléticas ............................................................................................................ 30 1.4 Um Iluminismo Católico ................................................................................................. 38 1.5 A Ilustração e as novas abordagens historiográficas ................................................... 52 1.6 A Tolerância religiosa, do Renascimento ao Iluminismo católico .............................. 62 Capítulo 2 – A secularização, a tolerância e a cultura letrada sob o pombalismo .............. 92 2.1 A incipiente esfera pública e as Luzes católicas no mundo luso-brasileiro .......... 96 2.2 O campo religioso, a secularização e o regalismo pombalino .............................. 115 2.3 Um reino atrasado, diante das “mais polidas nações da Europa” ...................... 133 2.4 A “Companhia dita de Jesus”, o clero regular e os antimodelos de modernidade 157 2.5 O Triumpho da Religião e o espaço para a tolerância religiosa ................................. 169 Capítulo 3 – Para além do dirigismo ..................................................................................... 188 3.1 Proposições e heresias na historiografia e no pensamento político-religioso moderno ............................................................................................................................................... 189 3.2 Blasfemadores e hereges: “delitos de fala” ................................................................. 208 3.3 Fronteiras nacionais, fronteiras do religioso .............................................................. 236 3.4 A lodge de Lisboa, os sofrimentos de John Coustos e uma narrativa anti-Inquisição ............................................................................................................................................... 254 3.5 Antigas e novas críticas ao Santo Ofício...................................................................... 278 Capítulo 4 – Pela tolerância, contra o trono e contra o altar .............................................. 307 4.1 Quem era o libertino da Idade Moderna e como ele chegou ao Iluminismo? .......... 307 4.2 “E lá disputavam com muita liberdade sobre pontos de religião”: sociabilidades libertinas no mundo luso-brasileiro ................................................................................... 339 4.3 A “Natureza”, o dogma e a moral cristã-católica: libertinos contra o sexto mandamento ........................................................................................................................ 377 4.4 Os libertinos, os fanáticos e os intolerantes num “reino de estupidez” .................... 398 Considerações finais ................................................................................................................ 429 Referências bibliográficas....................................................................................................... 438 Artigos e capítulos de livros................................................................................................ 438 Livros, dissertações e teses.................................................................................................. 452 7 Dicionários, catálogos e enciclopédias ............................................................................... 461 Fontes impressas ou em formato digital ............................................................................ 463 Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT) ............................................................... 469 Arquivo Histórico Ultramarino (AHU) ............................................................................. 472 Mídias online........................................................................................................................ 472 Imagens ................................................................................................................................ 473 Outras mídias ...................................................................................................................... 474 8 Introdução O tema da tolerância religiosa – e, por consequência, o da intolerância – causa enorme inquietação aos debates públicos em torno dele. Apesar de que ser quase um ponto pacífico a sua necessidade como fundamento basilar da vida em comum, a violência produzida pela pouca tolerância praticada entre pessoas e grupos de diversas sociedades, nos mais variados contextos e por um sem número de motivações nunca deixou de ser um problema urgente. Um exemplo recente, que cumpre citar aqui: à semana do término da escrita desta tese, primeiros dias após o primeiro turno das eleições gerais no Brasil, proliferam relatos de agressões perpetradas por militância do candidato do Partido Social Liberal – PSL, Jair Messias Bolsonaro, contra militantes que representam adversários e críticos, despertando grande preocupação da comunidade internacional.1 É bastante evidente que tais ataques têm de fundo um discurso de ódio, fortemente relacionado com o fanatismo político – na retórica de um anacrônico e delirante anticomunismo – e religioso– no fundamentalismo defendido e praticado por igrejas protestantes neopentecostais. Bem por isso que opto em começar esta tese ressaltando que, ao revisitar esse tema, a historiografia adentra uma inquietação sempre constante para as mais diversas sociedades. Analisar criticamente a tolerância, nos seus fundamentos e formação de ideias, espero, pode ser um primeiro passo para se enfrentar recrudescimentos do fanatismo, tanto o de agora quanto os futuros – que, infelizmente, virão. Os iluministas, em geral, entenderam que a razão e a crítica poderiam ser armas para esse enfrentamento e, creio, alguns de seus apontamentos sobre isso se fazem atuais e merecem ser relidos, sendo objetos de reflexão. Alguns breves apontamentos se fazem necessários a respeito do desenvolvimento e delimitação do objeto desta tese. Em primeiro lugar, trata-se de um prolongamento de um trabalho iniciado em função de minha pesquisa para dissertação de mestrado, intitulada Libertinos, tolerância religiosa e inquisição sob o Reformismo ilustrado luso-brasileiro: formulações, difusão e representações (1756-1807), Mapa de Violência – pós eleições. Disponível em <http://mapadaviolencia.org/as-denuncias/ >. Acessado em 10/10/2018; SOARES, João. O ódio chega às ruas. Levantamento mostra que pelo menos 70 casos de agressões e ameaças foram registrados nos últimos dez dias, e apoiadores de Bolsonaro são responsáveis por 50 deles. Mulheres e LGBTIs são os alvos mais frequentes. Deutsche Welle -online. 11/10/2018. Disponível em: < https://www.dw.com/pt-br/o-%C3%B3dio-chega-%C3%A0s-ruas/a45838154?maca=bra-Red-WhatsApp>. Acessado em 11/10/2018. 1 9 defendida em 2015, no Programa de Pós-graduação em História da UFMG.2 O recorte dessa pesquisa de mestrado abrangeu a segunda metade do século XVIII e teve por objetivo relacionar as reformas iniciadas durante a governança do Marquês de Pombal com processos de dessacralização do mundo, no qual os chamados libertinos tomaram parte fundamental. A tolerância religiosa, que muitas vezes envolvia cruzamentos de uma vertente popular do tolerantismo com os debates da Ilustração, teve papel central nas formulações feitas por esses libertinos no desenvolvimento de sua crítica à Inquisição, à Igreja católica e à monarquia absoluta. Esta tese, apesar de também tocar nesse mesmo tema, pretendeu, desde o início, ir além. A começar porque, aqui, se analisou um grupo mais variado de agentes além dos libertinos. Incorporaram-se desde letrados ligados à Coroa na segunda metade do XVIII – como d. Luís da Cunha e Francisco de Pina e de Sá e de Melo – até outros cujas trajetórias foram de maior conflito com ela – como o Cavaleiro de Oliveira e Hipólito José da Costa –, sempre tendo em vista uma não linearidade, nem de suas trajetórias, nem de suas ideias. A forma como o tema da tolerância religiosa e as questões que a perpassam – tais como as críticas à Inquisição, o combate ao fanatismo, entre outras – aparecem de maneira bastante diversa, e tal diversidade foi explorada nesta tese. Essa opção fez com que o foco desta tese, diferentemente da dissertação, não fosse somente os processos inquisitoriais. Estes são importantes ao longo do trabalho, mas o protagonismo deles é dividido com outras tipologias de fontes, como publicações impressas em Portugal e noutras partes da Europa. Esta tese, assim, avança em relação à dissertação de mestrado por ampliar a reflexão sobre o tema da tolerância religiosa, inserindo-a na dinâmica da formação e difusão de um Iluminismo católico – este, sim, um ponto que sequer fora problematizado na dissertação e que terá destaque ao longo de toda a tese – no contexto luso-brasileiro. Com isso, possibilita-se o confronto do tema com algumas características desse contexto, como o processo do regalismo, o antijesuitismo ou a constante ideia do atraso português face às demais nações da Europa. A própria escolha das fontes inquisitoriais, diferentemente nesta tese em relação à dissertação, não se restringiu aos libertinos. Foram analisadas outras tipologias de crimes, como blasfêmias, e outros grupos de heterodoxias que caíram nas malhas inquisitoriais, como maçons e estrangeiros com diversas formas de religião que 2 ROCHA, Igor Tadeu Camilo. Libertinos, tolerância religiosa e inquisição sob o Reformismo ilustrado luso-brasileiro: formulações, difusão e representações (1756-1807). [Dissertação-mestrado em História]. Belo Horizonte: Programa de Pós-graduação em História UFMG/Universidade Federal de Minas Gerais, 2015. 10 entraram em conflito com a heterodoxia católica, em sua passagem por Portugal e Brasil. Assim, objetivou-se aqui levantar trajetórias, cotejá-las com as tópicas diversas dos séculos XVIII e XIX e também anteriores referentes à tolerância religiosa, analisando como elas foram afetadas e se apropriaram de um processo secularizador que veio com as reformas pombalinas a partir de 1750, mas teve raízes anteriores. Dessa maneira, nesta tese, observou-se que formulações sobre tolerância religiosa acompanharam um processo secularizador que modificou profundamente leituras a respeito da vida coletiva e mesmo do tempo histórico em vários grupos e agentes diversos no contexto luso. Isso marcou uma constante disputa por um campo religioso – categoria que será melhor explicada no Capítulo 2 –, em que a religiosidade e todos os campos da vida privada e em comum que ela perpassava eram modificados, sob a égide de valores como “natureza”, “liberdade”, “igualdade”, “tolerância” e outros. Esse amplo processo se deu dentro do contexto das Luzes católicas, que tiveram debates e elementos que o particularizam, em certa medida, mas que não significam que foram impermeáveis aos outros contextos de desenvolvimento do Iluminismo, marcando-se, também, por um significativo cosmopolitismo. Esta tese, enfim, tem por objetivo central investigar a difusão das ideias sobre a tolerância e liberdade religiosas no mundo luso-brasileiro – marcadamente, com destaque a Portugal, mas sem perder de vista algumas dinâmicas ocorridas no espaço brasileiro – no período das Luzes, entre o final da primeira metade do século XVIII até o as duas primeiras décadas do XIX. Grande parte da tese abrangerá um recorte temporal que corresponde ao período do chamado Reformismo Ilustrado, que abrange os reinados de d. José I (1750-1777), d. Maria I (1777-1816) e d. João VI (1816-1826), neste último caso, desde o período em que governou como regente de fato, isto é, a partir de 1792. Porém, não será um trabalho restrito a esta conjuntura que teve início com as reformas pombalinas. Tomando a Ilustração, de maneira mais geral, pretendo, ao longo da tese, analisar a fundo os debates em torno do problema da tolerância religiosa, num âmbito geral do pensamento iluminista, mas traçando as particularidades dessas discussões num contexto lusófono e católico. Isso se justifica pela datação das fontes, que vêm desde a década de 1740 e se estendem até a segunda década do século XIX. Além disso, entendo que este recorte permite uma leitura mais global a respeito do processo do Iluminismo nos contextos luso-brasileiros, por dialogar, de maneira mais aprofundada, com os modelos teóricos adotados nesta tese e que privilegiam concepções sobre as Luzes segundo os quais elas tiveram interlocução mais ampla com ideias que 11 lhes foram anteriores. A hipótese que norteia esta tese é a de que, em meio a disputas, debates e formulações em torno de um ideal de tolerância religiosa, formado no pensamento iluminista e com raízes anteriores no mundo luso-brasileiro, em paralelo com um processo de secularização que remonta meados do Setecentos, desenvolveramse, de um lado, uma vertente mais radical da defesa da tolerância religiosa e, de outro, uma outra vertente, ancorada numa perspectiva moderada e “modernizada” de Catolicismo. Estas, não antagonicamente, desenvolveram-se em meio a processos complexos, fluidos e diacrônicos, em que ficaram evidentes disputas em torno de um campo religioso, alterando-o e reestruturando-o, com importantes repercussões nas realidades políticas e culturais, percebidas em todos os estratos da sociedade. Inicialmente, cabe destacar alguns dos pressupostos do trabalho, primeiramente, quanto aos atuais debates a respeito dos modelos explicativos sobre as Luzes e sobre os processos de secularização. A Ilustração deve ser pensada sob a perspectiva das dinâmicas sociais, não se centrando excessivamente na figura dos filósofos. Cabe ainda considerar que ela possuiu uma maior amplitude cronológica e geográfica, não se limitando ao século XVIII francês.3 Quanto ao segundo ponto, é importante também se afastar das chamadas “teorias duras” de secularização, segundo as quais “secularizar” seria um processo linear e contínuo de separação das instituições e das mentalidades do religioso, inevitavelmente rumo a uma laicização. As apropriações dessa noção pela historiografia têm se mostrado excessivamente prescritivas e teleológicas, ao passo que os debates mais recentes sobre o tema destacam a multiplicidade de ressignificações, apropriações e descontinuidades diversas nos chamados processos secularizadores.4 Outro ponto a ser destacado é referente ao lugar da religião nos modelos explicativos sobre o Iluminismo. Muitos trabalhos incompatibilizam a religião e o processo iluminista. Ao estabelecerem esta incompatibilidade, em grande parte, ancoraram-se em teses hoje questionadas sobre a secularização, que a concebem como um percurso linear cujo ponto de partida seriam as Luzes, por sua vez entendidas como o alvorecer da modernidade. A leitura das fontes indica que, nas sociedades da época da Ilustração, elementos religiosos diversos tinham uma grande força e, por conseguinte, pautavam muitos dos problemas, ideias e representações do real formulados pelos então sujeitos atuantes. Essa situação torna muito difícil aceitar a incompatibilidade supracitada entre religião e Luzes. Quando se pensa especificamente sobre o Iluminismo 3 4 Essa discussão será feita no Capítulo 1. Essa discussão será feita no Capítulo 2. 12 português, é importante, pelo que acabou de se apresentar, realizar uma crítica dos modelos de explicação que o concebem como “luzes de meios tons” devido à forte presença do Catolicismo em seu interior. A religião católica, sublinhe-se, não foi incompatível com os debates iluministas e, nos diversos contextos da Europa meridional, ofereceu contributos para as reflexões e também para as ações políticas, expressas nos reformismos ali desenvolvidos. Por sua vez, se as Luzes portuguesas, por um lado, tiveram contornos cristãoscatólicos, por outro, abrigaram correntes mais radicais, que questionavam mais profundamente a própria religião em si, com um mais evidente anticlericalismo e defesas mais veementes da tolerância religiosa. O chamado “Iluminismo católico”, no interior da cultura letrada, em grande parte conduzida por um forte dirigismo cultural vindo do Estado, é verdade, conciliava a tradição católica com as formas modernas de representar o mundo e era, também, crítico e refratário à tolerância religiosa e às correntes radicais do Iluminismo. Todavia, tais correntes tiveram seus espaços de difusão nas lojas maçônicas, na universidade, em conventos e em diversos outros espaços de sociabilidade. Além disso, é importante salientar que elas não se desenvolveram somente dentro de sociabilidades letradas.5 Os objetivos específicos desta tese estão articulados com uma hipótese central sobre a tolerância religiosa, no processo secularizador das Luzes no mundo lusobrasileiro. A tolerância, se não foi defendida por parte expressiva da cultura letrada, chegando mesmo a ser por ela combatida, integrou os debates sobre a liberdade de consciência e a tolerância em matéria de religião, desenvolvidos na incipiente esfera pública que ali se formava. Acrescenta-se que, fora dessa cultura letrada, esses debates se desenvolveram para além do dirigismo cultural régio e tomaram rumos diversos entre libertinos, maçons, livres-pensadores e outros, articulando o que havia de mais recente na cultura letrada das Luzes com aspectos tradicionais da mentalidade e religiosidade ibéricas. A tolerância religiosa teve um espaço importante dentro de um amplo processo de disputas em torno do religioso que marcaram o processo secularizador em Portugal e também os espaços coloniais, onde se criou uma matriz de tolerantismo bastante particular dentro do Iluminismo católico. Esta conjugava leituras de mundo, do tempo histórico e de realidades diversas do mundo lusófono. 5 Esses aspectos serão mais pormenorizadamente abordados a partir do Capítulo 3. 13 Nesta breve introdução, cabe também apresentar alguns pressupostos teóricometodológicos e realizar uma discussão breve a respeito das fontes. A abordagem dos temas da secularização e da tolerância requer uma análise a respeito da História das ideias. Além disso, a pesquisa proposta exige que se examinem as possibilidades abertas pela micro-história como aporte teórico e metodológico. Primeiramente, o recurso à História das ideias se justifica pela finalidade de analisar os textos. Tal análise não se reduz a seu significado interno, exigindo sua inserção em seu respectivo contexto histórico e cultural, em conformidade com o que Quentin Skinner denominou “método histórico”. Segundo o autor, esse método significa “tentar situar esses textos [históricos] em contextos que nos permitam (...) identificar o que seus autores estavam fazendo ao escrevê-los”.6 Dessa forma, é possível discutir aspectos referentes à tolerância religiosa por meio da análise de elementos internos às obras, do seu significado textual propriamente, mas sobretudo cotejando-as com as diversas possibilidades históricas oferecidas pelo contexto no qual foram produzidas. Como adverte Skinner, ater-se apenas ao significado textual induz o historiador a diversos erros, sendo três dos quais, os mais comuns, referidos pelo autor como “mitologias”: a mitologia da doutrina, a mitologia da coerência e a mitologia da prolepsis.7 A mitologia da doutrina faz com que o historiador, por vezes, converta observações dispersas em doutrinas que o autor e obra analisados jamais enunciou. Isso se relaciona com o segundo erro, a mitologia da coerência, que consiste em, com base nas mesmas informações, ver alguma “falha” em sua enunciação quando ela se desvia de um todo coerente, absolutamente consistente, construído a priori pelo historiador. Por fim, Skinner se refere à última mitologia, a mitologia da prolepsis, como sendo um erro que parte de uma leitura retrospectiva de autores e obras de outras épocas, negligenciando-se, de forma demasiada, o que de fato eles pretendiam dizer em benefício do que é valorizado à época do historiador. O que Skinner propõe para se evitar tais equívocos é uma análise que vá além do significado dos textos, que busque o contexto de sua produção e suas possíveis intenções e condições de enunciação.8 Considerando-se os temas propostos nesta pesquisa, a partir desse método é possível 6 SKINNER, Quentin. Razão e Retórica na Filosofia de Hobbes. Trad. Vera Ribeiro. São Paulo: Editora UNESP, 1999, p. 22. 7 _____________. Meaning and Understanding in the History of Ideas. History and theory, v. 8, n. 1, p. 3-53, 1969. 8 Ibidem. 14 evitar os diversos anacronismos, tais como leituras retrospectivas ou um enfoque demasiado naquilo que a contemporaneidade veria como forte contradição. Um exemplo claro seria Luís Antônio Verney, pensador renomado das Luzes portuguesas, que conjuga sua tolerância religiosa com a defesa da manutenção dos tribunais do Santo Ofício.9 Quanto à micro-história, deve-se salientar sua utilidade para a reconstrução de contexto, sobretudo na análise da documentação inquisitorial, mas não somente referente a ela. Essa utilidade advém primeiramente do caráter fragmentário de muitas dessas fontes. Um livro referencial nesse aspecto é o de Natalie Zemon Davis, em sua obra sobre Martin Guerre, resultado de segunda etapa de um trabalho anterior da autora, realizado juntamente com o roteirista Jean-Claude Carrière e o diretor Daniel Vigne, de construção do roteiro do que seria o premiado filme Le retour de Martin Guerre (1983).10 O que mais chamou a atenção nesse trabalho de Davis foi o fato de sua reconstituição ter sido feita com base em pouquíssimas fontes primárias e, inversamente, assentar-se em relatos indiretos e fragmentados. Essa situação conduziu a autora a refletir sobre os critérios de cientificidade da história e a relação do historiador com as fontes. As atas do processo contra Arnaud du Tilth, em Toulouse, foram perdidas. Natalie Davis teve de se contentar com reelaborações literárias, dentre elas, as de Jean de Coras e de Le Sueut.11 9 Esse tema específico é analisado no último subtítulo do capítulo 2, em referência a uma análise feita por Cabral de Moncada sobre os mesmos escritos de Verney. 10 O filme contou com Gerard Depardieu no papel do embusteiro Arnaud du Tilth. Recebeu o prêmio César, do cinema francês, em 1983, nas categorias trilha sonora, decoração, melhores cenários e melhores diálogos, além de Dominique Pinon ter recebido indicação ao prêmio de revelação. O filme foi também indicado ao Oscar em 1985 na categoria melhor figurino. Além disso, recebeu diversas outras indicações e outros prêmios nos Estados Unidos e Inglaterra entre os anos de lançamento, 1983 e 1985. Trata-se da história de um famoso embusteiro do século XVI, Arnaud du Tilth. Na aldeia de Altigat, no Languedoc, França, ficou por três anos se fazendo passar pelo camponês Martin Guerre. Este último se mudara do País Basco com sua família para Languedoc, a contragosto, por volta do ano de 1528. Lá se casara com Bertrande de Rols, aos 14 anos. Mas, por volta de 1548, Martin desapareceu e foi, ao que tudo indicou a autora, para a Espanha. Lá, além de aprender o espanhol, entrou para o exército de Felipe II e lutou contra a França. E exatamente nessa guerra, Martin e Arnaud du Tilth têm suas trajetórias cruzadas no momento em que dois homens de Altigat trataram o segundo como o primeiro. Nesse momento, du Tilth teve a ideia de se passar pelo camponês, e o fez, enganando Bertrande e o restante da família de Martin. Quando o camponês voltou para a aldeia, o caso tornou-se escandaloso e du Tilth foi julgado e condenado à forca. SILVA, Alberto Moby Ribeiro da. O retorno do retorno de Martin Guerre: Natalie Davis, cinema e história. In: NÓVOA, Jorge & BARROS, José D’Assunção (orgs.). Cinema-História: teoria e representações sociais no cinema. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008. p.87-118. 11 Ela não teve acesso aos autos do processo o, provavelmente, já está perdido. Suas informações provêm de relatos do juiz do caso, Jean de Coras e de um observador do processo, Guillaume de Sauer. Os dois relatos são datados de 1561, ano seguinte ao da execução de du Tilth. DAVIS, Natalie Zemon. O retorno de Martin Guerre. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 15 Outra referência importante é a obra de Pietro Redondi, a respeito da condenação de Galileu Galilei, no século XVII. Após uma vastíssima pesquisa documental que durou cerca de dez anos, Redondi descortinou um contexto de sociabilidades amplo e complexo, que envolvia a cultura cortesã romana do seiscentos. Para tanto, muitas vezes, valeu-se de fragmentos e silêncios múltiplos das fontes, os quais foram contornados com vários cruzamentos e vestígios indiretos de informações. Essas relações, além da leitura dos processos e qualificações inquisitoriais contra Galileu, levaram o autor a entender que sua condenação se dera por heresia, após sua concepção de matéria na famosa obra Il Saggiatore (1623) ser considerada herética, e não conforme uma mitologia cientificista que atribuía a sua condenação à defesa do sistema copernicano. Sua concepção de matéria, segundo a leitura feita por Redondi dos qualificadores inquisitoriais, remetia a heresias medievais e se incompatibilizava com o dogma da transubstanciação. Conforme a tese de Redondi, sua condenação, ocorrida décadas após a publicação da obra, deveu-se, sobretudo, às flutuações de interesses dentro de uma rede de sociabilidade ampla, que tinha o Sumo Pontífice no centro, e todo um jogo de interesses, que envolvia teatinos, jesuítas, letrados e a própria Inquisição.12 Tanto na obra de Natalie Zemon Davis como na de Pietro Redondi, há o que se pode chamar de conjecturas historicamente determinadas, ou seja, os silêncios deixados pela documentação são contornados com a busca de documentos que cercam de informações os fragmentos que outras fontes deixam. Articulado com a metodologia da História das ideias, esse método permite uma melhor contextualização das discussões e da inserção de diversos agentes dentro de um meio de circulação de ideias, evitando-se o risco de anacronismos. A análise qualitativa da documentação e a subsequente reconstituição da realidade requerem o cotejo com outras fontes do mesmo contexto ou próximas, eventualmente extrapolando as balizas cronológicas e espaciais propostas na pesquisa. Essas outras fontes, ocupando uma posição secundária na investigação histórica, tornam possível o levantamento de possibilidades presentes no contexto e que podem ser articuladas às informações presentes na documentação principal. Em relação às fontes, serão analisadas diversas obras produzidas no mundo lusobrasileiro ou com alguma circulação em seu interior, tais como tratados, romances e livros de outra natureza. Quanto à documentação inquisitorial, no caso específico da 12 REDONDI, Pietro. Galileu Herético [1983]. Trad. Julia Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. 16 pesquisa proposta, serão examinados seus regimentos, publicados por Sônia Siqueira na Revista do IHGB,13 bem como processos. Estes últimos trazem evidências importantes de redes de sociabilidade entre indivíduos críticos ao status quo católico luso-brasileiro. Tal documentação dará suporte às reflexões feitas sobre as obras supracitadas. Ainda sobre a documentação inquisitorial, convém explicar alguns procedimentos metodológicos usados. Ela foi levantada a partir de alguns critérios: primeiramente, foram procurados os processos relacionados aos libertinos, que, conforme a percepção que se tinha em meados do XVIII sobre esta tipologia criminal, eram vistos como críticos da religião e de toda a realidade absolutista, no geral, assumindo, assim, alguma coloração política; em seguida, foram procurados documentos relacionados à maçonaria, que, por seus espaços de sociabilidade e por alguns dos princípios defendidos em seu interior, formou, nesse período, outro núcleo considerável de defesa de matérias heterodoxas sobre religião e da tolerância; quanto à pesquisa nos Cadernos do Promotor, foram procuradas diligências referentes à tipologia criminal de proposições, que eram falas consideradas heréticas ou com risco de defesa de heresia, segundo o vocabulário inquisitorial; e, por fim, procurou-se usar documentos referentes a estudantes da Universidade de Coimbra, muitos deles nascidos no Brasil, instituição também considerada um núcleo importante de difusão de ideias iluministas em Portugal.14 No Capítulo 1, foi feita uma discussão teórica, bibliográfica e historiográfica em torno de alguns lugares comuns da historiografia que, costumeiramente, nega haver um Iluminismo em Portugal. Trata-se de negativas que, por diversas vezes, se ancoram em adjetivos como “luzes ecléticas”, “luzes esmaecidas” e “luzes de compromisso” que, geralmente, se pautam na premissa de que, se houve desenvolvimento das Luzes em Portugal, apenas ocorreu um menor e incompleto, em relação a contextos como o francês. Uma categoria em especial, o Iluminismo católico, foi mais profundamente discutida, uma vez que ela, no geral, pode se ancorar num problema duplo: o primeiro, quando o “católico” se torna um adjetivo pejorativo às Luzes de Portugal, em oposição às supostas vertentes “laicas” da Ilustração; um segundo, que o uso desta categoria, por esse viés, muitas vezes, ignora as próprias dinâmicas do religioso nas Luzes, empobrecendo debates em torno de realidades que tiveram, por exemplo, instituições 13 SIQUEIRA, Sônia Aparecida. A disciplina da vida colonial: os Regimentos da Inquisição. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 157, nº. 392, jul./set. 1996. 14 Documentos disponíveis no Arquivo Nacional da Torre do Tombo. 17 religiosas, querelas teológicas ou discussões sobre alçadas do clero ou do papa em relação à autoridade civil, de fundo, como foram os casos do jansenismo, do regalismo e mesmo de algumas elaborações sobre a tolerância religiosa. Por fim, este capítulo relaciona tais aspectos com estudos sobre a tolerância religiosa como tema de análise histórica. No Capítulo 2, a relação “religião x Iluminismo” vai ser discutida em maior profundidade, sobretudo, de acordo com o tema da tese, priorizando-se o Catolicismo. Parte-se de debates recentes a respeito da secularização, segundo as quais ela corresponde a processos descontínuos e diacrônicos, que não necessariamente prescindem de elementos religiosos no seu curso. Pelo contrário, trata-se mais de uma multiplicidade de reelaborações de sua importância na vida coletiva e no exercício das autoridades que propriamente rupturas, processo que engloba muitas leituras a respeito do religioso. O próprio pensamento iluminista não rompe com o religioso, mas toma a própria religião como problema que norteia muitos dos seus debates e formulações, entre eles a respeito da necessidade ou não de haver uma maior tolerância com diferentes religiões. Partindo desses pressupostos, serão analisados alguns aspectos centrais do Iluminismo católico português, como o antijesuitismo e as constantes críticas ao clero regular; a ideia de que dever-se-ia empreender reformas para se superar um presumido atraso de Portugal em comparação com “as nações mais polidas da Europa”; e, por fim, como a tolerância religiosa, tópica das Luzes, é discutida e elaborada por pensadores comprometidos com um projeto dirigista de reforma política e de mentalidades, próprio do regalismo pombalino, fortemente identificado com um ideal de unidade entre o Catolicismo regulado e racionalizado – uma “sã teologia”, como aparece nas fontes – com a fidelidade à monarquia. No Capítulo 3, ao contrário do anterior, o objetivo foi explorar os desenvolvimentos e elaborações sobre a tolerância religiosa para além do referido dirigismo cultural. Para tanto, a documentação inquisitorial foi de suma importante, pois evidenciou críticas religiosas que fizeram diversas pessoas serem denunciadas ao Santo Ofício por seu teor heterodoxo. Antes, foram analisados regimentos e manuais usados pelo Santo Ofício, de forma a não se tratar “proposições heréticas” como categorias autoevidentes, mas que desvelam um pensamento jurídico-teológico fundamental para se analisarem as falas dos heterodoxos. Mais que isso, permitem entender no que essas críticas à Inquisição, à vigilância da fidelidade à religião ou ao próprio estado de mentalidades e religiosidade nos domínios portugueses tiveram de distinto – e digno de 18 repressão –, quando comparadas às elaborações do capítulo anterior. O que se observou, analisando os primeiros maçons que caíram nas malhas inquisitoriais portuguesas, blasfemadores luso-brasileiros, estrangeiros de diversas origens que foram apresentados ou presos pela Inquisição, além de trajetórias como as do maçom John Coustos e de Francisco Xavier de Oliveira, é haver algumas proximidades entre elaborações mais populares do tolerantismo – sobretudo a ideia de se viver sob um estado de “divisão” espiritual, entre a fé praticada no íntimo e a expressa em público – com elaborações mais sistemáticas da tolerância, advindas de vertentes diversas que remetiam ao religioso e também às discussões filosóficas e teológicas sobre o tema. Por fim, um estudo a respeito de religiosos que foram degredados de Portugal após criticarem a Inquisição, dizendo estar ter sido instrumentalizada por Sebastião José de Carvalho e Melo para condenar o jesuíta Gabriel Malagrida, indica que o próprio processo secularizador do período proporcionou mais elementos para as críticas, já existentes, aos tribunais de fé e para defesas da tolerância. Por fim, no Capítulo 4, serão analisados os acusados como libertinos, no contexto que se inicia após a queda do Marquês de Pombal, isto é, a partir de 1777, e vai até as primeiras décadas do século XIX. Inicialmente, propõe-se analisar o que era entendido como libertinos na Idade Moderna e as particularidades da caracterização que lhes era atribuída no final do século XVIII. O entendimento de que eles seriam “espíritos fortes”, resistentes ou opositores das confissões religiosas – tal como surgiu no século XVI – se modificou bastante ao longo do tempo. No contexto analisado, libertino tornou-se uma categoria de acepção tripla (livre pensador, imoral e/ou crítico da moral cristã católica e monarcômaco, conforme definiu Luiz Carlos Villalta em seus estudos sobre o tema, que serão analisados a fundo no desenvolvimento do capítulo). Os libertinos se caracterizavam, sobretudo, por sociabilidades livres e relativamente igualitárias, nas quais todo e qualquer ponto sobre qualquer matéria poderia ser alvo de conversas e disputas, espalhando-se em ambientes tão diversos quanto universidades, conventos ou a marinhagem. Nesse capítulo, aborda-se como a tolerância religiosa foi a matéria central de suas proposições e de algumas publicações. Nelas, articulavam-se leituras críticas sobre o Catolicismo em si com valores da Ilustração, constituindo chaves de interpretação sobre Portugal e – em menor medida – do Brasil, segundo a qual a tolerância religiosa e a crítica à religião católica (como existia até ali) era parte do vislumbre de um novo mundo, representado em contraste com as permanências de um 19 passado simbolizado pela monarquia absoluta, pelos excessos de religiosidade na vida coletiva e, principalmente, pela Inquisição. 20 Capítulo 1 – O Iluminismo na historiografia e no contexto luso-brasileiro “Portugal, ainda não tendo recebido neste tempo as luzes que iluminaram tantos estados na Europa, estava mais submetido ao papa que qualquer outro. Não era permitido ao rei condenar a morte, por seus juízes, um monge parricida; era necessário ter o consentimento de Roma. Os outros povos estavam no décimo oitavo século; mas os portugueses pareciam estar no décimo segundo.” (Voltaire, Précis du siècle de Louis XV, 1769. p. 327). Existem diversas formas de se explicar o Iluminismo. Ele já foi explicado como uma unidade, mas também como algo desenvolvido e difundido a partir de diversos núcleos. Já foi compreendido como um fenômeno do século XVIII, ou do mesmo século com precursores no final do século XVII, ou ainda com raízes até mais recuadas nesse século ou mesmo em épocas anteriores. Sobre sua relação com a religião, muito se discutiu, sendo ele adjetivado ora como secular ou religioso, ora mesmo como antirreligioso ou irreligioso. A partir dessas múltiplas concepções de Iluminismo, sua presença e seus impactos em Portugal e no contexto luso-brasileiro geraram uma relativamente vasta produção, feita por várias gerações de historiadores brasileiros e portugueses e definindo-se diferentes correntes de interpretação. Sobre essa produção, faz-se necessária uma análise crítica. Os diversos modelos explicativos construídos sobre as Luzes na França, na Alemanha, na Inglaterra e, em alguns casos, nos Estados Unidos, formulados do século XX até a atualidade, trazem e/ou exigem novas abordagem de análise sobre o fenômeno em outros contextos, fora desses eixos tradicionais. O mesmo se pode dizer em relação à tolerância religiosa, sua historicidade e desenvolvimento histórico no período, bem como sobre os processos de secularização, complexos e bastante estudados em diversas áreas das humanidades. O objeto central 21 desta tese é a relação entre tolerância religiosa e secularização no contexto lusobrasileiro no período das Luzes, seguindo a datação das fontes, de meados do século XVIII, poucos anos antes do Pombalismo, até as primeiras décadas do século XIX. Neste capítulo, será feita uma discussão e análise críticas da historiografia sobre as Luzes, de forma a se pensar um modelo explicativo adequado para o que está proposto para este trabalho. Para tanto, serão analisados autores e correntes mais tradicionais da historiografia e, igualmente, trabalhos mais recentes, abordando-se as mais diversas concepções de Iluminismo, passando-se, sobretudo, pelo lugar da religião nessas análises. 1.1 As sínteses historiográficas e os problemas de um único Iluminismo Richard Morse, em obra clássica, afirma que, já a partir do início do século XVIII, a Península Ibérica havia se tornado uma consumidora cultural. 1 Ainda sobre o contexto do Iluminismo em Portugal e Espanha, salienta seu aspecto “eclético”. Segundo o autor, dentro de um quadro absolutista, “sistemas e métodos estrangeiros surgem como opções diante de exigências de modernização”, sejam militares, administrativas, econômicas, dentre outros aspectos, conjugadas com a conservação de postulados católicos. Morse compreende essa forma eclética de Ilustração nos seguintes termos: Qualquer sistema de ideias, em sentido amplo, é eclético, na medida em que toma noções, suposições e argumentos de uma variedade de demonstrações prévias (...). Usado mais estritamente, “ecletismo” indica abstenção da especulação sistêmica e tentativa de resolver problemas práticos.2 Dessa maneira, o Iluminismo em Portugal e Espanha tiveram, segundo o autor, duas características gerais: uma, é a sua posição consumidora, do ponto de vista cultural; a outra, é a sua orientação pragmática e eclética, em que modernizar as instituições, a cultura e as mentalidades iriam ao encontro da preservação da ordem absolutista e da primazia do Catolicismo. Trata-se de uma concepção sobre as Luzes ibéricas que tem se evidenciado equivocada em alguns aspectos e limitada noutros, conforme pretendo demonstrar analisando algumas das bases teóricas e metodológicas usadas para se estudar a Ilustração portuguesa. Equivocada, no sentido de que Portugal, no contexto Iluminismo, 1 MORSE, Richard M. O espelho de Próspero: cultura e ideias nas Américas. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 72. 2 Ibidem, p. 73 22 não se limitou a consumir uma cultura externa. Também, levando-se em conta o cosmopolitismo como aspecto central das Luzes, como é amplamente demonstrado pela historiografia, há uma certa contradição em se conceber, no seu contexto, a existência de lugares que se tenham mantido isolados delas. Pelo contrário, formou-se em Portugal uma ativa esfera literária, composta, sobretudo, por membros de uma elite letrada, cujas reflexões, no século XVIII, a respeito de problemas diversos no reino e em suas colônias articularam-se com debates e questões presentes nos vários contextos do pensamento iluminista europeu. Não se tratou, dessa forma, de letrados que somente se apropriaram do que era produzido externamente com a finalidade de resolver problemas práticos, e muito menos de meros consumidores. A perspectiva de Morse é, ademais, limitada. Ele e vários autores influenciados por sua perspectiva sobre as Luzes e seus desdobramentos nos contextos ibéricos coloniais recorrem a adjetivações, em alguma medida, derivadas do sentido de “eclético” e que sugerem um “desvio” de um suposto “Iluminismo puro”, que existiria nos Além Pirineus. Tais adjetivos se materializam em expressões como “Iluminismo católico”, “Luzes de compromisso”, “Luzes pragmáticas” ou “ecléticas”. Nessa situação, as Luzes ibéricas corresponderiam a modernizações incompletas e conservadoras. As adjetivações supracitadas trazem consigo alguns problemas de natureza teórico-metodológica, dentre os quais o de encobrir a diversidade de apropriações, debates e circulação de ideias dentro de Portugal e do espaço lusobrasileiro no século XVIII e sua inserção dentro de um quadro marcadamente cosmopolita de produção de pensamento. Faz-se necessário, nesse ponto, analisar o próprio conceito de Ilustração e suas diversas concepções, para, em seguida, trazer a mesma análise para os contextos português e luso-brasileiro, a fim de se pensar em modelos explicativos que deem conta de sua diversidade como contexto de ideias. A Ilustração, conforme sintetiza Rogelio Blanco Martinez, foi um movimento que impregnou todo o continente europeu, abarcando finais do XVII e todo o século XVIII; não representou uma filosofia única, em que todos fossem devedores dos filósofos precedentes ou próximos. Tratou-se de um movimento que, longe de ser um todo absoluto, ou puro e eminentemente científico, compreendeu múltiplos processos de transformações, que abrangeram todos os âmbitos da vida coletiva. O pensamento ilustrado, ainda segundo o autor, tendeu a valorizar as explicações do mundo a partir de todas as formas válidas de conhecimento e da construção de uma ordenação racional da 23 vida, a serviço de fins práticos e de validade geral.3 Blanco Martinez destaca ainda que, entre os grandes pensadores iluministas, predominou um ambiente de debates, e não de consensos. Disso foram exemplos as diferenças a respeito da religião existentes entre Denis Diderot, Jean-Jacques Rousseau e Voltaire, ou mesmo a posição desses mesmos autores em relação à monarquia. Há claras e significativas divergências entre os pensadores ilustrados. No entanto, Blanco Martinez defende que, em maior ou menor medida, a defesa da liberdade, da tolerância religiosa, bem como a condenação à intolerância, ao fanatismo, aos dogmatismos e às injustiças foram aspectos do pensamento que aproximaram esses grandes pensadores, que os defenderam de forma variada.4 Essa perspectiva de considerar o Iluminismo em sua diversidade tem sido fortemente adotada, sobretudo, por uma historiografia recente. Até os anos 1970, predominou uma concepção que remetia a uma unidade do Iluminismo, como se pode perceber nessa passagem de uma obra clássica do historiador estadunidense Peter Gay: Houve muitos philosophes no século XVIII, mas somente um Iluminismo. Uma desorientada, informal e totalmente desorganizada coalização de críticos culturais, céticos religiosos e reformadores políticos de Edimburgo à Nápoles, de Paris à Berlim, de Boston à Filadélfia, os philosophes fizeram um coro clamoroso, e houve algumas vozes dissonantes entre eles, mas o que é notável é a harmonia geral dos mesmos, e não suas discordâncias ocasionais. O homem do Iluminismo, unido num vasto e ambicioso programa, um programa de secularismo, humanidade, cosmopolitismo e, sobretudo, liberdade, liberdade em todas as formas – liberdade em relação ao poder arbitrário, liberdade de discurso, liberdade de comércio, liberdade de realizar talentos únicos (...) liberdade, em uma palavra, do homem moral fazer seu próprio caminho no mundo.5 O Iluminismo, na concepção de Peter Gay, é uma unidade. Ele faz uma ressalva, nas páginas seguintes, de que a “unidade não significa unanimidade”. Em diversos pontos centrais do pensamento iluminista, continua o autor, os philosophes divergiram, 3 BLANCO MARTINEZ, Rogelio. La Ilustración en Europa y en España. Ensayo. Madri: Ediciones Endymion, 1999. p. 23-25. 4 Ibidem. p. 16. 5 Original: “There were many philosophes in eighteenth century, but there was only one Enlightenment. A loose, informal, wholly unorganized coalition of cultural critics, religious skeptics, and political reformers from Edinburgh to Naples, Paris to Berlin, Boston to Philadelphia, the philosophes made up a clamorous chorus, and there were some discordant voices among them, but what is striking is their general harmony, not their occasional discord. The men of the Enlightenment United on a vastly ambitious program, a program of secularism, humanity, cosmopolitanism, and freedom, above all, freedom in its many forms- freedom from arbitrary power, freedom of speech, freedom of trade, freedom to realize one’s talents, freedom of aesthetic response, in a word, of moral man to make his own way in the world. (Tradução minha). GAY, Peter. The Enlightenment: the rise of modern paganism [1966]. New York & London: W. W. Norton, 1996, v. 1. p. 3. 24 como na sua relação com a religião, com a monarquia ou quanto à defesa de governos republicanos ou ainda conforme algumas questões que envolviam seus respectivos contextos nacionais. Mas, ainda que com divergências, os mesmos philosophes se aproximavam, formando uma espécie de núcleo central de debates e ideias, em torno de uma crítica universal que formou o que chamamos de “Pensamento Universal”, que Peter Gay sintetizou na metáfora de uma “família filosófica”, formada por esses pensadores iluministas.6 Essa concepção de Peter Gay sobre o Iluminismo como uma unidade não é pioneira, sendo, em alguma medida, tributária de abordagens clássicas anteriores, sobretudo as do historiador francês Paul Hazard e do filósofo alemão Ernst Cassirer. Cassirer elaborou uma grande síntese sobre a filosofia do Iluminismo. Para o autor, tal filosofia difere da dos séculos anteriores pela impossibilidade de se elaborar descrições da totalidade de seu conteúdo, como era possível fazer em relação ao século XVII. O Iluminismo, segundo Cassirer, teve sua originalidade na forma da condução dos debates, embora, em matéria de conteúdo, tivesse tido alguma dependência com o que fora produzido nos séculos anteriores.7 Mas envolveu sobretudo uma ruptura metodológica com um dedutivismo, derivado de axiomas, comum ao pensamento do XVII, abraçando um indutivismo, baseado, principalmente, nos sistemas newtonianos.8 Concebe, ainda, o Iluminismo como um fenômeno, sobretudo, francês. 9 Cassirer, segundo Dorinda Outram, elaborou grande síntese do pensamento setecentista, considerando-o como um conjunto homogêneo de ideias autônomas e descarnadas, no sentido de estarem deslocadas de um contexto social, político e cultural, que teria se desenvolvido na Europa Ocidental.10 Além disso, apesar de apresentar como objetivo se distanciar de uma história de ideias baseada na sucessão cronológica de autores e suas doutrinas pessoais, em alguns pontos – como, por exemplo, ao destacar a importância da Física no pensamento das Luzes, afirmando que Newton terminou aquilo que Kepler e Galileu fizeram século e meio antes –,11 acaba por incorrer exatamente nesse tipo de abordagem. 6 Ibidem, p. 4-8. CASSIRER, Ernst. A filosofia do Iluminismo [1932]. Trad. Álvaro Cabral. Campinas: Editora da Unicamp, 1997. 3. ed. p. 1-18. 8 Ibidem, p. 26. 9 Ibidem, p. 50. 10 OUTRAM, Dorinda. The Enlightenment: new approaches to European history. Cambridge: Cambridge University Press, 1995. p. 3-4. 11 CASSIRER, Ernst. A filosofia do Iluminismo. Op. Cit. p. 27. 7 25 Já Paul Hazard, noutra síntese, possivelmente influenciada pela obra de Cassirer, viu no século XVIII uma “crise no pensamento europeu”. A partir daí, elaborou uma análise de diversos valores do Iluminismo, como a crítica universal, a felicidade, a razão e o que chamou de “processo do cristianismo”, base para todo um processo de secularização que teria sido produto dessa crise.12 Desses valores, segundo o autor, descendem os valores do que chamamos de modernidade.13 Peter Gay, Ernst Cassirer e Paul Hazard, com concepções uniformizadoras sobre o Iluminismo, influenciaram gerações de historiadores que usaram seus modelos analíticos sobre esse contexto intelectual como referência. O contexto das Luzes é, dessa forma, visto como um conjunto, quase harmônico, de ideias mais ou menos coevas de pensadores, na sua grande maioria franceses. Assim, partindo dessa clássica concepção sobre as Luzes, muitos estudos sobre esse contexto, que têm recortes espaciais distintos dos abordados pelos referidos autores (Inglaterra, Alemanha, Itália e, sobretudo, a França), durante várias gerações, tiveram de lidar com um problema metodológico importante: como se pensar as Luzes, sua repercussão, produção, impactos e circulação de ideias, escritos e também de seus debates em realidades distintas das desses referidos países? Seria pretensão apropriada a um trabalho historiográfico mais específico sobre essa questão discuti-la de maneira mais ampliada, talvez com um mapeamento mais aprofundado e completo sobre aquilo que se estuda ou estudou sobre a Ilustração nos recortes espaciais exteriores aos dessas ditas “nações cultas” do Ocidente Europeu. No caso deste trabalho, no qual me ocupo com o contexto de Portugal e sua colônia na América, entre meados do século XVIII e o início do século XIX, observo claramente que boa parte do que foi produzido se pautou em cima de buscas por aproximações e/ou desvios dos desdobramentos do Iluminismo nos contextos lusófonos em relação aos contextos dos Além Pirineus. Tais trabalhos pautaram-se também por ideias como “modernidade tardia”, “modernidade incompleta”, identificadas em Portugal e no Brasil, em contraste com a “modernidade plena”, localizada onde teria acontecido a versão “plena” do Iluminismo. Em relação à religião e a todas as disputas e debates sobre o tema nas Luzes no contexto luso-brasileiro, a 12 HAZARD, Paul. La pensée européenne au XVIIIe siècle. De Montesquieu à Lessing. Librairie Arthème Fayard, Paris, 1979. 1e édition : Boivin et Cie, Paris, 1946. 13 Nas palavras do autor: “Mais à partir de 1715 s’est produit un phénomène de diffusion, sans égal. Ce qui végétait dans l’ombre s’est développé au grand jour ; ce qui était la spéculation de quelques rares esprits a gagné la foule ; ce qui était timide est devenu provoquant. Héritiers surchargés, l’Antiquité, le Moyen Age, la Renaissance, pèsent sur nous ; mais c’est bien du dix-huitième siècle que nous sommes les descendants directs”. Ibidem, p. 7. 26 contraposição entre uma permanência do religioso, em contraste com uma plena secularização além-pirenaica, também marca importantes trabalhos históricos, que discuto a seguir. 1.2 O mundo luso-brasileiro e as Luzes ecléticas e católicas Em seminário realizado em 1989, Emília Viotti da Costa afirmou que o modelo interpretativo do Iluminismo, ao ser contraposto às diversas realidades históricas por ele abrangidas, apresentou diversas contradições. Segundo a autora, “o estudo da Ilustração tem sido frequentemente nada mais do que um fútil exercício sobre as influências de uns autores sobre os outros”.14 Ela discorre sobre uma série de incongruências do contexto intelectual que geralmente chamamos de “Iluminismo”, advindas da repetição de uma tentativa da historiografia de sintetizar todo o complexo de ideias do século XVIII, concluindo que: A única resposta possível é que o Iluminismo é uma invenção. Uma invenção de intelectuais, sobre intelectuais, para intelectuais, um conceito criado por intelectuais do século XVIII que é mantido vivo por sucessivas gerações de intelectuais.15 Emília Viotti da Costa, dessa maneira, apresenta uma crítica bastante contundente, na qual o contexto das Luzes seria uma mera invenção, já que corresponde a uma gama bastante ampla de generalizações que não correspondem à realidade histórica de um contexto intelectual permeado por debates, discordâncias e dissensos. Partindo da problemática levantada pela referida autora, Flávio Rey de Carvalho defende que a adoção generalizada dessa noção de Iluminismo é descarnada de contexto social (aqui, o autor usa terminologia de Dorinda Outram), por ser demasiado pautada em uniformizações. Além disso, concepções generalizantes identificadas nas sínteses de Gay, Hazard e Cassirer, foram, segundo Carvalho, articuladas fortemente com interpretações cristalizadas por historiadores brasileiros e, sobretudo, portugueses, herdadas da produção literária da chamada “Geração de 1870”. Elas contribuíram, durante gerações, para a elaboração de análises sobre o contexto das Luzes no mundo ibérico pautadas na noção de “duas Europas”, em que Portugal é visto sempre atrasado 14 COSTA, Emília Viotti da. A invenção do Iluminismo. In: COGGIOLA, Osvaldo (org.). A Revolução Francesa e seu impacto na América Latina. São Paulo: Edusp, 1990.p.31-45. p. 33. 15 Ibidem, p. 34. 27 em relação às “nações cultas” dos Além Pirineus.16 Um dos expoentes nessa produção, continua o autor, foi o poeta e filósofo Antero de Quental (1842-1891), especialmente na obra Causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos (1871), que, sob a influência de historiadores como Jules Michellet (1789-1874), reduziu o sentido da história da humanidade à europeia. Assim, difundiu-se a ideia de que afastarse do modelo da Europa “civilizada” era estar à parte do curso teleológico natural do gênero humano, tendo como norte a “europeização” de Portugal, inadiável e retificadora. Dessa forma, as análises sobre o Iluminismo em Portugal e Brasil foram marcadas por adjetivações que salientaram esse atribuído atraso, com expressões como “luzes envergonhadas” e “luzes católicas”, que fizeram e fazem parte do vocabulário de diversos autores, brasileiros e portugueses, que tentavam buscar as razões do “atraso” luso em relação à “Europa civilizada”.17 Embora concorde em parte com a crítica que a historiadora Ana Rosa Cloclet da Silva fez a essa conclusão de Carvalho18, o problema levantado pelo autor em relação à produção historiográfica sobre o Iluminismo em Portugal tem grande validade, na medida em que levanta problemas de ordem metodológica importantes quanto à produção historiográfica sobre o pensamento no século XVIII. São problemas que implicam, em grande medida, a construção de concepções similares às de Richard Morse, com as quais comecei este capítulo. Por exemplo, uma condição subalterna de 16 CARVALHO, Flávio Rey de. Um iluminismo português? A Reforma da Universidade de Coimbra (1772). São Paulo: Annablume, 2008. p. 28-33. 17 Ibidem, 25-28. 18 Segundo a autora, Flávio Rey de Carvalho, apesar de significativa contribuição, peca por atribuir a autores clássicos (no caso Peter Gay, Paul Hazard e Ernst Cassirer) concepções a respeito do Iluminismo sem necessárias ponderações quanto a seus contextos de produção e quanto a suas inserções específicas em termos de campos disciplinares e teóricos. Nas palavras da autora: “Na intenção de salientar algumas destas especificidades, devemos lembrar que enquanto Peter Gay é um historiador consagrado pelos estudos no campo da história social das ideias – o que, em boa medida, já problematiza o tratamento supostamente “descarnado” por ele emprestado ao Iluminismo – e que elabora seus estudos sobre o Iluminismo na década de 1970, o filósofo judeu-alemão Ernst Cassirer especializou-se no campo da filosofia cultural de tendência neokantiana, nos anos de 1920-40, enquanto o historiador francês Paul Hazard tornou-se um especialista em História da literatura comparada entre as décadas de 1920-40, especialidade que seguramente permeia seu clássico A crise da consciência europeia, de 1935.” Considerar as respectivas formações e particularidades das áreas dos pensadores analisados por Carvalho ofereceria alguns elementos que enriqueceriam a sua análise. Tornaria possível, por exemplo, cotejar as suas respectivas conclusões com aspectos referentes às inserções de suas obras nos debates sobre Luzes e Modernidade em seus contextos de produção. Contudo, não se trata de um elemento que comprometa significativamente a análise feita pelo autor. Entendo a pertinência da crítica somente como um apontamento quanto a possibilidades abertas pela sua crítica historiográfica. Também vejo que explorar essas possibilidades implicaria um trabalho de maior fôlego, e nisso tenho uma discordância com a crítica de Ana Rosa Cloclet da Silva: a meu ver, a autora não tomou a devida consideração a respeito da obra ter se originado de uma dissertação de mestrado, que, como tal, possui suas limitações, por exemplo, de amplitude. SILVA, Ana Rosa Cloclet da. As “luzes” de um “reino cadaveroso”: entre a polêmica e a tradição (review Um iluminismo português? A Reforma da Universidade de Coimbra, de Flavio Rey de Carvalho). História da Historiografia. Ouro Preto, n. 3, p. 174-180, 2009.p. 175. 28 Portugal face às “nações cultas”, como “consumidor cultural” ou “atrasado” em matérias econômica, cultural ou política, referenciada em autores ilustrados portugueses como d. Luís da Cunha, Luís Antônio Verney, Antônio Ribeiro Sanches e outros, ou ainda a uma necessidade de se “iluminar” o reino de Portugal e suas colônias, foi um lugar comum de diversos autores setecentistas. Considero que tomar tais lugares comuns como fatos tende a induzir a graves erros de análise sobre o contexto, por não os tratar como um problema a ser analisado. Tal abordagem tende a afastar o historiador do conhecimento a respeito do que, de fato, significava o “atraso português”, em relação às “nações modernas”, na pena de autores como os mencionados no parágrafo anterior ou nas palavras de libertinos presos pela Inquisição por proposições heréticas, que tocavam nesse mesmo tópico em seus depoimentos e apresentações, ao longo do século XVIII. A carga de significado dessas referências ao dito atraso, seus referenciais e as percepções sobre a vida em comum em um referido contexto histórico se perdem, pois acabam dialogando mais com as ideias de atraso formadas pelo historiador, esteja ele pensando nos “resultados” das Luzes ibéricas ou em uma incompleta realização de uma modernidade. A concepção de atraso, aplicada e não devidamente problematizada nos contextos português e luso-brasileiro do Iluminismo, traz, explícita ou implicitamente, uma noção de que existiria um Iluminismo ou modernidade “perfeitos”, no sentido de que seu “projeto” teria sido realizado completamente em algum lugar no tempo e espaço, ao contrário de Portugal e, consequentemente, de suas colônias. Esse problema, inclusive, articula-se com uma questão levantada pela historiografia recente a respeito da ideia de “nós” (no sentido de uma “modernidade”) sermos “descendentes diretos do Iluminismo” – usando a terminologia de Paul Hazard – e de como isso interfere na formulação de questões para se pesquisar o Iluminismo e nas suas conclusões.19 A secularização e a tolerância religiosa, vistas, muitas vezes, como realizações do Iluminismo e como conquistas da modernidade, sofrem com esse mesmo tipo de problematização incorreta. Para vários historiadores, a existência de um desenvolvimento com contornos específicos de uma vertente do Iluminismo dentro de 19 Refiro-me, especificamente, à crítica de Stephen J. Barnett, em obra recente. Esse assunto será retomado adiante. Adianto que o argumento do autor é de que existe uma espécie de “mito de origem da modernidade”, comumente atribuído ao Iluminismo, que implica significativamente nas conclusões de muitos historiadores. O principal problema apresentado, de acordo com o autor, é o de que as análises históricas feitas sob a égide desse “mito”, geralmente, perdem ou deixam num segundo plano peculiaridades da Idade Moderna e seus contextos de ideias. BARNETT, Stephen J. The Enlightenment and religion: the myths of modernity. Manchester and New York: Manchester University Press, 2003. 29 um contexto católico e onde, diversas vezes, um ideal de Catolicismo norteou projetos reformistas, é uma espécie de “falha histórica” ou “ruptura incompleta” com a religião e com as autoridades. Tal ruptura, teoricamente, seria uma espécie de finalidade de um processo iluminista. Pensando em trabalhar em modelos explicativos que sejam mais adequados para explicar tais contornos no contexto luso-brasileiro do século XVIII, eu me ocupo, nos dois próximos títulos, com duas adjetivações muito comuns nos estudos sobre o Iluminismo em Portugal e no Brasil, que são as “Luzes ecléticas” e “Luzes católicas”.20 1.3 As Luzes ecléticas De acordo com Flávio Rey de Carvalho, o termo ecletismo foi utilizado em obras de filosofia e de história, no século XX, para caracterizar “o movimento ilustrado português da segunda metade do setecentos”. Esse uso, de maneira geral, deixou transparecer “certo matiz pejorativo, conforme verificado nas obras dos historiadores portugueses José Sebastião da Silva Dias e António Braz Teixeira”.21 Interpretando a forma como o termo aparece nos autores mencionados, Carvalho conclui que: Tanto em Silva Dias quanto em Braz Teixeira, percebe-se uma conotação negativa no emprego do conceito de ecletismo, quando associado ao processo de assimilação e de adaptação das ideias ilustradas em Portugal. Infere-se, portanto, que o caminho adotado pelos intelectuais portugueses no Setecentos teria sido diferente e anômalo ao traçado pelos demais países, sendo ele resultado de cruzamento híbrido – fadado ao insucesso – entre duas culturas: a lusa e a europeia.22 Embora saliente esse “hibridismo”, marcado pelo uso, pela historiografia e filosofia do século XX, do termo “eclético” ou “ecletismo”, para se referir à Ilustração portuguesa, o autor observa que os mesmos termos tiveram conotações positivas no século XVIII, conforme podem ser vistas tanto na Encyclopédie como no Compêndio Histórico do Estado da Universidade de Coimbra (1771), analisados por ele. Uma análise histórica mais aprofundada sobre o termo ecletismo na perspectiva da História das Ideias, de fato, aponta para o sentido positivo que predominou sobre o termo até o século XIX, como demonstra em artigo o historiador Donald R. Kelley. Examinando a repercussão na filosofia francesa, durante o período napoleônico, da “Luzes pragmáticas” ou as já referidas “luzes esmaecidas” ou “luzes envergonhadas” também são expressões bastante comuns. 21 CARVALHO, Flavio Rey de. Um iluminismo português? Op. Cit. p. 21. 22 Ibidem, p. 23. 20 30 produção intelectual do filósofo, político, reformador educacional Victor Cousin (17921867), Kelley indicou como marca importante de sua obra a defesa de um sistema filosófico eclético, que tinha como mote central a premissa de que um sistema filosófico verdadeiro não se baseava em apenas uma escola de pensamento. O ideal para um sistema filosófico, conforme Cousin, na discussão de suas ideias feitas por Kelley, estaria na apropriação de elementos de todos os sistemas de pensamento que existissem – o contrário disso seria um pensamento dogmático, que iria de encontro ao livre pensar que marcaria uma verdadeira filosofia. Quanto à filosofia francesa daquele período, o ecletismo poderia “arejá-la”, incorporando elementos das filosofias alemã e escocesa. Assim, defendeu o ecletismo não como escola filosófica, mas como uma atitude diante do pensamento que acompanharia as verdades ao longo da história da filosofia. A partir daí, até analisar o impacto do autor, Kelley faz uma contextualização do ecletismo, indo desde a Antiguidade Romana até a sua releitura feita por pensadores do Renascimento e da Ilustração, ao longo dos séculos XVII e XVIII. O autor demonstra que Cousin elaborara sua perspectiva de ecletismo em cima do que foi produzido por muitas gerações e escolas de pensadores, que viam no trânsito entre as inúmeras escolas de pensamento um método para se alcançar a verdade, libertando o pensamento das amarras do dogma. Assim, Cousin, segundo Kelley, teve enorme impacto no pensamento francês com sua perspectiva de ecletismo, marcadamente positiva e que se manteve como hegemônica, no contexto francês e noutras partes da Europa e Estados Unidos até o início do século XX.23 Apesar dessa possível conotação positiva, identificável no pensamento do século XVIII e posterior, conotações negativas do termo aparecem com alguma frequência. Chama a atenção, quanto ao uso do termo na historiografia sobre as Luzes portuguesas e luso-brasileiras, que “eclético” engloba com alguma regularidade pelo menos dois significados importantes. Um primeiro, corrente em dicionários de filosofia, está sintetizado na definição de Gerard Dérozoi, André Roussel e Marina Appenzeller, segundo o qual “eclético” é “aquele método que consiste em reunir teses inspiradas em diferentes sistemas, negligenciando-se o que apresentam de incompatível”. E, apesar de indicar, no mesmo verbete que, historicamente, nos séculos XVII e XVIII, o termo já teve forte acepção positiva, “hoje em dia (...) o termo é utilizado com frequência com um matiz pejorativo para designar um pensamento superficial ou desprovido de 23 KELLEY, Donald R. Eclecticism and the History of Ideas. Journal of the History of Ideas, v. 62, n. 4, p. 577-592, 2001. 31 coerência”.24 Definição similar encontramos no dicionário de Hilton Japiassú, onde o termo aparece definido como um “método que consiste em retirar dos diferentes sistemas de pensamento certos elementos ou teses para fundi-los num novo sistema”.25 Outro procedimento comum é associar essa orientação eclética, atribuída à Ilustração portuguesa como já foi dito, ao utilitarismo e ao pragmatismo. Com isso, as tais retiradas de elementos de diferentes sistemas para transformá-los em outro teriam sido feitas com objetivos absolutamente práticos, como o desenvolvimento econômico de Portugal e das suas colônias. Seria, basicamente, como se as “retiradas” de ideias e seu “ajuntamento” para tornarem-se um sistema novo fossem premeditados, com uma finalidade prática previamente estipulada.26 É uma definição de “ecletismo” similar a algumas que estão presentes em dicionários científicos de algumas áreas, como, por exemplo, a da Psicologia voltada para a Educação e a Arquitetura, segundo os quais o termo designa, grosso modo, a apropriação de diversos elementos de muitos sistemas diversos, não necessariamente coerentes entre si, com a finalidade de se conseguir a resolução de alguma idiossincrasia ou caso particular de algum indivíduo, grupo de indivíduos, problema ou contexto específico.27 Em suma, é comum encontrar, em trabalhos a respeito da Ilustração portuguesa, a expressão “Luzes ecléticas”, cujo sentido é, por um lado, concebê-la como fadada ao insucesso ou, por outro, como algo que se diferenciaria profundamente dos demais contextos, ao misturar muitos sistemas de ideias incompatíveis, sem preocupação com sua coerência. A expressão, ainda, remeteria a uma Ilustração marcada por uma mistura similar, porém utilitária e que 24 DUROZOI, Gérard; ROUSSEL, André; APPENZELLER, Marina. Dicionário de filosofia. Campinas, SP: Papirus Editora, 2005. p. 145. 25 JAPIASSÚ, Hilton. Dicionário Básico de Filosofia de Hilton Japiassú e Danilo Marcondes. 4º. ed. atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2006. p. 81. 26 É possível, também, criticar esse uso do termo ecletismo por outra via. No caso, seria o fato de considerar-se um sistema como eclético no sentido pejorativo, entendendo que agrupar pressupostos de sistemas filosóficos diversos para se resolver questões práticas e de ordem material os inferiorizaria. Além disso, as próprias soluções encontradas seriam falsas ou efêmeras, por serem exóticas, artificiais e incoerentes entre si. 27 Por exemplo, a definição de Maqbool Ahmad, no Comprehensive Dictionary of Education, segundo a qual eclético em psicologia, aplicada à educação, seria a “combinação de teorias, fatos ou técnicas” diversas “apropriadas para um cliente individual ao invés de contar exclusivamente com técnicas de uma escola de psicologia”. Já na definição de Russel Sturgis e Francis Davis, aplicada à Arquitetura, há menção de que, se de um lado, “diante do dilema enfrentado pelos arquitetos da modernidade de recorrer a ou criar sistemas de aceitação universal, o método eclético aparece tanto como um promissor meio de experimentação e de se criar padrões novos a partir de sistemas já existentes”, por outro lado “oferece o risco de se colocar para o mesmo fim ideais e conceitos conflituosos entre si”, ou ainda “confusos e não harmoniosos”, destacando o caráter prático do método para a resolução de problemas quanto às limitações de estilos. AHMAD, Maqbool. Comprehensive dictionary of education. New Delhi: Ed. Atlantic Publishers & Dist, 2008. p. 170. STURGIS, Russel et all. Sturgis' illustrated dictionary of architecture and building: an unabridged reprint of the 1901-2nd edition. New York: Dover Publication, 1989. p. 846847. 32 visaria, com ou sem sucesso, à resolução de algum problema de ordem mais prática, como o desenvolvimento material. Ao discutir o processo secularizador em Portugal, no período pombalino, Francisco Calazans Falcon usa o termo “ecletismo”. Em sua análise, não houve em Portugal uma ruptura mais incisiva com a Igreja Católica. Os meios adotados por Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, para modernização das instituições e das mentalidades portuguesas, bem como a quebra da hegemonia eclesiástica em pontos chave, como o ensino formal e a censura, foram feitos por meios cautelosos e “ecléticos”: Predomina em quase todos os casos o meio termo, a cautela diante das motivações excessivas, o receio do desconhecido que o seja em demasia. Essa evidencia em todos terrenos: quanto às ideias, aos livros, aos cursos, aos professores e, em última análise, quanto à análise filosófica que se deveria imprimir ao processo secularizador como um todo.28 Para Falcon, dessa forma, não se propunha no período pombalino uma supressão pura e simples da hegemonia eclesiástica, o que, para o autor, “demandaria não apenas simples reformas, e sim, uma revolução”. Defendia-se uma reorientação ou uma redefinição da mesma hegemonia, capaz de abrir espaço às novas formas de pensamento. Isso viria a implicar, na prática, “uma profunda mudança na própria organização institucional da cultura e seus aparelhos respectivos”.29 Uma demonstração desse “ecletismo”, segundo Falcon, foram as reformas da Inquisição, “uma peça formidável para articular o projeto secularizador com compromissos e ideias tradicionais”, pois, assim: Exorcizam-se, de uma só vez, os velhos [jesuítas e aspectos arcaicos da mentalidade lusitana, como os milenarismos] e novos [como o jansenismo, francesias, libertinagem, etc.] deletérios. Tratava-se de fazer do temido tribunal um instrumento secular, estatal, de defesa da ordem e da ideologia dominante contra os desafios e os perigos das novas ideias, heresias de um novo tipo, suscetíveis também de pôr em perigo o trono lusitano.30 Falcon, em sua análise, não está focado somente no apontamento de possíveis incoerências entre os compromissos tradicionais da monarquia portuguesa com a adoção de ideias vindas do Além-Pirineus, nem se restringe a defender que disso se desenvolva algum tipo de determinismo para um fracasso desse sistema visto como eclético. No seu 28 FALCON, Francisco Calazans. A Época Pombalina: Política Econômica e Monarquia Ilustrada. 2ª edição. São Paulo: Editora Ática, 1993. p. 431. 29 Ibidem, p. 424. 30 Ibidem, p. 442. 33 entendimento, o ecletismo que há no Iluminismo português existe na articulação do “ímpeto secularizador” das reformas pombalinas com a permanência e os compromissos com estruturas tradicionais, nos âmbitos institucionais, culturais e religiosas. Uma concepção eclética das Luzes portuguesas aparece também no trabalho de Fernando Antônio Novais. Em artigo sobre o referido contexto histórico, publicado nos anos 1980, Novais aponta duas características centrais para se compreender as Luzes em Portugal. Em primeiro lugar, haveria um descompasso entre "teoria” e “prática”. Segundo o autor, ainda que as Reformas, propostas sob influência do Iluminismo, tivessem começado cedo em Portugal (em 1750, com a ascensão de Pombal como ministro plenipotenciário), o reino ibérico jamais se tornara grande centro gerador de pensamento ilustrado. Ao contrário, na França, as reformas começaram tardiamente (1774, com Luiz XVI, segundo o autor), mas o país, por excelência, tornou-se centro irradiador de Luzes. Em segundo lugar, as Luzes portuguesas foram caracterizadas pela “importação”, focada na figura do estrangeirado, que “respira os ares da modernidade” e se propõe a arejar o reino e encontra resistência.31 Para entender-se as duas características marcantes da Ilustração portuguesa – ou seja, a precocidade das reformas e a importação de ideias –, o autor recorre a outros aspectos da história portuguesa da Época Moderna: o isolamento cultural e o atraso econômico. A partir daí, discute a profundidade das reformas e seus desdobramentos na colônia. Segundo Novais, a partir do século XVII, Portugal e Espanha passaram a ser, cada vez mais, ultrapassados em matéria econômica por países como França, Inglaterra e Holanda. Nesse contexto, pensadores de ambos os reinos analisavam essa decadência em profundidade, buscando suas razões e também procurando remédios. A busca pelas razões e pelas soluções dessa decadência, segundo o autor, estrutura uma linguagem política que perpassa boa parte das discussões das Luzes Ibéricas, tendo sua origem na época barroca. Assim: Na medida em que o “atraso” era visto em relação à Europa de AlémPirineus, é claro que se entendia que, para explicá-lo, impunha-se a mobilização de uma nova filosofia, dos países adiantados – daí o caráter de importação de ideias, de atualização; e por outro lado, as reformas eram vistas não apenas como a “promoção das Luzes”, mas também como uma maneira de superar o atraso, tirar a diferença, e portanto mais urgentes, donde a precocidade com que são atacadas. Dadas essas particularidades, entende-se também o caráter moderado da Ilustração portuguesa, seja no plano das ideias, seja na 31 NOVAIS, Fernando Antônio. Reformismo Ilustrado luso-brasileiro: alguns aspectos. Revista Brasileira de História, v. 4, n. 77, p. 105–118, 1984. p. 105. 34 implementação política. O meio era resistente, havia que caminhar com cuidado, ainda que com firmeza.32 A partir dessa corretíssima análise sobre a percepção do atraso ibérico pelos pensadores do século XVIII e da formação do contexto de pensamento do qual o reformismo pombalino fez parte, Novais constata que se desenham Luzes ecléticas em Portugal. Tais Luzes desenvolvem-se plenamente a partir do último quartel do século XVIII, no reinado de d. Maria I. Disso seriam exemplos as Memórias (1789) do italiano Domenico Vandelli33, em um trecho em que o naturalista italiano destaca que “para ser útil ao Reino, devem ser regulados por princípios deduzidos de uma boa Aritmética Política, assim não se devem seguir sistemas sem antes examiná-los e confrontá-los com as atuais circunstâncias da nação”.34 Nessa concepção sobre as Luzes portuguesas, depreendem-se dois aspectos importantes que influenciaram vários trabalhos posteriores sobre o tema. Primeiramente, que os sistemas importados do Além-Pirineus foram trazidos de forma a se buscar uma recuperação, sobretudo econômica, do reino de Portugal, em relação a essas nações que o superaram, havendo, assim, nas Luzes portuguesas, um enfoque possível de se entender como utilitário. Um outro aspecto é que o caráter moderado atribuído às Luzes e ao Reformismo Ilustrado portugueses poderiam ser, em parte, explicável por esse ecletismo, visto que ele é um produto das barreiras internas encontradas pelas ideias iluministas na sociedade e no Estado portugueses. Tais barreiras teriam criado obstáculos para que ideias iluministas florescessem em solo português ou luso-brasileiro, à maneira do que ocorrera nos contextos além-pirenaicos. Além disso, teriam impedido também que vertentes mais radicais da Ilustração pudessem ali circular e promover mudanças estruturais mais contundentes. Esse “ecletismo”, caracterizado por uma ampla adoção de sistemas distintos visando ao desenvolvimento e à superação de um percebido atraso em relação ao AlémPirineus, de viés fortemente utilitário e que teria privilegiado o lado prático das ciências e filosofia, em detrimento de suas vertentes mais políticas, aparece em diversos outros 32 Ibidem, p. 106. Domenico Agostino Vandelli (1735-1816), naturalista italiano, lecionou desde 1764 em Portugal e foi um dos fundadores do Jardim Botânico de Coimbra, sendo também seu primeiro diretor. Ficou conhecido também por dirigir diversas “expedições filosóficas” no final do século XVIII. DOMINGUES, Ângela. Para um melhor conhecimento dos domínios coloniais: a constituição de redes de informação no Império Português em finais do Setecentos. Ler História, n. 39, p. 19–34, 2000; BOSCHI, Caio César. “Um hábil naturalista”, Joaquim Veloso de Miranda. In: ________. Exercício de pesquisa histórica. Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2011.p. 101-210. 34 NOVAIS, Fernando Antônio. Reformismo Ilustrado luso-brasileiro. Op. Cit. p. 109. Itálicos do autor. 33 35 trabalhos. Essa perspectiva é encontrada nas historiografias brasileira e portuguesa sobre a segunda metade do século XVIII e início do século XIX. Um de seus expoentes é Maria Odila da Silva Leite Dias, que analisou, no clássico Aspectos da Ilustração no Brasil, um pragmatismo próprio de uma mentalidade reformista, hegemônica na Corte portuguesa sob o Reformismo Ilustrado. Segundo a autora, esse pragmatismo buscou adaptar a ciência produzida na Ilustração às realidades luso-brasileiras, produzindo assim melhorias para a vida coletiva. Esse aspecto influenciou uma geração de brasileiros e portugueses, os quais levaram para a produção científica e administração pública toda uma mentalidade utilitarista e pragmática, associada a algum conservadorismo no campo político.35 O trabalho de Maria Odila Dias influenciou fortemente vários outros. Um exemplo é o de Lorelai Kury, que analisou uma série de mudanças no modelo colonial português no século XVIII. Baseados em modelos inglês e francês, segundo a autora, diversos agentes da Coroa portuguesa, no último quartel do Setecentos, buscaram promover alterações no funcionamento da política lusitana de administração colonial. Conforme essa perspectiva, a ciência e seu uso prático mobilizaram um aparato estatal objetivando o aumento da produção agrícola e das demais atividades econômicas, bem como a uma melhoria na eficiência do controle metropolitano na América portuguesa, sem, no entanto, produzir mudanças mais significativas no campo da administração, das sociabilidades, das instituições, da economia e da cultura.36 Já Rafael Bivar Marquese, discutindo, em perspectiva comparada, a montagem da cafeicultura no Brasil e em Cuba, entre a última década do século XVIII e as duas primeiras do XIX, também parece nortear seu trabalho a partir da definição de um Iluminismo eclético nos casos português e luso-brasileiro. O autor analisou a recepção, em Cuba e Brasil, de traduções, para o castelhano e português, respectivamente, do manual The coffee planter of Saint Domingo (1798), de Pierre-Joseph Laborie, que sistematizava todo o processo de plantio de café e administração das plantations, tal como ocorriam na ilha de Santo Domingo antes da Revolução haitiana, ocorrida em 1791. A circulação da tradução do tratado em Cuba, conforme defende o autor, foi maior do que no Brasil, o que se explicaria em razão do desinteresse das classes senhoriais brasileiras pela obra. O livro, editado entre 1798 e 1806 pelo botânico 35 DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Aspectos da Ilustração no Brasil. In: _______. A interiorização da metrópole e outros estudos. 2 ed. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2009. p. 39-126. 36 KURY, Lorelai. Homens de ciência no Brasil: impérios coloniais e circulação de informações (17801810). História, Ciências, Saúde - Manguinhos, v. 11, n. suplemento 1, p. 109–129, 2004. 36 mineiro frei José Mariano da Conceição Veloso, suprimia o quarto capítulo da edição original, que tratava, em linhas gerais, da teoria antilhana de administração de escravos. Dialogando com Maria Odila da Silva Dias, o autor destaca o descaso da referida elite colonial com as tentativas de modernização da produção agrícola empreendidas pela Coroa portuguesa. Disso, ele conclui que a elevação da qualidade e quantidade da produção cafeeira no Brasil deu-se de forma independente das tentativas reformistas estatais, destacando, dentre elas, as traduções e distribuição dos manuais impressos pela Tipografia do Arco do Cego, no início do século XIX.37 O “ecletismo” e “Luzes ecléticas” para o caso português aparecem nessas obras com significado marcadamente utilitário e pragmático. Nelas, a ciência e filosofia alémpirenaica seriam importadas e apropriadas, adaptando-se com maior ou menor sucesso às realidades luso-brasileiras, em função de um desenvolvimento e modernização, seja da administração pública, seja da produção econômica. Nessa perspectiva de Ilustração, em alguma medida, reforça-se também uma carga retrospectiva, uma vez que a valorização de aspectos “úteis”, em detrimento de vertentes mais politizadas do pensamento das Luzes, é destacada. Embora esses pontos levantados aqui escapem das discussões e dos objetivos desses autores, essa perspectiva eclética sobre as Luzes, em alguma medida, leva-nos a alguns problemas que se referem aos próprios modelos explicativos sobre o Iluminismo. Dito de outra maneira, pensar nas Luzes portuguesas como “ecléticas”, no sentido de serem uma espécie de “híbrido” entre as “novidades” do pensamento das Luzes e o arcaísmo das estruturas ibéricas, traz o questionamento sobre se houve um Iluminismo não eclético fora de Portugal. Se essa característica é uma particularidade do caso português, seria de se inferir que houve algum contexto em que as novas ideias do pensamento iluminista desenvolveram-se sem barreiras ou refrações internas. É possível pensar, ainda, se o desejo ou a tentativa de aplicação das inovações filosóficas e científicas, no plano concreto, seja em reformas institucionais, seja no desenvolvimento material, teriam sido particularmente mais destacáveis em Portugal e no mundo luso-brasileiro que em relação a outros contextos. No que toca ao tema desta pesquisa, centrada nos processos de secularização e na historicidade da tolerância religiosa no contexto das Luzes, fazê-lo à luz dos modelos explicativos que apontam para as “Luzes ecléticas” poderia conduzir a conclusões, no 37 MARQUESE, Rafael de Bivar. A ilustração luso-brasileira e a circulação dos saberes escravistas caribenhos: a montagem da cafeicultura brasileira em perspectiva comparada. História, Ciências e Saúde - Manguinhos, v. 16, n. 4, p. 855–880, 2009. 37 mínimo, muito problemáticas. Um primeiro erro estaria em considerar como elemento chave desse ecletismo luso-brasileiro o desenvolvimento de ideias iluministas em meios e linguagens intrinsecamente religiosos e católicos, bem como sua coexistência. Tal coexistência, por esse caminho, poderia vir a ser abordada como contraditória em si. Para tanto, seria necessário endossar o pressuposto de que o Iluminismo e a religião se incompatibilizam e negligenciar o fato de que diversos problemas e discussões, em vários contextos das Luzes, partiram de debates religiosos, que, de alguma forma, deram-lhes alguns contornos específicos, relacionados aos seus contextos respectivos. Dessa maneira, ficariam de lado toda uma dimensão de ambiguidades e os enfrentamentos presentes na relação entre a difusão das ideias das Luzes e suas referências à religião em contexto determinados. Isso porque, nessa concepção, esses aspectos cristãos-católicos, presentes nas mentalidades e estruturas dos espaços lusobrasileiros, são colocados, de forma um tanto simples, como permanências de algo arcaico. Valores como a tolerância e a intolerância religiosas, com isso, ganham pouco espaço para que sejam discutidos e historicizados. O resultado potencial disso seria conceber a tolerância religiosa, dentro do contexto das Luzes no mundo luso-brasileiro, como um mero ideal externo, que jamais se realizou. Ou ainda que tenha se realizado somente de maneira parcial e utilitária, com grandes refrações e resistências, não conduzindo a um “devir histórico” que tenha sido o “reflexo” de sistemas “puros”, defensores da liberdade e tolerância religiosas, florescidos nos debates da Ilustração. Antes de continuar essa discussão, faz-se necessária a análise de outro tipo adjetivação comum sobre as Luzes portuguesas, a saber, a contida na expressão “Luzes católicas”. 1.4 Um Iluminismo Católico Existe uma bibliografia relativamente ampla a respeito dos desenvolvimentos das Luzes, nos seus múltiplos aspectos, nos contextos católicos. A obra de Ludovicus Jacopus Rogier, por exemplo, aponta para a existência de um Iluminismo católico restrito à Alemanha, algo contestado, anos depois da sua publicação, por Cândido dos Santos.38 Na década anterior à do trabalho de Cândido dos Santos, Samuel J. Miller, 38 SANTOS, Cândido Dos. António Pereira de Figueiredo, Pombal e a Aufklärung. Ensaio sobre o Regalismo e o Jansenismo em Portugal na 2 a metade do século XVIII. Revista De História das Ideias, Porto, v. 4, n. 1, p. 167–203, 1982. p. 202. A obra em questão de Rogier é: ROGIER, Ludovicus Jacopus. Le siècle des Lumières et la Révolution (1717-1800). In. __________, HAJJAR, Joseph; SAUVIGNY, Guillaume de Bertier. La nouvelle histoire de l’Eglise. Paris: Édition du Seuil. vol. IV: Siècle des Lumières, révolutions, restaurations, 1966. p. 9-233. 38 então professor de Boston College, já havia desenvolvido uma pesquisa extensa e de grande fôlego sobre o mesmo Iluminismo católico – Catholic Enlightenment – em Portugal. Seu enfoque foi, sobretudo, o conjunto das relações diplomáticas entre a Coroa portuguesa e a Santa Sé de Roma entre os anos em que o reino ibérico esteve sob o controle e Sebastião José de Carvalho e Melo, de 1750 a 1777. Na sua hipótese, o ministro de d. José I, influenciado pelas Luzes e auxiliado por um corpo de pensadores católicos e, em grande parte, também eclesiásticos, desenvolveu e colocou em prática uma nova agenda política, elaborada em cima de um corpo doutrinário inédito. Ele desenvolveu um tipo de regalismo, afirmando poderes régios em diversos pontos de conflito de jurisdição civil e eclesiástica, em conexões com o episcopalismo, o galicanismo e o jansenismo. Para Miller, analisando um conjunto de conflitos entre Portugal e Roma no mencionado período, tal ingerência civil, tomada pela governação pombalina sobre o poder eclesiástico, representou também um exercício inédito de jurisdição do Estado sobre a Igreja em qualquer país católico até então, embora se admita que conflitos jurisdicionais entre Igreja e monarquia católicas remontem a períodos anteriores. Um exemplo seria a instituição do Real Padroado,39 ponto constante de conflito entre esferas régias e eclesiásticas nos domínios portugueses desde o século XVI. Porém, tais conflitos, segundo Miller, tomaram uma proporção nova sob Pombal, ao se articularem as tentativas de avanço e centralização dos poderes civis com tendências que visavam a “ilustrar” o Catolicismo. Tais tendências remetiam a alguns debates iluministas, formando um projeto maior cujo objetivo era modernizar Portugal e retirá-lo de um presumido atraso, ao qual a piedade barroca, a Companhia de Jesus e correntes católicas mais favoráveis à autoridade pontifícia e da Sé romana, em detrimento das “Igrejas nacionais”, estavam associadas. Este processo, conclui Miller, mesmo após a queda do Marquês de Pombal e a ascensão de d. Maria I ao trono, não foi revertido. Na conclusão do autor, tal caráter regalista – num sentido lato, de hegemonização do poder civil sobre o eclesiástico – perdurou até, pelo menos, a década 39 Durante a Idade Moderna, o Real Padroado se constituiu como um elemento importante nos quadros político-administrativo e político-religioso em Portugal. Por meio da bula Dudum pro parte, de 31 de março de 1516, o papa Leão X concedeu o direito universal do padroado a todas às terras sujeitas ao domínio da Coroa portuguesa. Ele consistia, grosso modo, numa série de acordos entre a Sé romana e a Coroa portuguesa, confirmados por breves e bulas, nos quais eram delegados ao rei de Portugal o exclusivo da organização e financiamento de atividades de natureza religiosa no país e nos domínios ultramarinos. Através do padroado, o rei tinha autoridade para aceitar ou rejeitar bulas papais; escolher, com a aprovação do papado, os representantes da Igreja no ultramar; erigir e autorizar a construção de igrejas, catedrais, mosteiros, cemitérios e conventos, entre outras atribuições. Este assunto será retomado mais adiante. MUNIZ, Pollyanna Gouveia Mendonça. Cruz e Coroa: Igreja, Estado e conflito de jurisdições no Maranhão colonial. Revista Brasileira de História, vol. 32, nº 63, p. 39-58, 2012. p.40. 39 de 1830.40Especificamente sobre o regalismo e jansenismo, retomo a discussão mais à frente. Aqui, importa destacar de que, há décadas, já tem sido apontada a ideia de que nos diversos desenvolvimentos no contexto da Ilustração houve contornos próprios dos países católicos. O tema tem sido objeto de importantes estudos e produção historiográfica. Porém, anteriormente aos trabalhos mencionados supra, foi publicada a obra já clássica de Luís Cabral de Moncada, na qual, comumente, historiadores brasileiros e portugueses observam a origem da expressão “Iluminismo Católico”. Logo no início de seu trabalho sobre Luís Antônio Verney, Moncada observa a dificuldade em se pensar no Iluminismo como uma unidade. Segundo o autor, “há, por assim dizer, vários Iluminismos nos diversos países europeus, nos quais, sobre uma unidade mais profunda de certas características comuns vieram instalar-se também muitas características próprias”, provenientes de tradições e particularidades de cada contexto nacional. No caso de países católicos, como Itália, Espanha e Portugal, “menos adiantados na emancipação do pensamento moderno”, o Iluminismo “manifestou-se ele de uma maneira diversa”, pois se viu “obrigado aí a pactuar com o Catolicismo”.41 Na leitura de Flávio Rey de Carvalho, Cabral de Moncada procurou romper com a ideia monolítica sobre o Iluminismo, com um objetivo de se abrir à historiografia para vislumbrar Luzes com as feições católicas de Portugal. No entanto, o uso da expressão de maneira generalizada acabou gerando uma nova forma de reducionismo interpretativo. Nas palavras do autor: A noção de “Iluminismo Católico” sofreu a mesma generalização presente no conceito de Iluminismo: enquanto este consistiu em modelo sintético de entendimento do pensamento europeu setecentista, aquela passou a ser utilizada, erroneamente, da mesma maneira, para referir-se às especificidades do caso português. Criou-se um paradigma uniforme do multifacetado movimento ilustrado luso, eclipsando a diferença e a variedade das opiniões lá existentes. Isso reforça ainda mais a caricata oposição cultural entre Portugal e a Europa, sendo o ambiente cultural luso reduzido a uma exceção à regra, um mero contraponto à suposta postura geral anticristã do Iluminismo.42 40 MILLER, Samuel J. Portugal and Rome c. 1748-1830. Aspects of the Catholic Enlightenment. Rome: Università Gregoriana Editrice, 1978 (Miscellanea Historiae Pontificiae, Vol. 44). 41 MONCADA, Luís Cabral de Oliveira. Um “iluminista” português do século XVIII: Luís António Verney. In: ____________. (Org.). Estudos de História do Direito: século XVIII – Iluminismo Católico: Verney-Muratori. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1950, v. 3. p. 5-7. 42 CARVALHO, Flávio Rey de. Um iluminismo português? Op. Cit. p. 20-21. 40 Em outras palavras, a expressão “Luzes Católicas”, usada para se referir ao caso do Iluminismo português, vem com uma carga pejorativa arraigada, por considerar que o Catolicismo das Luzes portuguesas foi razão para seu atraso, em relação a outros Iluminismos, nas suas essências, antirreligiosos ou anticlericais. Não ter rompido com a Igreja de Roma, dessa forma, serve, em muitas análises, como uma espécie de mácula que perpassa o contexto letrado lusitano no Setecentos e os seus pensadores, limitando sobremaneira suas ideias. Esse é o caso, por exemplo, da análise feita por Ana Lúcia Curado e Manuel Curado, no prefácio das Cartas Italianas, traduzidas do latim e do italiano, e por eles publicadas no ano de 2008. No início, os autores advertem sobre o conteúdo das cartas, ao dizerem que os portugueses “gostam de contar de si mesmos a história fantasiosa de como são um povo tolerante”, o que, segundo os mesmos, cairia por terra na leitura a ser feita sobre a Questão Judaica, presente na carta VI do livro por eles traduzido e editado, “em linhas de arrepiar”; depois da leitura do documento, continuam os autores, “é difícil aceitar sem reservas o mito português da tolerância”. 43 Na mesma discussão preliminar das cartas, ademais, os mesmos autores afirmam ser “difícil deixar de sorrir perante a sua surpreendente atualidade”, referindo-se à abordagem de temas tais como: a necessidade de se virem mestres estrangeiros para Portugal (enfrentando, assim, o problema do isolamento cultural do país), ou questões como a da educação dos jovens, número de filhos por cada família ou a relação da religião com a política. Além disso, eles salientam: Existe, porém, um tema em Verney que não convida ao sorriso. Nesta correspondência não surge nenhuma alusão à hipótese de acabar com a Inquisição. Fica bem a Verney propor o fim imediato dos hediondos autos-de-fé. Não fez o mesmo a respeito da Inquisição, como instituição. Verney parece acreditar que seria possível reformar o monstro. Não se deu conta de que não há forma de fazer isso: os monstros não se reformam – matam-se [itálico dos autores].44 A partir daí, do ponto de vista depreendido das Cartas Italianas, concluindo o raciocínio, os autores observam que, para o oratoriano, “um mundo sem o Santo Ofício é tão impensável quanto um mundo sem ordens militares e sem Catolicismo”. Eles relacionam o tema da Carta VI com alguns presentes nas demais cartas (que serão 43 CURADO, Ana Lúcia; CURADO, Manuel. Prefácio. In: VERNEY, Luís Antônio. Cartas Italianas. CURADO, Ana Lúcia; CURADO, Manuel. (org.). Lisboa: Sílabo, 2008, p. 9-29. p. 10. 44 Ibidem, p. 11. 41 analisadas mais à frente) e fazem uma primeira alusão a um Iluminismo Católico, do qual o autor faria parte. Por fim, concluem que, Verney, apesar de: A grande atualidade de muitos de seus conselhos para Portugal faz com que apressadamente o consideremos com ideias utópicas para o tempo. A ideia de reformar o que não pode ser reformado revela o extraordinário realismo deste autor. [...] Verney enfatiza os direitos dos acusados de se defenderem [referindo-se às propostas do oratoriano de reformas da Inquisição] e inventaria alguns pormenores da vida dos tribunais e das prisões que poderiam garantir esse direito. Estas ideias são simpáticas para nós. O que temos dificuldade de compreender é a inclusão de categorias como as de “sangue impuro”, “prova de sangue” e de “Judaísmo” no processo judicial. É verdade que Verney é do seu tempo e a História ainda não tinha mostrado com força suficiente o absurdo de tais categorias.45 O tom ensaístico do prefácio em questão aspecto é um ponto a ser levado em conta em relação às conclusões que apresenta. Possivelmente, uma análise de fôlego maior conduziria os autores a direções distintas dos apontamentos que fizeram, embora deva-se admitir que não eram estes seus objetivos no texto. Contudo, o modo como o Catolicismo é colocado como barreira para o progresso das ideias do iluminista Verney, ao longo do texto, constitui um aspecto que quero explicitar. O que se pode observar, nos trechos citados, são algumas análises problemáticas, possivelmente relacionadas aos “reducionismos interpretativos”, apontados por Flávio Rey Carvalho e mencionados supra. Elas são produto do fato de historiadores partirem dessa concepção negativa e generalista de um Iluminismo católico, como “incompleto”, em relação a outro, “secular”. Esse problema vê-se logo quando Ana Lúcia Curado e Manuel Curado afirmam que Verney “é do seu tempo”, e que a História, até então, não havia mostrado suficientemente os absurdos de categorias como “pureza de sangue” ou da existência da Inquisição. É da ordem do óbvio que Verney é um homem de seu tempo. Entretanto, ao não precisarem em que Verney seria do “seu tempo”, os autores acabam não se detendo mais profundamente em contextualizar tópicas, tais como as de reformar, ao invés de suprimir-se a Inquisição, a “questão judaica” ou a historicidade dos estatutos de pureza de sangue. Elas são elementos presentes no universo mental no qual Verney viveu, afetado fortemente pelo Catolicismo – não redutível somente a fé católica, mas correspondendo a um campo bastante complexo de doutrinas, debates e ideias, dentre outros elementos, que conformam diversas dinâmicas organizativas do mundo, indo da política à vida social, à justiça etc. Pelo contrário, os autores acabam por deixar a impressão de que, no pensamento do oratoriano, uma modernidade propriamente dita 45 Ibidem, p. 12 42 somente apareceria se ele rompesse com essa religião, que organizava mentalmente grande parte de sua concepção de mundo. Concretizando essa ruptura, talvez, se tornasse um homem “à frente de seu tempo”. Essa concepção está na base de uma ideia de Ilustração católica, que exprime um certo “realismo” calcado na conciliação com a dita religião e suas implicações na coletividade, contrariamente ao ímpeto revolucionário e antirreligioso que estaria presente em outros contextos das Luzes. É bastante comum que essa forma de entender o Iluminismo católico português seja reproduzida, muitas vezes sem reflexão aprofundada a respeito, por historiadores não especialistas no tema, discutindo outros assuntos relacionados a contextos do Setecentos. Isso se explica, é claro, porque não são objetivos centrais de tais trabalhos. Tal concepção aparece em importante obra de Sônia Siqueira, quando analisa o Regimento de 1774, da Inquisição de Portugal. A autora caracteriza as Luzes de Portugal como “típica de países católicos”, onde, a partir da segunda metade do século XVIII, procurou-se “limitar o poder jurisdicional da Igreja, defender o espirito laico, renovar a atitude científica”, dentre outros objetivos, mas que ao mesmo tempo “pactuou com o Catolicismo – não apenas fé, mas principalmente visão de mundo – e se expressou em um reformismo e pedagogismo”. Assim, nesse contexto de Luzes católicas, nos quais se inseriram, segundo a autora, Portugal e a Inquisição, o “Iluminismo português não foi revolucionário, nem anti-histórico, nem irreligioso. É a Ilustração de compromissos, de meios-tons, de moderações, própria do mundo ibérico, que se transmudou em reformas”.46 As “Luzes de meios tons”, católicas e reformistas, que estiveram juntas com uma concepção sobre um Iluminismo português marcado por conservadorismo, também aparecem no artigo de Anita Waingort Novinsky a respeito da perseguição a Antônio de Morais e Silva e outros estudantes luso-brasileiros, em que se ressalta o compromisso com as estruturas católicas, sobretudo a Inquisição e seus aparelhos de intolerância religiosa institucionalizada.47 Caio César Boschi, ao analisar a formação das elites coloniais mineiras na segunda metade do século XVIII, também contrapõe o Iluminismo católico português a outro Iluminismo irreligioso além-pirenaico, o francês. Boschi observa que, na Universidade de Coimbra, após a Reforma de 1772, houve uma busca maior pelas 46 SIQUEIRA, Sônia Aparecida. Introdução: A disciplina da vida colonial: os Regimentos da Inquisição. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a. 157, nº. 392, jul. / set. p. 497-572, 1996. p. 504. 47 NOVINSKY, Anita Waingort. Estudantes brasileiros “afrancesados” na Universidade de Coimbra. A perseguição de Antônio de Morais e Silva. In: COGGIOLA, Osvaldo (org.). A Revolução Francesa e seu impacto na América Latina. São Paulo: Edusp, 1990. p. 357-371. 43 ciências naturais e estudos mais utilitários e imediatistas, nas escolhas dos estudantes mineiros que foram para a dita universidade, contrariamente à tendência observada até a década de 1760, quando predominava a busca pelo saber livresco e humanista, bem próprio da educação jesuítica. Ao destacar, nesse processo, o temor que havia no período a respeito das “leituras perniciosas”, além de conversações e mesmo conspirações ou sedições decorrentes de um “relaxamento disciplinar que campeava a universidade beiroa”, relaciona as reformas da Universidade a um projeto maior pombalino. Para o autor: Na dimensão pombalina de que era imperioso modernizar o país, não havia lugar para a permanência da rigidez e do formalismo aristotélico-escolástico no sistema de ensino português. Assim, talvez a maior contribuição que essa tendência renovadora tenha trazido para os estudantes dos cursos superiores conimbrenses foi a de introduzir e, principalmente, estimular neles o estudo das ciências experimentais, sem prejuízo da manutenção – apesar de em plano secundário – das ciências jurídicas e teológicas. [...]. Nenhuma contradição há nisso, pois é sempre oportuno lembrar que o pombalismo não se incompatibilizou com a Igreja, mas sim com uma ordem religiosa específica. Na realidade, muitas das propostas pombalinas têm sua origem e devem seu êxito à estreita colaboração por ele recebida de personalidades do clero e de congregações religiosas, o que explica o caráter cristão e católico de que, opostamente à francesa, se revestiu a Ilustração Portuguesa. [itálico do autor]48 No caso, apesar de tal concepção aparecer como um mero detalhe no trabalho que analisa trajetórias e a formação de elites coloniais em Coimbra anteriormente ao movimento da Inconfidência Mineira, o caráter católico com o qual se revestiu, segundo Boschi, o Iluminismo português, está contraposto a outro, exemplificado no caso francês, em que não se observa uma relação semelhante com o Catolicismo. Ainda que consiga demonstrar aquilo a que se propôs no artigo – no caso, a complexa relação entre a formação das ditas elites e trajetórias de indivíduos formados em Coimbra no contexto político e administrativo mineiro no último quartel do século XVIII –, está presente neste trabalho de Boschi a dicotomia, a meu ver equivocada, entre Luzes católicas portuguesas e seu suposto correspondente, predominantemente irreligioso, no Além Pirineus, neste caso, na França. A concepção de Luzes católicas como um fator que tenha limitado Portugal a atingir uma modernidade, estando esta última presente noutros Iluminismos representados como mais amplamente irreligiosos e anticlericais, coloca nessa 48 BOSCHI, Caio César. A Universidade de Coimbra e a formação intelectual das elites mineiras coloniais. Estudos Históricos (Rio de Janeiro), v. 4, n. 7, p. 100–111, 1991. p. 107. 44 concepção uma enorme carga pejorativa. Como exemplifiquei nos trabalhos mencionados acima, isso gera importantes problemas de análise, como anacronismos ou uma descontextualização das ideias e práticas presentes nos contextos intelectuais português e luso-brasileiro. No entanto, para se enfrentar essa possibilidade de erro, não se pode colocar de lado as especificidades dos contornos de um contexto historicamente católico, como o português e o luso-brasileiro. Os lugares da religião, numa perspectiva mais geral, e do Catolicismo, mais especificamente, nas Luzes, precisam ser devidamente contextualizados e problematizados, a fim de se evitar problemas de generalizações apressadas, falsas contraposições e qualificações pejorativas, como Flavio Rey de Carvalho, em trecho supracitado, nos adverte. Ao generalizar uma suposta postura geral irreligiosa do Iluminismo e superdimensioná-la, o historiador incorre em múltiplos problemas. Isso acontece ao se desconsiderar que a religião, suas linguagens, crenças, práticas, querelas e debates, tanto quanto ou mais que a Filosofia e a ciências, formaram parte significativa daquilo que chamamos de Iluminismo. A carga pejorativa das “Luzes católicas”, como já foi dito, remete, em última instância, a uma concepção de Iluminismo como sendo, de forma mais ou menos radical, antirreligioso. Segundo o historiador das ideias Stephen J. Barnett, em obra recente, até os anos 1970, a caracterização da Ilustração foi mais usualmente aquela pautada pela oposição entre razão e religião. Desde que muitos historiadores e pensadores de outras áreas preferiram a fórmula de razão contra a Igreja, ainda que as fontes indicassem que grande ou talvez a maior parte dos pensadores do contexto do Iluminismo ainda sustentassem alguma crença em Deus, a esse problema articulavam-se aspectos como sua hostilidade à Igreja ou sua sistemática associação ao deísmo.49 Tratava-se, segundo Barnett, de uma busca, no Iluminismo, pela origem de valores ocidentais ancorados no princípio da razão, tais como a tolerância, o saber científico ou princípios de igualdade e liberdade, o que, apesar de não ser uma busca equivocada, provocou, segundo o autor, diversas distorções. Tais historiadores, em grande parte, estavam sob a influência de Peter Gay – que, no subtítulo de um de seus livros, registra The rise of modern paganism50, apresentando o Iluminismo como um novo período de culto à razão, com o qual ele chega a comparar a Europa, sobretudo a França, a uma nova Atenas Clássica.51 Por isso, segundo Barnett, muitas vezes exageram, por 49 BARNETT, Stephen J. The Enlightenment and religion. Op. Cit. p. 2. GAY, Peter. The Enlightenment: the rise of modern paganism. Op. Cit. 51 Ibidem, p. 11. 50 45 exemplo, na dimensão e nas proporções do deísmo e do ateísmo, aproximando-se, sem se dar conta, da argumentação de refratários das Luzes, contemporâneos aos philosophes dos séculos XVII e XVIII. Para o autor, os historiadores, ao fazê-lo, incorreram com frequência no que ele chama de “mito do deísmo”, segundo o qual, ainda que com inconsistências graves nas fontes, afirma-se ter havido uma espécie de “deísmo subterrâneo”, que sobreviveu e se difundiu em meio a estruturas conservadoras e religiosas, de forma ampla, em toda a Europa.52 Além disso, Barnett demonstra o quanto problemático é uma oposição, no seu entendimento, artificial, entre razão e religião, aplicada ao contexto iluminista. Recorrendo ao método contextualista de análise de História das Ideias,53 exemplifica, com vários autores e contextos da Ilustração, o quanto é equivocado se retirar as ideias de um autor das Luzes de uma dinâmica de debates, da qual participam, de forma ativa, as discussões sectárias, dogmáticas e teológicas de várias Igrejas, correntes ou instituições religiosas. Ao se analisarem, por exemplo, as teses de John Locke, sem observá-las dentro da dinâmica em que elas se inserem, na qual debates com as ideias de sermonistas e teólogos protestantes do final do século XVII tiveram grande importância, perde-se uma grande parte dos contextos de produção, interlocução e circulação da ideias do pensador britânico, privilegiando-se uma perspectiva que se restringe à procura da influência de autor sobre autor do Iluminismo; o mesmo problema se verificaria se, ao se estudarem pensadores católicos das Luzes na Itália, não se considerassem querelas teológicas, como a dos Jansenistas contra os Regalistas.54 Contrapondo-se a essas distorções analíticas, Stephen J. Barnett propõe uma reavaliação do lugar da religião nos estudos sobre o Iluminismo, destacando aí o problema da tolerância religiosa. Segundo o autor, o enfoque exacerbado nos argumentos dos philosophes induz a pelo menos dois tipos de erro. O primeiro está na pouca contextualização que eles recebem, estudados por si mesmos e, muitas vezes, a partir de concepções apriorísticas de tolerância. Dessa maneira, aspectos como a postura anti-huguenote, que aparece claramente em alguns escritos de Voltaire, são tratados mais como “incoerências” ou “incompletudes” do que como ideias perfeitamente plausíveis do pensador, no seu contexto de enunciação. A análise desses “heróis” do Iluminismo, a partir dessa perspectiva, desconsidera a complexidade e a 52 BARNETT, Stephen J. The Enlightenment and religion. Op. Cit. p. 11-12. C.f. SKINNER, Quentin. Meaning and Understanding in the History of Ideas. Op. Cit. 54 BARNETT, Stephen J. The Enlightenment and religion. Op. Cit.p.48-49 e 168-171. 53 46 multidimensionalidade das interações entre política, religião, classe social, além da própria limitação das fontes.55 O segundo erro, que anda em conjunto com o primeiro, está em simplesmente se desconsiderar o desenvolvimento de valores como a tolerância religiosa fora da république des lettres. Com isso, o resultado é dimensionar de forma exagerada a influência de pensadores ou, no outro extremo, desconsiderar a experiência concreta de diversos outros agentes na sociedade. Barnett exemplifica essa questão apontando a influência, percebida e estudada pela historiografia, que as experiências com as guerras de religião dos séculos XVI e XVII tiveram na formulação de políticas de tolerância religiosa. Segundo ele, elas foram muito mais fortemente perceptíveis do que as ideias dos grandes pensadores.56 Embora haja algumas ponderações a serem feitas sobre o trabalho de Stephen J. Barnett, como, por exemplo, a referente à sua concepção de esfera pública e à relação desta com o contexto das Luzes, sua aplicação do método contextualista para analisar o lugar da religião no Iluminismo é importante para se repensar, como um todo, as “Luzes Católicas”. Afinal, sua crítica metodológica à forma de concepção do Iluminismo, muitas vezes encontrada na historiografia, que opõe razão à religião, está no cerne da conotação pejorativa do termo. Uma análise sobre a Ilustração em contextos como os ibéricos perde muito em qualidade ao não considerar que os debates e ideias iluministas se dão dentro de um contexto católico e que, dessa maneira, não podem ser vistos sem se colocar em perspectiva a multiplicidade de interações entre o Catolicismo, suas discussões internas e sectárias, e toda uma gama de concepções de política e sociedade, presentes no contexto das monarquias ibéricas a partir de meados do século XVIII, mas com raízes anteriores. Considerando todas essas possibilidades, torna-se possível fazer uma contextualização mais ampla das ideias dos ilustrados portugueses. Assim, entendo as Luzes Católicas mais como sendo um contorno específico que os debates das Luzes adquiriram em países como Portugal, Espanha e suas colônias, bem como na Itália. Essa especificidade oferece elementos e problemas distintos de contextos como os da Alemanha ou da França. Em síntese, cumpre contextualizar as ideias dos autores, sem se perder a dimensão de que problemas e diálogos de ideias perpassam limites presentes nos respectivos contextos religiosos e dinâmicas locais. Ulrich L. Lehner, em artigo cujo objetivo foi explicar o que é o “Iluminismo Católico”, conforme o que indica a historiografia e sua análise de autores católicos do 55 56 Ibidem, p. 217. Ibidem, p. 218. 47 contexto das Luzes, afirma que a expressão é usada, em seus trabalhos, como um conceito heurístico. Ele descreve um fenômeno diverso, que tomou os intelectuais católicos de meados do século XVIII até o início do século XIX, e que combinou várias vertentes de pensamento e uma variedade de projetos, que foram implementados com intuito de reformar o Catolicismo. Esta sua definição, no entanto, não implica uma uniformidade interna nesse “movimento ou processo intelectual” e reconhece plenamente “que o Iluminismo Católico foi expresso de diferentes maneiras durante períodos e contextos distintos, e que, também, havia alguns indivíduos radicais que não se encaixavam na categoria de reformadores”, dentro desse universo de pensadores católicos das Luzes. Como um movimento de reforma eclesiástica, o Iluminismo católico foi uma tentativa apologética de defender os dogmas essenciais do cristianismo católico pela explicação de sua racionalidade, segundo a terminologia corrente na maior parte do século XVIII, e também pela reconciliação do Catolicismo com a cultura moderna (por exemplo, através da aceitação de novas teorias econômicas, científicas e de pensamento jurídico). O Iluminismo Católico, conclui Lehner, estava em diálogo com a cultura contemporânea, não somente pelo desenvolvimento de uma nova aproximação hermenêutica com o Concílio de Trento ou com as ideias jansenistas, mas também pela implementação de alguns dos valores globais do processo do Iluminismo europeu nas vertentes do pensamento católico. Tais vertentes tentaram “renovar” e “reformar” a sociedade como um todo, e assim, conclui, merecem “verdadeiramente o rótulo de Iluminismo”.57 João Adolfo Hansen questiona os problemas analíticos de se pensar o Iluminismo por definições totalizantes, a exemplo de “‘iluminismo’ como pensamento leigo e anticlerical, ateu ou agnóstico”, entendimento que levaria a concluir que expressões como Iluminismo católico ou Ilustração católica seriam incongruentes. Segundo o autor, torna-se problemático analisar o Iluminismo a partir de definições apriorísticas, dedutivas e fechadas, “supondo um sentido único para a história [da Ilustração] que já estivesse sendo realizado então em lugares ‘modernos”, como a França”, em contraposição a “lugares supostamente atrasados, como Portugal, onde as ideias iluministas não teriam lugar”.58 A partir dessas considerações e de uma análise historiográfica e teórica a respeito das Luzes em Portugal e na América portuguesa LEHNER, Ulrich L. What is “Catholic Enlightenment”? History Compass, v. 8, n. 2, p. 166–178, 2010. p. 166-167. 58 HANSEN, João Adolfo. Ilustração católica, pastoral árcade & civilização. Oficina da Inconfidência, Ouro Preto, v. 4, n. 3, p. 11-47, dez. 2004. p.14-15. 57 48 colonial, o autor define o Iluminismo católico português, usual para se referir ao tempo das reformas pombalinas, como sendo um contexto de [...] coexistência de práticas e princípios excludentes e mesmo contraditórios, como inovação e tradicionalismo, ateísmo e religião, empirismo e escolástica, liberdade democrática e subordinação absolutista, sugerindo a impossibilidade de definir unitariamente a cultura luso-brasileira de então ou de estudá-la como totalidade prévia positivamente dada.59 A análise de Hansen, a partir daí, aproxima-se parcialmente da de Lehner, ao se pensar, no geral, um Iluminismo católico marcado pela óbvia permanência do próprio Catolicismo, além de princípios políticos e ideológicos que lhes eram internos, dentro de um processo de modernização. Assim, numa abordagem específica sobre o contexto luso-brasileiro, ao analisar a produção dos poetas árcades da segunda metade do século XVIII, Hansen observa essas aparentes contradições nas permanências de uma política católica, existente desde o século XVI, com a modernização, projetada pelo escol pombalino, que estabeleceu contornos específicos para todo aquele contexto intelectual. O autor observa esses contornos, por exemplo, na obra de Tomás Antônio Gonzaga, que valoriza o meio termo entre o plebeísmo e o hermetismo, afastando-se de ambos para se parecer ao leitor com uma linguagem elegante, terna, clara, fácil e urbana. Com isso, figurou os ideais civis e civilizatórios da Ilustração católica portuguesa, marcada, de um lado, por um pedagogismo e dirigismo cultural de um discurso “oficial” hegemônico e modernizador da Coroa e, de outro, pela reafirmação de hierarquias e princípios vincados na tradição católica.60 Já a concepção de Iluminismo Católico adotada por Lehner é bem distinta da criticada por Flávio Rey de Carvalho, por não se contrapor a um tipo-ideal secularizado de Iluminismo e, assim, adquirir carga pejorativa. Na verdade, ela contribui para se pensar um modelo explicativo a respeito do desenvolvimento do Ilustração dentro de um universo católico, levando-se em conta os contextos de enunciação dos autores católicos das Luzes. Criticando Jonathan I. Israel, Lehner questiona a concepção por aquele defendida de que um Iluminismo Católico possa ser visto somente como uma forma de “anti-Iluminismo”, ou ainda como apenas uma “Ilustração moderada”. No seu entendimento, trata-se de uma dinâmica de desenvolvimento de um contexto intelectual que seria simplificada em demasia se resumida a uma mera refração de vertentes mais 59 Ibidem, p. 14. HANSEN, João Adolfo. As Liras de Gonzaga: entre retórica e valor de troca. Via Atlântica, v. 1, p. 40– 53, 1997. 60 49 radicais das Luzes. Dessa maneira, o autor concorda com Stephen J. Barnett, ao entender que, para se analisar adequadamente o Iluminismo católico, deve-se levar em consideração não somente o diálogo de pensadores católicos das Luzes com vertentes mais “globais” do Iluminismo, mas, sobretudo, as posições e os debates desses ilustrados no interior de um contexto intelectual católico. Nesse contexto, entre o final do século XVII e XVIII, havia, por exemplo, acirrados debates e disputas entre diversos pensadores e publicações em torno de temas, tais como o Jansenismo, o Febronismo ou o antijesuitismo, bem como a relação dos cleros nacionais com Roma. A isso, se soma o fato de muitos desses debates se darem dentro de uma dinâmica, importante de ser considerada, existente entre as diversas ordens dos cleros secular e regular e destes, por sua vez, com as Coroas. Reduzindo tais características e realidades internas dos contextos católicos a resistências e desvios, pura e simplesmente, do ideário “universal” das Luzes, uma contextualização mais ampla e substantiva do Iluminismo católico em sua realidade histórica é fortemente prejudicada.61 De maneira distinta dos autores supracitados, Cândido dos Santos parte de estudos clássicos sobre o josefismo de meados do século XVIII para elaborar sua discussão acerca do Iluminismo católico. Segundo ele, o josefismo foi um “movimento de renovação” marcado “pela renovação da liturgia, pelo abandono de formas populares de devoção, pelo sentido histórico” e “pelo gosto da história eclesiástica, pela oposição ao escolasticismo,” bem como “pela austeridade moral e recusa do probabilismo, pela predileção das línguas vulgares, pela crítica do estilo barroco de pregação”, dentre outras características. A partir dessa compreensão, o autor levanta a hipótese de ter havido algo similar no contexto intelectual português do mesmo período. Esses aspectos do josefismo, segundo o autor, são vistos nos argumentos de pensadores das Luzes portuguesas, tais como Antônio Pereira de Figueiredo, frei Manuel do Cenáculo, d. 61 É importante frisar que a crítica de Ulrich L. Lehner à abordagem de Jonathan I. Israel sobre o Iluminismo católico parte de um aspecto comum nos trabalhos de ambos. Para criticar a concepção de uma Ilustração católica, que subjaz à tese central de um “Iluminismo Radical” de Jonathan I. Israel (para quem a expressão corresponderia às correntes mais moderadas), Lehner acaba indicando haver debates, do que ele chama de Iluminismo Católico, anteriores a seu recorte temporal, que se inicia no século XVIII. Israel, que ele critica – a meu ver, corretamente, nesse ponto –, indica que essas vertentes católicas já existiriam no final do século XVII, mesmo século em que Lehner identifica, por exemplo, as raízes do antijesuitismo, aspecto fundamental de sua forma de conceber os desenvolvimentos da Ilustração nos países católicos. De certa maneira, assim, a crítica de Lehner se vale do próprio alargamento das balizas temporais das Luzes, central à análise histórica de Israel. Algumas dessas questões serão retomadas mais à frente, já que o intuito aqui não e detalhá-las, e sim construir um modelo de explicação sobre Luzes e sua relação com o Catolicismo, a fim de discutir mais a fundo as Luzes portuguesas e luso-brasileiras. LEHNER, Ulrich L. What is “Catholic Enlightenment”? Op. Cit. p. 167; ISRAEL, Jonathan I. Iluminismo Radical: a filosofia e a construção da modernidade (1650-1750). Trad. Claudio Blanc. São Paulo: Editora Masdras, 2009. 50 Gaspar de Bragança, dentre outros. Tais pensadores, segundo ele, formaram uma “república das letras” em Portugal a partir de meados do século XVIII. Com grande apelo para uma ampla reforma do pensamento, objetivavam libertar Portugal de um atraso, por eles percebido em relação às nações do Além Pirineus. A esse movimento em Portugal, o autor chama de Iluminismo Católico. Assim, alguns aspectos deste movimento – regalista em política, jansenista em moral, progressista na cultura, anti-Aristóteles e antiescolástica – estão presentes em Portugal. Regalista, jansenista e progressista. Não, porém, antirreligioso, como na França. É, talvez, anticlerical. Com certeza, anti-jesuíta. Como quase todas as Ordens religiosas e uma parte dos bispos portugueses.62 Esse Iluminismo Católico, em Portugal, ainda de acordo com Cândido dos Santos, articulou um ímpeto reformista, tocante à sociedade e à religião, com a construção de um ideal religioso que se distingue tanto da irreligião, identificada por esses pensadores católicos em vertentes diversas do Iluminismo, quanto de uma religiosidade extremamente exteriorizada, identificada com o barroco e personificada na ação da Companhia de Jesus, vista como contaminada por fanatismo e superstição. De forma similar à caracterização feita do Iluminismo Católico por Ulrich L. Lehner, Cândido dos Santos aponta para um desenvolvimento particular do que aconteceu em Portugal, sobretudo a partir das reformas pombalinas. Em Portugal, um ideal de Catolicismo modernizado norteou o ímpeto reformista tocante a toda a vida pública. A isso, o autor soma a percepção de que essas reformas seriam feitas por e a partir das ideias dessa república das letras católica, à qual se somava a ambição de superar-se um presumido atraso. Cândido dos Santos ainda indica haver três grandes matrizes nesse desenvolvimento da cultura letrada no contexto das Luzes, em Portugal e nos demais reinos católicos: uma, flamenga e alemã, cujo grande centro era a Universidade de Louvain, donde saíram pensadores como Zeger Bernard Van Espen, bastante lido por Antônio Pereira de Figueiredo; outra, francesa, da qual destaca a circulação de ideias de autores como Claude Fleury entre a intelectualidade católica portuguesa; e, por fim, a italiana, da qual destaca a obra de Antônio Genovese, que influenciou fortemente a obra de Luís Antônio Verney.63 62 SANTOS, Cândido dos. Matrizes Do Iluminismo Católico da Época Pombalina. In. RIBEIRO DA SILVA, Francisco, CRUZ, Maria Antonieta. RIBEIRO, J. Martins, OSSWALD, Helena (org.). Estudos em Homenagem a Luís Antônio de Oliveira Ramos. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2004, p. 949–956, 2004. Vol. 3. p. 952. 63 Ibidem, p. 953-956. 51 A apresentação, apenas panorâmica, feita por Cândido Santos, a respeito de matrizes de um Iluminismo Católico português, e as discussões feitas por Barnett e Lehner indicam algumas possibilidades para se analisar a Ilustração portuguesa, sobretudo levando em consideração o lugar do Catolicismo em seu interior. Por um lado, deve-se evitar a generalização e a conotação pejorativa, muitas vezes presente em uma concepção específica de “Luzes católicas” e ancorada na oposição entre razão e religião, em que à segunda confere-se uma espécie de “contaminação” de um processo marcadamente secular, que seria o Iluminismo. Por sua vez, evitar o caráter pejorativo também implica (re) pensar o lugar da religião no contexto das Luzes portuguesas, sobretudo, o Catolicismo e suas diversas querelas e debates internos. A partir disso, podemos considerar, aqui, a hipótese de que, na Ilustração portuguesa e nos seus desdobramentos no espaço luso-brasileiro, a república das letras, formada por uma sociabilidade católica mais ou menos próxima à Coroa e por parte dos críticos mais radicais do status quo cristão católico no período, os chamados libertinos, tenha feito parte de um complexo e multifacetado campo de disputas de legitimidade no plano religioso, com diversas colorações políticas. 1.5 A Ilustração e as novas abordagens historiográficas Até aqui, examinei alguns problemas resultantes de modelos explicativos sobre o Iluminismo que, por serem um tanto excludentes na sua constituição, calcados em realidades específicas, trazem em si, ao mesmo tempo, pretensões generalizantes a partir da exclusão de outras realidades. De maneiras distintas, eles afetam negativamente os estudos sobre os casos das Luzes portuguesas e luso-brasileiras e, num âmbito mais geral, sobre o lugar da religião nos estudos sobre as Luzes. A suposta homogeneidade da Ilustração, concebida como uma espécie de construção artificial de intelectuais para intelectuais, recorrendo à já citada crítica de Emília Viotti da Costa, no geral, conduz a uma série de conclusões bastante estreitas sobre a geografia e cronologia das Luzes, identificadas com a França e o século XVIII respectivamente e, em alguma medida, com espaços e contextos circunscritos nas historiografias nacionais. Esses modelos tendem a circunscrever questões como a secularização, a tolerância religiosa e o próprio lugar do religioso nas Luzes – aqui, reiterando parte das críticas de Stephen J. Barnett, a despeito de toda a complexidade dos debates e disputas em torno do religioso – dentro de balizas de um “paganismo moderno”, na terminologia de Peter Gay. Nesse 52 “paganismo moderno”, vê-se um Iluminismo concebido como deísta ou ateísta e contendo um processo contínuo de secularização. Por conseguinte, o que se desvia de tais traços seria descartado ou teria alguma marca pejorativa. A possibilidade de se generalizar tal forma de explicar a religião no contexto das Luzes, em si, constitui um problema. Assim, diante das dificuldades em se estudar os diversos contextos europeus e não europeus das Luzes a partir do emprego desses modelos, tornou-se necessária a sua revisão. Uma crítica importante, que marcou fortemente a historiografia sobre a Ilustração e que impactou críticas posteriores e reelaborações de seus recortes geográfico e temporal, tornando-os mais abrangentes de forma a abarcar os diversos contextos culturais que compuseram as Luzes, foi feita pelo historiador italiano Franco Venturi, em Utopia e Reforma no Iluminismo (1971). A obra é marcada, conforme assinala Modesto Florenzano, seu tradutor para a língua portuguesa, por uma dupla abordagem do Iluminismo, envolvendo, de um lado, seu sentido cosmopolita e, de outro, sua contrapartida, o “patriotismo”. Com este último termo, entendem-se os conjuntos de elementos locais, nacionais e transnacionais, bem como as particularidades dos múltiplos contextos culturais, cada qual a seu modo, participante do mundo das Luzes.64 Destaco dois pontos centrais de sua tese, muito importantes para a consecução de um dos objetivos aqui propostos, qual seja, o de se pensar o contexto de Portugal e da América portuguesa no Iluminismo. O primeiro ponto é o argumento central de seu segundo capítulo, “Os republicanos ingleses”, segundo o qual o que desencadeou a Ilustração foi um conjunto de ideias nascidas na Inglaterra, no contexto da Revolução Inglesa. Segundo Venturi, a cosmopolitização de valores políticos da commonwealth, no conjunto da formação de uma matriz inglesa de um republicanismo da Idade Moderna, esteve na gênese da difusão de debates iluministas por toda a Europa. O que se convencionou chamar de “republicanismo inglês”, conforme explica Alberto R. G. Barros, refere-se a um conjunto bastante amplo de ideias relacionadas aos valores e princípios republicanos, defendidos por publicistas e pensadores ingleses, entre os séculos XVI e XVII. Eles, segundo o autor, manifestaram-se de forma mais clara nas primeiras décadas do século XVII, no interior dos movimentos de protesto contra a dinastia dos Stuarts e, de modo ainda mais evidente, no desenrolar das guerras civis entre 1642 e 1651. Ainda que, 64 FLORENZANO, Modesto. Apresentação. In: VENTURI, Franco. Utopia e Reforma no Iluminismo [1971]. Trad. Modesto Florenzano. Bauru, SP. EDUSC. 2003. p. 7-26. p. 17-18. 53 como projeto político, o republicanismo inglês tenha fracassado com a restauração da monarquia em 1660, Barros conclui que, como linguagem política, foi recebido na Europa continental e fora do Velho Continente, por meio de pensadores como John Toland, John Locke, John Milton e Algernon Sidney. Dessa maneira, os princípios que os republicanos ingleses defenderam, como a crítica à tirania, a defesa de formas participativas de se governar para o bem comum, a tolerância civil e o direito de resistência foram amplamente discutidos e apropriados, por exemplo, nas revoluções dos Estados Unidos e no estabelecimento da República Francesa.65 Elementos da linguagem política dos levellers, formados e radicalizados na resistência contra os Stuarts e na Guerra Civil inglesa, foram difundidos no contexto inglês, sobretudo por meio de panfletos. Nessas publicações, questões como a exaltação da liberdade e do livre pensamento, da tolerância religiosa, além de aspectos do que viria a ser o deísmo e o panteísmo ingleses, segundo Venturi, espalharam-se pela Europa entre o último quartel do século XVII e a primeira metade do XVIII. Isso se deu por meios como a francomaçonaria, os cafés, as academias de ciências, as universidades ou mesmo dos diversos contatos de publicistas ingleses e de outras partes da GrãBretanha com pensadores de França, Alemanha, Itália e de outras regiões. O autor ainda afirma que, apesar de haver vários estudos que tentam aproximar a revolução puritana de movimentos coevos, como as várias revoltas ocorridas no continente europeu em meados do século XVII, a Revolução Inglesa “não suscitou uma onda ideológica que acompanha outras e posteriores revoluções europeias”, mas “as ideias dos levellers foram certamente conhecidas”, sendo difundidas “na forma filosófica que lhe foi dada por John Toland e Anthony Collins” (no caso, quando se apresentaram como deísmo, como panteísmo, como livre pensamento, como exaltação da liberdade inglesa, até mesmo como maçonaria). Conclui Venturi que: Somente assim as ideias dos levellers e dos republicanos clássicos da Inglaterra do século XVII tornaram-se cosmopolitas e puderam se enraizar na França, na Alemanha, na Itália, agindo como um poderoso fermento sobre toda a Europa do nascente Iluminismo. “La religion” e “le gouvernement”, como dizia Diderot. Os dois termos eram para ele inseparáveis. A polêmica filosófica e política não podiam nem deviam ser divididas. Entre um e outro desses dois polos estava também o pensamento deísta inglês, a primeira ideologia que da Grã-Bretanha saiu para dominar o continente.66 65 BARROS, Alberto R. G. A matriz inglesa. In: Matrizes do republicanismo. BIGNOTO, Newton (org.). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013. p. 127-174. 66 VENTURI, Franco. Utopia e Reforma no Iluminismo [1971]. Trad. Modesto Florenzano. Bauru, SP. EDUSC, 2003. p. 104-105. 54 Venturi demonstra essa tese analisando os vários diálogos de autores ingleses, como os mencionados Collins e Toland, em diversos lugares da Europa, onde, de acordo com sua análise, formaram-se diversos núcleos de irradiação de debates críticos à religião e à política, mais ou menos tributários das linguagens presentes na defesa dos mencionados valores difundidos no discurso político do processo da Revolução inglesa. A exaltação da liberdade de pensamento, da tolerância religiosa e do equilíbrio entre poderes como forma de garantir a liberdade e combater as tiranias – tema que norteou grande parte dos debates sobre a constituição inglesa e sua monarquia constitucional ao longo de todo o século XVIII – foram, assim, difundidos e sedimentados nos vários contextos do pensamento europeu do Setecentos.67 Apesar de alguns problemas nessa concepção, que retomo mais à frente, trata-se de uma ideia distinta do modelo tradicional da Inglaterra como precursora das Luzes por meio das ideias de John Locke, uma vez que, no centro dessa análise de Venturi, estão valores político-religiosos formados entre os levellers e difundidos na sua forma filosófica a partir de diversos lugares e sociabilidades, não apenas na influência de autores sobre outros. Trata-se de uma leitura sobre o contexto das Luzes que as toma como mais multifacetadas e diversas em relação às sínteses discutidas no primeiro subtítulo deste capítulo. Bernard Bailyn, em obra clássica que, apesar de não abordar propriamente a origem do Iluminismo, é importante à discussão aqui proposta no que defende haver uma ligação entre a mesma literatura panfletária supracitada e ações políticas que desencadearam os processos que culminaram na Independência dos Estados Unidos, em 1776. Essa conexão, conforme o autor, se encontra na linguagem política que surgiu com os levellers, remetendo, novamente, a panfletos da Revolução Inglesa. Ela formouse ao longo de uma “guerra literária” contra as diversas formas de opressão atribuídas, sobretudo, à dinastia dos Stuart (1603-1714), e que isso perpassou tanto as camadas letradas da população, como as médias. Com isso, se influenciou, de alguma maneira, o curso das decisões políticas tomadas e formou-se um ideário que foi relido e revisitado pelos revolucionários estadunidenses entre as décadas de 1760 e 1770. Ainda que de maneira indireta, o autor constrói uma perspectiva de Iluminismo em que linguagens políticas se constituíram na articulação entre as ideias dos philosophes, como Montesquieu e Voltaire, com tradições anteriores. Nesse processo, memória, valores 67 C.f. Ibidem, p. 99-138. 55 políticos, religiosos e culturais, enraizados nas várias camadas da sociedade, e uma herança do vocabulário republicano da Revolução inglesa conjugaram-se.68 Um segundo ponto a se destacar é a relação que Franco Venturi observou e analisou entre as conjunturas econômicas, mais ou menos gerais na Europa, e as Reformas políticas e sociais no Setecentos. Aqui, Venturi partiu da análise de CamilleErnest Labrousse sobre a economia francesa do século XVIII, em obra publicada no início da década de 1930. Nela, Labrousse faz uma análise serial de dados sobre preços de alimentos e manufaturas, rendimentos (incluindo o aumento inflacionário das rendas de terras), além de análises quantitativas sobre atrasos salariais ao longo do século e uma outra, mais qualitativa, sobre conflitos de classe no período pré-revolucionário. A partir daí, traça um panorama geral sobre a economia francesa no século XVIII, concluindo que houve um quadro de crescimento no primeiro quartel do século, sucedido por uma depressão após a década de 1730, havendo depois uma retomada na década de 1740, seguida de uma expansão que durou até, aproximadamente, a década de 1770. Segundo o autor, depois dessa última expansão, seguiu-se um período de altas e baixas até a Revolução de 1789.69 Com sua análise sobre as variações de preço, rendas e de outros elementos que atestam crescimento ou depressões econômicas no século XVIII, Labrousse chega às “curvas da economia” francesa. Venturi, por sua vez, propõe-se a discutir se tais considerações do referido historiador francês aplicam-se ao restante do continente europeu e, em caso afirmativo, em que medida o são. Venturi considera que, ao menos em linhas gerais, o quadro francês pode ser aplicado ao restante da Europa, com alguns limites. No período das Luzes, a percepção da realidade econômica serve como um elemento comum entre os diversos contextos locais e relaciona-se com as diversas ideias que surgiram no período, no sentido de se reformar as sociedades, instituições e Estados. A partir daí, Venturi apresenta diversos autores do período cujas produções visaram principalmente à resolução de problemas da vida pública, tais como os que se relacionavam ao quadro econômico, não somente da França, mas também da Península Ibérica, Itália, Europa Central, dentre outros espaços. Assim, por mais que as obras divirjam muito entre si, ao discutirem problemas concretos das realidades específicas dos diversos países onde foram produzidas, há algo em comum que as liga, que as 68 C.F. BAILYN, Bernard. As origens ideológicas da Revolução Americana [1967]. Trad. Cleide Rapucci. Bauru: EDUSC, 2003. Edição ampliada. p. 23-68. 69 LABROUSSE, Camille-Ernest. Esquisse du mouvement des prix et des revenus en France au XVIIIe siècle. 2 vols. Paris: Dalloz, 1932. 56 entrelaça com uma situação geral, que é o quadro econômico europeu.70 É nesse contexto que surgiu a Encyclopédie, entre o final da década de 1740 e a de 1750 – e ela tem uma importância central na concepção de Venturi sobre o Iluminismo. Isso porque, conforme explica o autor, o ambiente intelectual formado em torno dela e a sua circulação na Europa serviram para espalhar ideias iluministas em todo o continente, com um sucesso bem maior do que o dos panfletos ou polêmicas sobre a religião ou política. Isso se deve ao fato de que a divulgação das artes e das ciências feita pela Encyclopédie auxiliou na difusão de uma linguagem comum para se pensar os problemas concretos a partir de noções secularizadas de felicidade, utilidade, bem comum, dentre outras, apropriadas e pensadas nos diversos contextos europeus, em uma República das Letras cosmopolita e transnacional que ali se formava e se consolidava. Criaram-se, assim, as condições para o que ele chamou de uma “Primavera das Luzes”, contexto em que os filósofos formaram uma espécie de “partido” autônomo, cujo ideal era o de assumir a dianteira nas mudanças sociais. O “despotismo esclarecido”, as academias de ciências espalhadas pela Europa e nas colônias das Américas, bem como as lojas maçônicas e universidades foram, segundo Venturi, espaços da formação de uma opinião pública ilustrada, que abalou as estruturas do Antigo Regime entre o início da segunda metade do século XVIII e a Revolução de 1789. Paradoxalmente, dessa “Primavera das Luzes”, estava excluída a Inglaterra, berço dos valores que, pela sua concepção, estavam no cerne do nascimento e da difusão do Iluminismo. O motivo disso é que, embora o Venturi ressalte a importância de alguns autores como Samuel Richardson e Thomas Paine, não se formou em terras inglesas um “partido dos filósofos”, entendido aqui como pensadores (filósofos ou não) engajados em ações e mudanças concretas na sociedade, a exemplo do que se formou na França ou em Portugal, Espanha, Rússia e Áustria, com o “despotismo ilustrado”. Digo paradoxalmente por se considerar que, segundo a tese de Venturi, o “não engajamento” dos pensadores ingleses nesse período se deveu ao fato de a Revolução Inglesa já ter acontecido no final do século XVII. No caso inglês, a monarquia constitucional estabelecida com a Revolução, conclui o autor, revestiu de maneira bastante diversa a natureza das disputas sobre valores como liberdade, igualdade e tolerância, em comparação com as linhas gerais observáveis na Europa continental.71 70 71 VENTURI, Franco. Utopia e Reforma no Iluminismo. Op. Cit. p. 221-222. Ibidem, p. 226-246. 57 Destaco esses dois pontos da tese de Franco Venturi por notar neles, primeiramente, uma abordagem, por um lado, dupla, do geral e do particular e, por outro, que não coloca as diferentes realidades em nenhuma escala hierárquica. As Luzes, dessa maneira, são concebidas como um movimento de se pensar problemas, gerais e locais, com linguagens cosmopolitas que as articulam. Assim, o Iluminismo não está restrito às narrativas das historiografias nacionais, e os debates iluministas, observados na sua dimensão prática e utilitária, articulam-se com preocupações mais universalizantes, que não se excluem mutuamente, mas se completam. Embora seja uma abordagem, ainda, bastante centralizada na figura dos filósofos, Venturi apresenta uma leitura extremamente sofisticada sobre a diversidade interna do Iluminismo e, até mesmo, uma fluidez em relação às balizas cronológicas e geográficas tradicionais. Apesar de a gênese da Ilustração, da forma como a analisa, estar na linguagem política dos levellers, sua concepção não está ancorada na ideia de haver um centro de irradiação de um ideário específico: pelo contrário, ainda que identificasse um lugar e um contexto em que valores fundamentais dos debates iluministas tomaram forma, a maneira como eles se difundiram num primeiro momento e, num segundo, foram apropriados e reformulados, dando forma a debates e projetos políticos, sociais e religiosos, é diversa e multifocalizada. Enciclopedistas, libertinos, déspotas esclarecidos, iluministas católicos ou protestantes, maçons e muitos outros agentes, dessa maneira, fazem parte de um contexto em que as disputas, de natureza universalista e cosmopolita, sobre valores, tais como a liberdade e a tolerância, articulam-se com questões que remetem a realidades particulares e mais estritas. É importante ressaltar que as críticas de Franco Venturi foram marcantes para a historiografia do Iluminismo. Mas, posteriormente, outras gerações de trabalhos contribuíram para críticas aos modelos explicativos tradicionais sobre o contexto das Luzes, sobretudo a respeito de suas balizas temporais e cronológicas. A partir da década de 1970, nesse sentido, houve uma importante revisão historiográfica sobre o contexto das Luzes, advinda sobretudo das historiografias estadunidense e britânica. Dentre as diversas publicações, destaca-se a obra de Dorinda Outram. Segundo a autora, foi justamente a partir da mencionada década que historiadores se dedicaram mais fortemente ao estudo social das ideias, procurando descobrir a maneira como elas e os conhecimentos surgidos no contexto da Ilustração foram difundidos, acolhidos, ressignificados e apropriados na sociedade, tendo em vista seu impacto nas várias regiões do globo, assim como nas várias camadas sociais. Em um de seus trabalhos 58 mais conhecidos, a historiadora sustenta que as discussões em torno do significado do termo Iluminismo, iniciadas no século XVIII nas obras de Mendelssohn e Kant, permanecem até hoje sem esmorecimento. Nesses autores contemporâneos ao contexto das Luzes, diferentemente do que aconteceu em algumas sínteses do século XX, o significado do termo associou-se mais fortemente à ideia de “processo” do que à de “projeto acabado”. Assim, ao invés de pensar o Iluminismo como finalizado – ideia dificilmente sustentável, vista a enormidade de contradições e de incongruências existentes entre todos os agentes envolvidos nesse contexto intelectual –, a autora propõe-se a pensá-lo como uma “série de problemas e debates, revestido sob formas e aspectos particulares, conforme os diferentes contextos nacional e cultural”. Isso tornaria a imagem do contexto das Luzes mais complexa, “pois suas ideias não seriam mais mapeadas de cima, por um olhar distante, mas consideradas como encravadas nas sociedades, emolduradas por elas”. Assim, o Iluminismo não seria apenas um conceito que fracassou na tentativa de englobar várias realidades complexas e contraditórias entre si, mas “como uma cápsula contendo conjuntos de debates, tensões e preocupações”.72 Robert Darnton também apontou uma multiplicidade de núcleos de difusão do Iluminismo. Segundo o autor, foi em Paris, a partir de salões, academias e teatros, que o philosophe se definiu como “tipo social”, ganhando um público amplo dentro de classes médias letradas. Seus debates, críticos ao poder e à religião, foram marcados não pela coesão de ideias, mas pelo engagement, ou seja, um ímpeto de “colocar suas ideias em uso, persuadir, propagar e transformar o mundo ao redor”, e que formou seu ethos na Paris da primeira metade do século XVIII. O philosophe, além disso, está na origem do que a contemporaneidade chama de “intelectual”. Daí o autor indaga: Mas e o caráter cosmopolita do Iluminismo? E os grandes pensadores de fora de Paris e mesmo das fronteiras da França? Embora eu considere Paris a capital da República das Letras no século XVIII, concordo que o Iluminismo se difundiu a partir de muitos pontos: Edimburgo, Nápoles, Halle, Amsterdã, Genebra, Berlim, Milão, Lisboa, Londres e até mesmo Filadélfia. Cada cidade tinha seus filósofos, muitos dos quais [se] correspondiam com os philosophes, e alguns deles até os superaram.73 Alinhado com a mencionada historiografia anglo-saxã sobre as Luzes, Darnton contribui para se analisar tal contexto para além das historiografias nacionais, 72 OUTRAM, Dorinda. The Enlightenment. Op. Cit., p. 1-13. DARNTON, Robert. Os dentes falsos de George Washington. Um guia não convencional para o século XVIII. Trad. José Geraldo Couto. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 21, 73 59 dialogando com as discussões já mencionadas de Dorinda Outram e Franco Venturi, que privilegiam uma visão ampliada a respeito da cultura letrada da Ilustração. Além disso, sobre a difusão de ideias do Iluminismo, Darnton defende que ela não se deu de forma vertical, dos philosophes para o vulgo, mas também foi acompanhada pela difusão de boemias literárias no século XVIII. Demonstra, assim, que houve no referido período uma diversidade de mecanismos de engajamento por meio das ideias, apresentadas e debatidas nos espaços públicos nos mais variados estratos sociais, e também sob diversos suportes de circulação.74 Outro questionamento para se pensar a Ilustração além dos limites impostos pelas chamadas “histórias nacionais” encontra-se no trabalho de Jonathan Israel. Já no prefácio de seu livro, sobre as vertentes mais radicais do mencionado contexto, ele chama a atenção para o fato de que “nos últimos anos (...) tornou-se comum afirmar que não há apenas um Iluminismo”, mas “toda uma constelação de ‘famílias de iluministas’ relacionados”, que se agrupam em contextos nacionais. O que o autor argumenta é que há uma maneira alternativa de se abordar as Luzes, superando os estudos que apreendem um “fenômeno tão internacional e pan-europeu” circunscrevendo-o no contexto de uma história nacional.75 Segundo Flávio Rey de Carvalho, que analisou o Iluminismo português à luz dos modelos teóricos e metodológicos da referida historiografia anglófona sobre o tema: Essa guinada historiográfica desequilibrou, gradualmente, a coerência interna da síntese Iluminista, até então bastante aceita entre os historiadores, de modo que a balança da consciência histórica começou a pender em favor da sua reavaliação. Assim, as pesquisas acerca do Iluminismo, até então focadas na imagem homogênea, harmônica, coesa e unilateral das Luzes, passaram a considerar a pluralidade de nuances com as quais o ideário iluminista se manifestou nos diferentes contextos cultural e geográfico.76 Existem, claro, outras críticas aos modelos tradicionais de análise sobre o Iluminismo. Como foi anteriormente apresentado, Stephen J. Barnett, a partir de marcos teóricos da história das ideias, tributários da Escola de Cambridge, critica modelos que centralizam demais suas análises no desenvolvimento e nas influências das ideias dos philosophes. Ele defende que as ideias dos últimos devem ser contextualizadas, 74 ____________. Boemia literária e revolução. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Companhia das Letras, 1987; ___________. Poesia e polícia: redes de comunicação na Paris do século XVIII. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. 75 ISRAEL, Jonathan. Iluminismo Radical. Op. Cit. p. 7-8. 76 CARVALHO, Flávio Rey de. Revisitando o Iluminismo: contribuições para o estudo do caso português. Revista Tempo de Conquista, v. 5, p. 1-14, 2009. p. 6. 60 levando-se em conta diferentes elementos, tais como a inserção de tais pensadores nas querelas religiosas, seus pertencimentos de classe e estamento e, ainda, suas experiências e memórias concretas. Roger Chartier, por sua vez, de alguma maneira liga as origens do Iluminismo a um processo de dessacralização cujas raízes remetem ao final do século XVII e se desenvolvem ao longo do XVIII. Para o autor francês, a dessacralização do mundo que marca o final do Antigo Regime – e que, de alguma maneira, faz parte daquilo que tradicionalmente se denomina “crise do pensamento europeu”, que não pode jamais ser confundida com uma descristianização – foi um processo em que se consolidou uma relação menos reverente do público com as autoridades, fossem religiosas, políticas ou intelectuais. Essas relações do público, mesmo que, por vezes em conformidade com ideias conservadoras, implicaram a ampliação e a difusão de uma nova atitude perante o mundo e as instituições, que acabou por tornar possível uma série de ações mais críticas e livres de laços de obediência. A produção dos philosophes e a circulação de suas ideias por meio dos livros é, nessa concepção, menos central para o processo do Iluminismo do que o surgimento de novas concepções de mundo.77 Em vias de conclusão, voltando os olhos para Portugal e considerando a revisão historiográfica e teórico-metodológica feita até aqui, ressalto que obras de pensadores como Luís Antônio Verney, Antônio Nunes Ribeiro Sanches ou Francisco de Melo Franco podem ser melhor entendidas à luz de uma historiografia que pense a cultura das Luzes a partir de perspectivas mais multifacetadas. Isso por permitir entendê-las como plenamente em diálogo com todo um campo de debates do contexto do Iluminismo. Soma-se a isso todo um campo de análises que se abre ao se adotar uma concepção sobre as Luzes que permita cotejar argumentos e trajetórias desses autores com elementos mais variados que as ideias centrais dos philosophes. Essa maneira de pensar o contexto abre, sobretudo, um caminho fundamental a uma análise e contextualização adequadas da Ilustração no mundo luso-brasileiro, pois articula perspectivas mais gerais do contexto com outras que realçam suas particularidades. Assim, a procura por uma forma de encadear a discussão crítica das grandes sínteses, somada à releitura sobre pontos como o ecletismo e as balizas católicas das Luzes luso-brasileiras, complementando-se, lança possibilidades importantes de interpretação das fontes do período. Essa busca é essencial para que se faça uma contextualização mais robusta, 77 CHARTIER, Roger. As origens culturais da Revolução Francesa. Trad. George Schlesinger. São Paulo: Editora Unesp, 2009. p. 143-148. 61 capaz de oferecer chaves mais adequadas que as dadas pelos modelos de explicação tradicionais sobre as Luzes, no que toca às condições e aos lugares de enunciação e de interlocução de ideias desses autores e outros contemporâneos. Por isso, nesta tese, fiz uma opção por modelos que não centralizam o Iluminismo nas discussões dos filósofos e em suas influências sobre outros contemporâneos ou sucessores. Além disso, opto por englobar concepções multinucleadas a respeito do surgimento e difusão das Luzes, questionando suas balizas geográficas e cronológicas tradicionais. Todo esse esforço se justifica pelo objetivo de pensar a relação entre a defesa da tolerância religiosa e um “ímpeto secularizador” no interior de um Iluminismo português e luso-brasileiro, a partir de meados do século XVIII. No caso, cumpre pensar sobre tais temas sem incorrer em problemas oriundos de uma compreensão das fontes calcada em “mitos de secularização”, em prescrições ou teleologias, que fazem tábua rasa da complexidade das sociabilidades e interlocuções dos diversos agentes dessas Luzes católicas, mas não somente elas, mas da própria complexidade das interações entre elementos secularizados e/ou irreligiosos com os intrinsecamente religiosos nos debates iluministas. Não se deve deixar de ressaltar, no entanto, que o próprio Iluminismo português e luso-brasileiro teve diversidades internas. Elas serão analisadas nesta tese, que tem como uma de suas hipóteses que muitas das discussões sobre a religião e seu lugar na vida social e nas instituições– que marcaram as obras de pensadores luso-brasileiros, como alguns já mencionados neste capítulo – fizeram parte de um conjunto complexo de disputas por uma hegemonia no campo religioso, construída discursivamente e, em parte, aplicadas nos reformismo pombalino e pós-pombalino. Entretanto, também houve espaços para vertentes mais radicais, em que a defesa de uma tolerância religiosa mais ampla, forte anticlericalismo e críticas mais contundentes à Igreja e à monarquia fizeram-se ouvir. Dito isso, a própria tolerância religiosa como tema histórico precisa ser discutida, dialogando com alguns pontos até aqui analisados sobre formas de abordar e conceber o Iluminismo e sua relação com o religioso. Advirto que esta discussão será retomada ao longo de toda a tese. 1.6 A Tolerância religiosa, do Renascimento ao Iluminismo católico Até aqui, o objetivo foi o problematizar os marcos teóricos e a historiografia a respeito do Iluminismo, de maneira a tornar possível discuti-los para além de duas 62 limitações bastante comuns: a primeira, ligada à sua geografia e a segunda, relativa ao lugar da religião no pensamento das Luzes, o que toca diretamente no tema central desta tese, a tolerância religiosa. Quanto à primeira limitação, convém insistir na importância de se conceber uma Ilustração para além de uma centralidade na França ou mesmo de uma Europa Além-Pirenaica. Esse alargamento geográfico possibilitará analisar as particularidades dos desenvolvimentos das Luzes nos contextos da Europa católica e, consequentemente, em Portugal e no espaço luso-brasileiro. Já quanto à segunda limitação, não menos importante, relativa à questão religiosa, é essencial admitir que, no contexto luso-brasileiro, houve contornos específicos e tributários de uma hegemonia cristã-católica. Assim como pode-se falar que houve um Iluminismo católico com uma vertente tipicamente ibérica, a importante tópica da tolerância religiosa também teve desenvolvimentos particulares no dito contexto. Um caminho fundamental para se discutir tal tópica passa, necessariamente, por repensar o próprio espaço do religioso no contexto das Luzes, superando-se a leitura de uma Ilustração ideal como intrinsecamente secularista e laica, o que não corresponde a uma realidade histórica demonstrável nas fontes. Como tem sido amplamente confirmado pela historiografia – e já foi discutido nesta tese –, a religião esteve presente nos debates iluministas. Concepções irreligiosas ou que defendiam, em diferentes medidas, uma superação do religioso, foram partes de um campo de discussão mais amplo e diverso, que incluiu desde tendências mais conservadoras (refratárias à tolerância a grupos religiosos minoritários, por exemplo), até correntes que pretendiam reformar e “modernizar” as religiões instituídas, disputando, no campo das ideias e também no político, as formulações e as práticas a respeito da tolerância. O fato é que as disputas sobre esse tema ultrapassaram – e muito – as sociabilidades dos filósofos, e mesmo estes tiveram suas ideias formuladas dentro de realidades muito diversas, não circunscritas somente a espaços como universidades e academias, que merecem a devida contextualização antes deste trabalho prosseguir. O tema da tolerância religiosa, é preciso esclarecer aqui, apesar de adquirir formulações um tanto originais nas Luzes, como uma relativamente vasta historiografia demonstra, é tributário de debates que as extrapolam no tempo e espaço. Certamente, também, não depende unicamente de formulações teológico-filosóficas de contextos letrados, muito pelo contrário. E, no caso dos seus desenvolvimentos na Europa católica e nas colônias desses países, torna-se imprescindível pensar nas especificidades dentro das quais foram delimitados. Assim como muitos outros temas e tópicos, a tolerância 63 religiosa também foi pensada de muitas formas e disputada por muitos agentes, de modos e com interesses diversos, estabelecendo correntes e tendências mais ou menos claras. Para se chegar a essas mencionadas tendências, que se referem a algumas linhas gerais dos debates sobre a tolerância religiosa no contexto luso-brasileiro, é importante trazer aqui uma breve problematização sobre esse tema como objeto de análise histórica. Antes, cumpre trazer à discussão dois pressupostos fundamentais desta tese. O primeiro foi corretamente posto pela historiadora portuguesa Isabel Maria Ribeiro Mendes Drumond Braga: a de que não podemos transpor para o passado os conceitos da atualidade, tal qual o ideal liberal democrático de tolerância. “Tolerância, respeito pela diferença e tantas outras práticas desejáveis no presente não constituíam preocupações fundamentais no passado, nem entre católicos nem entre protestantes”, ao menos não nos termos contemporâneos, segundo a pesquisadora. Para ela: A tolerância na Época Moderna, ou melhor o seu gérmen, será visível por exemplo, nos acordos entre países católicos e países protestantes, no quadro das negociações diplomáticas, assegurando aos estrangeiros oriundos de espaços reformados, a liberdade de consciência e o exercício da religião dentro das casas e das embarcações. O mesmo era concedido aos católicos nos países protestantes. No caso português, esses acordos foram estabelecidos no período pós 1640, no âmbito do reconhecimento da Restauração.78 Dois problemas na afirmativa acima podem ser tomados como pontos de partida para uma análise da tolerância religiosa como objeto historiográfico. Além do pressuposto mencionado – segundo o qual procurar-se pela tolerância religiosa no sentido contemporâneo na Idade Moderna seria procurar pelo inexistente –, pode-se entender que traçar uma “genealogia” dessa mesma tolerância, partindo da modernidade até se constituir aquilo que entendemos que ela é hoje em dia, seria um caminho metodologicamente inadequado, tendente ao anacronismo. Por isso, é importante frisar, como segundo pressuposto, que a tolerância religiosa – e também outras formas de tolerância no trato com diferenças –, não tem uma espécie de desenvolvimento linear, que seria parte de um processo civilizatório no qual se progride permanentemente rumo a sociedades mais tolerantes, concepção que a experiência prática e a própria história 78 MATTOS, Yllan de. A Inquisição na Época Moderna e as problemáticas em torno da intolerância religiosa – Entrevista com a Profa. Dra. Isabel Maria Ribeiro Mendes Drumond Braga (Universidade de Lisboa). Revista Temporalidades. Edição 22, V. 8, N. 3, p. 523-528 (set./dez.2016). p.527-528. 64 não confirmam.79 Em grande medida, trata-se de uma armadilha na qual o historiador sobre este tema pode cair, sobretudo partindo de concepções como as que foram discutidas e criticadas nesta tese até aqui, concepções estas que tendem a reforçar a linearidade criticada e reproduzir problemas dela oriundos. Por exemplo, ao se partir de uma concepção de Luzes como opostas à religião e ao religioso, a classificação de tom pejorativo de “Luzes católicas”, ou “de compromisso” com estruturas católicas, pensadas para o caso português, convida o historiador ao entendimento de que a tolerância religiosa, no referido contexto, foi uma questão, se não inexistente, completamente marginal. Mais do que isso, teria por desdobramento uma fadada não realização futura de uma tolerância liberal, tida como fundamento cultural indispensável às democracias contemporâneas.80 A tolerância e seu oposto inseparável, a intolerância, devem ser entendidas em seu devido tempo e contexto, afastando-se do anacronismo de se projetar nas realidades da Idade Moderna e do contexto das Luzes esses temas sob as roupagens da atualidade. Mais que isso, deve-se abrir possibilidades teóricas para se pensar que o trato com o outro, o diferente em matéria religiosa, é diverso e polissêmico, e que sua formulação, aceitação, difusão e desenvolvimentos, nas ações na vida coletiva, foram e ainda são objetos de disputa permanente. A tolerância religiosa, num sentido mais lato, denotando a forma de se resolverem (ou, na medida do possível, se administrarem) as diferenças entre indivíduos e grupos distintos de confissões diferentes, sob a mesma autoridade e território, como mostra a historiografia, aparece nos tratados teológicos, políticos, morais e filosóficos desde muito antes daquilo que convencionamos chamar de “Modernidade”. Fernando Catroga, por exemplo, observa, numa análise etimológica do termo “tolerância”, que há uma ambiguidade que lhe é inerente e que perpassa as formulações críticas sobre a tolerância na história do pensamento ocidental de longuíssima permanência. Nela, juntamente com um sentido passivo de “tolerar” como “suportar” ou “carregar consigo” 79 É importante destacar, por exemplo, os diversos pensadores que, em algum momento, atribuíram episódios e contextos de intolerância da contemporaneidade, ao longo do século XX, às ideias do Iluminismo. Trata-se de uma gama diversa de autores, que envolve desde o papa João Paulo II, passando pelo poeta T.S. Elliot, além dos famosos ensaios de Adorno e Horkheimer e a Mimesis, de Auerbach. O pensador búlgaro Tzetan Todorov, em uma brilhante síntese sobre as Luzes, dedicou um capítulo a respeito dessas rejeições ao ideário iluminista. TODOROV, Tzvetan. O Espírito das Luzes. Trad. Mônica Cristina Corrêa. São Paulo: Ed. Barcarrolla, 2008. p. 31-46. 80 A tolerância religiosa como base da diversidade cultural, defendida como elemento fundamental das democracias liberais, ao menos no plano ideal e com origem na Ilustração, é um tema discutido por Habermas, ainda que não com o anacronismo criticado aqui. HABERMAS, Jürgen. A tolerância religiosa como precursora de direitos culturais. In: ________________. Entre o naturalismo e religião: estudos filosóficos. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007. p. 279-300. 65 algo indesejável, existe sentido ativo de admitir algum tipo de diferença em nome de algo maior, como a paz civil, que aparece nos múltiplos e diversos debates e disputas em torno da tolerância religiosa e que, posteriormente, estará no cerne das formulações filosófico-teológicas que separam paz pública e o bem governar do governo das almas e da salvação, assim como sobre a separação entre a religião da ética. 81 Nesse ponto, Catroga se aproxima de concepções teóricas sobre a tolerância que apontam para sua polissemia como conceito, que sobrevive na Modernidade. É, por exemplo, a formulação de Jürgen Habermas a respeito do tema. Analisando o significado de tolerância no século XVI, em diversos dicionários ocidentais, Habermas observa que o termo tolerância toma de empréstimo do latim e do francês, após as Reformas, um significado “inicialmente (...) mais restrito de uma transigência com outras confissões religiosas”. Porém, no “decorrer dos séculos XVI e XVII, a tolerância religiosa passa a ser um conceito de direito”, uma vez que “Governos redigem documentos de tolerância que impõem aos funcionários e a uma população ortodoxa um comportamento tolerante no trato com minorias religiosas”.82 Assim, nas línguas ocidentais, é verificável a distinção entre “tolerância”, como “virtude moral, disposição de comportamento” etc., e “tolerância”, como ato jurídico de tolerar o que é considerado, em princípio, ruim. No Vocabulário Português e Latino, Rafael Bluteau, 1728, no verbete “Tolerância”, ela é definida como: Comumente o mesmo que paciência. Segundo os Jurisconsultos é a permissão de coisas não lícitas, sem castigo a quem as comete, porém, sem concessão, nem dispensação a elas. & assim que em muitas partes são toleradas as mulheres Damas (prostitutas), ainda que seja ilícita a Arte meretrícia. Também às vezes Tolerância é uma certa conveniência, ou dissimulação de coisas não permitidas (itálico do texto original).83 No Diccionario italiano, e portuguez, extrahido dos melhores lexicógrafos.., de Joaquim José da Costa e Sá, publicado em 1773, mantém-se o significado de tolerância 81 CATROGA, Fernando. Entre deuses e césares: secularização, laicidade e religião civil. Coimbra: Almendina, 2010. 2ª ed. p. 66. 82 HABERMAS, Jürgen. A tolerância religiosa como precursora de direitos culturais. Op. Cit. p. 279. 83 BLUTEAU, Rafael. [1638-1734]. Vocabulario Portuguez & Latino, Aulico, Anatomico, Architectonico, Bellico, Botanico, Brasilico, Comico, Critico, Chimico, Dogmatico, etc. autorizado com exemplos dos melhores escriptores portuguezes e latinos, e oferecido a el-rey de Portugal D. João V. Coimbra: Colégio da Artes da Cia de Jesus, 1712-1728. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712. A ordem em que foram publicadas as diversas partes da obra é a seguinte: os tomos I (letra A) e II (letras B e C) foram publicados em 1712, os tomo III (letras (letras D e E), IV (F e G) e V (H e J) em 1713, o tomo VI (letras K, L, M e ), em 1716, o tomo VII (letras O e P), em 1720, o tomo VIII (letras K, R e S), em 1720, o tomo IX (letras T, U, V, X e Z. Todos os volumes disponíveis em: < http://www.brasiliana.usp.br/> Acessado em set./ 2017. p. 189. 66 como sendo “paciência, sofrimento, pelo qual se sofre, e se dissimula alguma coisa; ação de tolerar” e o significado de “tolerar” como sendo “sofrer, levar com paciência, suportar, padecer, dissimular, disfarçar”. Ao mesmo tempo, inclui-se o significado de “tolerantismo” como “seita, doutrina dos tolerantes,”84significado análogo ao utilizado na documentação censória e inquisitorial (o que será analisado a partir do Capítulo 3). Significado similar observa-se em o Espírito das Leis (1748), no qual Montesquieu afirma que, assim que se permite que exista mais de uma religião em um mesmo contexto, o Estado deve criar leis para que elas “aturem” umas às outras, mantendo a paz pública; o filósofo afirma, categoricamente, que, ao pensarem sobre a tolerância religiosa, as autoridades devem partir do princípio de que “somos aqui políticos, não teólogos, e mesmo para teólogos há uma diferença entre tolerar uma religião e a aprovar”.85 Ou seja, a questão da verdade, em matéria religiosa, fica colocada não como assunto de interesse do Estado, que deveria lidar com a paz pública como objetivo. Se é possível observar alguma similaridade entre os significados de tolerância, na obra do ilustrado francês e nos dicionários portugueses, certamente ela será a percepção de que tolerar, no entendimento em debate na cultura letrada das Luzes, passa longe de uma diluição de diferenças ou aceitação absoluta, como verdadeiras, de diferentes concepções sobre o cristianismo. Assim, analisando, sobretudo, textos de pensadores do século XVIII, Habermas conclui que o conceito de tolerância, formado nesse século, assenta-se em três bases específicas: recusa, aceitação e repulsão. Para ele, as normas de tolerância surgem diante da recusa mútua de convicções e práticas, na base de motivos subjetivos, ainda que não haja expectativa racional para resolver o dissenso original. A partir dessa base, só se pode pensar a tolerância em um contexto em que indivíduos ou grupos tenham princípios que, racionalmente expostos e aceitos no espaço coletivo, possuam alguma rejeição prévia e racionalizada, e. g., um católico acreditar que a doutrina protestante é falsa e vice-versa, expondo argumentos teológicos aceitos dentro de uma sociedade politicamente organizada como legítimos. O princípio da aceitação, por outro lado, 84 SÁ, Joaquim José da Costa e. Diccionario italiano, e portuguez, extrahido dos melhores lexicógrafos, como de Antonini, de Veneroni, de Facciolati, de Franciosini, do diccionario da Crusca, e do da Universidade de Turim, e dividido em duas partes: Na primeira parte se comprehendem as palavras, as frases mais elegantes, e difficeis, os modos de fallar, os proverbios, e os termos facultativos de todas as Artes e Sciencias: Na segunda parte se contém os nomes proprios dos homens illustres, das principais cidades, villas, castellos, montes, rios &c... / Joaquim José da Costa e Sá Lisbonense. - Lisboa: na Regia Officina Typografica, 1773. - 2 vol. p. 682. 85 MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat [1748]. Do Espírito das leis. Tradução, introdução e notas: Edson Bini. Bauru, SP: EDIPRO, 2004. Série Clássicos, p. 482-483. 67 indica que, para haver tolerância, pressupõe-se que, uma vez existente a recusa, torna-se necessário haver algum princípio “neutro”, aceito pelos grupos que se recusam mutuamente, de maneira a possibilitar sua convivência, de forma pluralista e pacífica. Por exemplo, num caso hipotético em que um grupo católico rejeita a crença protestante e vice-versa, é necessário existir um argumento aceito, ainda que não absolutamente, por ambos, para que, na mesma sociedade, os dois grupos entendam que existem espaços e regras em que cada um pode professar sua confissão e que há um benefício mútuo nesse acordo. Por fim, o princípio da repulsão, significa como o Estado, formado no contexto de uma sociedade pluralista, administra as múltiplas repulsões de identidades e campos definidos dos diversos grupos sociais na esfera pública – i. e. como ele, o Estado, se sai no “teste” sobre sua “neutralidade”, tanto política, mas, sobretudo, confessional, em relação às confissões que se rejeitam e aceitam regras mínimas de convivência. Isso aconteceria, por exemplo, diante de uma situação em que o Estado teria de lidar com manifestações protestantes, num contexto de maioria católica, e vice-versa.86 É importante ter em conta que tais considerações de Habermas partem de pressupostos formulados em estudos referentes a realidades da Europa a partir do século XVI. Trata-se do grande conjunto de investigações sobre os chamados processos de confessionalização, coevos ao estabelecimento das monarquias absolutistas e às Reformas protestante e católica do início da Idade Moderna. Tais processos, segundo quase um consenso na historiografia, ocorreram de maneira mais aguda nas monarquias protestantes, mas também se fizeram ver de maneira muito substancial nas católicas. Os processos de confessionalização corresponderam a uma “territorialização das Igrejas”, pela qual houve tentativas incisivas de se buscar fortes distinções dogmáticas entre uma Igreja ou denominação e outra. Eles aconteceram, em grande parte, como resposta às rupturas no interior da cristandade europeia depois das Reformas. Os processos de confessionalização tiveram, internamente, um caráter universalizador, mas também identitário e particularista, que se complementaram: foi universalizador porque partia da premissa do orbis cristianum, isto é, de um universo cristão que abrangeria toda a pretensa universalidade da Revelação para toda a humanidade, que deveria aceita-la por verdade; era particularista, pois, com a cisão da cristandade, o “outro” em matéria religiosa fora transportado de fora para dentro da 86 HABERMAS, Jürgen. A tolerância religiosa como precursora de direitos culturais. Op. Cit. p. 286-289. 68 própria cristandade. Se até o século XVI, esse “outro” era demarcável por meio da geografia – fora da Europa –, da religião – o Judaísmo e o Islã, sobretudo – e de fatores étnico raciais que permeavam tais distinções, com a confessionalização surgiu a necessidade de se forjar as diferenças de identidade em termos de definições doutrinárias e interpretações da Revelação, – que por mais variadas que fossem, sempre eram tidas por aqueles que se confessavam a elas por universais e certas – das Escrituras e da tradição cristã europeia. Tornou-se comum no início da Idade Moderna, em consequência de tal processo, uma revalorização das pregações e dos sermões, além das polêmicas religiosas – que compreendiam a um gênero literário que compreendia textos que tinham finalidade de refutar matérias teológicas e confessionais de outros, sempre em busca de uma “verdade” – e de publicações de natureza pedagógica, como os catecismos. Se até a maior parte da Idade Média, os documentos doutrinais da Igreja se ocupavam com a resolução de questões doutrinárias oriundas da lide com alguma heresia, as querelas religiosas pós-Reformas trouxeram a necessidade de publicações de textos de natureza mais sintética e em formato de fórmulas, nas quais se notavam os mencionados aspectos particulares e universalizantes – que foram conhecidos como “confissões”. Rui Luís Rodrigues entende que, em tais escritos, o fiel é informado pela confissão aprendida a partir de rigorosa catequese. Essas obras e “fórmulas”, bem como outros documentos doutrinários, permitiriam ao leitor “reconhecer-se como cristão” de uma determinada Igreja “e ganhar clareza quanto aos equívocos de todos os demais” sistemas religiosos, cristãos sobretudo. Dessa forma, a “confissão tornava-se para ele”, o fiel, “a expressão de seu compromisso” com a Igreja que seguia e com sua comunidade, muitas vezes identificada com a própria monarquia nacional e com um território em particular. Todavia, tais processos de confessionalização não podem ser entendidos como meras apropriações utilitárias das Igrejas para o fortalecimento das monarquias e autoridades nacionais que surgiam no limiar da Modernidade. Na verdade, tratam-se de processos político-religiosos diversos, multifacetados e que não surgiram, necessariamente, da agência das autoridades civis.87 A confissão religiosa teve um importante atrelamento com o poder temporal, não necessariamente determinado por ele. Tanto a primeira quanto o segundo foram importantes para a construção identitária 87 RODRIGUES, Rui Luís. Entre o dito e o maldito: humanismo erasmiano, ortodoxia e heresia nos processos de confessionalização do Ocidente. 1530-1685. [Tese: doutorado em História] São Paulo: Programa de pós-graduação em História Social- FFLCH/USP. 2012. p. 372-374 e p. 443-452. 69 que compôs um conjunto que conectava a fidelidade à uma autoridade temporal (as monarquias nacionais) com a fidelidade religiosa (confessional, ligada a uma Igreja “universal”) e o pertencimento a um território específico. Paolo Prodi, sobre esta questão, entende que o produto desse processo de confessionalização foi a construção do arquétipo de um fiel que era membro dessa “Igreja territorial” não somente por nascimento ou pelo vínculo do batismo, mas também e sobretudo por uma adesão pessoal, constantemente ensinada e reafirmada, tornando-se, com isso, um voto de fidelidade.88 Assim como Habermas, para delimitar o que entende por um conceito de tolerância, Paul Ricoeur parte de contextos em que se formaram e se superaram as ditas monarquias confessionais. O historiador e filósofo francês, também analisando o mesmo conceito de tolerância, observa que sua formação, ao menos no seu sentido contemporâneo, deu-se a partir de uma reorganização do Estado sobre bases formadas nas Luzes. Esse sentido de tolerância, conforme analisa o autor, formou-se a partir do desgaste do que ele chama de um tipo ideal, no sentido weberiano da expressão, de “uma fé, uma lei, um rei”, formado no final da Idade Média e consolidado ao longo da Idade Moderna. Nele, o político pede ao religioso e o religioso, especificamente o eclesiástico, pede ao político: o primeiro pede ao segundo a unção, ou seja, sua sacralidade e, em troca, dá-lhe a sanção do braço secular. Estabelece-se, assim, uma “relação instrumental cruzada” entre ambos, pela qual uma instituição recebe da outra aquilo que lhe falta. Por sua vez, no plano teológico, a ideia de unidade de fé se estabelece como evidente, sendo que protestantes e católicos se juntam na mesma convicção de que não há lugar para várias religiões dentro do mesmo espaço político, nem várias convicções religiosas dentro do mesmo espaço religioso. Tentativas como o Édito de Nantes (1598), usadas pragmaticamente, sem ter verdadeiramente comprometido o tipo ideal da relação entre Estado e religião, constituído no plano das justificações políticas e teológicas, nesse sentido, foram somente anomalias. Essas distinções e o comprometimento dessas justificações passam a ser feitas somente a partir da Revolução Francesa, ainda que sobrevivendo de maneira residual posteriormente.89 A dissolução progressiva desse tipo ideal de organização de Estado, baseada na fórmula “um rei, uma fé, uma lei”, continua Ricoeur, dá-se quando ocorre a 88 PRODI, Paolo. Uma história da justiça: do pluralismo dos foros ao dualismo moderno entre consciência e direito. Trad. Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 237-238. 89 RICOEUR, Paul. Tolerância, intolerância, intolerável. In: _______________. Em Torno ao Político. São Paulo: Edições Loyola, 1995, p. 174-190. p. 176-177. 70 separação entre as justificações políticas e as justificações teológicas da intolerância, distinção dentro da qual dá para intercalar, com os planos institucionais, os das mentalidades, tradições culturais, dentre outros. Nos séculos passados no Ocidente cristão, situando-se primeiramente num plano institucional, no qual se cruzam a unção eclesiástica e a sanção política, observam-se dois fenômenos que dão à noção de tolerância seu sinal negativo de abstenção: o primeiro, a perda da unção eclesiástica pelo poder político (e, logo, sua dessacralização) e, o segundo, a perda da sanção do braço secular pela instituição eclesiástica (ou seja, sua perda de poder de coerção física). A partir daí, constrói-se o tipo-ideal de organização social contemporânea, do qual procede a noção de tolerância pautada na ideia de uma abstenção de se exigir a interdição do diferente em matéria religiosa, assim como se prescinde da unção religiosa do político. Seria o Estado laico, do qual o Estado de direito procede. Assim, conclui Ricoeur, a abstenção do Estado em interditar assuntos de natureza religiosa, ou de opinião, correntes de pensamento, comportamentos, entre outros, cria um espaço de onde surgem noções de liberdade específicas e plurais. Assim, da tolerância, antes de sinal negativo (não se pode interditar algo), decorre outra noção de sinal positivo: devese afirmar determinada liberdade, que se torna fundamento ideal dos modelos de sociedade contemporânea.90 Dessa maneira, Habermas e Ricoeur buscam no Iluminismo, em especial numa cultura letrada francesa, mas também nas inglesa e alemã – sobretudo, o primeiro autor –, os fundamentos da tolerância. Segundo ambos, tais fundamentos triunfarão, ao menos como ideais, nas democracias liberais contemporâneas, a partir do momento em que elas superam um ideário, presente nas monarquias nacionais da Europa ao longo da Idade Moderna, em decorrência da confessionalização, das guerras de religião e de outros processos. Como foi analisado no início deste capítulo, trata-se de uma concepção bastante corrente nas grandes sínteses sobre as Luzes, como as de Ernest Cassirer, Peter Gay e Paul Hazard. Embora, a meu ver, as conclusões dos autores citados não estejam incorretas, deve se sublinhar, primeiramente, que tais eles pretendem chegar a uma discussão sobre o conceito liberal e democrático da tolerância. Apesar de destacarem a fluidez e a polissemia do conceito, acabam por privilegiar o que se pode considerar como algumas linhas hegemônicas das Luzes, em detrimento de outras intepretações importantes, no que toca à discussão sobre a tolerância. Essas leituras conduzem à 90 Ibidem, p. 177-179. 71 seguinte questão: em que medida as concepções de filósofos franceses e ingleses podem ser generalizadas para o restante da Europa e para outros espaços fora dela? Outra questão é se a tolerância foi e é pensada a partir de bases distintas de uma dada cultura letrada e de determinados círculos de filósofos, ou, dito de outra forma, se mesmo as formulações destes não interagem, de alguma maneira, com tópicos e interlocutores distantes de suas academias e círculos eruditos. Retomo esses pontos mais à frente. As formulações sobre a tolerância religiosa na Idade Moderna entrelaçam muitos princípios e muitos bases éticas, teológicas e filosóficas. Ainda que a historiografia estude com mais afinco o tema a partir do século XVI, conforme demonstra Alan Lavine, muitos dos princípios tomados pelos defensores da tolerância religiosa renascentistas – ou ao menos defensores de um tratamento mais pacífico com as minorias religiosas consideradas heréticas ou cismáticas – são encontrados desde a Antiguidade Romana. Portanto, tais princípios foram retomados, reinterpretados e relidos. Nos primórdios do cristianismo, segundo o autor, já existiam os argumentos da separação do poder secular em relação ao eclesiástico, baseada na interpretação do Novo Testamento (“Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, Mt, 14-2236). Havia, também, uma tolerância baseada na falibilidade humana, segundo a qual somente Deus é capaz de julgar em matéria de fé e que aparece nas cartas de São Paulo.91 Isso foi retomado por pensadores, tais como São Cipriano e Orígenes. Um outro argumento baseia-se na própria natureza da crença em si e define que, se alguém for forçado a crer, não teria uma fé verdadeira. Tal argumento aparece nas Etimologias (século VII) de santo Isidoro de Sevilha, além de outro, baseado nos princípios de amor e na caridade cristãos, também apropriado de leituras bíblicas. Segundo tal argumento, seria preciso dirigir-se aos fracos e rústicos com amor, e não com violência. Reinterpretou-se tal princípio de modo a incluir também os descrentes e hereges. É importante evidenciar que tais argumentos tornaram-se lugares comuns em diversos documentos da Idade Moderna.92 Henri Kamen igualmente observa que textos que 91 Por exemplo, na passagem da primeira carta aos Coríntios. Há passagens que foram interpretadas ao longo das Idades Média e Moderna, segundo Alan Lavine, como argumentos em favor da superioridade de um julgamento divino em relação ao do “mundo”. “Examine-se, pois, o homem a si mesmo, e assim coma deste pão e beba deste cálice. (...) Por causa disto há entre vós muitos fracos e doentes, e muitos que dormem. Porque, se nós nos julgássemos a nós mesmos, não seríamos julgados. Mas, quando somos julgados, somos repreendidos pelo Senhor, para não sermos condenados com o mundo (1 Cor, 11: 28 e 30-32)”. Disponível em Bíblia Online. < https://www.bibliaonline.com.br/acf/1co/11>. Acessado em mai./2018. Acerca da discussão de Alan Lavine, ver próxima nota. 92 LEVINE, Alan. Introduction: the prehistory of the toleration and varieties of skepticism. In: __________. (ed.). Early modern skepticism and the origin of toleration: application of Political theory (series editor). New York, Oxford, Lanham, Boulder: Lexington Books.1999, p. 1-10. p. 9-10. 72 vieram a compor a Bíblia foram utilizados largamente desde o século IV nas controvérsias sobre como lidar, em termos doutrinais, com aqueles membros transviados da Igreja primitiva, assim como o proceder quanto à conversão de pagãos e, também, sobre a relação entre a fé cristã e as autoridades civis.93 O historiador jesuíta Giacomo Martina, escrevendo sobre a história da Igreja católica, também destaca tais controvérsias e um fundamento, na Antiguidade tardoromana, de argumentos favoráveis e contrários à tolerância religiosa. Para ele, dentro e fora dos limites de Roma antiga, a religião era cingida de elementos cultuais e, mesmo que aberta à convivência com os cultos de origem estrangeira, formava um todo inseparável de características étnicas e culturais locais, de forma que era natural que o chefe de Estado se tornasse a suprema autoridade religiosa. Dessa maneira, uma das principais razões para a perseguição ao Cristianismo primitivo foi a dificuldade dessa religião reconhecer um imperador como chefe religioso. A partir daí, foram os cristãos os primeiros a reivindicar alguma liberdade de consciência e a pleitear uma não ingerência do Estado nos assuntos religiosos, o que leva o autor a afirmar, de forma um tanto apologética e anacrônica, que: “(...) foi o cristianismo que pela primeira vez afirmou vitoriosamente a liberdade de consciência e a verdadeira laicidade do Estado, negandolhe o direito de impor uma religião e vincular consciências, ou seja, noutros termos, foi o primeiro a introduzir a distinção entre religião e política, Estado e Igreja”.94 No entanto, prossegue Martina, essa ingerência do político sobre o religioso foi retomada quando começaram as perseguições de natureza religiosa, com os imperadores impondo a religião aos povos. As conversões forçadas e o uso do poder secular para punir heresias e buscar um integrismo religioso foram um “passo atrás” em relação à “conquista” de 313, o Édito de Constantinopla. Segundo a avaliação do autor: Em conjunto, o pensamento cristão dos primeiros séculos oscila entre dois polos opostos: ainda que os apologistas defendessem a liberdade de consciência, especialmente quando o poder imperial supõe uma ameaça contra a Igreja, antes ou depois do ano 313, outros invocam o apoio do braço secular e não apenas para a administração temporal do Estado cristão, mas para a repressão da heresia. Já aparece desde então a ambiguidade que, posteriormente, será jogada na cara dos 93 KAMEN, Henry. O amanhecer da tolerância. Trad. Alexandre Pinheiro Torres. Porto: Editorial Inova, 1968. p. 13-16. 94 MARTINA, Giacommo. La Iglesia, de Lutero a nuestros días. Volumen II: Época del Absolutismo. Lo tradujo al castellano: Joaquin L. Ortega. Madrid: Ediciones Cristiandad, 1974. p. 133. 73 pensadores cristãos de reclamar a liberdade quando estão em minoria e negá-la aos demais uma vez que foram feitos como maioria.95 A despeito dos anacronismos postos por Martina a respeito da tolerância religiosa, algumas das informações colocadas são precisamente confirmadas pela historiografia. De fato, o cerne de alguns dos argumentos favoráveis e contrários à tolerância religiosa, que são retomados por autores renascentistas, encontra-se na Antiguidade. Mais do que isso – e este é um ponto que será retomado mais à frente e ao longo de outras partes desta tese –, a história do Cristianismo e a interpretação das Escrituras Sagradas forneceram, em contextos diversos, material para formulações em favor da tolerância religiosa. É o que mostram alguns trabalhos que se debruçam sobre o referido tema a partir da Era das Reformas e do limiar da Idade Moderna. Para Fernando Catroga, um dos autores de referência sobre essa questão, a faceta crítico-reflexiva do conceito de tolerância foi formada na Modernidade, pois ela surgiu em função de responder a novos desafios impostos pela situação religiosa que a Europa conheceu a partir do Renascimento e das Reformas religiosas, no século XVI. E um dos ângulos a partir dos quais essas formulações do conceito de tolerância surgiu foi a hermenêutica bíblica. Assim, por exemplo, a tolerância, na obra de Pierre Bayle, de acordo com Catroga, surgira de uma secularização da doutrina protestante, sobretudo calvinista, do livre-arbítrio, segundo a qual a sinceridade da convicção e a sua construção em cima da razão são superiores à sua veracidade ou erro. “Para o perseguido francês”, segundo Catroga, “a consciência constituía o único critério, pelo que a concretização da universalidade da luz natural teria de passar pelo particularismo da luz interior”. Sem admitir que verdade e erro não existem, equiparando-os, Bayle defende a tolerância ao “erro sincero”. A verdadeira religião, segundo Bayle, somente existia na persuasão interior da alma perante Deus, e não de se seguir o dogma, que, para ele, afastava o indivíduo da verdade.96 As rupturas no seio da cristandade europeia no século XVI, além da conquista da América e das novidades trazidas para a ciência com Kepler, Copérnico, Giordano Bruno, dentre outros fatos, fizeram parte de uma série de desafios de ordem política, Original: “En conjunto, el pensamiento cristiano de los primeros siglos oscila entre dos polos opuestos: mientras que los apologetas defienden la libertad de conciencia, especialmente cuando el poder imperial supone una amenaza contra la Iglesia, antes o después del año 313, otros invocan el apoyo del brazo secular y no sólo para la administración temporal del Estado cristiano, sino para la represión de la herejía. Ya aparece desde entonces la ambigüedad que posteriormente se les echará en cara a los pensadores cristianos de reclamar la libertad cuando están en minoría y de negársela a los demás una vez que se han hecho con la mayoría”. Ibidem, p. 135. 96 CATROGA, Fernando. Entre deuses e césares. Op. Cit. 77-78. 95 74 filosófica e teológica: sem a unidade na pretensa universalidade da Igreja Católica Apostólica Romana, a convivência entre pessoas e grupos que professassem credos distintos, sob a mesma autoridade civil, passou a ser um problema mais urgente e amplamente discutido, quadro que foi potencializado e muitíssimo agravado pelas posteriores guerras de religião. Sobre estas últimas, Reinhart Koselleck afirma que o Estado moderno chegou ao pleno desenvolvimento por meio da busca de superá-las. Para ele, as guerras religiosas na Alemanha e na França, no século XVI, fizeram necessária a busca de alternativas que as eliminassem, envolvendo formulações de natureza religiosa e política. Em distintos Estados nacionais, depois de 30 anos de sangrentos conflitos entre grupos religiosos, as monarquias foram capazes de perceber que poderiam fazer do princípio de igualdade religiosa a base para a paz. Isso foi recebido com horror pelos setores mais ortodoxos dos partidos religiosos.97 Colocava-se em xeque, assim, ou no mínimo problematizava-se, a base filosófica em que se associava, a partir de princípios políticos e teológicos, a sedição à quebra do integrismo religioso sob a mesma autoridade civil. Segundo Catroga, esse princípio – que associou, durante séculos, na Europa, a tolerância com a dissidência religiosa face à crença consagrada como oficial nos Estados nacionais – foi o responsável direto por uma territorialização das crenças religiosas. Tal territorialização, por sua vez, “veio a desenhar a geografia confessional da Europa”, formando “um mosaico que estará na base das versões regionais (e, posteriormente, nacionais) do que se impunha à homogeneidade política e religiosa”. Se trata do princípio extra ecclesiam nulla sallus – cujas raízes estão no século IX, remontando à formação do próprio conceito de cristandade –, atualizado dentro da realidade das guerras religiosas da Era do Renascimento. Somado a todo um quadro maior de crises, tais princípios tornaram-se a base da fórmula político-teológica cujus regio, ejus religio. Esse princípio, a partir do século XVII, ficou bem sintetizado na fórmula une foi, une loi, un roi, segundo o qual a divisão religiosa implicava também a divisão política. Com isso, o combate às divisões religiosas tinha, ao mesmo tempo, função salvífica e de sociabilidade.98 A Era das Reformas, assim, conheceu uma formulação político-teológica do conceito de tolerância que admitia, em alguma medida, a existência de algum nível de dissidência religiosa, em nome da concórdia e da unidade do Estado nacional, ainda que 97 KOSELLECK, Reinhard. Futuro e passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto Editora PUC-Rio, 2006. p. 27. 98 CATROGA, Fernando. Entre deuses e césares. Op. Cit. p. 68-69. 75 fossem estranhas ao pensamento do período quaisquer formulações que admitissem algum nível de verdade nos credos não oficiais. Esta é a conclusão de Mario Turchetti, em sua análise sobre os debates e formulações contemporâneas ao Édito de Nantes, de 1598, pelo qual se autorizou a existência de algumas Igrejas protestantes, em nome da paz civil. O autor, a partir de um texto anônimo de 1599, De la concorde de l’État, concluiu que os éditos de pacificação, com destaque ao de Nantes, foram resultados do triunfo do projeto do partido católico moderado dos politiques, que defendia a “concórdia” religiosa como um mecanismo para se reestabelecer a unidade do reino, que era, em si, um bem fundamental que garantiria a sua grandeza perante aos demais, tal como era a unidade religiosa. A garantia da grandeza do Estado possibilitaria restaurá-lo da miséria das guerras e, assim, criar condições para que se reestabelecesse futuramente a unidade da Igreja. De fato, segundo Turchetti, constituiu-se no período uma nova formulação segundo a qual a unidade do reino é mais urgente do que a da Igreja.99 Configurou-se aí uma nova hierarquia entre política e religião, em que a primeira determinou algumas liberdades e certa tolerância com relação à segunda, em função de se manter a paz civil e de se conservar o Estado.100 A superação ou, ao menos, uma problematização de tais princípios, em função de se contornar as guerras religiosas em nome da paz civil – situação sobre a qual existem divergências a respeito da pertinência de considerá-las como uma experiência válida de tolerância ou não –,101 fez o século XVI conhecer a tolerância religiosa como TURCHETTI, Mario. L’arrière-plan politique de l’édit de Nantes, avec un aperçude l’anonyme De la concorde de l’Estat. Par l’observation des Edicts de Pacification (1599). In: GRANDJEAN, Michel; ROUSSEL, Roussel (éd): Coexister dans l’intolérance. L’Édit de Nantes (1598). Genève: Labor et Fides, 1998. p.93-114. 100 KOSELLECK, Reinhart. Futuro e passado. Op. Cit. p. 28. 101 A historiadora Catarina da Costa D’Amaral faz críticas importantes ao trabalho de Mario Turchetti, no que diz respeito à conclusão segundo a qual a experiência com os éditos de tolerância do século XVI não se configurou como de tolerância propriamente dita, mas, sim, de uma concórdia entre grupos que não se concebiam como legítimos e que, sob justificativas político-teológicas, formularam razões para se contornar as guerras. Catarina da Costa Amaral, em sua tese de doutorado, critica essas conclusões de Turchetti em três aspectos importantes. Em primeiro lugar, ela não concorda com a consideração do autor suíço de que os éditos do final do XVI não significaram uma experiência verdadeira de tolerância religiosa, já que não trataram de um reconhecimento da legitimidade da existência de mais de uma confissão debaixo de uma mesma autoridade monárquica. Embora temporária, diz Catarina D’Amaral, a dualidade foi reconhecida e legitimada pelo édito real. Assim, continua, no século XVI, desenvolveu-se uma dinâmica sobre a convivência entre confissões religiosas diversas, visando à paz social e ao bem comum. Em segundo lugar, a autora defende que o debate conceitual travado por partidários da tolerância e da concórdia deu-se a posteriori, e não no contexto de produção das fontes nas quais se encontram as discussões sobre o Édito de Nantes. Tal debate tem sua principal relevância não para se compreender as noções de tolerância do período, mas para o debate bibliográfico e o posicionamento do historiador sobre ele. E, em terceiro lugar, a autora critica as conclusões obtidas sob a perspectiva metodológica adotada por Turchetti, tomando-as como produto de uma análise semântica sujeita às imprecisões devido à escrita das línguas vernáculas no período analisado, o que faria a análise assumir contornos ainda mais 99 76 uma espécie de conceito teológico-jurídico e teológico-político. Segundo esse conceito, em nome de algum bem maior, a autoridade abre mão do integrismo religioso de forma ampla: sob seus domínios, ele assumiria uma forma relativa ou que fosse restrita a sociabilidades e locais específicos. Essa forma de tolerância serviu de fundamento para que as autoridades lusitanas permitissem que protestantes comerciassem, dentro de rígidos limites estabelecidos, com portugueses, além de poderem viver por algum tempo em terras lusitanas.102 Ela também esteve por trás dos éditos de paz que vieram a pôr fim às guerras de religião, dos próprios modos como eles foram pensados e debatidos.103 Conforme Habermas, tal definição jurídica da tolerância predominou no pensamento europeu até, pelo menos, o contexto do Iluminismo.104 Em paralelo à conceituação político-jurídica e teológica de tolerância religiosa, noutros campos do pensamento, desenvolveram-se argumentos a respeito do imperativo ético-teológico da convivência entre confissões distintas. Esse desenvolvimento realizou-se sob a pena de pensadores diversos, tais como Thomas Morus, Erasmo de Roterdã, Pico de Mirandola, dentre muitos outros. Em linhas gerais, esses pensadores defendiam uma espécie “credo mínimo”, que seria capaz de minimizar as diferenças confessionais e possibilitar a convivência de crenças distintas. Sua base estava num relativismo renascentista e num ceticismo fundamental da ideia de tolerância quinhentista e seiscentista. Ressaltavam-se, sobretudo, a necessidade de um diálogo complexos. Completando sua análise, a citada historiadora afirma que essa busca pela origem da conceituação de tolerância pode limitar a leitura e as conclusões do historiador, levando-o a anacronismos e teleologias. AMARAL, Catarina Costa d’. A invenção da tolerância: política e guerras de religião na França do século XVI. Tese (Doutorado em História) – Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2008. p. 16-17. 102 Sobre as permissões dadas a “hereges” em Portugal, após as Reformas, há alguns trabalhos interessantes a respeito. Jorge Martins Ribeiro, por exemplo, diz que, “nos inícios do século XVII, cónegos e professores das Universidades de Coimbra e Évora manifestaram as suas opiniões acerca do modo como os protestantes deveriam ser tratados. Um herético não poderia ser punido pela Igreja até se provar ser um impenitente obstinado. Deste modo, um inglês ‘herético’ que nunca tivesse sido instruído na verdadeira fé, como não conhecia as verdades religiosas, não poderia ser considerado como tal. Contudo, se a Inquisição aprisionasse um inglês culto, particularmente se este tivesse conhecimentos de latim, podia ser entregue ao braço secular, incorrendo, deste modo, na pena de morte”. Ou seja, no caso, defendia-se que a permissão de se viver sob autoridade católica e constante vigilância inquisitorial, sendo protestante, no caso dos ingleses, implicava a obediência a regras específicas que, ainda que dificultassem fortemente sua existência e profissão de sua crença, não a impossibilitariam, na prática. Ainda que predominasse a intolerância, foram dadas algumas permissões a anglicanos, sobretudo ligadas aos vários tratados de amizade e comércio entre Inglaterra e Portugal. RIBEIRO, Jorge Martins. O anglicanismo em Portugal do século XVII ao XIX. In: POLONIA, Amélia; RIBEIRO, Jorge Martins; RAMOS, Luís A. de Oliveira. Estudos em homenagem a João Francisco Marques. Porto: Faculdade de Letras da U. Porto (FLUP), 1ª edição, p. 337-353. 2001.p. 339. 103 Como o Édito de Nantes (1598), a Paz de Augsburgo (1555), entre outros tratados no contexto das guerras religiosas. 104 HABERMAS, Jürgen. A tolerância religiosa como precursora de direitos culturais. Op. Cit. p. 279280. 77 interconfessional e, mais ou menos explicitamente, o próprio questionamento da legitimidade de se ser portador – seja no caso de instituições ou de indivíduos – de uma verdade em matéria de fé. É o que demonstra Adam Levine, em sua análise da obra do pensador francês Michel de Montaigne. Para ele, enquanto no século XVI a tolerância religiosa era, por muitos autores, justificada com base nos direitos dos potenciais vítimas da intolerância, Montaigne fazia um caminho inverso: sua tolerância é baseada no “não direito”. O humanista francês apela ao interesse próprio, ao entendimento e ao indivíduo para basear seu princípio de tolerância. A tolerância defendida por Montaigne não é baseada na autonegação, mas em certo tipo de autoconhecimento fenomenológico. Ela é completamente baseada em sua visão do bem humano como tributário da autoexploração dos sentidos, de um ceticismo de raiz moderna que não surge a partir de questões religiosas ou metafísicas, mas de sua percepção das necessidades humanas. Assim, todos, vivendo em sociedade, reivindicam para si algo que eles não são de verdade: príncipes reivindicam a grandiosidade; letrados, a sabedoria; padres, o conhecimento da revelação divina; e os europeus, serem a quintessência da humanidade, dentre outros. Mais que isso, Montaigne questiona a crueldade que esses desejos geram. Para converter hereges, expandir a grandeza ou legitimar sua posse da sabedoria, empreendem-se guerras. Os líderes religiosos, príncipes, letrados, dentre outros, assim, liderariam o vulgo com um discurso cínico, já que precisam de mãos para guerrear e fazem uso da credulidade das pessoas para o conseguir. Tudo decorre da inabilidade, inerente ao homem, de distinguir a aparência e a convenção da verdade. Na análise de Levine, o Cristianismo e a inclinação humana à imaginação, para Montaigne, são a essência dessa arrogância do homem que o afasta de sua verdadeira natureza. A religião revelada seria um produto dessa combinação, em que o homem projeta a si mesmo como um deus imaginado, criado à sua própria forma. O homem, assim, coloca-se na posição de criador do universo. Além disso, a despeito das necessidades naturais – comer, beber, manter relações sexuais, dentre outras –, a imaginação e a arrogância humana levam-no a perverter essas necessidades, transformando-as em voluptuosidade ou convenções diversas que o levam à infelicidade. O homem civilizado, para ele, vive em função do supérfluo, do futuro incerto, e nunca do presente. Mas, ao invés de pregar o ascetismo e uma autonegação individual – impossíveis, para ele, devido à impossibilidade de o homem retornar ao estado dos povos primitivos ou dos animais –, a operação de Montaigne dá-se no sentido de revelar um homem que estaria imerso nas mentiras (underlies man), cuja imagem teria implicação importante para se pensar em 78 instituições mais moderadas e tolerantes. A ideia de tolerância, de Montaigne, dessa maneira, segundo Levine, é baseada na desconstrução das certezas dogmáticas e na universalização da condição humana, naturalmente limitada, em termos de se alcançar conhecimentos verdadeiros fora de seu self.105 Além desse ceticismo renascentista, um ponto importante, a partir do qual as discussões sobre a tolerância ganharam evidência da Idade Moderna. foi a respeito do tratamento com minorias religiosas e com as dissidências das crenças oficiais. A pertinência do uso da violência, como meio de corrigir os erros de religião, foi um ponto que mobilizou um campo bastante vasto de argumentos, discutidos pela historiografia. Erasmo de Roterdã, comumente, aparece em diversos trabalhos como um dos grandes defensores da tolerância religiosa. Vários autores observam haver um fio condutor em sua obra, que seria o desejo de instauração da paz. Luiz Paulo Rouanet, por exemplo, ao analisar os conceitos de paz, justiça e tolerância na contemporaneidade, faz uma discussão de ideias de diversos autores e, sobre o tema da “paz”, parte da obra A Consultatio de bello Turcis inferindo (1530), do mencionado humanista dos Países Baixos. Trata-se de uma obra de Erasmo que teve origem numa consulta feita pelo jurista Johann Rink, no início do século XVI, sobre a pertinência de uma guerra contra os turcos. A este ponto, o pensador neerlandês defendia o direito da cristandade de se defender, mas sob o princípio de uma “guerra justa”, segundo a qual uma ação bélica somente poderia ser legítima se fosse defensiva e seguindo limites de paz e justiça, vetando-se, por exemplo, que a cristandade guerreasse contra os turcos como pretexto para pilhagens e outros crimes. A reflexão, publicada por Rouanet no ano de 2001, serviu de arcabouço para uma reflexão e crítica do autor quanto às ações dos Estados Unidos da América contra o Afeganistão, justificadas pelos atentados de 11 de setembro do mesmo ano. Rouanet definiu o pensador neerlandês como “um dos maiores pacifistas da história, a um tal ponto que erasmismo se tornou quase sinônimo no século XVI, de uma atitude tolerante e pacifista, ou irenista”.106 Johan Huizinga, em consagrada obra sobre Erasmo, afirma que suas ideias tiveram um enorme significado para objetivos de paz e tolerância, por ter sido, entre outras coisas, o primeiro enunciador da crença na educação visando à perfectibilidade LEVINE, Alan. Skepticism, self, and toleration in Montaigne’s Political Thought. In: __________. (ed.). Early modern skepticism and the origin of toleration: application of Political theory (series editor). New York, Oxford, Lanham, Boulder: Lexington Books, 1999. p. 51-70 106 ROUANET, Luiz Paulo. Paz, justiça e tolerância no mundo contemporâneo. Revista de História- USP. 145 (2001), p. 151-163. Em especial o primeiro subitem, p. 152-155. 105 79 humana, que se realizaria na obtenção de formas de sociabilidade em que reinassem a benevolência, a paz e a tolerância. Além disso, seus pensamentos e convicções seriam uma espécie de “anúncio” de ideais de tolerância dos séculos posteriores, sobretudo nas Luzes. Assim, Huizinga afirma que o humanista neerlandês influenciou diversas correntes dos séculos XVI, XVII e XVIII, já que nomes como Rousseau e Herder, em várias de suas obras, retomaram o princípio erasmiano de que a educação moral e a tolerância seriam bases do progresso humano.107 Enunciado similar, associando a obra do autor do Elogio à loucura (1509) com formulações posteriores de tolerância e pacifismo, veio do historiador brasileiro Ivan Lins, que ainda viu na obra do neerlandês a defesa de uma reforma ampla no Catolicismo, baseada num ceticismo humanista.108 Henri Kamen, por sua vez, destaca a importância de Erasmo de Roterdã no uso da hermenêutica bíblica como forma de mobilizar argumentos pro-tolerância, já no início da Idade Moderna,109 ao passo que Mario Turchetti vê nas suas formulações um ideal de concórdia, sintetizado no termo grego Sygkatabasis, segundo o qual a paz entre dissidências religiosas seria um primeiro passo para a futura realização da reunião das diversas Igrejas em uma só, não configurando, em si, o princípio da tolerância, do qual se depreende alguma aceitação da legitimidade da diferença.110 Dessas perspectivas, a despeito de algumas de suas falhas – como a teleologia de se considerar que, da obra de Erasmo de Roterdã, produziu-se o que seria, séculos à frente, uma defesa da paz e da tolerância religiosa –, é fundamental depreender-se que o problema com o outro, em matéria religiosa, apresenta-se como permanente, e as soluções que o pensamento ocidental buscou para isso têm sua diversidade e temporalidades próprias. Assim, não é estranho que pensadores diversos buscassem justificações para suas defesas próprias da tolerância em elementos de origens diversas, tais como as interpretações da Bíblia e autores da Antiguidade Clássica, mobilizando argumentos cuja legitimidade era reconhecida, algo fundamental em contextos de conflito, em que posições em defesa da tolerância eram, costumeiramente, minoritárias.111 107 HUIZINGA, Johan. Erasmus and the Age of Reformation. Ed. Harper Torchbook. London, 1957. E book. Produced by John Hagerson, Juliet Sutherland, David King, and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net. p. 191-193. 108 LINS, Ivan. Erasmo, a renascença e o humanismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. 109 KAMEN, Henry. O amanhecer da tolerância. Op. Cit. p. 26-31. 110 TURCHETTI, Mario. Une question mal posée: Érasme et la tolérance. L’idée de Sygkatabasis. Bibliothèque d’Humanisme et Renaissance. Genève, 53 (2), 1991. p. 379-395. 111 Uma discussão interessante nesse sentido está em Stephen J. Barnett, a respeito do que ele chama de “problema da influência” na análise da História das Ideias. Segundo ele, existem alguns problemas metodológicos sérios em trabalhos de muitos historiadores nos quais se encontra alguma “influência” de algum autor sobre outro. Em diversas vezes, ela não é demonstrada de maneira suficiente. Por exemplo, 80 No caso ibérico, a questão sobre o tratamento com minorias religiosas foi um vasto campo de embates por toda a Idade Moderna. A Ibéria, como a historiografia já tem demonstrado, apesar de não estar alheia aos pontos de discussão colocados até aqui, comuns a todo o contexto europeu, veio a desenvolvê-la com diversas particularidades. Merecem destaque dois aspectos fundamentais, no que toca à análise histórica sobre a tolerância religiosa na Idade Moderna: o primeiro concerne ao tratamento a ser dispensado a judeus e a cristãos novos, enquanto o segundo versa também sobre a legitimidade dos tribunais do Santo Ofício. No caso de Portugal, do início da Modernidade até as Luzes, com variantes diversas ao longo dos séculos, essas questões aparecem com alguma frequência, o que se verifica nas fontes e também em vários estudos já realizados sobre tais temáticas. Além disso, algumas formas de tolerância religiosa enraizadas na cultura popular têm sido bastante discutidas na historiografia sobre esse tema na Europa católica moderna. Como foi dito acima, no ponto das discussões sobre as teses de tolerância de Habermas e Ricoeur, é necessário considerar as inúmeras matrizes da ideia de tolerância religiosa, o que vai além das formulações filosófico-teológicas dos círculos letrados, sem, contudo, prescindir delas. No contexto luso-brasileiro do século XVIII, nas formulações a respeito da tolerância religiosa, há de se considerar, pelo menos, três matrizes importantes, que dialogam umas com as outras. Há uma tradição, que remete à cultura popular, formada ao longo dos séculos de convivência na Península Ibérica entre cristãos, judeus e muçulmanos e também a alguns aspectos específicos da religiosidade ibérica, que formam uma espécie de “tolerantismo popular”. Juntamente com eles, há um campo bastante multifacetado e citações de um autor sobre outros podem significar muitas coisas, e não necessariamente uma influência. Elas podem indicar, por exemplo, que determinado autor recorreu a alguma obra reconhecida como argumento de autoridade em algum contexto. Isso, segundo Barnett, torna-se um problema para a História das Ideias quando implica recorrentes demonstrações lacunares e precárias a respeito de algum autor ter sido influenciado por outro e que, na medida em que se repetem, tornam-se “verdades”, embora jamais tenham sido devidamente sustentadas nas fontes. Na verdade, conclui o autor, as supostas influências encontradas por muitos autores nada mais fazem que reproduzir como verdade algumas leituras de determinadas obras feitas por seus contemporâneos, muitos deles, inclusive, com perspectivas antagônicas a eles. Tal perspectiva, afirma Barnett, nada mais é que uma tentativa de reconstituição retroativa de ideias de autores, sempre em cima de fontes que não sustentam tais conclusões e, mais que isso, que isolam o autor de seu próprio tempo histórico, desconsiderando elementos que poderiam ter interferido na sua obra, que extrapolam as leituras de outros letrados de seu tempo ou anteriores, que vão de suas experiências de vida até sua inserção social. Nesta tese, essa crítica metodológica é fundamental, tendo-se em vista o zelo no sentido de se evitarem, por exemplo, inferências categóricas de supostas “influências” de autores importantes do contexto das Luzes, tais como Locke, Voltaire e Rousseau, nos escritos dos luso-brasileiros, fiando-se apenas em uma proximidade de argumentos – identificável a posteriori, pelo historiador –, ou na evidência do contato, seja dos letrados das Luzes luso-brasileiras, seja dos libertinos que caíram nas malhas inquisitoriais, com os livros desses mesmos autores. Este assunto será levantado, novamente, nos capítulos 2 e 3 desta tese. BARNETT, Stephen J. The Enlightenment and religion. Op. Cit. p. 22-26. 81 amplo de debates e disputas dentro do pensamento cristão-católico do Iluminismo. Tais discussões foram feitas sobre as bulas, a Inquisição, as censuras, e embates entre ordens religiosas e a monarquia católica, remetendo a uma tentativa dos próprios católicos de formularem uma variante própria do conceito de tolerância que fosse aplicável a seus contextos. Por fim, não menos importante, os debates e apropriações das várias correntes do pensamento iluminista se entrelaçam nessas formulações. A historiadora Maria Guadalupe Pedrero Sanches demonstra que houve, ao longo da ocupação muçulmana na Península Ibérica, entre o século VIII e as Guerras de Reconquista, uma relativa paz entre judeus, muçulmanos e cristãos sob domínio islâmico. A historiadora citada, é bem verdade, combate idealizações sobre a tolerância civil-religiosa reinante entre tais credos no referido contexto. Ao fim desse período de paz – que esteve em constante declínio desde o século XIII –, na Idade Moderna, após as guerras de Reconquista da Península Ibérica, houve a intensificação das hostilidades entre católicos e minorias religiosas que ali permaneceram. Os tribunais do Santo Ofício, reintroduzidos em 1478, em Castela, foram um desdobramento mais agudo de um longo processo de violência, que se sucedeu a um longo período de convivência relativamente tolerante entre cristãos, muçulmanos e judeus.112 Porém, tais formulações sobre um tratamento pacífico com minorias religiosas já existiam no pensamento ibérico desde muito antes, como, por exemplo, demonstra o medievalista Sérgio Alberto Feldman em sua análise sobre a obra de Isidoro de Sevilha, do século VII. De acordo ele, Isidoro de Sevilha, na obra Historiae, dedicada ao monarca visigodo Sisebuto, apesar de não criticar o projeto de conversão dos judeus em si, censura sua conversão forçada ao Catolicismo, já que o uso da força para esse fim, segundo Isidoro, era, além de ineficaz, contrário ao que determinavam os ensinamentos do Cristianismo.113 Juntamente com esses estudos, há também outros trabalhos que indicam haver, seja nos debates de uma elite letrada, formada por teólogos, diplomatas, pensadores e nos diversos escritos políticos, seja na cultura popular, alguma permanência na cultura ibérica de alguma tolerância no trato com a diferença religiosa.114 112 Sobre esse assunto, ver a primeira parte da obra: KAMEN, Henry. La Inquisición española: una revisión histórica. Barcelona: Editorial Crítica, 1999; PEDRERO-SÁNCHEZ, Maria Guadalupe. Os judeus na Espanha. Editora Giordano, 1994. 113 FELDMAN, Sérgio Alberto. Isidoro de Sevilha e o rei Sisebuto: a conversão dos judeus no reino Visigótico. Revista Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. 13 (2), p. 97-115, 2013. p. 112. 114 KAMEN, Henri. Toleration and dissent in sixteenth-century Spain: The alternative tradition. Sixteenth Century Journal, vol. 19, nº. 1, p. 3-23 (Spring, 1988); SCHWARTZ, Stuart. Cada um na sua lei: tolerância religiosa: salvação no mundo atlântico ibérico. São Paulo/Bauru: Companhia das Letras/Edusc, 2009. 82 A respeito, especificamente, da minoria judaica, desde o século XVI até o XVIII, observa-se uma constância do tema sobre a legitimidade ou não de sua coerção e vigilância. Uma crítica famosa à violência usada contra os judeus no limiar da Idade Moderna portuguesa veio na Crônica do felicíssimo rei Dom Manuel, feita por Damião de Gois. No capítulo CII, da primeira parte da crônica, o poeta humanista narra com tons de reprovação o massacre acontecido em Lisboa, em 1506, contra os cristãosnovos, que começou num episódio em que “um frade no mosteiro de São Domingos, em uma capela chamada de Jesus”, dizia ter visto um sinal milagroso num crucifixo, que foi posto em dúvida por um cristão-novo, que dizia que aquilo “parecia apenas uma candeia acesa” ao lado do referido objeto. Incitados pelos frades, “alguns homens baixos”, tiraram o cristão-novo da capela pelos cabelos e o mataram, queimando o corpo no Rossio, em seguida. Assim, “essa turma de maus homens & frades, que sem temor de Deus andavam pelas ruas concitando o povo a esta tamanha crueldade” contra os cristãos-novos, continuou o massacre movido por “portugueses encarniçados neste tão feio e inumano negócio (...) por ódio e malquerença a Cristãos, para se vingarem deles, [e] davam a entender aos estrangeiros que eram Cristãos-novos, e nas ruas ou em suas casas os iam assaltar e os maltratavam”.115 Há tópicas, nessa obra, que foram constantes, embora com grandes variantes no tempo, em que a violência contra judeus e outras minorias religiosas é associada a uma forma negativa de se seguir o Catolicismo, existente tanto no meio de leigos como do clero. A repressão inquisitorial aos judeus também foi um tópico de longa duração e que perpassou discussões a respeito da tolerância religiosa. Por exemplo, a ideia da Inquisição como “fábrica de judeus” – já que sua vigilância constante aos cristãos-novos e os métodos investigativos dos tribunais do Santo Ofício fariam com que verdadeiros católicos fossem condenados por confessar culpas imaginárias, forçados pelos inquisidores – apareceu em pensadores portugueses bastante separados no tempo e espaço, tais como o padre Antônio Vieira, no século XVII, e Luís Antônio Verney e Antônio Nunes Ribeiro Sanches, pensadores iluministas do XVIII, embora se devam registrar as diferenças substanciais existentes nas suas abordagens.116 A polêmica sobre 115 GOIS, Damião de. Chronica do Felicissimo Rei Dom Emanuel composta per Damiam de Goes, Diuidida em quatro partes... - Em Lisboa: em casa de Francisco Correa, 1566-1567. p. 228-229. Disponível em: <http://purl.pt/14704> . Aceso em: set. 2017. 116 MARCOCCI, Giuseppe e PAIVA, José Pedro. História da Inquisição portuguesa: 1536-1821. 1ª edição. Lisboa: A Esfera dos Livros, editora, 2013. p. 196-209; RÊGO, Raul. Prefácio. In: RIBEIRO SANCHES, Antônio Nunes. Christãos velhos e christãos novos em Portugal: origem da denominação. 83 se a Inquisição perseguia, efetivamente, pessoas e grupos de indivíduos que conservavam ou potencialmente praticavam ou conheciam alguma crença judaica, ou se as mesmas perseguições se davam em cima de um judaísmo imaginário, teve seus ecos na historiografia, na querela entre Antônio José Saraiva, defensor do segundo ponto, e Israel Salvator Révah, do primeiro.117 Também foram bastante importantes as diversas associações feitas entre a repressão inquisitorial aos cristãos-novos e judeus e a decadência econômica portuguesa. Possivelmente, a crítica mais conhecida neste sentido foi a do padre Antônio Vieira. A historiografia mostra que Vieira propõe um novo tratamento aos cristãos-novos, alegando a necessidade de cooptar seu capital financeiro para dinamizar a economia portuguesa. Como evidencia Adriana Romeiro, nos textos do referido jesuíta relativos ao Quinto Império, os judeus têm um papel de destaque, embora seu raciocínio, nesse sentido, não seja meramente utilitário. Seu argumento é essencialmente religioso, ainda que tocante a temática econômica, na medida em que na Idade Moderna tais esferas não fossem absolutamente separadas. Sua narrativa, ainda, remete à própria origem da nação portuguesa. Trata-se de uma espécie de sentimento filossemítico, que perpassaria o pensamento luso-brasileiro ao longo do século XVII, com impacto direto nas discussões sobre a tolerância religiosa, bem como nas críticas ao Santo Ofício, que foi suspenso entre 1675 e 1681.118 Assim, há um equívoco em se entender que tal argumento seja meramente utilitário ou que revele uma hierarquia entre o econômico e o religioso nos escritos de Vieira. Um raciocínio com alguma semelhança com o do notório jesuíta aparece, décadas depois da morte de Vieira, sob a pena do diplomata d. Luís da Cunha, no seu Testamento Político. Nessa obra, que será mais detidamente analisada no Capítulo 2 desta tese, vê-se que a distinção entre cristãos novos e cristãos velhos se converteu em uma “sangria” para Portugal, arruinando sua agricultura e indústria. As raízes dessa distinção remetem ao fim da Idade Média e sua plena consolidação se deu, na sociedade portuguesa, entre Lisboa: Herdeiros de Raul Rêgo e Editora Sá da Costa, 2010. p. 10; VERNEY, Luís Antônio. Cartas Italianas. Op. Cit. p. 105. 117 Nesta tese, não farei uma análise profunda a respeito dessa polêmica. Sobre este assunto, ver: ROWLAND, Robert. Inquisição, intolerância e exclusão. Ler História, 33, p. 9-22 (1997). p. 15-16. Na sexta edição do ensaio Inquisição e cristãos-novos, de Antônio José Saraiva, publicada em 1994, há um anexo com entrevistas de Saraiva e Israel Salvator Révah, além de algumas publicações de ambos em que essa polêmica fica bem sintetizada. Trata-se de entrevistas, artigos em jornais e outras publicações nas quais a discussão sobre as teses do “judaísmo imaginário”, criado pela Inquisição portuguesa, e a de um potencial “judaísmo subterrâneo”, que aflorava, em alguns momentos, em reação às perseguições, pode ser vista em alguns detalhes. SARAIVA, Antônio José. Inquisição e cristãos-novos. Lisboa: Editorial Estampa, 1994. 6ª edição. p. 211-292. 118 ROMEIRO, Adriana. Um visionário na corte de D. João V: revolta e milenarismo nas Minas Gerais. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001. p. 132-134. 84 meados do XVII até a primeira metade do XVIII.119 Ela também se tornou um objeto de crítica, em grande parte associado ao debate sobre a tolerância, uma vez que foi tomada, por alguns autores, como a responsável por diferentes problemas, desde corromper princípios cristãos até introduzir uma espécie de sedição entre os súditos da monarquia católica. As diversas críticas ao Santo Oficio também foram, de alguma forma, contínuas entre sua fundação e extinção. Segundo Francisco Bethencourt, a perseguição aos cristãos-novos, principal foco de atividade e motivo explícito da fundação dos tribunais de Portugal e Espanha, suscitou desde o início alguma oposição, inclusive de alguns setores de cristãos-velhos. Tratava-se de alguma resistência, estruturada em movimentos de pressão junto ao Papa, com ideias e objetivos bastante precisos, os quais serão encontrados posteriormente nos opositores da Inquisição. Na Espanha, essas pressões existiram desde o final do século XV, antes e pouco depois da fundação do tribunal de Castela, em 1478, evidenciando fortemente a defesa de uma imagem da ação inquisitorial como arbitrária. Os primeiros protestos foram apresentados muito rapidamente ao Papa, e a pressão foi forte o bastante para que se criasse uma regulamentação interna do Santo Ofício após seu período inicial de terror. Essa imagem de ação arbitrária difundiu-se na Europa em decorrência das expulsões dos judeus e cristãos-novos de Portugal e Espanha ao longo do século XVI. Ela se relaciona, por exemplo, à sublevação ocorrida em Nápoles contra a tentativa de se implantar um tribunal sob controle do Santo Ofício espanhol. O papel dessa contra-imagem da Inquisição, difundida por toda Europa, continua Bethencourt, é também importante nas mobilizações dos Países Baixos, também contra possível implementação desses tribunais, a partir de boatos e relatos sobre as formas e estilos do Santo Ofício, difundidos por descendentes de judeus dessa região, vindos da Península Ibérica.120 Bethencourt também lembra que, entre os séculos XVI e XIX, essa oposição ao Santo Ofício produziu uma vasta literatura. Segundo ele, publicações polêmicas contra a Inquisição acolheram algumas ideias já formuladas nas petições e relações dos cristãosnovos. Ela também introduziu temas novos e, sobretudo, conseguiu grande difusão graças à tipografia. Uma campanha sistemática – que não era possível no caso dos cristãos-novos, por conta de sua situação religiosa marginal, além de preconceitos 119 OLIVAL, Fernanda. Rigor e interesses: os estatutos de limpeza de sangue em Portugal. Cadernos de Estudos Sefarditas, Universidade de Lisboa: nº 4, p. 151-182, 2004. p. 154. 120 BETHENCOURT, Francisco. História das inquisições: Portugal, Espanha e Itália. Séculos XV-XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 338-340. 85 étnicos – teve grande amplitude, sobretudo, devido às publicações produzidas por protestantes. Eles estavam no centro das polêmicas religiosas da Época Moderna, participando de forma mais ativa dos processos de mudança de valores. “Mas a dialética do conflito de imagens sobre a Inquisição”, conclui Bethencourt, “não pode ser compreendida em toda a sua extensão sem referências, por um lado, às respostas dadas pelo tribunal em seu trabalho de legitimação e, por outro, à diferenciação progressiva da opinião no campo católico”.121 Em suma, sintetizando as tendências gerais das formulações polêmicas contra os tribunais da Inquisição na Idade Moderna: A formulação dos novos valores fez-se, assim, por oposição à imagem da Inquisição: em primeiro lugar a liberdade de consciência, noção que emerge durante a segunda metade do século XVI; em seguida a tolerância, durante as últimas décadas do século XVII. Ao longo do século XVIII e do início do século XIX pudemos seguir, do lado protestante, o desenvolvimento desses temas, o enraizamento das memórias dos ex-presos e das narrativas dos dissidentes do tribunal, a autonomia progressiva da historiografia sobre a Inquisição em face dos envolvimentos polêmicos mais visíveis, segundo a sólida tradição das principais publicações de Reginaldus Montanus e de Van Limborch.122 Tanto as questões sobre os cristãos-novos e judeus como as a respeito da Inquisição serão retomadas no próximo capítulo. As relações entre as representações pró e contra os mesmos tribunais de fé e a defesa da tolerância religiosa serão analisadas mais a fundo no Capítulo 3 desta tese. Mas é importante, ao menos, mencionar tais pontos aqui. Isso porque muitas das formulações em defesa da tolerância religiosa, no período focalizado nesta tese, apresentam características que remetem a tópicas já existentes no contexto luso-brasileiro fazia séculos e em muitos âmbitos. Em suma, muitas das formulações, que serão analisadas ao longo desde trabalho, ainda que feitas no século XVIII e dialogando com problemas dele, não prescindem de bases que remetem aos séculos anteriores. Ainda que, no começo deste capítulo, tenham sido levantados e analisados alguns problemas com as sínteses historiográficas sobre as Luzes, uma delas, recente, servirá para delimitar de forma mais clara esse problema. Trata-se do ensaio O Espírito das Luzes, do recentemente falecido pensador búlgaro Tzvetan Todorov. No ensaio, logo nas suas primeiras linhas, Todorov deixa claro seus objetivos gerais, que são o de recorrer à Ilustração como forma de pensar as bases intelectuais e morais da Modernidade, em um mundo pós-utopias. Ele define que “quis, assim, sem desviar o olhar de nossa época, destacar as grandes linhas do pensamento 121 122 Ibidem, p. 354-355. Ibidem, p. 354. 86 das Luzes, num vaivém constante entre passado e presente”.123 Não se trata de um retorno, por ele mesmo, ao passado, uma vez que seria um anacronismo buscar soluções para a contemporaneidade nas ideias das Luzes. O mesmo aconteceria ao atribuir chaves de leitura, a partir dos escritos dos pensadores iluministas, para a contemporaneidade, pois os contextos desses autores e de suas obras, de fato, por mais universalistas que se pretendessem, não teriam como se propor a resolver problemas que não os de suas respectivas épocas, dentro dos limites nos quais tais obras foram pensadas e sistematizadas. A questão é que, no contexto que, em alguma medida, confere uma identidade ao que chamamos de Modernidade e, em última análise, também se coloca como elemento constituinte do que nós somos como sociedade, o ensaio de Todorov propõe-se a fazer esse movimento a fim de repensar uma gama de relações entre passado e presente. Seu objetivo é refletir sobre a origem e a formação de valores que a contemporaneidade viria a cristalizar como ideais de sociabilidade. Nesse ponto, sua obra possui alguma similaridade com as discussões anteriormente mencionadas referentes aos trabalhos de Habermas e de Ricoeur, a respeito da tolerância nas democracias liberais. A partir daí, antes de se debruçar sobre temas específicos, Todorov recorre a uma formulação geral que marca a sua concepção sobre as Luzes do século XVIII. Para ele, as ideias que caracterizam o Iluminismo não surgiram no Setecentos, mas contêm reelaborações de valores mais longevos, advindos da Antiguidade, do Medievo e do Renascimento. Relidos, reelaborados e reorganizados, sob as Luzes, tais valores ganharam formas inéditas. Além disso, segundo Todorov, é na Ilustração que valores como a tolerância, liberdade e igualdade foram articulados de maneira mais fortemente voltada para a mudança na realidade. Trata-se, para ele, de um contexto de múltiplos dissensos e disputas, muito mais que consensos. Porém, em seu interior, pode-se encontrar um fio condutor calcado em três ideias chave: a autonomia, a finalidade humana de nossos atos e, enfim, a universalidade.124 Assim, por vias diversas e em meio a muitas elaborações divergentes e disputas intensas, os pensadores iluministas tenderam, por caminhos divergentes e muitas vezes opostos, a privilegiar a escolha humana ao invés da obediência aos dogmas, submetendo toda ordem, natural e sobrenatural, às mesmas leis. Eles, ao assim procederem, entendiam e consolidavam a necessidade de que as decisões humanas fossem, cada vez mais, autônomas, moral e 123 124 TODOROV, Tzvetan. Espírito das Luzes. Op. Cit. p. 10. Ibidem, p. 11-14. 87 eticamente, não sendo tuteladas por nenhuma autoridade. O questionamento da tutela, de natureza religiosa, à qual a humanidade estava submetida até as Luzes, orienta o pensamento para o presente, mutável, e para o futuro, melhor que o hoje, e não ao passado, lugar da autoridade pautada na ancestralidade. As ações e as representações de mundo são assim “desencantadas”, perdendo espaço a magia e a revelação, em privilégio da ação humana. “À certeza da Luz descida do alto substituir-se-á a pluralidade de luzes que se difundem de pessoa para pessoa”, sintetiza Todorov.125 Dessa maneira, a exigência de autonomia é levada ao espaço coletivo, e seu efeito mais visível é a separação do teológico do político. A própria ciência, produzida autonomamente pelos pensadores das Luzes, adquire força política ao se associar ao despotismo esclarecido e outras vertentes, segundo Todorov. O conceito de soberania, existente, pelo menos, desde o medievo, é reelaborado de forma a se reconhecer nele um poder emanado do povo, da vontade geral, por um lado, e também do indivíduo, em relação à organização social estabelecida. Todos os setores da sociedade tendem a se tornar laicos, ainda que os indivíduos permaneçam crentes. Esse programa concerne não somente ao poder político, mas também à justiça: o delito, dano causado à sociedade, é o único a ser reprimido, e deve ser diferenciado do pecado, falta moral para com uma tradição. Também a escola, destinase a ser subtraída ao poder eclesiástico para se tornar um lugar de propagação das Luzes, aberta a todos, portanto gratuita, e ao mesmo tempo obrigatória para todos. E assim a imprensa periódica, que passa a ser o lugar do debate público. Também a economia deve ser liberada das obrigações arbitrárias e permitir a livre circulação dos bens; deve fundar-se sobre o valor do trabalho e do esforço individual, em vez de encher-se de privilégios e de hierarquias vindos do passado. O lugar mais apropriado para todas essas mutações é a cidade grande, que favorece a liberdade dos indivíduos e lhes dá ao mesmo tempo a oportunidade de se encontrar e debater em comum.126 Com todas as limitações que uma síntese como esta possui, considerando também seu caráter ensaístico e seu objetivo que é pensar as bases éticas e intelectuais da contemporaneidade ocidental, dela é possível depreender alguns pontos importantes para se entenderem o Iluminismo católico e também suas particularidades no contexto luso-brasileiro e, mais especificamente, as discussões referentes à tolerância religiosa. Isso porque Todorov, no dito ensaio, ao invés de buscar na Ilustração um princípio de valores que se desenvolveriam, a partir dela, de forma linear, até o presente, propõe um modelo teórico para se pensar esse contexto de forma diacrônica. Pensa-o de maneira a 125 126 Ibidem, p. 17. Ibidem, p. 19-20. 88 se entender que alguns valores, amplamente identificados com os pensadores iluministas, tiveram sua elaboração a partir de muitas outras influências, que não se limitam, somente, aos círculos dos philosophes. No caso do contexto analisado nesta tese, é difícil, por exemplo, dissociar a tolerância religiosa, defendida por alguns letrados que publicaram dentro e fora de Portugal, ou a defendida pelos libertinos, que foram perseguidos pela Inquisição, sem localizá-las numa dinâmica de circularidade de ideias. Nessa dinâmica, pontos formulados por nomes como Voltaire e Rousseau se misturavam às disputas teológicas e políticas do contexto católico, com a experiência cultural e religiosa com “hereges” e muitos outros elementos. É importante salientar, aqui, dois pontos específicos, para se pensar as Luzes no contexto luso-brasileiro, relacionando-as com os pressupostos colocados no ensaio de Todorov. O primeiro é que a vertente católica do Iluminismo também elaborou sínteses de tópicas de séculos anteriores, retomou-as e as problematizou de formas inéditas até então, transformando-as em ações na vida coletiva. É fundamental, também, levar-se em conta que o diálogo desses autores com pensadores da Europa setentrional foi constante. Na verdade, os luso-brasileiros, muitas vezes, entravam em disputas com esses autores estrangeiros a respeito de pontos relativos à religião, política, trato com minorias religiosas e muitos outros. Todavia, como ressalta Stephen J, Barnett,127 é necessário entender que, muitas vezes, tais pensadores estão ocupados com querelas que envolvem interlocutores internos, inseridos em seu próprio contexto político e religioso, dentro de uma linguagem própria dela e com aparatos conceituais e teóricos, problemas e pressupostos disponíveis nesses espaços específicos de discussão. Isso é importante, inclusive, para se entender que as elaborações sobre a tolerância religiosa também trazem consigo elementos similares aos apontados em estudos, como os de Carlo Ginzburg e Adriana Romeiro, sobre a existência de algum nível de tolerantismo de base popular. A memória sobre os conflitos de religião e sobre seus efeitos para o bem comum, ou sobre a própria legitimidade da liberdade religiosa, sob o ponto de vista teológico cristão-católico, traz elementos pertinentes às formulações sobre a tolerância religiosa e que extrapolam, em muito, os pontos de discussão restritos a uma cultura erudita “laica”.128 Dito isso, o segundo ponto fica mais claro: no contexto católico, no 127 BARNETT, Stephen J. The Enlightenment and religion. Op. Cit. p. 45-80. Ibidem, p. 168-200 e 215-221; GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro preso pela Inquisição. Trad. Maria Betânia Amoroso. São Paulo: Cia das Letras, 2006; ROMEIRO, Adriana. Todos os caminhos levam para o céu: relações entre a cultura popular e erudita no Brasil no século XVI. Dissertação de mestrado. Campinas, 1991. 128 89 século XVIII, a partir de aparatos que vão de matrizes tolerantistas populares até embates teológicos e político-filosóficos próprios daquele contexto, em diálogo com realidades que lhe são exteriores, o Iluminismo produziu e disputou, num cenário maior de dissensos das Luzes, as definições de tolerância religiosa. Além disso, esse iluminismo católico participou de embates concernentes a esta questão, como o combate ao fanatismo e aos abusos nas perseguições às dissidências religiosas. Em meados do século XVIII, a tolerância religiosa já era um tópico importante da cultura letrada. Diferentes autores, tais como Locke, Bayle e muitos outros, debruçaram-se sobre o tema e produziram uma considerável literatura sobre ele, com repercussões nos debates intelectuais, filosóficos, teológicos e políticos desenvolvidos em toda a Europa e em alguns lugares fora dela. A tolerância religiosa, a essa altura, já se colocava como uma espécie de imperativo civilizatório, e os pensadores da Europa católica não se furtaram a uma verdadeira batalha por definições referentes a ela. Ou ainda, buscaram espaço nessa disputa em função de afastarem do pensamento católico a pecha, ali já reprovável, de intolerante. Tornou-se necessário inserir-se, nessa discussão, a origem de um ideal de “tolerância cristã”, que, segundo Juan Pablo Domínguez, começou a se estender entre os católicos, especialmente entre aqueles setores que clamavam por uma Igreja menos sujeita ao papado, “por uma piedade mais austera, uma teologia menos escolástica e uma moral mais próxima do espírito do Evangelho, fortemente influenciada pelo febronismo e pelo jansenismo”. Quanto ao último termo, convém ressaltar a necessidade de levar-se em consideração seu uso, que é controverso e bastante genérico. Na pluralidade de teologias católicas do Setecentos, muitas vezes, reuniam-se, sob esse termo, tendências regalistas e outras consideradas “não alinhadas”.129 No geral, segundo o mesmo autor, no contexto das Luzes, diante da afirmação crescente da tolerância religiosa como uma virtude moral imprescindível para se alinhar à modernidade iluminista e aos ideais de bom governo, mesmo entre aqueles defensores da punição da heresia, havia a necessidade de se livrar da deformidade da intolerância e de se formularem definições de tolerância propriamente católicas. Nessas formulações, a defesa de um Catolicismo dissociado de “vícios” – tais como o exteriorismo barroco e as práticas consideradas supersticiosas –, a associação entre alguma tolerância e o crescimento demográfico e desenvolvimento econômico e, também, a necessidade de se reformar, ou mesmo abolirem-se as Inquisições, conjugaram-se com a defesa de um 129 DOMÍNGUEZ, Juan Pablo. Reformismo cristiano y tolerancia en España a finales del siglo XVIII. Hispania Sacra, v. LXV, n. Extra II, p. 113–172, 2013. p. 116-117 e 120-121. 90 Catolicismo mais subordinado à autoridade civil, visando ao bem comum. Segundo tal perspectiva, a essa mesma autoridade, sob sua égide, em nome da paz pública, cabia tolerar ou não minorias religiosas.130 No caso português e luso-brasileiro, isso se faz ver de diversas formas nas obras de autores como d. Luiz da Cunha, Basílio da Gama, Luís Antônio Verney, Antônio Ribeiro Sanches ou, até mesmo, nos escritos do próprio Sebastião José de Carvalho e Mello. O objetivo do próximo capítulo será analisar, mais a fundo, estes pontos. 130 Ibidem, p. 137-139. 91 Capítulo 2 – A secularização, a tolerância e a cultura letrada sob o pombalismo “Não vistes a impressão, que os ateístas Das suas doutas vozes receberam? Como os mais sábios Chinas, e os Deístas A os seus altos clamores atenderam? E como os Libertinos revogaram As confusas ideias, que aprovaram? Agora vai buscar do Turco Império O mais esclarecido magistério Para também rende-lo: do Hebraísmo Procurará o indômito aforismo Para voltar-lhe os ritos: conjecturo Que senão intentais embaraça-lo, Daqui a pouco tempo algum vassalo O Abismo não terá, em que se veja Contra a luz Evangélica da Igreja Prosseguir a soberba tirania Da nossa antiga, infausta monarquia” (Francisco de Pina e de Sá e de Melo, O Triumpho da Religião, p. 202). No capítulo anterior, buscou-se discutir os modelos teóricos tradicionais sobre o Iluminismo e qual é o lugar ocupado pela religião no interior deles. A partir daí, tornouse possível analisar algumas das implicações desses modelos para se compreender as Luzes no mundo luso-brasileiro e, ao mesmo tempo, repensar, com base na historiografia, os contornos que lhes foram dados pelo Catolicismo nesse contexto social, cultural e intelectual. Ficou claro que uma secularização idealizada, parte integrante de um modelo explicativo pautado num “Iluminismo único”, de matriz francesa, em que a religião e cultura católicas e/ou própria religião em si são vistos como evidências de atraso, trazem obstáculos aos estudos sobre a Ilustração no referido contexto. A historiografia demonstra um curso particular de desenvolvimentos das ideias iluministas dentro dos contextos católicos, com demandas e debates distintos, ainda que com pontos diversos em comum com o sucedido, por exemplo, na Inglaterra ou na França. Compreender essas especificidades contextuais das Luzes, escapando da oposição entre “modernidade” e “atraso”, repita-se, é fundamental nesta tese. Se partíssemos de modelos tradicionais de interpretação sobre as Luzes, como já foi dito, a 92 análise do processo de secularização e da defesa da tolerância religiosa, a partir da segunda metade do século XVIII, seus múltiplos agentes e perspectivas, no mundo lusobrasileiro, conduziria à mera negação de sua existência. Ou, num cenário mais otimista, levaria a concluir-se que a secularização e a defesa da tolerância religiosa, dentro do recorte espacial e temporal supracitado, resumiram-se a fatos isolados e descarnados de contexto, ou, ainda, a algo que se limitou a ideias importadas, reproduzidas mecanicamente. Noutras palavras, seria analisar um tema ou pela sua negativa, ou por sua presumida inexpressividade ou fracasso. A leitura das fontes traz respostas muito mais complexas do que essas conclusões baseadas em modelos interpretativos estreitos. A negação da existência de um processo de secularização ou apenas a reafirmação de sua incompletude, tomando como referência outros contextos, sobretudo a Europa setentrional, vai de encontro ao que grande parte da historiografia demonstra a respeito de um contexto de mudanças do status da Igreja católica na vida pública no contexto luso-brasileiro a partir de meados do século XVIII. Idêntica conclusão vale quanto à relação da Igreja com a Coroa e as suas instituições, além da importância dos cleros regular e secular no interior destas. A hipótese que vai nortear este capítulo é de que tais mudanças, somadas a novas leituras acerca do papel própria religião na vida e nos espaços públicos, marcaram, a partir da segunda metade do século XVIII, a constituição de um espaço de disputas em torno do religioso, no mundo luso-brasileiro. Além disso, cumpre ressaltar que algumas dessas leituras possuíam raízes anteriores. Essas disputas envolveram vários grupos sociais, abarcando desde as elites letradas ligadas à Coroa até as camadas médias e populares da sociedade. Cada um desses setores, possuía expectativas e percepções próprias sobre as ideias de modernidade que ali circulavam. Aqui, o objetivo é demonstrar como formulações sobre a tolerância religiosa estiveram inseridas nesse campo de disputas. Essa primeira hipótese sobre a defesa da tolerância religiosa nas Luzes no mundo luso-brasileiro, em suas articulações com um processo de secularização do mesmo contexto, pode ser complementada por outras. Por um lado, o ideal de defesa da unidade entre a Coroa e a Igreja foi reforçado, e instituições como os vários órgãos de censura e a Inquisição foram preservados, ainda que readequados a novos projetos de Estado. Por outro, muitas das reformas propostas na esfera pública foram apresentadas por seus proponentes de modo mais ou menos coevo com tópicos do Iluminismo a respeito da tolerância, mesmo que com diversas ambiguidades. Uma dessas ambiguidades é explicável, ainda que em parte, pelo envolvimento de alguns desses 93 agentes nos mencionados projetos de Estado. Dito de outra maneira, em meados do século XVIII, no mundo luso-brasileiro, as formulações sobre a tolerância religiosa foram balizadas pelo Iluminismo católico e por seus diversos debates, por sociabilidades específicas e também por percepções sobre a necessidade de reformas, de todos os âmbitos, em Portugal e suas colônias. Procurou-se um ideal de pureza de fé conjugando-o com um combate à superstição, ao fanatismo e à ignorância. Isso tinha correlações com as ideias e os debates das Luzes e, ao mesmo tempo, com um substrato cultural existente na Península Ibérica e colônias, e que lhes eram muito anteriores. Essa relação entre um substrato cultural ibérico, que remonta séculos anteriores ao XVIII, que serviu como aparato importante no que toca a constituição de filtros para se interpretar tópicas da Ilustração, formular problemas e críticas tocantes a diversos aspectos culturais e religiosos do Catolicismo, será um pressuposto importante neste capítulo. Registre-se que perspectiva similar encontra-se em trabalhos de Luiz Carlos Villalta e Anita W. Novinsky, cujos objetivos eram distintos dos desta tese.1 Aqui, o objetivo é demonstrar, em termos mais gerais, como esses processos deram-se dentro da cultura letrada, muitas vezes patrocinada ou apoiadora do projeto reformista de Sebastião José de Carvalho e Melo, ministro de d. José I, mais conhecido pelos títulos que recebeu do soberano, de Conde de Oeiras e, posteriormente, de Marquês de Pombal. Sua figura foi central em todo esse processo de reformas. Para tanto, serão analisadas obras de vários pensadores portugueses e lusobrasileiros, da época pombalina e pouco anteriores a ela. Nessa análise, serão priorizadas algumas tópicas, tais como a presunção de um atraso de Portugal em relação às “nações cultas” da Europa, o antijesuitismo e as críticas gerais ao clero regular, além de um dirigismo cultural, no sentido de se modernizar as mentalidades. Essas tópicas fizeram-se presentes em muitas publicações, cujos autores estavam mais ou menos alinhados ao reformismo pombalino. Tais obras indicam possibilidades para compreender-se e contextualizar o processo secularizador no referido período, e, ademais, para discutir como a questão da tolerância religiosa perpassou os debates de então. No geral, as fontes indicam haver no Iluminismo católico português e lusobrasileiro uma dupla rejeição, tanto às correntes mais radicais das Luzes como aos aspectos considerados sinais de atraso, a saber, o fanatismo e os milenarismos. Trata-se, NOVINSKY, Anita. Estudantes brasileiros “afrancesados” na Universidade de Coimbra. Op. Cit. p. 357-371, especialmente, em relação aos pontos destacados, p. 357-359 e p. 365-366; VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo Ilustrado, censura e práticas de leitura: os usos do livro na América Portuguesa. Tese (doutorado em história). São Paulo: FFLCH-USP,1999, USP- 1999. p. 441-442. 1 94 como analisa Luiz Carlos Villalta, de características que constituíram um eixo comum da orientação reformista ilustrada, que marcaram a ação das autoridades portuguesas a partir de 1750. Tal orientação “conjugava a realização de modificações com a preservação da ordem monárquica, da religião católica e moral cristãs”.2 Essas diretrizes, marcantes na Ilustração lusa, aparecem bem claramente, ainda segundo o mesmo autor, no parecer do frei Inácio de São Caetano, censor da Real Mesa Censória, a respeito do livro Afeição a Maria Santíssima, datado de 1769, do qual se depreende uma importante inflexão a respeito do papel social da religião, conforme era entendido pelo regular. No parecer citado, o censor refutava, ao mesmo tempo, a irreligião e a superstição. Ele afirmava: A sólida e verdadeira piedade, conclui-se, opunha-se igualmente à libertinagem, que levaria a extremos a “impiedade do coração” e a “indevoção”, assim como se dava com a superstição, já que para esta concorria a falta de Luzes, da regulação: e aqui de novo se vê a indissociabilidade necessária da revelação e da razão, posto que, sem a primeira, não há devoção e, sem a última, inexiste regulação.3 O ideal regulado de religião, oposto à irreligião, por um lado, e ao fanatismo e superstição, por outro, constitui-se como uma chave de leitura fundamental ao objetivo de entender os pontos tocantes à defesa de alguma tolerância religiosa no contexto português e luso-brasileiro. Tal relevância advém, sobretudo, de se tomar como pressuposto que o mesmo ideal esteve na base de formulações sobre uma tolerância propriamente católica no contexto das Luzes. As discussões referentes aos modos de se converter “heréticos” ou à existência de legitimidade, ou não, de se punir minorias religiosas ou dissidências, abriram alguns caminhos, em alguns níveis, para se considerar a questão da tolerância. Esse processo articulou teorias regalistas, tópicas da Ilustração, uma longa tradição humanística católica ibérica e pontos já presentes dentro de uma vasta literatura polêmica religiosa. Entre elas, pode-se mencionar críticas ao atraso, econômico e cultural ibéricos que, muitas vezes, na pena de diversos críticos, foi associado à intolerância religiosa, sobretudo à Inquisição. Não se pode perder de vista, no entanto, que uma série de fatores limitou tais debates, tais como a censura, a mencionada ameaça inquisitorial e as várias limitações à presença de minorias VILLALTA, Luiz Carlos. As imagens, o Antigo Regime e a “Revolução” no mundo luso-brasileiro (c. 1750-1812). Escritos|Quatro. Fundação Casa Rui Barbosa. Ano 4, n. 4, p. 117-168, 2010. p.119. 3 Ibidem, p. 121. 2 95 religiosas.4 Dentro de um projeto de sociedade que conjuga um “ímpeto secularizador” com um ideal de uma “sã teologia” (termo recorrente nas fontes), que define uma fé católica moderada e racionalizada segundo a razão iluminista, é possível analisar-se como a tolerância religiosa foi pensada. É possível, além disso, evidenciar suas particularidades, problemas e idiossincrasias, ou ainda como ela participou, direta e indiretamente, das disputas travadas no campo religioso. Isso é fundamental para o entendimento do processo secularizador ocorrido no mundo luso-brasileiro no contexto do Iluminismo, em especial no período pombalino, para além de modelos homogeneizantes. Isso, ademais, permite compreender as especificidades desse processo no contexto referido. 2.1 A incipiente esfera pública e as Luzes católicas no mundo lusobrasileiro Esta tese concentra-se no recorte temporal que se compreende como o período do Reformismo Ilustrado, que abrange os reinados de d. José I (1750-1777), d. Maria I (1777-1816) e d. João VI (1816-1826). No caso do último soberano, vai-se desde o período em que ele governou como regente de fato, isto é, a partir de 1792. Daí a opção de localizar o recorte desta tese no contexto das Luzes no mundo luso-brasileiro. Todavia, em alguns momentos do trabalho, serão feitos recuos. Isso se justifica porque, para se entender o processo do desenvolvimento do Iluminismo em Portugal e no mundo luso-brasileiro como um todo, é necessário remontar, pelo menos, ao reinado de d. João V (1706-1750). A historiografia mostra que o pensamento científico, as discussões a respeito de uma modernização cultural ou a disputa de “antigos e modernos” já eram uma realidade na cultura letrada portuguesa anteriormente ao chamado Reformismo Ilustrado. É o que aparece em trabalho recente, que contou com uma importante reflexão transdisciplinar, envolvendo História, Diplomacia, Cartografia e outras ciências, de Júnia Ferreira Furtado. A autora analisou alguns contatos entre o diplomata d. Luís da Cunha (a ser focalizado neste capítulo) com o cartógrafo JeanBaptiste Bourguignon D’Anville. A partir de tais contatos, Júnia Furtado mapeia e analisa uma rede ampla e complexa que conectou uma gama vasta de pensadores franceses e portugueses na primeira metade do Setecentos. Com base nesse mapeamento 4 Esta discussão é o argumento central de um artigo de Juan Pablo Domínguez, sobre o contexto do reformismo bourbônico, na Espanha, no século XVIII. Vejo algumas similaridades com o caso lusobrasileiro, e espero demonstrar ao longo da argumentação neste capítulo. DOMÍNGUEZ, Juan Pablo. Reformismo cristiano y tolerancia en España a finales del siglo XVIII. Op. Cit. p. 129-138. 96 e também numa análise rigorosa dessas redes, Júnia Furtado constrói uma série de reflexões sobre a historicidade e características das Luzes no mundo luso-brasileiro. A autora sublinha os diversos projetos de modernização do reino português, marcantes nas visões de mundo que caracterizaram os embates diplomáticos e as proposições geopolíticas, culturais e econômicas, presentes nos escritos do próprio d. Luís da Cunha e de outros letrados, constituindo sua visão de conjunto do império luso. Além disso, destaca que tais letrados marcaram-se por um nível substantivo de cosmopolitismo, envolvendo redes de de sociabilidade. Tais redes integraram pensadores de várias partes da Europa, bem como academias de ciências e círculos letrados diversos, que floresciam em toda a Europa no período.5 Segundo Júnia Furtado, na primeira metade do Setecentos, já existia uma considerável inserção de letrados portugueses nos diversos circuitos de circulação de ideias e debates. Tais circuitos, em grande medida, identificam-se à expansão do Iluminismo pela Europa. Mais do que isso, ela mostra que houve, no império português, desenvolvimentos das Luzes anteriores a 1750, conclusão que se aproxima de importante historiografia sobre o período. Um bom exemplo nesse sentido é o trabalho de Ivan Teixeira, que explica que, no “âmbito da cultura portuguesa”, a chegada das Luzes “antecedeu as mudanças políticas” que marcaram o pombalismo na segunda metade do século XVIII. Já no reinado de d. João V, continua o autor, “vinha-se promovendo uma renovação no pensamento de Portugal”, observada nas academias, laboratórios, traduções e edições importantes. No campo das ciências, essa renovação corresponde à adoção do método cartesiano e da física newtoniana, ao passo que, na filosofia, equivale à superação da Neoescolástica em favor do experimentalismo inglês. Nas letras, observa-se a mesma renovação na assimilação da poética de Boileau e na “censura generalizada à poesia seiscentista, sobretudo sua vertente gongórica”.6 Já Luiz Carlos Villalta afirma que o panorama intelectual e científico português marcou-se por certa ambiguidade, incorporando as inovações que surgiram e, ao mesmo tempo, acomodando-as aos ditames religiosos católicos. Essa situação foi sofrendo uma ruptura paulatina, mas não total, ao longo da segunda metade do século XVIII. Por um lado, para a incorporação das novidades, colaborou o realismo característico dos portugueses; por outro, a formação Neoescolástica onipresente em Portugal frenava uma 5 FURTADO, Júnia F. Oráculos da geografia iluminista: Dom Luís da Cunha e Jean Baptiste Bourguignon D'Anville na construção da cartografia do Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012. 6 TEIXEIRA, Ivan. Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica: Basílio da Gama e a poética do encômio. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999. p. 23. 97 incorporação que suscitasse fortes rupturas. O próprio desenvolvimento das Luzes em Portugal, valorizando uma concepção de mundo na qual a razão e a observação tinham lugar central, favoreceu, ainda que indiretamente, o florescimento de formulações heterodoxas, que afrontavam a moral católica e iam de encontro às prescrições morais, políticas e religiosas da monarquia absoluta portuguesa.7 Mesmo a formação Neoescolástica onipresente, apesar de ter constituído um “obstáculo epistemológico” para a incorporação de novidades nos diversos campos da cultura letrada em Portugal, já que “travara o ímpeto da curiosidade e [a] experimentação científica” portugueses, não impediu de forma completa o surgimento de pensadores e correntes de divulgadores de novidades em voga no restante da Europa em terras lusas. Segundo José Sebastião da Silva Dias, se a opção predominante em Portugal era pela Escolástica, ela não era feita por desconhecimento completo das demais ou mero isolamento, mas por a julgarem superior às demais.8 Márcia Moisés Ribeiro, por sua vez, defende que um realismo foi característico do pensamento luso, um tanto preso a uma espécie de “ceticismo”, que os levava a “priorizar a ação em detrimento da especulação”, apegando-se menos à imaginação do que a perspectivas mais práticas e materiais da realidade que, às vezes, convergia com leituras muito literais dela. Sob essa condição, os portugueses jamais perseguiram, com a mesma intensidade que países protestantes do norte da Europa, feiticeiros e bruxas.9 Tendo em vista que Portugal não esteve absolutamente isolado, em termos de circulação de ideias e da cultura do restante da Europa, podemos dizer que o país, bem como a parte predominantemente católica ao sul do continente, viveu, à sua maneira e apesar de algumas barreiras já mencionadas, a crise do pensamento europeu, que marcou o Iluminismo. No caso de Portugal, como afirma Jonathan Israel, em seu Iluminismo Radical: A partir da década de 1680, a difusão do Cartesianismo, Malebranchismo e outras correntes da Nova Filosofia geraram (sic) uma profunda comoção intelectual na Espanha e Portugal seguida por um processo de renovação esporádica, culminando por volta da década de 1750 no surgimento de uma forma de Iluminismo caracteristicamente ibérica. Este processo tumultuado transformou não apenas o debate filosófico, mas todo o tecido da medicina, ciência e 7 VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do livro no mundo luso-brasileiro sob as Luzes: reformas, censura e contestações. Belo Horizonte: Editora Fino Traço, 2015. p. 125. 8 DIAS, José Sebastião da Silva. Portugal e a cultura europeia. Lisboa: Biblos, 1988, volume XXVII. p. 203-498. 9 RIBEIRO, Márcia Moisés. Exorcistas e demônios: demonologia e exorcismos no mundo luso-brasileiro. Rio de Janeiro: Campus, 2003. p. 30-33. 98 educação superior ibéricas e teve ramificações maiores também na América espanhola e no Brasil. 10 Assim, na Península Ibérica, segundo a tese de Israel, houve também a formação de um tipo próprio de Iluminismo, que remete ao final do século XVII e à primeira metade do XVIII, em que tendências modernas da “Nova Filosofia” circulavam em diversos locais de sociabilidade da cultura letrada e cujo “ápice” teria se dado a partir de 1750. Portugal e Espanha, apesar das representações sobre seu atraso e isolamento em relação às “nações cultas” dos Além Pirineus, amplamente difundidas na Europa e presentes nas obras de seus principais pensadores, estiveram a par da produção e circulação de ideias do Iluminismo. Não somente as consumiram, mas também deramlhes contornos próprios. Ainda conforme Israel, “esse movimento intelectual ibérico sempre esteve intimamente ligado a um fenômeno maior que compreendeu toda a Europa, com exceção da Grã-Bretanha”. Ele formava, de fato, “parte integral de uma disputa de cinco lados pela supremacia no campo letrado, que compreendia, no século XVIII, realidades que englobavam também o pensamento científico, teológico e político”. Tratava-se, segundo o autor, de uma disputa por hegemonia na cultura letrada entre os aristotélicos, os neocartesianos, o Leibnizianismo-wolfianismo, o Newtonianismo e as correntes mais radicais do Iluminismo.11 Ricardo de Oliveira, assim como Jonathan Israel, também concorda com a importância dos debates em torno das ideias de Descartes e Malebranches, na primeira metade do século XVIII. Tais ideias fizeram-se presentes nas discussões das academias portuguesas e foram importantes na constituição de um Iluminismo em Portugal e também no Brasil colonial. O autor ressalta, porém, que na cultura letrada portuguesa houve ambiguidades e entraves, no curso de um processo longo de mudanças, iniciado a partir de meados do século anterior. Oliveira explica que, seguindo uma tendência contrarreformista, surgida no século XVI e intensificada durante os anos da União Ibérica (1580-1640), em Portugal houve “forças a determinarem o fechamento do mundo luso a determinadas dimensões da modernidade”. Porém, a partir da segunda metade do século XVII, mudanças estruturais ocorreram na sociedade e nas elites portuguesas, e também na sua cultura letrada. Isso trouxe circunstâncias novas para Portugal, quase todas ditadas pelo movimento de Restauração, a partir de 1640. Essas circunstâncias, em grande medida, podem ser explicadas pelo crescimento do “fluxo de 10 11 ISRAEL, Jonathan I. Iluminismo Radical. Op. Cit. p. 577. Ibidem, p. 577-590. 99 militares, diplomatas, artistas, intelectuais e comerciantes a Lisboa”, que trouxe, “mesmo que de forma clandestina e descontínua, livros e ideias que se passavam na Europa para além da Península”. Com isso, Portugal foi “reinserido” em alguma medida no circuito dos debates, que passaram pela “querela entre os antigos e os modernos”, existente no mundo letrado desde o século XVI, “em que os frágeis representantes do segundo grupo digladiaram-se com a hegemonia da escolástica aristotélico-tomista”. Esse embate de antigos contra modernos estabeleceu, segundo o autor, uma “república das letras” em Portugal, sobretudo no círculo de letrados que se reuniam em torno da casa do quarto Conde da Ericeira, d. Francisco Xavier de Meneses.12 Berty Biron também destaca a importância das conferências na Sala Acadêmica do Palácio da Anunciada, do mencionado Conde da Ericeira. Foi nesse momento que, de acordo com a autora, “chega a Portugal esse fluxo renovador” do Iluminismo europeu, “que instaura um cosmopolitismo de ideias, uma circulação de saberes científicos, literários e históricos” do século XVIII. Berty Biron, assim como Fernando Novais, citado no primeiro capítulo, reforça o ponto de que, “apesar de não ter sido um dos principais geradores do pensamento ilustrado, Portugal é um dos primeiros países a iniciar as reformas”. Assim, continua a autora, “d. João V tem o cuidado de escolher assessores para promover a transição do pensamento conservador português para o pensamento ‘iluminado’ dos enciclopedistas”.13 O próprio quarto Conde da Ericeira, autor da Henriqueida (1741),14 é visto por parte da historiografia como uma espécie de “precursor” do Iluminismo em Portugal, tanto por estabelecer um núcleo de sociabilidade ilustrada, do qual fizeram parte nomes como o padre Raphael Bluteau, como também por inaugurar um modelo análogo ao de um mecenas na produção científica e cultural ilustrada, como será analisado mais à 12 OLIVEIRA, Ricardo de. Sob o alpendre da razão: dilemas da ilustração em Portugal na primeira metade do século XVIII. Revista Universidade Rural: Série Ciências Humanas, Seropédica, RJ: EDUR, v. 29, n. 1, p. 81–95, 2007. p. 84. 13 BIRON, Berty R. R. Considerações acerca do iluminismo luso-brasileiro. RCL | Convergência Lusíada, v. julho-dez., n. 32, p. 181–191, 2014. p. 181-183. O artigo mencionado de Fernando Novais, citado no primeiro capítulo é: NOVAIS, Fernando Antônio. Reformismo ilustrado luso-brasileiro: alguns aspectos. Op. Cit. 14 Henriqueida: poema heroico, com advertencias preliminares das regras da poesia epica, argumentos, e notas, publicado em 1741 por Francisco Xavier de Menezes (1673-1743), em Lisboa, na Oficina de Antônio Isidoro da Fonseca. Segundo Berty Biron, trata-se de uma obra importante, pois sintetiza o espírito da produção da Academia Real de História que, apesar de sua atividade ser “predominante (...) literária e filológica”, alia a essa produção a “indagação e o exame de matérias científicas”. No caso da Henriqueida, segundo ela, “o Conde da Ericeira não só escreveu um poema épico, mas se preocupou em acrescentar-lhe notas de caráter científico”. Percebem-se na obra, como explica a autora, a prevalência “da poética de Boileau e a censura ao gongorismo que vigorava no século XVII”, perfeitamente alinhada com as tendências do mundo das letras do Iluminismo. Ibidem. p. 182. 100 frente. Esse modelo foi importante para que se possa entender o comportamento, nesse campo, do próprio Marquês de Pombal. Segundo Rolando Morel Pinto, o patrocínio das “conferências discretas e eruditas”, realizadas em seu palácio e a fundação da Academia Portuguesa, em 1717, da qual se originou a Academia Real de História, se devem a ele.15 Formou-se, assim, um ambiente cultural, em alguma medida, afinado com o discurso científico mais moderno, que se ambientava nas universidades, academias e outras sociabilidades ilustradas no Além-Pirineus. Ricardo de Oliveira analisa evidências nesse sentido, na produção do padre Raphael Bluteau, também frequentador das audiências no palácio do quarto Conde da Ericeira, como já foi dito acima. Segundo o autor, na sua monumental obra Vocabullario Portuguêz & Latino (1712),16 “há um conjunto de vocábulos que por si só pertencem à maneira coeva através da qual se pode perceber o diálogo de setores da intelectualidade portuguesa com as chamadas ideias ilustradas”. Dito de outra forma, Oliveira conclui que o Vocabullario permite observar, no campo da linguagem, aspectos importantes das Luzes na cultura letrada de Portugal, como a exaltação do progresso e das ciências, bem como incursões na querela de antigos contra modernos, em prol dos últimos. Assim, analisando, por exemplo, a definição de Bluteau do termo “ciência”, ele percebe que a experiência e demonstração aparecem como aspectos centrais. O ilustrado francês, além disso, vale- se de um vocabulário acorde com obras de grandes nomes da ciência Moderna, além de constantes menções à importância desta ciência experimental para o bem comum em todos os âmbitos.17 Cotejando as definições de Bluteau com proposições referentes a pensadores portugueses contemporâneos a ele e presentes nos mesmos círculos de sociabilidade, Oliveira aponta, ainda, “para certa divinização da ciência” nos debates da Ilustração portuguesa na primeira metade do XVIII. Esta, ainda segundo o autor, é explicável como sendo parte de uma “adequação do conhecimento científico ao imaginário que se relaciona à ideia de mistério e fantasia, conforme inúmeros folhetos que passaram a circular em Lisboa no período”, indicadores de “certa dimensão da recepção em Portugal das ideias modernas”.18 Além disso, o autor destaca a difusão das Luzes em meio às ordens religiosas, que, mesmo notadamente articuladas com o status quo, internamente a seus debates e produções, desenvolveram inúmeras 15 PINTO, Rolando Morel. História da língua portuguesa. IV. Século XVIII. São Paulo: Ática, 1988. p. 9. BLUTEAU, Rafael. [1638-1734]. Vocabulario Portuguez & Latino. Op.Cit. Todos os volumes disponíveis em: < http://www.brasiliana.usp.br/> . Acessado em fev. 2017. 17 OLIVEIRA, Ricardo de. Sob o alpendre da razão. Op. Cit. p.86. 18 Ibidem, p. 88. 16 101 discussões afinadas com a ciência iluminista. Sobressaíram-se os trabalhos dos jesuítas Domingos Capassi, João Baptista Carboni e Eusébio da Veiga, no que diz respeito ao desenvolvimento, no Colégio de Santo Antão, dos estudos astronômicos, matemáticos e geográficos, fortemente incentivados por d. João V. O mesmo se pode dizer a respeito da importância de Teodoro de Almeida e dos oratorianos no desenvolvimento da cultura científica no Portugal da primeira metade do Setecentos. Oliveira, dessa forma, conclui que, em Portugal, na primeira metade do século XVIII, mesmo “sob o medo e o terror disseminados pela autoridade inquisitorial”, havia a “convergência de ideias modernas e a discussão de questões [a elas] relacionadas”.19 Sentia-se, em Portugal e em diversos outros lugares do mundo luso-brasileiro, ainda que de maneira localizada e em menores proporções que no norte da Europa, o surgimento do que se veio a chamar de uma opinião pública, típica do Iluminismo, algo que será discutido de forma mais aprofundada mais à frente. Aqui, importa localizar que, aplicando diretamente a categoria ou tangenciando-a, a historiografia sobre o período analisou o surgimento de uma esfera de opinião livre e crítica ao status quo em contextos específicos de Portugal e do Brasil colonial. Berenice Cavalcante, por exemplo, explica como surgiu o que ela denominou clima de opinião, marcante no contexto intelectual iluminista, nas elites letradas luso-brasileiras, ao longo do século XVIII. A autora define como clima de opinião iluminista uma forma peculiar para se usar a inteligência, um tipo especial de lógica marcante em seus debates. De forma resumida o que definiria o clima de opinião no século XVIII, e a sua identificação com o século das Luzes, seria o privilégio concedido à filosofia como porta de entrada ao mundo do conhecimento; a utilização de um vocabulário cujas palavras-chave seriam natureza, lei natural, razão, sentimento, humanidade e perfectibilidade, e uma peculiar relação entre fé e razão na recusa de todo conhecimento revelado.20 Esse clima de opinião, ainda segundo a autora, formou-se em paralelo com a constituição das monarquias absolutistas, nos séculos XVI e XVII, quando se redefiniram as noções de esferas pública e privada, sendo a primeira o espaço de exercício do poder, atributo exclusivo do monarca, e a segunda, um espaço de liberdade de consciência, que pautou a sociabilidade dos salões, academias, sociedades literárias e clubes, “animados pela arte da conversação, pela curiosidade científica e pela 19 Ibidem, p.86-89. CAVALCANTE, Berenice. Os “letrados” da sociedade colonial: as academias e a cultura do Iluminismo no final do século XVIII. Acervo- Revista do Arquivo Nacional, v. 8, n. 1–2, p. 53–66, 1995. p. 54. 20 102 apreciação estética”. Nessas instâncias privadas, os súditos vivenciaram a experiência da liberdade de opinião e da igualdade no plano das ideias, formando bases sobre as quais, segundo a autora, seriam “erigidas a utopia de uma nova sociedade que reinstaurasse a harmonia entre os cidadãos”.21 Constituiu-se, dessa maneira, nos meios letrados do mundo luso-brasileiro, nas academias literárias brasileiras, entre o primeiro quartel e o final do século XVIII, um ethos iluminista. Seus aspectos são vistos no cultivo da polidez, na produção e na fruição das belles lettres, na arte da conversação, nos valores da vida civilizada dos salões, entre outros. Ainda que tenha havido grandes diferenças entre os debates nesses meios de sociabilidades letradas, em Portugal, na América portuguesa ou mesmo nos mais diversos pontos da Europa, a autora chama a atenção para uma relação específica com o conhecimento e com as letras que, de alguma maneira, os integrava. Não se pode perder de vista, porém, como observa Ana Cristina Araújo, talvez em concordância com a análise de Berenice Cavalcanti, que “nesses certames eruditos, o entretenimento cultural, predominantemente masculino, conserva quase intactas as marcas do gosto e da afetação retórica típicas do barroco”, isto é, “ao lado de discursos eminentemente favoráveis às teses modernas, havia a presença de um código social em que se procurava ao máximo preservar postulados socialmente hegemônicos”.22 Esse clima de opinião, analisado por Berenice Cavalcanti, remete à opinião pública, que, mesmo que em proporções limitadas, teve seu desenvolvimento em Portugal e no mundo luso-brasileiro ao longo do século XVIII. Talvez quem a tenha sistematizado e ficado mais conhecido por sua análise da opinião pública como categoria histórica foi Jürgen Habermas. Para o autor, opinião pública foi um produto de uma longa mudança estrutural, ligada à constituição da “esfera pública”, ao longo da Idade Moderna. A esfera pública habermasiana, segundo a maioria dos estudos sobre ela, além do próprio autor, possui uma dimensão dupla. Uma delas é sociológica-filosófica, enquanto outra, é histórica. Esta última acompanhou um processo de mudança estrutural, que se deu em paralelo à constituição dos Estados Nacionais e ao desenvolvimento do capitalismo, após o fim da Idade Média. Segundo Habermas, na medida em que os espaços de exercício do poder vão se consolidando como um domínio exclusivo do monarca e seus conselheiros, o mercado se constituiu 21 Ibidem. Loc. Cit. ARAÚJO, Ana Cristina. A Cultura das Luzes em Portugal. Lisboa: Livros Horizonte – col. Temas e Problemas, 2003. p. 23. 22 103 com um espaço de uma ascendente burguesia. Somam-se a isso o aumento do público leitor e a expansão da produção de escritos – viáveis após o advento da imprensa de Gutemberg –, tais como livros, revistas, jornais, bem como o próprio o progressivo aumento de tipografias ao longo da Idade Moderna. A profusão de espaços de sociabilidades burguesas e o crescimento da produção de escritos formaram um processo que tornou possível uma considerável difusão de bibliotecas, salões de leitura, academias de ciências, lojas maçônicas, dentre outros, onde se constituiu uma esfera pública literária, que promovia significativas mudanças nos hábitos de leitura. Com isso, ler-se intensivamente poucas obras tradicionais perdia espaço para um consumo maior de escritos, que proporcionava – e também era produto de – um cada vez maior fluxo de publicações.23 Nesses espaços, progressivamente, os debates começaram a se ocupar de assuntos de interesse geral e tomar lugares externos à sua sociabilidade, impactando no coletivo. Eles se diferenciaram relativamente da “república das letras” tradicional, erudita e enredada nas sociabilidades cortesãs do Antigo Regime, constituindo fóruns de discussão e uso livre da crítica acessível ao público. É importante salientar que este público não se confunde com o povo, pois designava, a rigor, um público leitor que mobilizava alguns capitais – culturais, sociais e de recursos materiais – que possibilitassem o acesso a tais fóruns.24 Assim, na Alemanha, na França e na Inglaterra do Setecentos – em ritmos e de formas diferenciadas –, sobretudo entre as classes burguesas citadinas, multiplicaram-se esses espaços de discussão crítica, relativamente igualitários. Em tais espaços, todo argumento poderia, através da razão, ser comprovado ou não, tendo somente a mesma razão iluminista como crivo, independentemente das hierarquias constituintes das sociabilidades do Antigo Regime. Formou-se e estruturou-se, na modernidade, a “esfera pública”, que era formada por um público leitor crítico, e constituiu-se da formação de espaços de discussão de assuntos de interesse comum, por pessoas privadas no uso público da razão. A característica central dos debates dessa “esfera pública” habermasiana seria a noção de “opinião pública”, que, segundo Habermas, baseia-se na capacidade inerente do homem de racionalização. Por isso, segundo o autor, as “opiniões”, racionalizadas e publicizadas a partir de tais fóruns, passaram a exercer algum poder político, na medida em que o próprio exercício da política torna-se objeto desse tipo de racionalização. Com isso, o 23 HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Trad. Flávio R. Kothe. Rio de Janeiro: editora Tempo Brasileiro, 1984. Biblioteca Tempo Universitário, 76. p. 38-41. 24 Ibidem, p. 43. 104 exercício do poder por outras vias era colocado no campo da tirania e do arbítrio, criando-se, assim, um ideal de “neutralização” do poder sob a razão iluminista. Num primeiro momento, este processo contribuiu para pressionar politicamente e degradar algumas estruturas caras do Antigo Regime, como suas hierarquizações, típicas de uma sociedade estamental, e os dogmatismos. Num segundo, essa opinião pública, conforme Habermas, constituiu o próprio exercício do poder, na medida que esse público passaria a formar uma esfera representativa, na qual poderes, como os do monarca ou da nobreza, são progressivamente reduzidos à esfera privada – e seu uso no interesse coletivo, ao arbítrio, tirania e autoritarismo –, e o poder legítimo passa a ser pautado pela racionalização, possível somente com o uso público da razão em espaços onde isso se pode dar por meio de deliberação e uso de argumentos.25 Já Mona Ozouf, com uma argumentação que, em partes, concorda com a construção de Habermas, refere-se à formação da opinião pública no século XVIII como um processo complexo, que envolve de fenômenos literários e culturais, conjugados com mudanças sociais significativas, nas quais o próprio significado do termo “opinião” ganha novo significado. O termo deixa de ser somente entendido como oposição à verdade, segundo máxima platônica, passando a designar um corpo amplo e heterogêneo de máximas difusas, confusas e díspares, “constituindo uma torrente inexorável e uma força irresistível baseada no sentimento, que se torna uma força que reina no mundo”.26 Essa opinião pública viria a se constituir em uma difusão da consciência de haver uma espécie de “autoridade imaginária”, ancorada na razão iluminista, que naturalmente triunfaria, em algum momento da história, diante do arbítrio dos interesses particulares ou de ideias tomadas com base na irracionalidade – a rigor, sobretudo, as autoridades monárquica e eclesiástica. Surgiu, assim, no século XVIII, uma percepção ambígua. De um lado, houve instâncias em que ela se manifestou por excelência, como a cultura letrada e os parlements franceses, que teriam a função de esclarecer o vulgo com a razão e, assim, conduzir a “torrente inexorável” e heterogênea da opinião pública para o bem comum. Essa concepção de “bem comum”, para o qual os fóruns de opinião pública deveriam conduzir o vulgo, possuía alguma semelhança com valores de Antigo Regime, pois entendia-se que a submissão a uma autoridade para o bem geral poderia ser benéfica, com a diferença de que essa submissão haveria de ser 25 Ibidem, p. 98-101. OZOUF, Mona. Le concept d’opinion publique au XVIIIe siècle. Sociologie de la communication, v. 1, n. 1, p. 349-365, 1997. p. 351 26 105 alcança por meio da persuasão racional dos argumentos, e não da força, e sua autoridade estaria encravada na autoridade da razão ilustrada, na qual se chega pelo debate e pela crítica, e não pela religião revelada ou pela vontade do monarca. De outro lado, surgiu a ideia de que a mesma opinião pública seria impossível de ser conduzida e que não haveria garantias de que o julgamento racional prevaleceria diante das diversas opiniões.27 A forma como Habermas e Mona Ozouf abordam a opinião pública precisa ser analisada com cuidado. É preciso, primeiramente, matizar essa categoria para o contexto lusófono do Setecentos, não a aplicando pura e simplesmente às fontes que serão utilizadas. É preciso considerar, em primeiro lugar, que tal conceito não é unânime em termos de tratamento pela historiografia. As críticas ao conceito, aqui, servem de um contraponto teórico-metodológico. Uma crítica bastante polêmica foi feita por Stephen J. Barnett a respeito dessa abordagem habermasiana. Em conformidade com seu argumento central, já discutido no Capítulo 1 desta tese – de que boa parte da historiografia sobre o Iluminismo se pauta por “mitos de modernidade”, como o de “luzes laicas” ou “luzes deístas” –, a opinião pública, conforme estruturada por Jürgen Habermas e Mona Ozouf, representaria, em alguma medida, a reprodução de um desses “mitos”. O mesmo se poderia dizer a respeito da instrumentalização dessa categoria feita Chartier, em sua análise sobre a formação da opinião pública no contexto anterior à Revolução Francesa,28 Segundo Barnett, não houve um “surgimento da esfera pública ou da opinião pública no século XVIII”, conforme esquematizado pelos três autores supracitados. O que acontece, de acordo com o historiador britânico, é que tanto Habermas, como Ozouf e Chartier se equivocaram ao, também, incorrerem no erro motivado pela busca por raízes da modernidade no Iluminismo. Assim, Barnett diz que Jürgen Habermas, com o objetivo de “mapear as origens da modernidade secular”, na sua concepção de esfera pública “tendia a ignorar ou minimizar o conteúdo políticoreligioso tradicional da esfera pública emergente, e desproporcionalmente, destacar os elementos seculares modernos”.29 Barnett, então, conclui que esta opinião pública é anterior ao século das Luzes, pois Quando os historiadores descrevem as grandes batalhas de impressos de propaganda religiosa dos séculos XVI e XVII, elas só podem descrever tentativas de criar e / ou expressar a opinião pública.30 27 Ibidem. CHARTIER, Roger. As origens culturais da Revolução Francesa. Op. cit. 29 BARNETT, Stephen J. Enlightenment and religion. Op. Cit. p.72. 30 Tradução minha. Ibidem, p. 73. 28 106 Assim, para Barnett, opinião pública e esfera pública seriam realidades que existem antes do século das Luzes. Elas designam realidades que envolvem mudanças sociais e de pensamento com participação de múltiplos agentes, de variados estratos sociais, não somente os filósofos e não os tendo como “guias”. Eis, nesse ponto, outra crítica de Barnett à construção feita por Habermas e outros autores supracitados às referidas categorias: para o historiador britânico, Habermas se vale de uma construção sobre a esfera pública das Luzes que a identifica “com apenas um grupo, a burguesia” e, esta última, identificada com filósofos e uma intelectualidade “secular”. Presta-se, assim, continua Barnett, pouca ou nenhuma atenção aos conflitos e embates de natureza político-religiosa e, acrescenta que, essa concepção de esfera pública apresenta-se como funcional ao oferecer uma solução a respeito da relação teleológica entre Iluminismo e Revolução Francesa.31 A crítica que Stephen J. Barnett fez aos referidos autores que trabalharam com o tema da opinião pública no Setecentos, contudo, merece alguns reparos. Em primeiro lugar, é importante dizer que nem Habermas, nem Mona Ozouf, estruturaram seu conceito de opinião pública como algo produzido verticalmente, dos filósofos para vulgo. Ambos entendem haver uma dinâmica sociológica na construção de uma esfera pública no século XVIII, e que ela envolve a formação de sociabilidades muito mais complexas que a simples reprodução de argumentos dos philosophes. De formas distintas, tanto Habermas como Mona Ozouf constroem uma ideia de opinião pública mais fortemente estruturada no uso da razão e da crítica, surgida em espaços privados no século das Luzes e que, progressivamente, tomam o espaço público. Ozouf, por exemplo, demonstra a importância de eventos literários entre as décadas de 1740, como a efervescência das publicações vindas das academias literárias e científicas francesas, no sentido de se criar e difundir uma “utopia de igualdade”, advinda desses espaços de sociabilidade. Assim, construiu-se a legitimidade desse grupo formado por letrados e pelas camadas médias da população no papel de instruir, tanto o vulgo quanto o poder político – ainda que, ao menos no campo do discurso – a partir de ideais universalizantes, oposto aos particularismos, associados às autoridades, tais como o clero e o monarca.32 A estruturação e historicização da esfera pública feita por Habermas, conforme explica Jorge Adriano Lubenow, deriva-se do desenvolvimento de 31 32 Ibidem, p. 207. OZOUF, Mona. Le concept d’opinion publique au XVIIIe siècle. Op. Cit. p. 354. 107 um ethos liberal, desde a primeira metade do século XVIII até o século XIX, cuja análise é enfatizada na Inglaterra, França e Alemanha, sob o discurso de que o uso da razão, feito nessas assembleias privadas, ao tomar o espaço público, neutralizaria e racionalizaria o exercício do poder em si, em todas as suas formas. Analisando as próprias autocríticas que Jürgen Habermas fez de seu modelo explicativo de opinião pública entre os anos 1970 e 1990, Lubelow observa que um dos objetivos da construção histórica feita pelo pensador alemão é o de entender como essa esfera pública liberal decaiu progressivamente, sobretudo a partir do século XX. Isso por ela ter sido manipulada e dominada por meios de comunicação, permeados por interesses particulares, políticos e econômicos, que os utilizam para se legitimar. 33 O que importa, aqui, é mencionar que ambos autores, ao contrário da crítica feita por Barnett, mostram o que há de “moderno” na sua conceituação de opinião pública e a localizam historicamente, sobretudo no sentido de que ela caracteriza uma “utopia de igualitarismo”, surgida em espaços específicos de sociabilidade, e que constrói uma relação bem específica com autoridades tradicionais. Além disso, ela se organiza mais em torno da formação de um ethos específico que, propriamente, é tributário das ideias de filósofos e de outros pensadores. Além disso, ainda que esta opinião pública se identifique contrariamente aos dogmatismos das religiões instituídas, ela é coeva à formação de formas mais críticas de se lidar com o clero e instituições religiosas, bastante identificadas com as sociabilidades das Luzes, que não propriamente culminaram numa cultura “laica” ou rupturas mais substantivas com a religião. Em segundo lugar, é importante sublinhar a historicidade do conceito. Em sua obra, Barnett não vai a fundo, no sentido de demonstrar haver em contextos anteriores uma opinião pública estruturada tal como os autores criticados por ele demonstram haver no Setecentos. O autor, como foi mencionado acima, restringe-se a demonstrar – com clareza, inclusive – que houve usos diversos da razão nos espaços coletivos, sobre temas de interesse geral, nos contextos anteriores às Luzes, o que explica somente uma parte de suas críticas. Ficou faltando exatamente a particularidade que Habermas e outros autores identificaram no XVIII, a estruturação desse uso da razão em conjunto com as sociabilidades das camadas médias ou burguesas da população. Roger Chartier, por exemplo, dialogando com Habermas, oferece uma explicação bastante substantiva a 33 LUBENOW, Jorge Adriano. A categoria de esfera pública em Jürgen Habermas: para uma reconstrução da autocrítica. Cadernos de Ética e Filosofia Política, v. 10, n. 1, p. 103–123, 2007. p. 104108. 108 respeito da historicidade dessa opinião pública, identificada com a Ilustração. O historiador francês volta-se para o que compreende como um processo de dessacralização do mundo que, segundo ele, marca o final do Antigo Regime. Para Chartier, tal dessacralização não correspondeu a uma absorção das ideias dos philosophes pela sua simples leitura. Foi um conjunto complexo de mudanças sociais e culturais, que desde o final do século XVII envolveu significativas transformações na França: das práticas de leitura, das sociabilidades, da relação dos vários estratos sociais com o monarca e com instituições régias e eclesiásticas, como o clero, a Igreja e a aristocracia. Nesse processo, consolidou-se uma relação menos reverente do público com as autoridades constituídas. Mesmo que, por vezes em conformidade com ideias conservadoras, esse mesmo público adotou uma nova atitude perante o mundo e as instituições, o que acabou por tornar possível uma série de ações mais críticas e livres dos laços de obediência. Assim, a dessacralização, conclui Chartier, relaciona-se com uma mudança da chamada opinião pública, própria do XVIII, e que antecedeu a Revolução de 1789 e marcou em grande parte suas origens culturais.34 Em terceiro lugar, é fundamental retomar a ideia de que esse ethos, formado ao longo dessa mudança estrutural, segundo Habermas, Ozouf e Chartier, forma um público que não pode ser confundido com povo: no caso, os indivíduos privados que levavam a público essas discussões formadas em espaço privado, usando a razão, só tinham acesso a esses espaços mediante a posse de determinados recursos, sobretudo econômicos e culturais, de maneira que esse “público” se manteve limitado.35 É importante frisar, no entanto, que o acesso a esse “público” foi objeto de disputas, tornando-o uma categoria dinâmica e não estanque. Levando isso em conta, observo que Stephen J. Barnett não demonstra, na sua crítica a Habermas e aos demais autores que localizam a formação da opinião pública na Ilustração, haver algo análogo em contextos anteriores. Os fatores de diferenciação, por exemplo, desse público, tanto em relação ao vulgo, como em relação a uma cultura letrada tradicional, demarcada por Habermas como característica desse processo que o autor localiza no XVIII, não é devidamente considerada por Barnett. Em síntese, Barnett identifica um problema metodológico nas análises de vários autores que entendem haver uma particularidade nesse tipo de uso público da razão no Setecentos, sob a categoria opinião pública. No entanto, ele não demonstra de maneira substantiva como eles aparecem nos trabalhos criticados. Mais 34 35 CHARTIER, Roger. Origens culturais da revolução francesa. Op. Cit. p. 143-148. HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Op. Cit. p. 155-168. 109 que isso, a própria pré-existência de estruturas análogas, elemento que endossaria sua principal crítica à forma como Habermas, Ozouf e Chartier entendem a opinião pública das Luzes – de que não passaria de um “mito de modernidade –, é apenas mencionada. É necessário, todavia, sublinhar um mérito importante das críticas de Barnett a formulações clássicas sobre o conceito de opinião pública. Trata-se, no caso, de um afastamento da perspectiva habermasiana que associa o surgimento, estruturação e organização da opinião pública com uma classe burguesa. Barnett, por meio da chave do “mito da secularização” pela qual critica Habermas, chama a atenção para a existência dentro dessa opinião pública da Idade Moderna da importância de debates que tinham interlocutores e temas intimamente ligados à religião, como as polêmicas religiosas, querelas doutrinárias, debates a respeito de bulas e outros documentos eclesiásticos e sobre matérias teológicas, entre outros. Com isso, também, o autor britânico questiona a associação do ethos burguês moderno com a estruturação da esfera pública, que é depreendida da leitura habermasiana. Outros atores e círculos não propriamente pertencentes a modos de vida relacionados a uma classe burguesa participavam ativamente, segundo Barnett, dos círculos de debate e produção de ideias que caracterizou a formação da esfera pública. A asserção polêmica de Stephen J. Barnett sobre a formulação habermasiana de opinião pública, ainda que não se sustente e apresente problemas importantes, adverte quanto a um problema metodológico recorrente ao se estudar a Ilustração, mencionado no Capítulo 1: uma ideia tomada a priori de modernidade pode induzir o historiador a erros. A instrumentalização da categoria opinião pública para analisar as Luzes no contexto lusófono do XVIII pede um cuidado semelhante. Entendendo-a como característica das sociedades modernas – é importante lembrar que Habermas objetivou, com o estudo no qual o conceito de “opinião pública” foi formulado, entender mecanismos presentes nas estruturas políticas das democracias liberais –, há aqui um duplo risco: o primeiro, de se aplicar o conceito tal como o pensador alemão o formulou estudando contextos de países da Europa setentrional, desconsiderando características próprias de Portugal e da Europa católica, de maneira um tanto mecânica; um segundo é que, no afã de se evitar o primeiro tipo de problema, simplesmente se coloque de lado a instrumentalização do conceito de “opinião pública” para o contexto lusófono, numa operação mais ou menos análoga ao que já se faz, tradicionalmente, quando se negam desenvolvimentos do Iluminismo no contexto português – dito de outra forma, afirmarse que não existiu uma “esfera pública” no contexto luso. 110 Uma forma de se precaver em relação a esse problema é, primeiramente, admitir-se que essa opinião pública se manifestou em escala menor em Portugal do que no Além Pirineus. A inexistência de uma imprensa significativa e, como se sabe, a vivência sob a vigilância da censura e da Inquisição contribuíram para tanto. Acrescentam-se a tais elementos a proximidade de diversos círculos de letrados à Coroa e ao Marquês de Pombal, e seu alinhamento ao projeto político-religioso pombalino, o que leva a matizar a sua influência no espaço público e na política, conforme particularidades do contexto. Isso será analisado mais à frente, neste capítulo. Por sua vez, como já foi dito acima, esse público não era estanque, havendo outros agentes a buscar tomar parte deste “clima de opinião”. Entre os que o disputavam no espaço público, estavam os heterodoxos, que representaram vertentes mais radicais das Luzes em Portugal e na América portuguesa e que tiveram espaço nessa esfera pública. Tais sujeitos serão abordados ao longo dos próximos capítulos. Voltando à questão da opinião pública em Portugal e no Brasil no Iluminismo, de acordo com Ana Cristina Araújo, apesar da censura e da atuação inquisitorial, no contexto intelectual português, a partir de meados do século XVIII, havia uma “República das Letras”, composta por círculos de letrados, formada geralmente por “sinceros entusiastas” que “se encarregavam de divulgar e de discutir novidades filosóficas vindas do estrangeiro”. Para eles, conforme explica a autora, “as proibições impostas pela censura funcionavam mais como acicate e menos como obstáculo”, já que “conheciam bem os meandros dos circuitos ilegais de comercialização do livro estrangeiro e podiam beneficiar (...) mediante licença régia, do privilégio de aceder à leitura de obras defesas”.36 Outro elemento importante, apontado por João Adolfo Hansen ao analisar de forma pontual a arquitetura do século XVIII no Iluminismo católico luso-brasileiro, com destaque para a poesia, é que o “público”, à época, não é “como nas sociedades de classes contemporâneas, o espaço democrático de manifestação de livre concorrência liberal”, onde, ao menos formalmente, os indivíduos possuem autonomia de cidadãos livres “que fazem valer seus direitos particulares como opinião pública constitucionalmente constituída”. O “público” aparece definido como manifestação e representação do “bem comum” do Estado, constituído pela concórdia e pela 36 ARAÚJO, Ana Cristina. O filósofo solitário e a esfera pública das Luzes. In. RIBEIRO DA SILVA, Francisco, CRUZ, Maria Antonieta. RIBEIRO, J. Martins, OSSWALD, Helena (org.). Estudos em Homenagem a Luís Antônio de Oliveira Ramos. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2004, p. 197-210. Vol. 1. p. 202. 111 subordinação livre de seus estamentos.37 E sobretudo quanto aos letrados, membros dessa “república das Letras” formada em Portugal e Brasil no século XVIII, o autor lembra que não se tratava de escritores no sentido moderno, formado após o Romantismo, mas de letrados inseridos em uma estrutura clientelar, que reproduzia laços tradicionais de dependência. O corporativismo dessa “política católica” tradicional se via nos paratextos das obras – prefácios, exórdios, cartas dedicatórias, poemasepígrafe –, onde, “prestando vassalagem, os letrados esperam ser cooptados pelo poder, quando as dedicam aos poderosos” (ver Figuras 1 e 2).38 Trata-se de detalhes das obras que servem de indícios significativos acerta da inserção de muitos dos letrados das Luzes católicas em Portugal e no Brasil, que muitas vezes eram membros da administração estatal, funcionários da Coroa ou assíduos frequentadores dos salões da nobreza com todo um projeto político-cultural que estava em questão, em meados do século XVIII. 37 38 HANSEN, João Adolfo. Ilustração católica, pastoral árcade & civilização. Op. Cit. p. 25 Ibidem, p. 27 e p. 31-32. 112 Figura 1 - Contracapa da Dedução Cronológica e Analítica, de José Seabra da Silva. Primeiro volume, de 3. Disponível em Biblioteca Nacional de Portugal. BNL < http://purl.pt/12183/3/>. Acessado em jun./2018. 113 Figura 2 - Contracapa do poema épico-polêmico Triumpho da Religião, de Francisco de Pina e de Sá e de Mello. Digitalizado por Google Books e disponível em: < https://books.google.com.br/books?id=gqRbAAAAcAAJ&hl=ptBR&authuser=0&pg=PP1#v=onepage&q&f=false>. Acessado em jun./2018. No caso do pombalismo, há de se ressaltar ainda a política de cooptação desses letrados por uma espécie de mecenato, visando-se seja à exaltação da modernidade introduzida por Pombal no Reino e colônias, seja sua instrumentalização na propaganda antijesuítica.39 Ressalto que essa “opinião pública letrada”, em grande parte próxima da Coroa e alinhada com o reformismo pombalino, não constituiu o único lugar de formação de uma opinião pública no contexto luso-brasileiro. Os “libertinos”, maçons, 39 TEIXEIRA, Ivan. Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica. Op. Cit. p. 67-130. 114 estudantes, livres pensadores, dentre outros formadores de outros núcleos difusores e formadores de ideias mais radicais das Luzes, também ali figuravam. É importante, também, salientar que não houve linearidade nas trajetórias desses letrados, nem mesmo nos mais envolvidos na governação pombalina. Um exemplo claro é o de José Seabra da Silva, que assinou a Dedução Cronológica e Analítica (1767), uma das obras mais importantes em termos de conferir sustentação histórica e teórica ao discurso e às ações anti-jesuíticas do ministro de d. José I. Seu envolvimento com o reformismo e fidelidade ao Marquês de Pombal não impediram sua demissão e seu desterro em 1774, seguidos de sua prisão.40 Algo similar aconteceu com Francisco de Pina e de Sá e de Melo, importante letrado luso da segunda metade do século XVIII, também alinhado com o reformismo pombalino. Suas boas relações pessoais, políticas e literárias com o ministro plenipotenciário não o livraram de passar seis meses na Cadeia da Portagem, entre dezembro de 1762 e junho de 1763.41 Dessa maneira, formou-se em Portugal e no Brasil – neste último, em menor medida, ainda que não possa ser desconsiderada –, um Iluminismo com contornos próprios, em consonância com o desenvolvimento de uma “República das Letras” nas academias literárias e científicas surgidas na primeira metade do século XVIII e também com as ordens religiosas. Nelas, um clima de opinião e um ethos iluminista se formaram na cultura letrada e entre seus membros, relacionados por sociabilidades ilustradas. Vários desses sujeitos eram clérigos e aristocratas, mas entre eles houve pessoas de outras origens e laços de pertencimento. Nessas sociabilidades, viu-se a formação de uma vertente católica do Iluminismo, orientada, em grande parte, pela percepção de uma necessidade de modernização. Essa modernização tinha como alvos tanto a Coroa e a administração pública, como a economia, a cultura e as mentalidades. Além disso, envolveu um processo de secularização, não identificado com uma eliminação da religião do espaço público. Este ponto será tratado no próximo subitem. 2.2 O campo religioso, a secularização e o regalismo pombalino 40 José Seabra da Silva. Portugal: Dicionário histórico. Disponível em: http://www.arqnet.pt/dicionario/seabrasilvaj.html. Acessado em jul./2018. 41 Francisco de Pina e de Sá e de Melo. Projeto Vercial – Universidade do Minho. Disponível em: http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/pmelo.htm . Acessado em jul./2018. 115 “Secularizar”, grosso modo, remete a um declínio da religião em termos de importância na vida comum. De acordo com o que explica o sociólogo Peter Berger, a secularização é um processo “pelo qual setores da sociedade e da cultura são subtraídos à dominação das instituições e símbolos religiosos”.42 É necessário, todavia, mencionar que, em termos de conceito político, a secularização não é um sinônimo de “laicização”. Enquanto o termo secularização alude aos significados de perda de parte do controle social e institucional por parte da Igreja, laicização refere-se à neutralização do Estado e das suas instituições em matéria religiosa.43 É importante marcar a diferença desses dois conceitos com a finalidade de se evitar, ao longo deste capítulo, subestimar o processo de secularização do Reformismo Ilustrado, concebendo-o como não realizado na sua plenitude devido a uma laicização inconclusa ou inexistente. Há uma longa literatura a respeito desses termos, bem como sobre sua relação com a modernidade. Para os objetivos deste trabalho, neste momento, a abordagem será limitada ao debate mais atualizado, pensando propriamente na construção de modelos explicativos e na aplicabilidade deles em Portugal e no contexto luso-brasileiro. Um autor que faz essa discussão é Fernando Catroga. Para ele, em Portugal e nos demais países católicos do Sul da Europa – e, por extensão, suas ex-colônias na América –, o processo secularizador da instância da ordem política e sua afirmação como laicidade são inseparáveis da herança regalista, presente no Iluminismo católico. Para se entender o processo de secularização nas Luzes católicas no contexto luso, é fundamental uma compreensão substantiva do que significa o regalismo, o que será discutido mais à frente, ainda neste subtítulo. Importa aqui, no momento, a este respeito, ressaltar que, em Portugal, tal processo secularizador e de fundo regalista teve “a sua primeira medida mais espetacular na expulsão dos jesuítas”, decretada pelo Marques de Pombal em 1759. A partir de então, “ganhou curso, sobretudo nas elites políticas e intelectuais, um sentimento antijesuítico”, que, virá a combinar com um anticongreganismo mais geral, culminando com a extinção das ordens religiosas em 1834. Segundo Catroga, trata-se de um processo que tinha como pretensão “refundar a nação ou reaportuguesar Portugal”, em face de um “internacionalismo” da Igreja Católica. Para tanto, exigia-se a destruição de alguns dos alicerces culturais e sociais 42 BERGER, Peter L. O Dossel Sagrado elementos para uma teoria sociológica da religião. Trad. José Carlos Barcelos. São Paulo: Ed. Paulinas, 1985 (coleção História e Religião: 2). p. 119. 43 RANQUETAT Jr., Cesar. A laicidade, laicismo e secularização: definindo e esclarecendo conceitos. Revista Sociais e Humanas, Santa Maria (RS), v. 21, nº 1, p. 67-75. 2008. 116 que sustentavam o Antigo Regime.44 No mesmo livro, Catroga faz uma análise das categorias secularização, laicização e religião civil, construindo uma ideia geral a seu respeito e a seus processos, num âmbito geral, antes de analisar casos específicos, que são o da França, Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos, além dos países católicos da Europa meridional (Portugal, Espanha e Itália). Aqui não interessa analisar de forma pormenorizada cada um dos casos, mas, sim, aspectos gerais, principalmente sobre a secularização e, posteriormente, sobre a laicização. Quanto ao primeiro termo, Catroga faz uma longa discussão historiográfica e teórica, de forma a identificar uma linha de análises que remete a uma tradição sociológica, que remonta aos séculos XIX e XX, e que consegue grande alcance e influência. Tal linha caracteriza-se por um tom “otimista e prescritivo”, baseado na ideia de que a fundação do que chamamos de modernidade – e de aspectos a ela inerentes, tais como a urbanização e a burocratização de todas as instâncias da vida e seus marcos históricos, como a Revolução Industrial, que iriam, necessariamente, diluir a religião ou diminuir gradativamente sua importância fora dos espaços exclusivamente confessionais. Essa linha análise tem sido posta em causa, até mesmo por alguns pensadores que compartilharam, em algum momento, a ideia do “regresso do religioso”, segundo o qual a contemporaneidade estaria experimentando uma volta de um pensamento místico, visível nos fundamentalismos que recrudescem entre o final do século XX e o início do século XXI.45 O autor deixa claro haver alguns problemas nessa tradição e, diante disso, uma necessidade de atualização dos debates em torno da secularização. Catroga, apesar da abordagem original, não inova nesse debate, que ocupa lugar importante nas discussões acadêmicas de diversas áreas do conhecimento a respeito dos processos de secularização. Esses debates ocorrem, sobretudo no campo da sociologia, em especial nos estudos sobre religião, em que a ideia de uma irreversível e linear perda de importância do religioso na vida social, marcante em várias teorias sobre a secularização e laicização, é fortemente criticada. Como explica José de Jesús Legorreta Zepeda, a análise da secularização por este viés tem origem no século XIX e se consolidou na primeira metade do século XX. No entanto, sobretudo a partir da década de 1970, diversas críticas a essa forma de abordagem passaram a ser feitas. Ele analisa, por exemplo, correntes da sociologia em que “as abordagens” sobre a secularização “que procuram reduzir ou eliminar a religião (com suas instituições, crenças e práticas) da 44 45 CATROGA, Fernando. Entre deuses e césares. Op. Cit. p. 360. Ibidem, p. 15-35 117 vida social moderna fazem referência mais a uma ideologia – o secularismo – do que a uma teoria social”.46 De acordo com Zepeda: Nesse mesmo sentido, o peculiar conceito evolutivo e teleológico da secularização tem sido criticado por seus pressupostos históricos: se com o avanço da modernidade a religião tende a decrescer, isto faria supor que em algum momento do passado existiu algo como “a idade da fé”. Porém, uma análise histórica mais detalhada mostrará quão longe estiveram outras sociedades de ser algo mais que religiosas.47 Além disso, o autor aponta para críticas que incidem sobre “a seu inegável caráter etnocêntrico, que tende a identificar a rota do fenômeno religioso ocorrido na Europa ocidental como caminho paradigmático pelo qual deverão transitar as outras sociedades”, deixando de lado experiências históricas de modernização “em que a religião teve grande vitalidade, como no caso dos Estados Unidos, da América Latina e da Ásia”.48 Um exemplo de crítica às teses de secularização e laicização sob essa perspectiva aparece num relativamente recente debate entre o pensador Jürgen Habermas e o então cardeal Joseph Raztinger, que posteriormente tornou-se o papa Bento XVI (2004-2013) e atualmente é “papa emérito”. Retomando uma questão colocada por Habermas, em que lhe foi perguntado a respeito da necessidade de uma possível “correção de rumos” da racionalidade ocidental, Ratzinger, antes de admitir que a religião deve ser purificada de “patologias altamente perigosas” através do uso da razão – aqui, partindo de sua definição cristianizada, segundo a qual essa razão seria produto da reflexão crítica aliada à “luz divina” –, conclui que também a razão ocidental deve considerar corrigir seus rumos. Ela, em sua pretensão universalista, prescindiu de noções como as de tradição, religião e de pluralismo cultural, caindo num eurocentrismo e tornando-se altamente destrutiva. Assim, Ratzinger conclui que a racionalidade laica europeia, por mais que pareça evidente a quem foi educado no estilo ocidental europeu, não é compreensível para a toda a ratio e encontra limites em seu intento de se fazer inteligível. Ela está ligada a determinados ethea e âmbitos culturais e não é reproduzível, em conjunto, a toda a humanidade. Noutras palavras, o teólogo, ex-cardeal e papa emérito diz que não existe fórmula universal racional ou ética religiosa na qual 46 ZEPEDA, José de Jesús Legorreta. Secularização ou ressacralização? O debate sociológico contemporâneo sobre a teoria da secularização. Revista Brasileira de Ciências Sociais. V. 25, nº 73, p. 129-178. Junho/2010. Trad. Paula Carpenter. p. 131. 47 Ibidem, p.132. 48 Ibidem, Loc. Cit. 118 possam todos estarem de acordo. E de forma análoga, uma “ética mundial”, baseada numa ideia secular e laica ocidental, segue sendo somente uma abstração.49 Há, ainda, autores que negam a validade do próprio conceito de secularização, com base em análises em que se considera não haver mudanças significativas a respeito das dinâmicas da religião na sociedade que sustentem as teses clássicas a respeito do seu declínio na modernidade. Segundo esta negação, as teses que apontam para a secularização e modernização estariam mais baseadas em mitos a respeito desta última e da emancipação do homem face à religião, ou da existência de uma suposta “era da fé” que antecedeu a própria modernidade e, também, como mencionado no parágrafo anterior, de uma universalização artificial de processos surgidos da Europa setentrional e central para contextos de diferentes tradições religiosas e mesmo não cristãs, desconsiderando realidades históricas concretas. Um trabalho importante de síntese dessa discussão está no ensaio cujo sugestivo título é Secularization, R.I.P. (“Rest in Peace”, descanse em paz), de Rodney Stark, um dos mais importantes críticos das teses clássicas sobre a secularização, e defensor de sua negação.50 Questões como as que aparecem no debate entre Ratzinger e Habermas, bem como as que Catroga e Zepeda levantam nos seus respectivos estudos sobre o tema da secularização, apontam para limites da forma prognóstica de se pensá-lo como universal, projetando-o a todos os contextos, ou ainda em relação a uma suposta inevitabilidade de sua realização, decorrente da Modernidade. Com efeito, ele é, efetivamente, Ocidental, e a realidade histórica indica haver rumos incertos em tais processos. Catroga, ainda que não com a pretensão de invalidar as tais “teses prognósticas e prescritivas sobre o processo de secularização”, propõe-se a atualizar esses debates. A secularização e os processos que levam a ela, longe de significarem um “fim da história” – em que a Modernidade avançaria sobre as religiões e as afastariam progressivamente da cena pública, conduzindo para uma inevitável laicização, ou, ainda, numa outra abordagem, apenas aparentemente contrária, de que esse fim seria interrompido por um “retorno ao religioso” –,51 são pensados de maneira distinta. No modelo analítico construído por Catroga, os processos de secularização são variáveis no 49 RATZINGER, Joseph; HABERMAS, Jürgen. Dialéctica de la secularización: sobre la razón e la religión [2005]. Trad. Isabel Blanco e Pablo Largo. (Edição Kindle). Madrid: Ediciones Encuentro 2006. Edição Kindle. Posição: 547-613. 50 STARK, Rodney. Secularization, R.I.P. Sociology of religion, v. 60, n. 3, p. 249-273, 1999. 51 CATROGA, Fernando. Entre deuses e césares. Op. Cit. p. 43. 119 tempo e espaço, e possuem ritmos diversos e descontínuos, ainda que em determinados momentos sejam motivados por perspectivas universalizantes a respeito das relações entre a religião e a vida pública. Noutras palavras, ainda que tais processos não sejam homogêneos e “inevitáveis” conforme o curso da modernidade, existem alguns elementos em comum entre eles. Com isso, as flutuações, em termos de evidência e importância do religioso na política e vida em comum, também não são reduzidas a particularismos presentes em cada contexto específico. Explica o autor, por exemplo, que “se toda laicidade é uma secularização, nem toda a secularização se realizou como laicidade”, embora “ambas se distinguem do campo religioso também não se poderá olvidar” que “seu uso (e abuso) social e político as revestiu de alguma sacralidade”.52 Dito isso, fica claro que os modelos explicativos que buscam explicar a perda de centralidade do religioso nas instituições, vida e espaços públicos, além das representações de mundo – comumente, definido sob a chave conceitual da secularização –, buscam enfrentar dois problemas fundamentais. Um primeiro, localizado na sua abordagem fatalista, otimista e prescritiva, baseado num “mito de modernidade”, no qual, com o avanço dessa mesma “modernidade”, a religião perderia seu papel de centralidade de maneira progressiva e contínua. Pode se pensar num desdobramento deste primeiro problema, pela sua “outra face”, que está no “retorno do religioso”, ou no não cumprimento da promessa de modernidade do avanço da secularização. Segundo tal ideia, problemas como o fanatismo, fundamentalismo ou interpretações místicas e religiosas sobre o mundo representariam, a rigor, um “retrocesso” ou uma espécie de retorno a realidades anteriores aos processos de modernização. Um segundo problema, não menos importante, é configurado numa interpretação etapista da mesma secularização, dentro da qual o produto dela seria, necessariamente, uma laicização segundo conceitua-se o termo nas democracias liberais contemporâneas, o que de fato não corresponde a uma verdade verificável na História. No caso português, considerando-se o processo de secularização que marca o reinado de d. José I, sob o Marquês de Pombal, a partir de 1750, com raízes anteriores, mas acirrado, alguns desses pontos acima devem ser rigorosamente observados. Primeiramente, esse processo deve ser observado de acordo com dinâmicas próprias e coevo a disputas, expectativas e objetivos muito próprios do Setecentos. É necessário, assim, evitar “atenuá-lo” a partir de uma análise teleológica, pensada a partir da 52 Ibidem, p. 46. 120 realização ou não de um Estado laico posterior a tal contexto. Por sua vez, a relação entre a Coroa e a Igreja, com seus diversos abalos no referido contexto, que fizeram parte de um complexo processo secularizador, deve ser compreendida na variedade e multiplicidade de suas dinâmicas. A participação de eclesiásticos na sua execução e fundamentação doutrinal e teórica, ou ainda as diversas inserções de elementos religiosos no próprio processo secularizador do Iluminismo católico português sob o pombalismo devem ser tomados não por contradições ou paradoxos, simplesmente, mas como aspectos constantes a esta secularização. Por este viés, faz-se possível entender um elemento-chave do ímpeto secularizador português no XVIII: o regalismo. Mais que isso, conduz a entendê-lo de acordo com sua complexidade, que envolve diacronias, flutuações e permanências nas instituições e vida pública, e mesmo incursões do poder civil sobre aspectos mais identificados com o religioso. João Seabra chama a atenção para a impossibilidade de se compreender a política eclesiástica de Pombal sem se levar em conta um quadro mais amplo de relação entre as monarquias católicas e Roma, no século XVIII. Afirma que é certo que “não se pode entender o pombalismo religioso fora do contexto da derivação geral das monarquias católicas, na segunda metade” do Setecentos, “para o estabelecimento da supremacia régia sobre a Igreja, que se chamou galicanismo na França, febronianismo” ou febronismo “na Alemanha, josefismo na Áustria, e em geral se designa por regalismo”.53 Cândido dos Santos entende o regalismo de maneira um tanto similar. Para ele, o termo “regalismo” se define como um termo lato, variável, mas que cobre sensivelmente uma mesma realidade de tentativas diretas ou indiretas de afirmação dos direitos do Estado sobre a Igreja nas monarquias católicas da Idade Moderna. 54 Porém, Santos e Seabra, assim como diversos outros autores, entendem que a tendência de avanços de jurisdição do poder civil sobre o eclesiástico, ainda que com características mais gerais, englobam cruzamentos complexos de elementos dos mais variados, que vão de doutrinas e tradições políticas a interpretações teológicas muito diversas, que remontam a vários contextos da Idade Moderna. Na França, por exemplo, Cândido dos Santos lembra que tal questão remonta ao galicanismo, que tem raízes no século XV e teve importantes desdobramentos no século XVII. Neste último, no conhecido galicanismo episcopal ou episcopalismo, advogou-se em favor do primado dos bispos e 53 SEABRA, João. A teologia ao serviço da política religiosa de Pombal: episcopalismo e concepção do primado romano na Tentativa Teológica do padre Antônio Pereira de Figueiredo. Lusitania Sacra, [s. l.], v. 7, n. 2a, p. 359–402, 1995. p. 360. 54 SANTOS, Cândido Dos. António Pereira de Figueiredo, Pombal e a Aufklärung. Op. Cit. p. 170. 121 do que fora decidido nos concílios em relação à autoridade papal; houve desdobramentos no plano doutrinal e jurisdicional, tanto na França, como em países como Alemanha e Áustria, nesse sentido, até o século XVIII.55 A questão do primado dos bispos, em algumas matérias, em relação ao Papa, fez parte do cerne da argumentação do padre José Clemente (1698-1798), no Portugal da primeira metade do século XVIII, anteriormente ao pombalismo, segundo trabalho de Zília Osório de Castro.56 Voltando ao desenvolvimento sobre a questão da jurisdição papal no século XVII, na Alemanha elaborou-se um corpo doutrinário nesse sentido, tributário da publicação De Statu Ecclesiae et legitima potestate Romani Pontificis liber singularis, em 1763, do escolar de Lovain, Nicolaus von Honthein (1701-1790), que assinou a obra como Justinus Febronius. Tal obra foi importante no que toca à sustentação teórica das ações que defendiam a primazia do poder civil em detrimento do eclesiástico, e da autoridade dos bispos e “Igrejas nacionais” em relação à Santa Sé. O febronismo, como ficou genericamente conhecido tal corpo de ideias, era contra todo um sistema de governo eclesiástico análogo ao monárquico, pois definia que o supremo poder da Igreja pertence à comunidade dos católicos e que apenas seu uso pertencente ao Papa. Portanto, cabia ao Papa subordinar-se à comunidade, o que faz desaparecer seu primado de jurisdição. Para Justino Febronius, o primado do Papa não viria de Jesus Cristo, mas de São Pedro e, a rigor, seria um contrato social entre o corpo de fiéis, como comunidade que delegava poder ao pontífice. Assim, essa mesma comunidade poderia, legitimamente, revogar o poder papal. Sua obra foi bastante difundida na Europa, tendo sido mandada traduzir e publicar pelo próprio Marquês de Pombal, tendo um de seus leitores mais notórios o padre Antônio Pereira de Figueiredo. 57 Voltando a Portugal, alguns dos conflitos jurisdicionais entre Igreja e Coroa de Portugal com a questão do Padroado Régio.58Charles Boxer, em estudo fundamental a respeito do padroado, observou que concessões do papado à Ordem de Cristo desde 1456, tendo o padroado origem medieval, envolvendo uma série de regalias concedidas 55 Ibidem. p. 168. CASTRO, Zília Osório. Antecedentes do regalismo pombalino. In: POLÓNIA, Amélia, RIBEIRO; Jorge Martins, RAMOS; Luís A. Oliveira (Coord.). Estudos em Homenagem a João Francisco Marques. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2001. pp. 321-332. 57 SANTOS, Cândido Dos. António Pereira de Figueiredo, Pombal e a Aufklärung. Op. Cit. p.169 e p.178. 58 Uma explicação breve sobre o Padroado Régio se encontra na nota 39, do Capítulo 1. 56 122 aos monarcas pelo papado.59 Pelo padroado, o rei tinha autoridade para aceitar ou rejeitar bulas papais, escolher, com aprovação do pontífice, representantes da Igreja, além de uma série de outras atribuições. Entretanto, mesmo que o padroado conferisse ao rei prerrogativas de interferir em assuntos eclesiásticos, a relação Estado e Igreja, desde o século XVI, esteve passível de conflitos de jurisdição. Houve, ao longo de toda a Idade Moderna, diversas contendas entre eclesiásticos, reclamando suas imunidades, e seculares, apelando à soberania régia, em conflitos de natureza religiosa e política, dentro de Portugal e colônias.60 Debates e conflitos sobre limites de jurisdições da Igreja e da Coroa estiveram longe de serem exclusivos de Portugal. Dentro desse quadro de conflitos, Cândido dos Santos observa haver grande contribuição para a justificação teórica do primado da autoridade régia sobre a eclesiástica em escrito de Gabriel Pereira de Castro, intitulada De manu regia, colocada no Índice de livros defesos em outubro de 1640, pouco tempo após ser publicado.61 De toda maneira, incursões da Coroa sobre a jurisdição papal e eclesiástica já aconteciam em Portugal na primeira metade do século XVIII, como demonstrou estudo acima citado de Zília Osório de Castro, e eram também afirmados no plano simbólico e cerimonial, em liturgias ligadas à corte de d. João V e ao próprio monarca, de acordo com o que mostra estudo a este respeito de Ana Cristina Araújo.62 Na Colônia, Aldair Carlos Rodrigues demonstra haver impactos deste processo de afirmação do poder régio sobre o eclesiástico e da jurisdição da Coroa sobre a papal nas atribuições dos bispos, quanto a nomeações de eclesiásticos, na medida em que a Coroa aumentou ainda mais seu controle de provimento de cargos em função de sua orientação regalista.63 Em síntese, o regalismo pombalino se define como a supremacia do poder civil sobre o eclesiástico, que decorre da alteração de uma prática jurisdicional comumente seguida ou de princípios geralmente aceites, sem haver uma uniformidade na argumentação com a qual ele é legitimado. O regalismo pombalino caracteriza-se, dessa maneira, pelo seu caráter doutrinário, decorrente de uma teoria específica de poder, sacralizadora da soberania e identificadora do seu âmbito de jurisdição. A reforma da Igreja e a reforma do Estado tornaram-se, no pombalismo, partes integrantes do mesmo 59 BOXER, C. R. A Igreja e a Expansão Ibérica (1440-1770). Lisboa: Edições 70, 1981. p. 98-100. MUNIZ, Pollyanna Gouveia Mendonça. Cruz e Coroa: Igreja, Estado e conflito de jurisdições no Maranhão colonial. Op. Cit. p. 39-42. 61 SANTOS, Cândido Dos. António Pereira de Figueiredo, Pombal e a Aufklärung. Op. Cit. p. 171. 62 ARAÚJO, Ana Cristina. Ritualidade e Poder na Corte de D. João V - A génese simbólica do regalismo político. Revista História das Ideias, v. 22, n. 04, p. 175–207, 2001. 63 RODRIGUES, Aldair Carlos. Igreja e Inquisição no Brasil: agentes, carreiras e mecanismos de promoção social – século XVIII. São Paulo: Alameda, 2014. p.78-79 60 123 processo, pois o poder temporal e o espiritual eram vistos como esferas sobrepostas, ambas submetidas ao poder régio.64 O regalismo pombalino implicava a anulação do poder papal como poder que se contrapunha ao poder régio, tanto na ordem externa como na interna. Para tanto, o poder dos bispos e do clero, regular e secular, e o alinhamento deles ao reformismo pombalino, fizeram-se fundamentais, o que explica, em grande parte, as perseguições a alguns setores e ordens, como os jesuítas, que representassem tendências contrárias a esse curso de ações.65 O regalismo pombalino representou um marco do processo secularizador no Iluminismo católico de Portugal. Isso porque sua construção, em grande medida, transformou em ação, em esferas das mais diversas, uma disputa por parte da autoridade poder civil, pelo que se denomina campo religioso. Ele se deu dentro de processos similares aos analisados por Roberto Di Stefano, sobre a Ibero-América no “longo século XIX” – denominação que o autor toma de empréstimo de Eric Hobsbawm, mas que, em seu trabalho, é adaptada à realidade ibero-americana, tendo seu início recuado aos reformismos pombalino e bourbônico, a partir da segunda metade do Setecentos.66 Di Stefano indicou que as formas de contestação religiosas surgidas ao final do Antigo Regime guardaram estreita relação com o processo de secularização. Tal processo afetou, de maneira direta e indireta, desde o século XVIII, a vida coletiva de toda da sociedade ocidental. No entanto, a relação entre dissidência e secularização é complexa, não sendo a dissidência mero produto da secularização, da mesma maneira que não se pode explicar a primeira sem se considerar sua influência. Para Di Stefano, as formas de contestação religiosa do Antigo Regime desenvolveram-se internamente a um campo religioso, possuindo o que ele explica como um “duplo sentido religioso”: em primeiro lugar, um sentido mais evidente, por se tratar de críticas à religião, ao menos no plano institucional; em segundo, tais dissidências e críticas se guiaram pelo capital simbólico 64 CASTRO, Zília Osório. Antecedentes do regalismo pombalino. Op. Cit. p. 321-332. p.322-326. Ibidem, p. 330. 66 O “longo século XIX” é o recorte abordado pela consagradíssima trilogia de Eric Hobsbawn, entre o fim do Antigo Regime, com a Revolução Francesa de 1789, e a I Grande Guerra, em 1914 ( HOBSBAWM, Eric. A era das revoluções: 1789-1848. Trad. Maria Tereza Lopes Teixeira, Marcos Penchel. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 2015; ____________. A era do capital: 1848-1875. Trad. Luciano Costa Neto. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 2015; __________. A era dos impérios. Trad. Sieni Maria Campos e Yolanda Steidel de Toledo. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 1988). Pode-se dizer que Roberto Di Stefano fez uma pequena adaptação dessa expressão para a Ibero-América, embora algumas ressalvas possam ser feitas. Por exemplo, as reformas pombalinas e bourbônicas, para o mundo ibérico, podem significar marcos de surgimento da modernidade ou do processo secularizador, mas tiveram significados e impactos bem distintos da Revolução de 1789. De toda maneira, a expressão também explica alguma continuidade entre o processo secularizador, que o autor indica surgir nesse contexto, e as diversas outras manifestações de anticatolicismo e anticlericalismo que marcaram movimentos republicanos e independentistas argentinos no século XIX. 65 124 religioso, que envolveu questões tocantes à salvação da alma, sacramentos, dogmas, mandamentos, princípios morais e éticos religiosos, trato com a própria e com outras dissidências, dentre uma ampla gama de elementos.67 A perspectiva de secularização como um processo longo, descontínuo e diacrônico, adotada por Catroga e que se afasta de modelos prognósticos e prescritivos, assim como a tese de Di Stefano a respeito da dissidência religiosa, tomada não como antirreligião, mas como um aspecto de disputa por bens simbólicos, interna a uma dinâmica religiosa, articulam-se, como mencionado acima, com a categoria de campo religioso, formulada por Pierre Bourdieu. Segundo Bourdieu, esse campo religioso remete a uma divisão social do trabalho, em que se destaca da sociedade um grupo de indivíduos, portadores de determinado capital cultural e simbólico, que se apresentam como detentores e controladores de uma verdade religiosa, e que se organizam de forma a administrar o que chama de “bens religiosos” e “bens de salvação”. Entre esses bens, incluem-se ritos diversos, práticas religiosas, interpretação autorizada e legítima das escrituras etc., observando-se uma moralização paulatina dessas práticas a partir da constituição desse grupo, que forma uma espécie de “corpo sacerdotal”. A ideia do autor, com a categoria de campo religioso, é de pensar a religião como linguagem, comunicação e meio de estruturação de um sistema que engloba um universo específico de princípios éticos e morais, ideias e organizações sociais (descritas na metáfora do “círculo mágico”), que envolvem indivíduos e grupos em determinados contextos.68 Bourdieu chega a tal categoria articulando posições clássicas sobre a religião de autores como Marx, Weber e Durkheim, de forma que tais construções de fatos e linguagens religiosos não impliquem simplismos, como o automatismo de “cair de círculo em círculo”, ou que sejam simplesmente isolados das demais estruturas sociais, como a política ou a econômica.69 Por sua vez, a gênese do campo religioso, segundo Bourdieu, não se reduz a meros desenvolvimentos das transformações sociais e econômicas. O campo religioso estrutura-se de maneira relativamente autônoma. Dele fazem parte três conjuntos de fatores: primeiramente, a constituição de um corpo sacerdotal, que integra uma elite de uma sociedade, onde há uma divisão de trabalho intelectual e material, juntamente com 67 STEFANO, Roberto Di. Disidencia religiosa y secularización en el siglo XIX iberoamericano: cuestiones conceptuales y metodológicas. Projeto História, São Paulo, n 37, p. 157-178. 2008. p.158-159. 68 BOURDIEU, Pierre. Gênese e estrutura do campo religioso. In: ________. A Economia das trocas simbólicas. Trad. Sérgio Miceli. São Paulo: Editora Perspectiva, 1974. p. 27. 69 Ibidem, 27-28. 125 a própria consolidação do campo sacerdotal no papel de distribuir, gerir e reproduzir bens religiosos; em segundo lugar, a atuação de um corpo leigo, na difusão e sedimentação ética dos valores religiosos, ajudando a se consolidar a hierarquia social interna ao campo religioso no que toca ao acesso a verdades e mistérios e à administração dos bens religiosos; e em terceiro lugar, pensando nesses dois movimentos combinados em um determinado contexto, desenvolve-se uma dinâmica em que se consolida um corpo que que monopoliza o capital religioso, juntamente com uma fundamentação ética desse monopólio, aceita amplamente. Com isso, constitui-se uma hegemonia em relação ao capital religioso e uma hierarquização social em torno de quem o detém, e com isso se tende a repelir os “novos”, vistos como profanos, em oposição ao referido corpo sacerdotal, ou ainda hereges, blasfemos ou feiticeiros, quando disputam com esse mesmo corpo sacerdotal a administração desses bens de salvação em grupos restritos ou num corpo social mais amplo.70 Assim, é fundamental frisar que, ainda que o campo religioso constitua uma estrutura relativamente autônoma, porém não dissociada completamente de realidades políticas e materiais num determinado contexto histórico, ele comporta tensões e disputas internas. Tais tensões e embates se desenvolvem, em geral, entre os detentores legítimos do monopólio dos bens de salvação, formado por sacerdotes, que são geralmente o grupo dominante, e os outsiders, grupos dominados, na maioria das vezes, formados por aqueles que são rejeitados e repelidos por esse corpo de sacerdotes e que, de alguma maneira, colocam a legitimidade do monopólio do religioso em disputa. Articulando a categoria de campo religioso, de Bourdieu, à perspectiva de secularização de Catroga e à ideia de dissidência religiosa como aspecto de uma disputa interna dentro do mesmo campo religioso, conforme defende Di Stefano, com a problemática em torno do processo secularizador e do regalismo do Reformismo Ilustrado português, antecipo agora algumas considerações, que desenvolverei mais a fundo ao longo deste capítulo. A primeira é que, ainda que não seja adequado pensar as políticas do Reformismo Ilustrado tocantes à religião e ao clero como “dissidência”, é possível compreendê-las como elementos de uma secularização das instituições, como uma disputa específica dentro de um campo religioso. Isso porque, nesse processo secularizador, coexistiu uma tentativa de se reformar as mentalidades e o próprio Estado e suas instituições, sob um ideal de religião racionalizado, segundo princípios 70 Ibidem, 38-45 e 57-65. 126 iluministas, com um combate contra agentes identificados com um “anti-projeto do Reformismo pombalino”, o que incluía parte dos cleros regular e secular, em especial a Companhia de Jesus e, nesse sentido, toda uma hegemonia eclesiástica, vista em instituições que iam da censura à educação formal. Não se tratou de um movimento antirreligioso, uma vez que houve um ideal específico de religião, que ocupou um lugar central dentro de um projeto reformista, que tocava a todos os setores da sociedade, da política, da economia e da administração pública, marcado por um amplo dirigismo cultural por parte do poder régio. No processo secularizador que teve lugar na Ilustração em Portugal e no Brasil colonial, observou-se essa forte disputa pelo controle e hegemonia dos aparelhos culturais de toda a sociedade entre a Coroa e a clerezia. Podese pensar em uma sistemática tentativa de submissão das Igrejas nacionais e ordens religiosas à Coroa, elemento presente no Iluminismo Católico e, no caso de Portugal, com forte influência do josefismo austríaco, como confirmam Ana Cristina Araújo e Cândido dos Santos.71 Francisco Bethencourt lembra a conexão entre o processo de secularização em Portugal e a tendência geral de centralização estatal que marcou o reformismo levado a cabo por Sebastião José de Carvalho e Mello entre 1750 e 1777. As reformas introduziram significativas mudanças na administração pública, na educação, na economia, no comércio marítimo, no desenvolvimento urbano e nas relações entre a Coroa e Igreja católica. Quanto a estas últimas, segundo o autor, houve uma “afirmação de poder do Estado perante a Igreja”, o que “implicou um conflito aberto com os jesuítas que resultou em sua expulsão de Portugal e colônias em 1759”.72 Segundo Bethencourt, de um lado, é preciso considerar os limites da Ilustração católica portuguesa, “muito mais em diálogo com os modelos italiano e austríaco que com os modelos britânico e francês”, e que isso implicou uma aparente contradição entre as decisões e reformas modernizantes de Pombal e um “conservadorismo estrutural do Antigo Regime português”. Porém, de outro lado, deve-se ter em vista que as políticas de Pombal “abriram caminho para a criação de uma cultura política secularizada”.73 71 ARAÚJO, Ana Cristina. Dirigismo cultural e formação das elites no pombalismo. In: _______. O Marquês de Pombal e a Universidade. 2a edição. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2014. p. 16–48. p. 24; SANTOS, Cândido. Matrizes do Iluminismo Católico da Época Pombalina. Op. Cit. p.952. 72 BETHENCOURT, Francisco. Enlightened Reform in Portugal and Brazil. In: PAQUETE, Gabriel (org.) Enlightened Reform in Southern Europe and its Atlantic Colonies: c. 1750–1830. p. 41-46. Cambridge: Ashgate e-book, 2009. p. 41. 73 Ibidem, p. 42-43. 127 Francisco Calazans Falcon fala de um “ímpeto secularizador, regalista e centralista do Estado no Reformismo pombalino”, frisando também a afirmação de poder da Coroa perante as instituições tradicionalmente ligadas à Igreja e ao clero. O autor menciona que o alvo efetivo da Coroa nunca foi a Igreja, tomada no sentido de instituição religiosa, mas sim “a dominância do aparelho religioso” sobre “os demais aparelhos ideológicos”, somada à presença direta do clero na política. Não se propunha a supressão pura e simples da hegemonia eclesiástica. Isso, segundo Falcon, “demandaria não apenas simples reformas, e sim, uma revolução ” – o que leva a inferir que o autor partiu de uma definição distinta da que tem sido adotada nesta tese quanto à secularização e aos processos secularizadores, em sua interpretação, pautados por uma noção de diluição e eliminação progressiva do religioso na vida pública. Ainda segundo o mesmo autor, objetivou-se “uma reorientação ou uma redefinição da mesma hegemonia, capaz de abrir espaço às novas formas de pensamento”, o que viria a implicar, na prática, “uma profunda mudança na própria organização institucional da cultura e seus aparelhos respectivos”74. Luís Cabral de Moncada chama a atenção para um elemento fundamental no sentido de se entender o processo secularizador em Portugal, que é o fato de ele não ter prescindido da própria Igreja ou da religião, mas tê-lo, em alguma medida, instrumentalizado. Segundo Cabral de Moncada, o regalismo português se caracterizou por um projeto centralizador e de reformas que foram empreendidas verticalmente. Tratou-se de uma modernização vinda de “cima” e que teve no Estado o principal agente. Segundo ele, essa instrumentalização da Igreja por parte da Coroa “foi uma astúcia do Estado para se poder tornar, ele próprio, divino no domínio político, acabando por prescindir do religioso, e se separar dele quando já dele não precisava”. Dentro de uma concepção político-religiosa de uma Igreja intrumentum regni, o regalismo não foi “outra coisa senão o primeiro passo de uma tentativa no sentido da emancipação do ‘político’ em frente do ‘religioso’, conservando aquele por usurpar a dignidade ética deste, para à custa dela fundar depois a sua própria, num domínio espiritual autônomo”.75 Em específico sobre a relação entre a Coroa e a Igreja sob Pombal, Laurinda Abreu observa que o reformismo pombalino não se afasta muito daqueles implementados na Áustria, Nápoles, Alemanha ou na Espanha de Carlos III, “modelo 74 75 FALCON, Francisco Calazans. A Época Pombalina. Op.Cit. p.424-425. MONCADA, Luís Cabral de Oliveira. Um “iluminista” português do século XVIII. Op. Cit. p. 65-95. 128 sobre o qual se construía o poder dos Estados Ilustrados” e “acomodava-se mal com práticas ultramontanas e com excessos de autonomia, multiplicidade de privilégios e de imunidades de que gozavam o clero e as instituições religiosas”. Segundo a autora, naquele contexto político europeu, o relacionamento entre a autoridade secular e a Igreja pautava-se pela afirmação de um regalismo crescente e uma consequente diminuição ou eliminação de poderes concorrentes. Pombal, na concepção da autora, estava plenamente de acordo com tendências de outras monarquias europeias do período, o que implica, segundo ela, que “reduzir a sua intervenção a um mero fenômeno de importação”, conducente a um reformismo desligado da tradição católica portuguesa, “sem consequências estruturais” significativas, é “um exercício desajustado em relação à verdade dos fatos, que os documentos confirmam”.76 Dessa maneira, Laurinda de Abreu vê, no conjunto das ações do Marquês de Pombal, uma coerência com outros modelos políticos de reformas orientadas pelo Iluminismo, encontrados nos países católicos. Uma perspectiva bastante diferente é a adotada por Nuno Gonçalo Monteiro, para quem “os modelos políticos de Pombal, de acordo com o que o próprio afirmou e boa parte dos seus contemporâneos constataram, foram experiências ‘absolutistas’ do século XVII”, e, assim, “Pombal viu-se e foi visto como um político do Barroco em pleno século das Luzes”.77 Dois dos principais pontos que Monteiro utiliza para sustentar seu argumento são as constantes comparações, presentes e analisadas na documentação, feitas entre Pombal e o cardeal de Richelieu, conhecido primeiroministro do rei Luís XIII, da França, entre 1628 e 1642, por contemporâneos e pelo próprio Pombal, bem como algumas características do comportamento de Sebastião José de Carvalho e Mello, comuns, segundo Monteiro, com a figura o valido seiscentista.78 A tese de Monteiro, no entanto, apresenta algumas inconsistências que precisam ser levadas em conta. A começar que, como já foi discutido acima, a partir de trabalhos como os de Berenice Cavalcanti e Ana Cristina Araújo, alguns hábitos de Corte mantidos nas sociabilidades ilustradas em Portugal não eram conflitantes com a 76 ABREU, Laurinda. As relações entre o Estado e a Igreja em Portugal, na segunda metade do século XVIII - o impacto da legislação pombalina sobre as estruturas eclesiásticas. In. FARIA, Isabel Leal de; BRAGA, Isabel Drumond (orgs). Problematizar a História: Estudos de História Moderna em Homenagem a Maria do Rosário Themudo Barata. Lisboa: Caleidoscópio, 2007. p. 644-673. p. 647. 77 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. D. José: na sombra de Pombal. Lisboa: Círculo de Leitores, 2006. p. 244. 78 Ibidem, p. 245-248, p. 230-231. Uma síntese dos argumentos sobre as características de valido de Pombal está na resenha feita, da mesma obra, por Antônio Manuel Hespanha. HESPANHA, António Manuel. A note on two recent books on the patterns of Portuguese politics in the 18th century. E-journal of Portuguese History, v. 5, n. 2, p. 42-50, 2007. p. 44. 129 circulação de ideias e com o desenvolvimento das Luzes no contexto luso-brasileiro, sendo, no caso, uma de suas ambiguidades marcantes. Monteiro, inclusive, admite que Pombal, “obcecado por pôr Portugal a par das ‘nações mais polidas da Europa’ e contemporâneo das elites das Luzes”, compartilhou com elas inimigos em comum, tais como o poder civil da Igreja e os jesuítas, e “foi buscar nelas algumas fontes de inspiração”, embora conclua que, ainda assim, “Pombal não foi um filho das Luzes”, reforçando as comparações a Richelieu e outros ministros cuja imagem se associa ao absolutismo.79 A análise de Nuno Monteiro sobre Pombal, especificamente, e sobre o Iluminismo, no geral, pode ser bem sintetizada na compreensão que o autor toma como uma espécie de pressuposto de sua asserção, a de que a Ilustração seria incompatível com o absolutismo. Por um lado, o autor exclui dos processos das Luzes realidades como os “despotismos esclarecidos” e desdobramentos relativos a eles, como o regalismo, o josefismo austríaco, entre outros. Por outro, Nuno Monteiro acaba por indiretamente valorizar uma perspectiva de Luzes como um conjunto de críticas profundas ao Antigo Regime como um todo, da monarquia absolutista e da hegemonia religiosa e cultural que o clero católico ainda exercia no interior da sociedade. Depreendo que dessa compreensão das Luzes, sua concepção como plenas implicaria pensar que elas advogariam, também no seu conjunto, a necessidade de urgentes reformas políticas, educacionais e sociais, e que teriam por ápice a Revolução Francesa de 1789, ou um movimento hipotético que lhe fosse similar. Trata-se de uma perspectiva que, ainda que válida e respaldada por trabalhos clássicos sobre a Ilustração, impacta significativamente sua análise sobre o Iluminismo como fenômeno histórico noutros contextos que não o francês.80 O foco de Monteiro incide fortemente na ideia de ruptura necessária com o antigo e, por isso, sua análise sobre Pombal sustenta-se nas continuidades e nos contatos com ideias e práticas sociais e políticas identificadas como típicas do Antigo Regime. Entretanto, as características apontadas por Monteiro a Pombal, ao invés de reforçarem que ele não seria um “filho das Luzes”, acabam somente por indicar características próprias de um Iluminismo português, com suas ambiguidades e particularidades. Para reconhecê-las, torna-se fundamental levar em consideração a historiografia sobre o Iluminismo, que reviu sua cronologia para além do século XVIII, 79 Ibidem, Loc. Cit. SOARES, Luiz Carlos. A Albion revisitada no século XVIII: novas perspectivas para os estudos sobre a ilustração inglesa. Tempo (Rio de Janeiro), n. 16, p. 175-206, 2004, p. 175-178 e p.184. 80 130 e sua geografia, para além da ideia de uma irradiação a partir da França, abarcando dinâmicas locais em diálogo com contextos mais gerais tocantes à Europa. Cumpre reconhecer as peculiaridades, matizá-las e, ao mesmo tempo, buscar similaridades com outros contextos do Iluminismo. Antonio Cesar de Almeida Santos, citando Ulrich Im Hof, por exemplo, sustenta que Pombal “não se constituiu em ‘uma singularidade única’ para aquele período”, referindo-se à sua posição em relação a d. José I, “um rei que, conforme a crônica, preferia a caça e a música aos negócios de Estado e que reinou à ‘sombra do valido’, Sebastião José de Carvalho e Melo”. Com a exceção de quatro “grandes monarcas”, que “quiseram governar de uma forma eficiente e não através de seus ministros” – Frederico II, da Prússia, Maria Tereza e José II, da Áustria e Catarina II, da Rússia –, “a maior parte dos soberanos (...) vivia bem longe dos assuntos governativos e dos povos que eram supostos governar, mas sempre apoiados numa tradição inabalável de fidelidade e dedicação”.81 Quanto às comparações com os validos do século XVII, sobretudo com o cardeal Richelieu, registradas na documentação escrita, muitas vezes por citações, pode-se entendê-las como demonstrações a respeito das influências de modelos políticos dos ministros seiscentistas sobre a forma de atuar de Pombal e que possuem pontos questionáveis. Na crítica metodológica que Stephen J. Barnett faz a trabalhos clássicos e recentes sobre o Iluminismo, o autor adverte que muitas vezes os historiadores utilizam como prova de haver influência de um autor ou pensador sobre o outro somente citações ou comparações de ideias colocadas em seus escritos, o que, segundo ele, são evidências problemáticas, que por si mesmas nada provam. O mesmo se poderia afirmar quanto a comparações críticas feitas externamente, no caso, do Conde de Oeiras, com o arquétipo do valido seiscentista, conforme seus adversários faziam e foi mencionado por Monteiro. Voltando brevemente ao argumento de Barnett sobre o “problema da influência”, em matéria de História das Ideias, o autor indica, por exemplo, que a abundância de citações de pensadores clássicos greco-romanos ou renascentistas, nas obras de autores iluministas, pode indicar uma gama bastante variada de informações – tais como o uso de determinados autores como argumento de autoridade, um comportamento “pedante” de um autor desejoso de demonstrar erudição dentro de uma sociabilidade cortesã, ou ainda o simples fato de quem escreve conhecer o outro e sua obra. A influência, propriamente, na qual se possa perceber e se verificar na 81 SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Luzes em Portugal: do terremoto à inauguração da estátua equestre do Reformador. Topoi (Rio de Janeiro), v. 12, n. 22, p. 75–95, jun. 2011. p. 85 131 documentação um peso significativo em matéria intelectual, religiosa ou política de um pensador em relação a outro e uma apropriação e reelaboração de suas ideias, precisaria de um maior número de elementos que a comprovem.82 Partindo dessa crítica metodológica, não é descartável, por exemplo, que as comparações de Pombal com o cardeal de Richelieu possam ter sido retóricas – para se exaltar ou criticar o ministro português –, ou as menções, que o próprio Pombal fez ao cardeal francês, mencionadas por Monteiro, tenham sido um recurso de autoridade para a defesa de algum argumento, considerando-se a própria importância simbólica da figura do ministro de Luís XIII na Idade Moderna e em contexto absolutista. A análise de Monteiro sobre Pombal, lida da forma como apresentada acima, remeteria às “mitologias” apontadas por Quentin Skinner a respeito das concepções clássicas de histórias das ideias, sobretudo aquela a que ele se refere como “mitologia da coerência”. Nela, conforme o autor britânico explica, o historiador, por vezes, converte observações dispersas em “doutrinas”, que o autor, obra ou personalidade analisado jamais enunciou. A decorrência disso é ver alguma “falha” em termos de enunciação, quando ela se desvia de um todo coerente, absolutamente consistente, construído a priori, pelo próprio historiador em questão.83 Monteiro, ao considerar Pombal incongruente com as Luzes e ao atrelar sua figura à suposta ou real referência nos validos seiscentistas, sobretudo Richelieu, questionou a própria inserção de Pombal no contexto intelectual e político-religioso que viveu, que foi o do Iluminismo. Tal ponto de vista de Monteiro, insista-se, decorre de uma construção apriorística e teleológica sobre as Luzes, problemática na tarefa de abarcar as incoerências e descontinuidades próprias de qualquer contexto. Enfim, certamente, seria de esperar-se que uma figura ambígua como Sebastião José de Carvalho e Mello as portasse, no contexto das Luzes e buscando desenvolver um projeto reformista e modernizador em Portugal. Voltando ao processo de secularização em Portugal durante o Reformismo Ilustrado, a historiografia tem analisado diversos pontos da política reformista de Pombal coevos. Laurinda Abreu sintetiza as ações pombalinas com a Igreja da seguinte forma: No que à Igreja concerne, o projeto de reforma pombalino reconstituise com relativa facilidade, sendo possível distinguir nele dois planos complementares e sequenciais. O primeiro desenvolveu-se no sentido da progressiva eliminação dos obstáculos que pudessem criar 82 83 BARNETT, Stephen J. The Enlightenment and religion. Op. Cit. p. 22-23 SKINNER, Quentin. Meaning and Understanding in the History of Ideas. Op. Cit. p. 16-22. 132 resistências à mudança. Definido o poder do Estado, os esforços centram-se de seguida na implementação de condições que contribuíssem para a rápida debilitação da Igreja e das estruturas eclesiásticas. Enquadra-se no primeiro caso a (...) expulsão dos jesuítas [1759] e do Núncio [Apostólico em Lisboa, Filippo Acciaiuoli, em 1760] e o subsequente corte das relações diplomáticas com a Santa Sé, que teve lugar em 1760. A criação de novas dioceses e a reconfiguração do mapa eclesiástico do país, patrocínio da publicação de obras claramente regalistas (...) a transferência da censura das publicações e do ensino do pelouro da Igreja para o Estado através da atribuição desta competência à Real Mesa Censória [1768] e (...) a promulgação de legislação tendente à limitação das prerrogativas da Igreja e do clero, inserem-se já no plano de ação reformadora propriamente dita.84 Assim, a busca por se centralizar o poder na Coroa e se reajustar o status do clero e da Igreja marcou o Iluminismo católico no mundo luso-brasileiro, redefinindo o lugar da religião no espaço público e sua influência no campo político. Trata-se não de uma laicização – que sequer estava posta em discussão no período –, mas da construção de um projeto político-religioso bem claro da Coroa, tendo o Marquês de Pombal, ministro de d. José I, à frente. Tal projeto marcava-se por um dirigismo do Estado em relação aos demais agentes sociais, um apoio de uma elite letrada – parte significativa dela financiada pela Coroa –, havendo uma disputa com defensores de reformas amplas, em todos os âmbitos da sociedade e Estado, pelo campo religioso – evocando, aqui, novamente, o conceito de Bourdieu. Pombal foi, segundo Kenneth Maxwell, o exemplo mais extremo daquilo que a historiografia denomina comumente “despotismo esclarecido’, em que o centralismo e certo autoritarismo na condução de reformas se conjugaram com um projeto de modernização.85 Com o objetivo de se entender a linguagem político-religiosa formada no seio dessa república das letras no mundo lusófono, no bojo das reformas pombalinas, opto por analisar alguns tópicos presentes em grande parte da produção literária feita nos domínios de Portugal ou fora deles, pelos chamados “estrangeirados”. O mais recorrente desses tópicos, que é a presunção de Portugal estar atrasado em relação às “nações cultas” da Europa, será o primeiro deles. 2.3 Um reino atrasado, diante das “mais polidas nações da Europa” 84 ABREU, Laurinda. As relações entre o Estado e a Igreja em Portugal, na segunda metade do século XVIII. Op. Cit. p. 648-649. 85 MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do Iluminismo. Trad. Antônio de Pádua Danesi. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. p. 2. 133 Nas fontes setecentistas, é comum observar referências a um Portugal atrasado em relação às “nações cultas” da Europa, e esse tema ocupa lugar de destaque entre os diversos “diagnósticos” sobre sua situação em diversos campos, da cultura à economia, passando pela religião. Acertadamente, Flávio Rey de Carvalho assinala que a ideia de um fatídico atraso português foi transmitida e reforçada por uma tradição literária, filosófica e historiográfica oitocentista, que reforçou a percepção de uma modernidade anômala no caso luso e europeu meridional. No entanto, o historiador peca ao afirmar que as percepções de isolamento, atraso cultural e econômico, de estagnação e decadência de Portugal, em particular, e do mundo ibérico, no geral, em relação ao Além Pirineus “não conferiam com o que a grande maioria dos portugueses, à exceção de uns poucos ‘estrangeirados’, sentiam acerca de si mesmos”, durante o Setecentos.86 Pelo contrário, a leitura dos escritos dos ilustrados portugueses e luso-brasileiros mostra que esse tipo de representação não é somente comum, mas também denota uma visão ampla que esses pensadores tinham a respeito de seu contexto, suas percepções de mundo e mesmo alguns de seus alinhamentos religiosos e políticos. Cumpre lembrar que o tema do atraso português e ibérico em relação às outras partes da Europa não é uma novidade do século das Luzes, sendo parte de uma linguagem política formada, sobretudo, no século anterior. Segundo Fernando Antônio Novais, a partir do século XVII, Portugal e Espanha passaram a ser, cada vez mais, ultrapassados economicamente por países como França, Inglaterra e Holanda. Pensadores de ambos os países, como Sancho de Moncada, na Espanha, e Duarte Ribeiro de Macedo, em Portugal, analisavam essa decadência em profundidade, buscando suas razões e procurando remédios que a sanassem. A estrutura e a linguagem das análises dessa questão, vindas da época barroca, estiveram no centro das preocupações dos Iluministas, no século XVIII, as quais retomaram essas análises já existentes à luz de debates novos.87 Ana Rosa Cloclet da Silva, por sua vez, observa a formação de um vocabulário político em que a ideia do atraso português como pano de fundo teve grande contribuição, envolvendo a ideia de um crescente “distanciamento da pátria”, que marcou a trajetória de muitos diplomatas portugueses. Tal ideia adveio de necessidades impostas após a Restauração, em 1640, em que se observou uma “antipropaganda” feita por toda Europa por judeus e cristãos-novos, dentre uma série de outros motivos. Assim, surgiria a figura do “estrangeirado”. Este termo tem suas 86 87 CARVALHO, Flávio Rey de. Um iluminismo português? Op. Cit. p. 28. NOVAIS, Fernando Antônio. Reformismo Ilustrado luso-brasileiro. Op. Cit. p. 106. 134 limitações, sobretudo por não englobar a heterogeneidade e as multifaces das vidas e trajetórias desses letrados lusitanos cujos percursos deram-se nos principais países da Europa. Além disso, contribuiu para a construção de uma narrativa que opunha os problemas de uma “cultura castiça” e isolada portuguesa às dinâmicas do processo do pensamento cosmopolita europeu. Tal oposição tomou proporções mais amplas, na medida em que crescia a percepção do agravamento de uma condição periférica no campo econômico e noutros, após as guerras contra os holandeses e os desfavoráveis tratados feitos com os ingleses, sobretudo o de 1703.88 Outro apontamento importante a ser feito é o fato de que perceber um atraso, diagnosticá-lo e oferecer soluções para ele por meio de publicações, muitas em tom polêmico, remonta à tradição do arbitrismo. Este termo foi geralmente utilizado para se referir a uma literatura reformista, que teve seu auge entre as últimas décadas do século XVI e o final da primeira metade do XVII. Como arbitrismo definia-se uma estratégia de se dirigir aos monarcas e/ou aos seus conselheiros através de escritos que propunham soluções a partir dos arbítrios – que eram, na Idade Moderna ibérica, ações de caráter fiscal de curto, médio e longo prazo para problemas de natureza econômica e fiscal, bem como para as suas implicações sociais, e que não requeriam negociação com os contribuintes – para problemas diversos da Coroa espanhola e colônias.89 Salvador Albiñaga, em estudo sobre o tema, chama a atenção para uma riqueza crítica desse gênero, que não pode ser resumido a defesas pragmáticas de reformas econômicas visando sanar problemas imediatos. Os textos considerados arbitristas continham leituras complexas conjunturais e sobre a história da Espanha, além de um caráter relacional, em função da percepção do lugar do dito reino na Europa. Nas narrativas arbitristas, ao tom decadentista –relacionado sobretudo a perdas de guerras contra outros países europeus, mas também com a queda na extração aurífera nas colônias da América – somavam-se ideias de progresso e superação da perda de hegemonia continental. Tais ideias envolviam aspectos que iam desde leituras que entendiam que o mal procederia 88 SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Inventando a Nação: Intelectuais Ilustrados e Estadistas luso-brasileiros no crepúsculo do Antigo Regime Português: 1750-1822. Tese (Doutorado em História). Campinas: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas-Unicamp, 2000. p. 36-38. Um estudo importante a respeito dos tratados diplomáticos portugueses na primeira metade do século XVIII foi publicado por Júnia Ferreira Furtado. Especificamente a respeito do tratado de 1703, a autora destaca as críticas mordazes feitas por d. Luís da Cunha, sobretudo no que toca às desvantagens comerciais lusitanas em relação aos ingleses. FURTADO, Júnia Ferreira. Guerra, diplomacia e mapas: a Guerra de Sucessão espanhola, o Tratado de Utrecht e a América portuguesa na cartografia de D’Anville. Topoi, v. 12, n. 23, p. 66-83. Jul.-dez. 2011, p. 69. 89 DUBET, Anne. Los arbitristas entre discurso y acción política. Tiempos Modernos, vol. 4, nº 9, p. 1-14, 2003. p. 1-2. 135 da administração colonial até questões de fundo intrinsecamente religiosas. Com a percepção dos avanços da ciência no século XVII, incluía-se no arbitrismo e na percepção da decadência também uma ideia de atraso científico e cultural em relação às demais nações europeias, sempre articulando-se um tom propositivo e reformista com uma crítica da realidade ibérica. Assim, formou-se uma tradição de crítica política própria do barroco ibérico, escritas em forma de memoriais, “diagnósticos” e outros dos mais variados.90 Em estudo recente sobre a corrupção no império português, Adriana Romeiro analisa algumas narrativas, entre elas a do Soldado Prático, na qual alguns desses elementos aparecem claramente. Há uma ideia de “passado de ouro”, da época das conquistas, de um presente de decadência, fruto do mau governo e da corrupção dos governantes que estavam distantes dos olhos do monarca. Existe também a descrição, como diagnóstico, de problemas pelos quais os domínios portugueses na Ásia passavam e que, se não fossem sanados, os próprios domínios seriam perdidos.91 Em suma, com esse conjunto de análises feitas neste subcapítulo, busco reforçar uma tese: no período das Luzes, as diversas e variadas leituras sobre os males que recaíam sobre Portugal e causas da decadência portuguesa em relação às “mais polidas nações da Europa”, valeram-se de tradições e vocabulários políticos muito anteriores ao Iluminismo. Várias tópicas foram organizadas, apresentadas e difundidas de formas distintas, com elementos próprios do século XVIII e bem articulados com as forças políticas hegemônicas no período – a saber, reformismo pombalino, a partir de 1750, embora não somente ele – e que dialogavam com discussões diversas de outros contextos da Europa iluminista. Essa situação evidencia-se, por exemplo, em carta datada de 2 de fevereiro de 1777, a terceira de um conjunto de dezessete atribuídas ao Marquês de Pombal, originalmente escritas em inglês, organizadas e publicadas em 1822. Nelas, observa-se uma série de lamentos sobre o estado de Portugal, à época em que Sebastião José de Carvalho e Melo tornou-se ministro de d. José I. Ela começa em tom lamurioso pelo estado da agricultura, “o primeiro objeto de atenção do Ministro”, que “antes não só fornecia Trigo para o seu próprio consumo, mas igualmente supria a alguns outros Países”. Naquele momento, no entanto, sobretudo após o “Tratado celebrado em 90 ALBIÑAGA, Salvador. Notas sobre decadencia y arbitrismo. Estudis, v. 20, p. 9-28, 1994. Essa discussão, segundo Adriana Romeiro, aparece em Soldado Prático, texto escrito em dois momentos, entre 1560 e 1570, de autoria de Diogo do Couto. Também há pontos similares em A arte de furtar, texto publicado em 1652, em nome do padre Antônio Vieira, mas atribuída pela historiografia ao jesuíta Manuel da Costa. ROMEIRO, Adriana. Corrupção e poder no Brasil: uma história, séculos XVI a XVIII. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. p. 93-122 (ver, em especial, as p. 101 e 119). 91 136 Inglaterra em 1703, obrigando aquela Potência a tomar os Vinhos de Portugal em troca de suas fazendas de lã”, Portugal abundava em vinho, mas carecia de gêneros básicos de subsistência, como roupas e cereais. A carta segue, afirmando que é “opinião geralmente recebida que é muito pequena a parte de Portugal que não seja capaz de produzir alguma cousa”, e que grande parte de suas terras “daria [alg]um produto na mão de um Povo industrioso está a cultivar”, e que os campos de Portugal “não estão ainda nem mediocremente em bom estado de cultura, capaz, e igual a das outras partes da Europa”.92 Complementa-se, dizendo que: Não se deve alegar, que há uma natural falta no gênio dos Povos Meridionais. Os anais de Portugal contradizem esta opinião; os Tirios, e Cartagineses dão um exemplo do contrário, e devemos procurar a causa mais depressa na natureza do governo, do que atribuí-las ao defeito do clima [Grifos meus].93 Complementa-se o raciocínio ao se lamentar sobre o estado do povo português, de maneira mais geral: É estranho o mais que pode ser, que Portugal represente um estado inteiramente de infância por não dizer de barbaridade no meio dos mais polidos Estados da Europa. Com a perda de seu Comércio, os Portugueses perderam o espírito da Indústria; perderam o conhecimento das Artes, e exercícios da razão, e os princípios da Sã Política.94 O que é notável nessa passagem são as percepções desoladoras sobre o estado do Reino no início do reinado de d. José I, decorrentes, em partes, do Tratado de Methuen, ou “Tratado de Panos e Vinhos”, celebrado com a Inglaterra em 1703, e que garantia monopólios comerciais e alianças militares entre os dois países. Mas a causa da “infância” de Portugal, em relação aos demais estados da Europa, é a falta de engenho de seu povo, causadora de uma decadência que abrange a política, a indústria, o comércio, o desenvolvimento das artes e ciências, além da agricultura, o que não pode ser explicado pelo clima, mas pela “natureza do governo”. O tema aparece novamente na carta VI, datada de 20 fevereiro de 1777. Nela, afirma-se primeiramente que Pombal, no princípio do reinado de d. José I, como “Ministro amante da Pátria, pretendia 92 MELO, Sebastião José de Carvalho e [1699-1782]. Cartas e outras obras selectas do Marquez de Pombal, Ministro e Secretario D’ Estado D’El Rei D, Joze I com epítome da vida deste Ministro e ornado do seu retrato. Tomo II. Lisboa: Na Typ. De Desiderio Marques Leão, 1822. Digitalizado por Harvard University, 2009. Disponível em: < https://catalog.hathitrust.org/Record/009721362>. Acessado em mai./2018. p. 176-177. 93 Optei, nas citações extensas, a fim de facilitar a leitura, por atualizar a grafia das palavras, mas manter a pontuação original. Ibidem, p. 178. 94 Ibidem, p. 178-179. 137 aumentar as comodidades de seu País, e equilibrá-lo o mais que fosse possível com as outras Nações” e, para tanto, “empreendeu restaurar o espírito da Indústria, animando as Artes, e Manufaturas”. Em seguida, diz-se que ele pôs diante de si o “exemplo da Holanda, cujo clima não sendo favorável às Artes”, sobretudo pela pequena população e seu território reduzido, com o que “este País tem sido tão mudado pela Indústria, que a abundância veio suceder à geral carestia”. Conclui-se, logo depois, que: e “uma Nação pobre em si mesma, em outro tempo tributária às mais, achava se agora em estado tal que as outras contribuem para o aumento de sua prosperidade, e riqueza”.95 Um primeiro aspecto que chama a atenção na carta do Marquês de Pombal é que o atraso português tem um referencial externo, qual seja, as nações que, segundo a parte acima citada do artigo de Fernando Novais, superaram Portugal política e economicamente desde o século XVII, marcadamente França, Holanda e Inglaterra. Ideia similar aparece em carta enviada, em 1760, por Antônio Nunes Ribeiro Sanches e publicada pelo Centro de Estudos Judaicos na Universidade da Beira Interior recentemente. Nessa carta, o médico ilustrado português refere-se a uma obra sua, também disponibilizada pelo mesmo centro, o Método para aprender e estudar a Medicina, de 1759, livro em que Sanches discorre sobre como se deveria ensinar-se a medicina, segundo o que havia de mais moderno em meados do século XVIII. Ele ressalta, por exemplo, a necessidade de que a formação de um médico não seja tão somente prática, mas também teórica, reforçada com o aprendizado da filosofia, das humanidades, em especial no que refere à Grécia e Roma antigas, da filosofia racional e moral, da física e também de ciências modernas, como a química. Além disso, à prática médica, deveria ser aliada a leitura de Boeharve e outros médicos importantes do período, o que implicaria também um aprendizado das línguas modernas e antigas.96 Voltando-se à carta escrita por Ribeiro Sanches, referindo-se a dita obra, remetida a Joaquim Pedro de Abreu e datada de 1760, o ilustrado português começa ressaltando haver proposto ao rei d. José I, com seu Método, no ano anterior, que enviasse portugueses “capazes de aprender” às universidades estrangeiras e, quando voltassem, ensinassem em Coimbra. Porém, afirma que alguns compatriotas rejeitaram sua proposta por algo “quimérico e impraticável”, o que, aos seus olhos, não seria de 95 Ibidem, p. 180-181. SANCHES, Antônio Nunes Ribeiro. Método para aprender e estudar a Medicina [1759]. CovilhãPortugal: Universidade da Beira Interior- Centro de Estudos Judaicos, 2003. Disponível em: <http://www.estudosjudaicos.ubi.pt/rsanches_obras/metodo_aprender_estudar_med.pdf>. Acessado mar./2017. 96 138 espantar. E uma das justificativas para sua não surpresa é a afirmação de que sua proposta, enviada ao monarca, não contém pensamento algum que tenha adquirido quando estudou em Coimbra ou Salamanca, nem do que ele aprendeu praticando a medicina por quatro anos na Guarda e em Benavente. Suas ideias, continua Sanches, são baseadas no que ele aprendeu ao longo de trinta e quatro anos nas universidades de Pisa, Montpellier e Leyde, nas escolas e hospitais da Rússia e de Londres e na correspondência que teve com “Mrs. Vanswieten, Haller, Schreiber, Guntz e Gaubius, tocante à verdadeira medicina, e como deve ensinar-se”. Por isso, “seria impossível que se compreenda em Portugal o que se adquiriu em tão vários climas, e com tão diversas pessoas”, ressaltando o isolamento e atraso de seus críticos e, também, do contexto ibérico como um todo.97 Fica patente, no trecho analisado supra, o cosmopolitismo de Ribeiro Sanches. Nada surpreendente dentro da trajetória do médico cristão novo português. Ele fez parte, por exemplo, de várias academias ao longo de sua vida, sendo elas a Academia Real de História de Lisboa, a Academia Imperial de Ciências de São Petersburgo, a Royal Society de Londres, a Academia de Ciências de Paris, além da Societé Royale de Médécine da França e da Sociedade de História Natural do Rio de Janeiro. 98 Foi o único iluminista português a escrever na Enciclopèdie francesa, tendo também passagens importantes em países como a Rússia, onde na década de 1740 iniciou relações com a mencionada Academia Imperial de São Petersburgo, tendo assistido também como médico diversos nobres da corte russa. Trata-se de uma trajetória rica em diversos circuitos de produção de ciências e de conhecimento médico e de outras áreas, em importantes centros da Europa. Essa ampla circulação não o impediu de manter sempre os olhos sobre seu país natal, como demonstra, em análise bastante pormenorizada da trajetória de Sanches, Julie Hamacher Liepkaln, em trabalho recente.99 Seu contato com os circuitos de letrados ilustrados europeus e seu olhar para Portugal aparecem nas observações que faz sobre o ensino da medicina no país. Tal quadro, identificado com 97 _____________________________. Carta a Joaquim Pedro de Abreu [1760]. Covilhã - Portugal: Universidade da Beira Interior- Centro de Estudos Judaicos, 2003. Disponível em: <http://www.estudosjudaicos.ubi.pt/rsanches_obras/carta_joaquim_abreu.pdf>. Acessado em: Março, 2017. p. 1. 98 Para uma análise mais pormenorizada sobre as redes de sociabilidade de Antônio Nunes Ribeiro Sanches, bem como sua relação com as academias de ciências setecentistas, ver: DULAC, Georges. Science et politique: les réseaux du Dr António Ribeiro Sanches (1699-1783). Cahiers du monde russe, v. 43, n. 2, p. 251-274, 2002. 99 LIEPKALN, Julie Hamacher. Saber médico e reformismo ilustrado: Antônio Nunes Ribeiro Sanches e as políticas de saúde pública em Portugal (1750-1792). Dissertação (Mestrado em História). Campinas: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas-UNICAMP, 2017. p.35-55. 139 as “nações polidas da Europa”, serve como contraponto ao estado português, a antítese dele, nessa concepção. Além de ter outras nações europeias como espelho para diagnosticar-se o atraso luso, o passado de glórias de Portugal anteriores à União Ibérica, entre 1580 e 1640, também aparece como ponto de referência. A morte de d. Sebastião, em 1578, e os diversos percalços do reino em sua sucessão foram usados diversas vezes como marco inicial da decadência lusitana, assim como a chegada dos jesuítas, algumas décadas antes. É o que se faz ver nos principais documentos de propaganda anti-jesuítica do pombalismo, como o Compêndio Histórico da Universidade de Coimbra, de 1771, e na Dedução Cronológica e Analítica, de 1763. Neste último livro, na própria divisão de capítulos de seu primeiro volume, observa-se a linearidade entre o passado de glórias, a chegada dos jesuítas e sua instalação na Corte e o fim de uma era ilustrada para um período de trevas. Na divisão II, são exaltadas as virtudes das letras e da monarquia portuguesas até 1557, quando os jesuítas se introduziram na Corte de d. João III. A partir daí, pelas suas maquinações para manipularem a mesma Corte e mesmo os monarcas, vários abusos começam a ser introduzidos, como a estigmatização de estrangeiros como hereges e um espírito de sedição entre os súditos de todos os estados, tendo-se estabelecido, assim, um marco para seu crescente isolamento.100 Já no Compêndio, em que também são enumerados os “estragos” causados pelos jesuítas na Universidade de Coimbra, afirma-se que a referida universidade foi uma das mais ilustres de toda a Europa, responsável por enviar portugueses para as mais destacadas universidades europeias e de também receber estudantes e professores delas. No entanto, isso durou somente até 1555, época em que Coimbra começou a ser “estragada pelos jesuítas”.101 A partir de então, ela foi contaminada por toda sorte de vícios, vários deles causadores de prejuízos a todo Portugal. O primeiro “estratagema” dos jesuítas – que, de acordo com o Compêndio, deformaram como um todo a cultura portuguesa, suas letras e suas artes, produzindo um grande isolamento e arraigando obscurantismo e fanatismo nos seus súditos – “foi pintar com cores negras e horrorosas a todos os estrangeiros”. Com isso, separou-se Portugal do estrangeiro, “o que afundou 100 SILVA, José Seabra Da. Deducção cronologica e analytica parte primeira. 1. ed. Lisboa: Na Officina de Miguel Menescal da Costa, Impressor do Santo Officio, por ordem, e com privilegio real, 1763. p. 428. 101 POMBAL, Marquês de; Junta de Providência Literária. Compêndio histórico da Universidade de Coimbra no tempo da invasão dos denominados jesuítas e dos estragos feitos nas ciências, nos professores e directores que a regiam pelas maquinações e publicações dos novos estatutos por eles fabricados. [1771]. FRANCO, José Eduardo; PEREIRA, Sara Marques (orgs.). Porto: Campo das LetrasEditores, 2008. 1ª ed. p. 17-58 e p. 95. 140 o país na ignorância visto que mandar portugueses para fora de Portugal e trazer professores de países estrangeiros foi sempre um meio importante para se desenvolver as ciências e artes”.102 Além disso, em ambos os livros destaca-se o enraizamento nas cortes de eclesiásticos que aconselhavam mal os monarcas, os manipulavam e afastavam deles os bons súditos e ainda corrompiam as instituições régias, afastando-as de seus propósitos originais. No preâmbulo do Regimento da Inquisição de Portugal, de 1774, por exemplo, fica claro que aquela reforma tinha a função de restaurar a Inquisição, colocando-a no estado em que ela esteve até o reinado de d. João III, submissa à Coroa e com “santos propósitos”, que se degeneraram pela ação do clero regular – sobretudo os da Companhia de Jesus – entre o final do século XVI e a reforma que, ali, aqueles ilustrados alinhados ao projeto pombalino apresentavam.103 É fundamental sustentar também que o atraso é percebido de maneira sistêmica pelos ilustrados portugueses. Ele nunca se restringe, nos “diagnósticos”, a aspectos únicos e determinantes. Comumente, entrelaça percepções a respeito da economia, da cultura, da religião e outros pontos diversos, sem atribuir uma importância maior ou menor a um ou outro. É o que se nota no Testamento Político, de d. Luís da Cunha. Nessa obra, manuscrita no século XVIII – conhecida por conter alguns dos aspectos que seriam levados a cabo no reformismo pombalino, e mesmo pela indicação, ao então príncipe d. José, de Sebastião José de Carvalho e Melo para ministro –, percebe-se também um olhar para Portugal sob o sinal do atraso, com questões similares às das cartas atribuídas a Pombal. Após discorrer brevemente a respeito da importância de um bom reinado, fazendo uma analogia entre a figura do monarca e a do pai de uma família, o livro passa por assuntos diversos, tais como as funções reais na manutenção da justiça e na provisão do desenvolvimento da economia, dentre outros temas. Depois, adverte sobre alguns perigos que Portugal vivia, usando dessa mesma figura de linguagem. Por exemplo, quando assinala que um “pai deve visitar suas terras para ver se elas são cultivadas” e que, cumprindo o príncipe este dever com o reino quando for coroado, veria muitas terras “usurpadas ao comum, outras incultas, muitíssimos caminhos impraticáveis, de que resulta faltar o que elas podiam produzir”. Tal situação em grande parte decorreria do fato de “terça parte de Portugal estar possuída pela Igreja, que não 102 Ibidem, p. 148. DA CUNHA, d. João Cosme, cardeal. Introdução do Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal [1774]. In: SIQUEIRA, Sônia Aparecida. A disciplina da vida colonial: os Regimentos da Inquisição. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a. 157, nº. 392, jul. / set. 1996. p. 885-972. 103 141 contribui para a despesa e segurança do Estado (...) pelos cabidos das dioceses, pelas colegiadas, pelas abadias, pelas capelas, pelos conventos de frades e freiras”, mantendo Portugal com vastas áreas improdutivas e despovoadas.104 A questão do despovoamento causado pelo excesso de frades e freiras em Portugal é apontada pelo ex-diplomata como uma das sangrias que mantém o país no atraso, e é um tema que retomarei de forma mais detida mais adiante. A partir daí, Luís da Cunha usa uma nova analogia, recorrendo à figura do médico, que diagnosticaria o estado de Portugal como o de um doente à época em que escrevia. O autor do Testamento Político diz que “é constante que não se pode curar algum enfermo sem que o prudente médico observe o seu aspecto”, para se ter “conhecimento da causa do mal, que o aflige”, o que significa “não só (...) remediar a sua queixa, mas para prevenir o de que pode estar ameaçado”. E se um médico, nas suas palavras, “examinar o aspecto, e conformidade de Portugal”, verá diversos males, dos quais decorrem a debilidade em relação aos demais países da Europa, como França, Inglaterra e Holanda. Tal situação de desigualdade de forças contribuiria também para a submissão do Reino a tratados nocivos a seus interesses.105 O que aproxima a carta de 1777, do Marquês de Pombal, ao Testamento Político, como se pode observar, é o fato de ambos os documentos examinarem as possíveis razões de Portugal estar em decadência, referindo-se a alguma “enfermidade”, que mantém o reino em estado de “infância” ou “barbarismo”, em relação às “mais polidas nações da Europa”, situação essa explicável por ações humanas, propriamente dos portugueses. Por isso, ela tinha “cura”, que se daria precisamente por ações humanas, que eram, além de reformas, também um “bom governo”. E esse bem governar passava por reformas econômicas, políticas, culturais e religiosas conjugadas entre si. Noutras palavras, o atraso nunca era percebido somente como causado pelos privilégios da clerezia ou pelo isolamento cultural, mas como efeitos que articulam sempre mais de um desses aspectos. Esse atraso deveria ser superado em todos os campos, da política até as letras e artes – aqui, no sentido de manufaturas e indústria – passando pela cultura e sociedade. Ainda quanto ao Testamento Político, depreende-se uma leitura mercantilista da realidade de Portugal. Segundo essa leitura, a Igreja e seus privilégios – como as posses de terra e desvios de recursos humanos para as suas 104 CUNHA, Luís da. D. Testamento político, ou carta escrita pelo grande D. Luiz da Cunha ao Senhor Rei D. José antes do seu governo [1748]. São Paulo: Alfa-Ômega, 1976. p. 41-42. 105 Ibidem, p. 43. 142 atividades – traziam prejuízos ao país. Disso, concluía-se que elementos religiosos impediam Portugal de crescer na dimensão econômica de três modos possíveis: na agricultura, em termos demográficos e no comércio, interno e internacional.106 Trata-se de um raciocínio que guarda alguma proximidade com o que aparece em Do Espírito das Leis (1748), de Montesquieu, sobre o despovoamento de um Estado e as leis necessárias para que ele seja revertido. Para o iluminista francês, o despovoamento se torna crônico devido a um “vício interior e um mau governo”, próprio de “países assolados pelo despotismo”, onde o “clero, o príncipe, as cidades, os grandes, alguns cidadãos principais se tornaram insensivelmente proprietários de toda a região, qual é inculta”. Ele opunha, assim, o bem governar, necessário à felicidade dos povos, aos privilégios e posses de terras por grupos que não as cultivavam, sendo, nesse sentido, o povoamento sinal de uma boa administração –e, seu oposto, o despovoamento, resultado de um mau governo.107 Ainda com relação ao atraso econômico, há referências à intolerância religiosa como sua causadora ou potencializadora e, também, às políticas que incidissem sobre ela de modo a reverter seus danos. Em texto não datado, o Marquês de Pombal, ao indicar os “meios de se aumentar o pequeno Estado pela sua política, ou governo”, reconhecia que “o comércio sempre está nos que professam diferente religião”, e que a “liberdade de consciência” não era possível em Portugal, sem que se alterasse a mentalidade portuguesa.108 D. Luís da Cunha, ainda no Testamento Político, na parte em que critica a Inquisição como sendo uma das sangrias que impediam Portugal de prosperar, atribui aos tribunais de fé alguns problemas, tais como o despovoamento do Reino, a destruição da manufatura e do comércio e a má fama de Portugal no estrangeiro. Diz d. Luís da Cunha que: Da mesma sorte dissera que V. A. acharia certas boas povoações quási (sic) desertas, como por exemplo na Beira Alta os grandes lugares da Covilhã, Fundão e cidade da Guarda e de Lamego; em Trás-osMontes e cidade de Bragança, e destruídas as suas manufaturas. E se V. A. preguntar a causa desta dissolução, não sei se alguma pessoa se atreverá a dizer-lha com a liberdade que eu terei toda honra de fazê-lo; e vem a ser que a Inquisição prendendo uns por crime de judaísmo e 106 CARVALHO JR., Eduardo Teixeira de. A ideia de atraso e o papel da educação na Modernização portuguesa na segunda metade do século XVIII. e-hum Revista Científica das áreas de História, Letras, Educação e Serviço Social do Centro Universitário de Belo Horizonte, v. 5, n. 2, p. 25–44, 2012. p. 31. 107 MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat. Do Espírito das leis. Op. Cit. p. 451. 108 BNP. COLEÇÃO POMBALINA (PBA). Códice 686, fls. 187-190, manuscrito autógrafo, sem data. MELO, Sebastião José de Carvalho e. “Apontados sobre as matérias que devem constituir as regras do Mecanismo Político”, fl. 190. Apud. SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Luzes em Portugal: do terremoto à inauguração da estátua equestre do Reformador. Op. Cit. p. 87. 143 fazendo fugir outros para fora do reino com seus cabedais, por temerem lhos confiscassem, se fossem presos, foi preciso que tais manufaturas caíssem, porque os chamados cristãos-novos os sustentavam e os seus obreiros, que nelas trabalhavam, eram em grande número, foi necessário que se espalhassem e fossem viver em outras partes e tomassem outros ofícios para ganharem o seu pão, porque ninguém se quis deixar morrer de fome.109 A solução então proposta, diante de um quadro de dependência de Portugal, que importa diversos produtos manufaturados de outros países, é que: “de sorte que para [as manufaturas] se estabelecerem, é necessário que eu torne a falar dos judeus, dizendo que lhes deve dar de um modo ou de outro, liberdade de religião e segurança para que seus bens não sejam confiscados”, e assim “lhes será necessário empregá-los em renovar e aumentar as sobreditas manufaturas”.110 Também com o fim de povoar os domínios no Brasil sem, no entanto, despovoar Portugal, d. Luís da Cunha sugere a permissão da entrada de estrangeiros na colônia da América “sem examinar qual seja a sua religião, recomendando aos governadores todo bom acolhimento, e arbitrando-lhes a porção de terra que quiserem cultivar”. Assim, afirmava que poderiam se casar, procriar e povoar a colônia e em poucas gerações, “seus descendentes seriam bons portugueses e bons católicos romanos em o caso que seus avós fossem protestantes, no que não acho algum inconveniente (...)”. Isso, segundo ele, impactaria positivamente na retomada da produção agrícola na colônia que, “depois do descobrimento das minas, tem diminuído a cultura dos açúcares e tabaco, e por consequência o número dos navios que traziam aqueles afeitos e dos marinheiros que o navegavam”.111 Nesse ponto, tanto d. Luís da Cunha como o Marquês de Pombal fazem a relação entre a intolerância institucionalizada dos tribunais inquisitoriais e a decadência comercial portuguesa, retomando um tema do século XVII, bastante notório nas ideias do padre Antônio Vieira, que entendia haver uma ligação entre a decadência econômica portuguesa e o tratamento desumano dado aos judeus. Seus argumentos, ao mesmo tempo que apontavam a necessidade de se cooptar seus cabedais em prol do Reino, destacavam o papel dos cristãos novos e judeus na realização do Quinto império.112 Isso demonstra também a necessidade de se levar em conta que tais assuntos, como economia e religião, não eram pensados de maneira absolutamente separada na Idade Moderna. Yllan de Mattos, por sua vez, encontrou discussões de natureza político109 CUNHA. D. Luís da. Testamento Político. Op. Cit. p. 63-64. Ibidem, p. 99. 111 Ibidem, p. 75. 112 ROMEIRO, Adriana. Um visionário na corte de D. João V. Op. Cit. p.133. 110 144 econômica desenvolvidas em uma literatura de polêmicas teológicas bem anteriores aos escritos do padre Vieira e com críticas similares, que associam os tribunais do Santo Ofício e a perseguição aos “hereges”, sobretudo judeus, à decadência econômica ibérica. É o que observa na Alegación en favor de la Compañía de las Indias orientales (1628), de Duarte Gomes Solis, oferecida ao rei Felipe IV, que apontava para a necessidade de se extinguir a diferença entre cristãos velhos e cristãos novos, de maneira que estes últimos pudessem voltar à Península Ibérica, com seus cabedais e reanimar seu comércio, à maneira que acontecia na Holanda.113 Ele também chega a conclusões similares ao analisar às críticas do padre Vieira à Inquisição portuguesa, concordando haver nelas uma preocupação econômica e política assentada em princípios ético-religioso e teológicos, problema que aparece nos textos do jesuíta desde a década de 1640. Em tais textos, Vieira criticava vários aspectos. Um deles refere-se aos interesses mundanos dos inquisidores, muitas vezes acusados de condenar hereges apenas para confiscar seus bens ou por motivações distintas da preservação da religião. Vieira articulava questões pragmáticas político-econômicas com outras de ordem teológico-ética, pela chave da defesa da não perseguição a judeus e a hereges. Com isso, além de reanimar-se a economia com seus cabedais, seria possível promover até mesmo a expansão da fé católica em todos os domínios portugueses e no restante do mundo, na medida em que se conduziria a um fortalecimento da monarquia católica portuguesa, de suas defesas e de seu alcance.114 É importante salientar, ainda, que, em suas obras, autores importantes do Iluminismo também abordaram a relação entre tolerância e desenvolvimento econômico, sobretudo comercial. Certamente, o mais notório deles é Voltaire. Na sexta de suas Lettres philosophiques, publicadas entre 1733 e 1734, o ilustrado francês descreve a bolsa de Londres, exaltando o fato de lá se poder observar que “o judeu, o maometano e o cristão tratam um com o outro como se fossem da mesma religião e só chamam de infiel quem vai à bancarrota”. Para Voltaire, a tolerância religiosa, debaixo da razão comercial, que é vantajosa a todos, torna possível o benefício de todos os envolvidos nas relações sociais de comércio e a satisfação plena de seus interesses.115 113 MATTOS, Yllan de. A Inquisição contestada: críticos e críticas ao Santo Ofício português (16051681). Rio de Janeiro: Mauad: FAPERJ, 2014. p. 88-89. 114 Ibidem, p. 96-104. 115 Original: “Entrez dans la Bourse de Londres, cette place plus respectable que bien des cours; vous y voyez rassemblés les députés de toutes les nations pour l’utilité des hommes. Là, le juif, le mahométan et le chrétien traitent l’un avec l’autre comme s’ils étaient de la même religion, et ne donnent le nom d’infidèles qu’à ceux qui font banqueroute; là, le presbytérien se fie à l’anabaptiste, et l’anglican reçoit la 145 Nesse ponto, vemos que, alguns dos diagnósticos do atraso português, ainda que com foco principal na economia, trazem problemas que remetem a certas disputas atinentes ao campo religioso, desenvolvidas pelas Luzes e anteriormente a estas. Nos escritos de Pombal e Luís da Cunha, a tópica vieiriana (em que se associavam a tolerância e o comércio) e a necessidade de se repensar a utilidade do clero regular e de suas terras aparecem associadas a ideias econômicas e religiosas. Esses dois tipos de ideias se misturam e são debatidos sob a linguagem iluminista. Por exemplo, sabe-se que a relação entre diminuição da população e o mau governo, assim como a relação contrária, entre bem governar e os aumentos populacionais e de riqueza, tiveram um lugar de destaque nos debates sobre economia e política na primeira metade do século XVIII, envolvendo autores como Rousseau, Montesquieu, Herbert e Hume. Alguns de seus argumentos formaram um pano de fundo importante nos debates da escola da fisiocracia, já depois de 1750.116 Da mesma maneira, também entre o final da primeira metade e início da segunda metade do século XVIII, correntes iluministas italianas, que tiveram Antonio Genovese como seu nome referencial em matéria de economia política, defenderam princípios que articulavam o centralismo da economia no Estado e o protecionismo, no interior de um reformismo cujo propósito era o de restaurar uma economia considerada dependente (no caso desses autores, a de Nápoles). Tais argumentos são próprios do mercantilismo, com fundamentos éticos e econômicos próximos dos que defendia a fisiocracia, tais como a necessidade de aumentar o número da população, limitar as posses de terras de quem não vivia do trabalho – os eclesiásticos, por exemplo –, e a promoção da educação e de “atividades úteis” e não “contemplativas”, como formas de promoção de progresso.117 Sabe-se (e é bastante estudada) a influência de Genovese e da fisiocracia no pensamento econômico português, sobretudo a partir da década de 1780. Porém, é bastante plausível que promesse du quaker. Au sortir de ces pacifiques et libres assemblées, les uns vont à la synagogue, les autres vont boire ; celui-ci va se faire baptiser dans une grande cuve au nom du Père par le Fils au SaintEsprit ; celui-là fait couper le prépuce de son fils et fait marmotter sur l’enfant des paroles hébraïques qu’il n’entend point ; ces autres vont dans leur église attendre l’inspiration de Dieu, leur chapeau sur la tête, et tous sont contents. S’il n’y avait en Angleterre qu’une religion, le despotisme serait à craindre ; s’il y en avait deux, elles se couperaient la gorge ; mais il y en a trente, et elles vivent en paix et heureuses.” VOLTAIRE, François Marie Arouet. Lettres Philosophiques. Sixième lettre: sur les presbytériens. In: ____________. Lettres Philosophiques par M. de V. [1734] A Amsterdam: Chez E. Lucas, au livre d’or. M.D.C.C.XXXIV. p. 47-48. 116 CHARBIT, Yves. L’échec politique d’une théorie économique: la physiocratie. Population (French Edition)-Institut National d’Etudes Démographiques, v. 57, n. 6 (Nov-Dec), p. 849–878, 2002. p. 857858. 117 VAZ, Francisco António Lourenço. A difusão das ideias económicas de Antònio Genovesi em Portugal. Cultura. Revista de História e Teoria das Ideias, v. XI, p. 553–576, 1999. 146 algumas dessas tópicas já circulassem muito antes dentro da cultura letrada portuguesa, dada, por exemplo, a inserção de pensadores como Verney nos círculos intelectuais italianos já na primeira metade do século XVIII, dentro do qual tanto o oratoriano português quanto Muratori tiveram grande parte de suas respectivas formações letradas.118 O mesmo se pode dizer da relação entre aumento populacional e migração com a tolerância religiosa. Os fluxos de imigração e emigração, bem administrados em um bom governo, aumentariam as riquezas dos Estados ao fomentar a agricultura, indústria e comércio, pontos importantes abordados por Pombal e Luís da Cunha. Tal tópico também tem importância em autores das Luzes desde o final do século XVII e princípios do século XVIII, em grande parte, sendo relacionado às impressões sobre as guerras de religião. São exemplos Voltaire e Quesnay (neste último caso, em seus tratados sobre a fisiocracia).119 Foge ao objetivo desta tese demonstrar a influência desses pensadores sobre os portugueses, em especial os autores analisados 118 Exemplo disso é o estudo feito por Breno F. L. Ferreira sobre Verney. Sobre a inserção do ilustrado português na intelectualidade italiana, o autor analisou correspondências entre ele e Ludovico Antonio Muratori, datadas entre 1745 e 1749. A formação intelectual de Verney, além disso, deu-se dentro do mesmo contexto que a de Genovesi e é relativamente bem documentado o contato do oratoriano português, sobretudo epistolar, com figuras como d. Luís da Cunha. FERREIRA, Breno Ferraz Leal. Contra todos os inimigos: Luís António Verney: historiografia e método crítico. Dissertação (mestrado em História). São Paulo: Programa de pós-graduação em História Social- FFLCH/USP. 2009. p. 74-83.Sobre os trânsitos de Verney com a cultura letrada portuguesa, ver, sobretudo, a segunda parte da obra de António Alberto Banha de Andrade, em especial o capítulo sobre sua influência na cultura letrada portuguesa do Setecentos, mais a segunda parte em que constam correspondências com vários letrados contemporâneos: ANDRADE, António Alberto Banha de. Vernei e a cultura de seu tempo. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1966. p. 233-296. 119 No caso de Voltaire, como explica Marcos Antônio Lopes, a relação entre tolerância e “bem governar” dá-se, pelo menos, em duas frentes: em primeiro lugar, nos diversos elogios que o autor de Cândido faz aos “partidários das seitas consentidas”, presentes, sobretudo, nos seus romances filosóficos. Para ele, “as minorias religiosas podiam distinguir-se apenas pelas riquezas que produziam com o suor do próprio rosto, por estarem afastadas dos cargos importantes, das dignidades e honrarias”. Eram, portanto, “úteis”, no sentido de produzirem e trabalharem, não se apegando a privilégios restritos aos crentes que professavam as religiões oficiais. Disso, decorria uma segunda relação feita por Voltaire, segundo Lopes, no mesmo sentido: os privilégios acessíveis aos que professavam credos oficiais eram, em si, perniciosos ao bem comum. É importante lembrar que um dos “privilégios” mais atacados por Voltaire era o acesso às ordens religiosas, entendidas pelo pensador francês como parasitárias, por não trabalharem e serem empecilhos para que seus adeptos procriassem, povoando os reinos e, assim, gerando “recursos humanos” que viabilizassem sua defesa e produção econômica, essenciais ao bem comum. A relação entre bem governar e tolerância religiosa, assim, reflete-se em aspectos como o crescimento demográfico e econômico, permitindo às minorias que se “enobrecessem” pelo trabalho e negando-se a elas os vícios, prejudiciais ao bem comum, acessíveis às maiorias. Em Quesnay, ideias similares encontram-se no seu famoso Tableau Économique (1759), no periódico Ephémérides du citoyen (circulante entre 1765 e 1772) e nos seus diversos verbetes na Encyclopédie. CHARBIT, Yves. L’échec politique d’une théorie économique: la physiocratie. Op. Cit. p. 859 e p. 851-852; LOPES, Marcos Antônio. Brigadas do antifanatismo: a invenção da tolerância religiosa. História (São Paulo), v. 29, n. 1, p. 24–39, 2010. p. 3435. 147 anteriormente. Todavia, destacar que tópicos dos debates iluministas são mobilizados e apropriados para se ler a percebida decadência portuguesa. Mais um ponto que articula bem as diversas percepções dos ilustrados sobre o atraso português seria aquele que toca às artes, letras e ciências. Foram lembrados constantemente por diversos pensadores o lastimável estado das letras e do conhecimento em Portugal, e seu efeito nocivo em todos os demais campos. Um documento importante a respeito é o conjunto das Cartas Italianas, de Verney. Trata-se de um conjunto de dez cartas datadas e enviadas entre 1751 e 1766, escritas em Roma, Livorno e Pisa, em línguas italiana e latina, a um destinatário anônimo. Foram publicadas, pela primeira vez, por Luís Cabral de Moncada, na década de 1750. Para este último autor, elas foram remetidas ao Ministro de Estado português em Roma, Francisco Almada de Mendonça.120 Anos depois, Alberto Banha de Andrade defendeu que elas foram enviadas ao secretário de negócios estrangeiros Aires de Sá e Melo.121 No entanto, Ana Lúcia Curado e Manuel Curado colocam em dúvida essas duas teses sobre os destinatários das cartas, com base em críticas internas e externas aos documentos.122 Na carta II, intitulada Diagnóstico cultural da vida intelectual dos Portugueses, escrita em Roma e datada de 1 de janeiro de 1753, em resposta a outra que o Barbadinho teria recebido em 8 de junho de 1752, Verney demonstra preocupação com o estado da cultura em Portugal e, ao mesmo tempo, um certo desdém diante da incultura de seus conterrâneos, sempre ressaltando seu isolamento e atraso em relação ao universo letrado das demais nações. Logo de início, ao se referir à censura que sofreu seu Aparato,123 Verney critica duramente seu censor por não entender sua obra, ao dizer: Que os Jesuítas nesse papel que escreveram contra a Recreação Filosófica dos Filipinos introduzissem aquele parágrafo contra o meu Aparato, não me admiro. Jesuíta de propósito e de consciência não foi MONCADA, Luís Cabral de Oliveira. Um ‘iluminista’ português do século XVIII. Op. Cit. ANDRADE, António Alberto Banha de. Vernei e a cultura de seu tempo. Op. Cit. p. XIII, p. 113, p. 223, p. 301-315. 122 C.f. CURADO, Ana Lúcia; CURADO, Manuel. Prefácio. In: VERNEY, Luís Antônio. Cartas Italianas. Op. Cit. p. 12-13 123 De acordo com Eduardo Teixeira de Carvalho Junior, trata-se de uma obra escrita por Verney em Latim e nunca publicada em português, intitulada Aloysii Antonii Verneii equitis Torquati archidiaconis Eborensis Apparatus ad philosophiam et theologiam ad usum Lusitanorum adolescentium libri sex. A obra teve um parecer favorável do Fr. Joannes De Luca Venetus, e nela há uma dedicatória ao rei d. José I. O nome de Verney, como autor, aparece em latim: Aloysius Antonius Verneius. Ainda de acordo com Carvalho Junior, a proposta da obra é apresentar a melhor forma de se fazer filosofia para que os adolescentes portugueses pudessem usá-la com facilidade, como “um aparato”. Essa obra ainda não foi analisada nesta pesquisa. CARVALHO JUNIOR, Eduardo Teixeira de. O método de Verney e o Iluminismo em Portugal. Tese [Doutorado em História]. Curitiba: Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes. Universidade Federal do Paraná-UFPR. 2015. p. 43. 120 121 148 certamente. Seria algum Jesuitinha da mão furada que se mete a falar no que não entende. E eu estou mijando para semelhantes censores, dos quais faço tanto caso como da lama da rua. Mente o dito Reverendíssimo em dizer que do Aparato foi borrado parte por autoridade de quem podia, pois estão vivos e são os que o aprovaram, ambos, em que nada se borrou. O homem não entendeu o que eu digo na prefação. Mas caso que dissesse a verdade, ele mesmo se contradiz no parágrafo, visto que, se em Roma, depois de o examinarem bem, aprovaram o que se acha no livro, é certo que não lhe acharam mordacidade infame, estilo desaforado, pena maledicentíssima. Merece o homem que lhe dêem duas dúzias de açoites e não fale mais nele em pena da sua ignorância [Os itálicos, exceto dos títulos de obras, são do documento].124 Dois temas que aparecem nesse trecho são retomados na terceira parte da carta, em que Verney responde a seu interlocutor, argumentando contra as proposições que este teria registrado na carta anterior, de que a produção de letras e ciências de Portugal é tão boa quanto a de outras nações: o Barbadinho diz, categoricamente que a ignorância dos portugueses, por não entenderem e não interagirem com o que havia de mais avançado no universo das ciências e letras na Europa –no qual Verney deixa claro que estava perfeitamente inserido – e o isolamento, que cegava a percepção dos lusitanos quanto a essa realidade, alimentavam-lhes a prepotência e rusticidade. Para Verney, pensar que em Portugal se produzia uma cultura letrada tão rica quanto a das “mais polidas nações da Europa” era irreal por diversos motivos. Primeiramente, porque a “presunção que (...) lá [em Portugal] têm de lerem com toda a familiaridade os autores franceses e italianos é falsa e sem o mínimo de fundamento porque os autores [estrangeiros] que (...) lá conhecem são os dozinais”, no sentido de “que se escrevem e se vendem às dúzias”, sendo de menor valor. Além disso, os melhores autores “não vão para lá, ou porque muitos são proibidos por algumas razões, ou porque todos os livreiros sabem de certo que lá não se compram”, sejam livros em língua latina ou línguas modernas. Conclui que “é tão geral esta opinião entre os estrangeiros” que os livreiros não perderiam o seu tempo em enviar livros a Portugal, “fundados no mau êxito que têm experimentado”. E ainda que “mil vezes têm sucedido que o revisor dominicano retém os livros por lhe parecer nocivos. E isto é público cá por fora”. 125 E, dessa maneira, o que se via em Portugal, para Verney, era um crônico isolamento e um quase barbarismo na produção das ciências e letras, da teologia à poesia, passando pela 124 VERNEY, Luís Antônio. Cartas Italianas. CURADO, Ana Lúcia; CURADO, Manuel (orgs.). Lisboa: Edições Sílabo, 2008. p. 39-40 125 Ibidem, p. 46-47. 149 matemática e ciências naturais.126 Cumpre ressaltar que não se trata, aqui, de uma crítica à censura literária em si, da qual Verney era partidário, como analiso mais adiante, mas sim de entender que ela era atrasada. Seu atraso, segundo as impressões do oratoriano, devia-se ao isolamento cultural português, sendo parte de um contexto culturalmente arruinado e, ao mesmo tempo, contribuindo para reproduzi-lo. Um dos motivos que ilustra esse quadro de isolamento, aponta Verney, é a inexistência em Portugal de “jornais eruditos”, que dariam “notícias dos bons livros que saem nos ditos reinos [Itália e Europa setentrional] e, muitas vezes, são críticos e dão juízo deles”. Argumenta que, por meio dos ditos jornais, poderia se verificar a não circulação das mais importantes obras publicadas na Europa e o parco conhecimento dos portugueses da cultura erudita de outros reinos. E, mesmo que tais gazetas existissem em Portugal, seriam acometidas por alguns vícios oriundos desse isolamento: Além disso, a nação portuguesa tinha necessidade de um jornal português. Mas que livros se refeririam nele? Quatro novenas e coisas semelhantes. Coitadinho do jornalista se quisesse dar juízo das obras! Seria satírico, herege, ímpio, ateu, e sairia logo uma sátira examinando quem era seu avô e bisavô, e coisas semelhantes e injuriosas, e ia o jornal com todos os diabos! E como essa gente não se pode emendar, por isso digo que nunca poderá lustrar nem adiantar-se nos bons estudos. Isso são cafres do Diabo que, por falta de notícias de livros, vivem sepultados em uma incrível ignorância, e desta nasce a presunção de serem doutos. Dessa presunção e soberba nasce também a maledicência contra os autores que os querem alumiar [Grifos meus].127 As gazetas e jornais, aos olhos de Verney, seriam benéficos para a circulação de informações e ideias, contribuindo para arejar a cultura portuguesa. Mas eles foram sistematicamente suprimidos no país entre 1768 e 1772.128 Além disso, teriam, na avaliação do referido pensador iluminista, seus benefícios limitados pelos preconceitos e obscurantismo arraigados em Portugal, sobretudo os evidenciados no perigo de serem vítimas da perseguição e da censura de natureza religiosa, justificadas pelo medo da impiedade e da heresia, que seriam supostamente as marcas da cultura moderna e estrangeira. Efeitos disso, no diagnóstico de Verney, eram a presunção e arrogância de letrados portugueses, vindas de seu atávico desconhecimento em relação aos autores de fora e ao já mencionado receio contra eles. Verney, nessas cartas, de maneira similar ao que se vê em obras aqui citadas, mais precisamente o Compêndio e a Dedução 126 Ibidem, p. 47-52. Ibidem, p. 62-63 128 ARAÚJO, Ana Cristina. Modalidades de leitura das Luzes no tempo de Pombal. Separata da Revista de História, v. X, p. 105–128, 1990. p. 124-125. 127 150 Cronológica, faz referência ao atraso português e ao próprio passado quinhentista. Segundo ele, “alguns homens doutos que têm produzido a nossa nação floresceram comumente no século XVI, em que era costume, ou virem cá aprender, ou irem lá ensinar e comunicar as luzes das outras nações”, e que, “quando cessou esse costume, acabou-se a nossa glória”.129 No século XVIII, a essa imagem de uma cultura atrasada, associava-se uma literatura que representava Portugal, com algum exagero, como uma nação “exótica e bárbara”. Antônio Cesar Almeida dos Santos constatou essa imagem em relatos de viajantes que escreveram sobre Portugal do período, como César de Saussure e Giuseppe Gorani. Além disso, a própria correspondência diplomática ajudou a espalhar uma ideia sobre o “o estado de incivilidade (ou de barbárie) dos portugueses, especialmente daqueles que ocupavam postos de governo”, pela Europa.130 Esses aspectos foram notados nas elites portuguesas por Antônio Nunes Ribeiro Sanches. Em seu entendimento, eram produto de uma série de falhas na sua educação (nas Cartas sobre a educação da mocidade, do referido autor, a educação das elites lusas é apresentada como própria de tempos remotos). Para Sanches, a atualização da forma de educar, ainda que de maneira desigual, todos os estratos da sociedade, sobretudo as elites, era fundamental para uma renovação do reino. Segundo Sanches, tal incivilidade era produto da degeneração que a fidalguia sofria, seguindo modelos daquilo que chamou de uma “educação gótica”, de matriz medieval, própria de tempos de guerras e conquistas. Esse tipo de educação, após algumas gerações sem guerras, faz com que a fidalguia se acostume com o luxo, e, assim, toda a “virtude guerreira” anterior se perdeu em uma “dissoluta vida cortesã”. Essa educação, feita a partir de uma “constituição gótica”, de acordo com Sanches, possui duas grandes falhas das quais decorrem inúmeros prejuízos aos portugueses: a primeira é que, quando a mocidade nobre ou fidalga começou a receber a educação em suas casas em tempos de paz, a teve das mãos de eclesiásticos, que a educaram somente nos mistérios da fé, formando ignorantes quanto às suas obrigações de súdito; a segunda, envolve uma educação doméstica, feita por amas e mulheres comuns, além de escravos, o que degenerou essa mocidade, por não aprender a conviver entre iguais e não ser educada a desenvolver senso de obediência e respeito. Sob tal situação, a consequência foi o desconhecimento 129 VERNEY, Luís Antônio. Cartas Italianas. Op. Cit. p. 53 SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Luzes em Portugal: do terremoto à inauguração da estátua equestre do Reformador. Op. Cit. p. 80-81. 130 151 da subordinação como súdito e de valores da vida civil, assim como de qualquer noção de bem comum.131 A arrogância de uma educação apartada de valores civis e um obscurantismo vindo de um aprendizado cujo centro residia na religião, e não nas artes e nas ciências, como nos apresenta Sanches nas referidas Cartas, confirmam a ideia de atraso citada nas cartas de Verney e, ao mesmo tempo, o estereótipo do português como povo rude e soturno. Tal estereótipo, frise-se, era muito disseminado na Europa, conforme mostra Antônio Cesar Almeida dos Santos. Não se pode, no entanto, ler a constatação de Verney ou de Sanches sobre o dito atraso como uma fatalidade inexorável e insuperável. Pelo contrário, em ambos, pode-se perceber a reversibilidade do atraso e, mais que isso, à época de Pombal, eles e outros ilustrados portugueses tinham a percepção de que o contexto em que viviam era uma época de mudanças e de aceleração do presente, compreensão que estava em consonância com o valor iluminista do progresso. Há também algumas evidências da adesão, mais ou menos direta, de vários deles, ao que podemos chamar de um projeto político, articulando seus diagnósticos com um corpo de ideias políticas próprias do Iluminismo. O que aqui é entendido como “acelerar a presente” parte da perspectiva de Reinhard Koselleck sobre o tempo histórico. Para ele, trata-se, primeiramente, da perda de uma percepção da história como magistra vitae, narrativa mestra da vida, assentada na ideia de que passado, presente e futuro não possuíam distinções. Nessa história mestra da vida, o objetivo era apresentar exemplos que poderiam e/ou deveriam ser seguidos no presente, diante de uma perspectiva de futuro que tenderia a repetir, em alguma medida, essas realidades de tempos anteriores. Porém, no Setecentos, segundo Koselleck, há uma substantiva mudança na concepção desse tempo histórico, vincada na ideia de progresso: o passado torna-se algo a ser superado, o presente a ser espaço da ação humana no sentido de se acelerar a chegada de um futuro e, este último, necessariamente melhor que o presente e passado. Com isso, alteram-se e diferenciamse substancialmente tais instâncias do tempo e da narrativa. Assim, explica Koselleck, as categorias históricas “espaço de experiência” e “horizonte de expectativa” se aproximam, o que marca o surgimento da modernidade. A primeira categoria denota, grosso modo, o espaço de ação individual e coletivo, ao passo que a segunda remete à 131 SANCHES, Antônio Nunes Ribeiro. Cartas sobre a educação da mocidade. [1760]. Nova edição revista e prefaciada pelo dr. Maximiano Lemos. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1922. Edição do Kindle. Posições: 1923-1967. 152 percepção de um futuro possível, que será produto dessa ação humana, e que não repete o presente e se articula aos ideais de progresso, presentes nos projetos reformistas e nas utopias que marcaram o vocabulário político das Luzes.132 No caso de Ribeiro Sanches e de outros ilustrados portugueses e luso-brasileiros, fica claro pela sua leitura que a adesão ao reformismo pombalino e os seus diagnósticos sobre o atraso – não como algo naturalizado, mas produto do mau governo dos povos e, assim, sendo algo reversível – implicam também percepções de espaços de ação na realidade e, ainda, expectativas de uma realidade futura melhor que a do agora.133 Sanches propunha uma secularização do ensino como modo de superar o atraso português, já que, para ele, o controle sobre a educação há muito tinha passado dos monarcas para os bispos, tornando-se uma educação eclesiástica, servindo ao longo dos séculos apenas para aumentar o clero.134 Ao mesmo tempo, ele exaltava d. José I, afirmando que “Somente S. Majestade Fidelíssima” “foi o primeiro entre os seus Augustos Predecessores, que tomou a si aquele Jus da Majestade de ordenar que os seus Súbditos aprendam de tal modo, que o ensino público possa utilizar os seus dilatados Domínios”. Controlando esse ensino historicamente, os eclesiásticos “se desviaram de suas funções dadas por Cristo e pela Igreja, que era de ensinar os preceitos católicos, administrar sacramentos e educar segundo os costumes cristãos”. Com isso, nas palavras de Sanches, com influência dos padres da Companhia de Jesus, formou-se uma nação composta de pessoas que não eram educadas segundo aquilo que era útil ao bom governo.135 Isso mudaria com um ensino secularizado, sob o controle da Coroa e que seria direcionado para a vida civil e utilidade do reino. 132 KOSELLECK, Reinhard. Futuro e Passado. Op. Cit. p.305-328. Aqui, cabe fazer menção ao debate historiográfico sobre se houve ou não um plano delineado previamente para o que se chama de “pombalismo”. A discussão a respeito da existência de um “projeto” ou de ações intuitivas e contingenciais que marcaram o período ocupa, segundo Antônio Cesar de Almeida Santos, um lugar importante nos estudos históricos desde o século XIX. Ao longo desta pesquisa, assim como autor citado e outros, como Ivan Teixeira, posiciono-me favoravelmente à ideia de ter havido um projeto. As fontes e estudos como os aqui já citados, e outros que aparecem ao longo da tese, a meu ver, demonstram de maneira robusta e substantiva, ainda que de formas distintas, a pertinência de se afirmar que houve uma relativa coerência nas ações políticas no reinado de d. José I e na governança do Marquês de Pombal, e um certo diálogo delas com ideias políticas circulantes no contexto das Luzes, estabelecendo-se, de alguma maneira, uma espécie de corpo doutrinário próprio. SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Luzes em Portugal: do terremoto à inauguração da estátua equestre do Reformador. Op. Cit.; ____________. O “mecanismo político” pombalino e o povoamento da América portuguesa na segunda metade do século XVIII. Revista de História Regional, v. 1, n. 15, p. 78–107, 2010; TEIXEIRA, Ivan. Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica. Op. Cit. 134 SANCHES, Antônio Nunes Ribeiro. Cartas sobre a educação da mocidade. Op. Cit. Posição: 170206. 135 Ibidem, posição: 404-410. 133 153 Aquele benigníssimo Alvará [de 28 de junho de 1759]136 nos dá a conhecer que só a Educação da Mocidade, como deve ser, é o mais efetivo e o mais necessário. Porque S. Majestade, que Deus guarde com alta providência, considera que lhe são necessários Capitães para a defesa; Conselheiros doutos e experimentados; como também Juízes, Justiças, e Administradores das rendas Reais; e mais que tudo na situação em que está hoje a Europa, Embaixadores, e Ministros públicos, que conservem a harmonia de que necessitam os seus Estados.137 Ribeiro Sanches exalta, dessa forma, d. José I e, ainda que não o citando diretamente, o Marquês de Pombal, por terem criado em Portugal condições para, através de escolas controladas pelo poder régio, “ensinar aos seus discípulos os conhecimentos necessários para viver no Estado civil, ou para servir nos seus cargos”.138 Segundo Ana Cristina Araújo, em análise sobre a referida obra de Sanches, seu conceito de educação se alinha à ideia iluminista de que a promoção contínua do gênero humano se realiza na e pela história. Entende a autora que tal ideia é correlata da exigência de aplicação ao ensino dos valores e dos progressos realizados pela cultura moderna, promovendo a utilidade pública e particular, ao atacar as imunidades dos eclesiásticos e privilégios da nobreza, vistos por Sanches como impeditivos do progresso de Portugal.139 Verney, em carta escrita em Livorno em 1765, apresenta sugestões sobre as reformas dos tribunais da Inquisição, entre elogios a monarcas ilustrados, como o rei Pedro, o Grande, da Rússia (por este ter conseguido grande sucesso em pouco tempo em seu reinado ao ouvir “um bom amigo forasteiro que lhe vinha sugerindo coisas uteis”),140 e também Carlos III, da Espanha. Ao fazê-las, ele demonstra duas preocupações relativas à manutenção dos progressos de Portugal: a primeira era que os jesuítas permanecessem longe da Corte; e a segunda, no caso, era a saúde e o avançar da idade do Marquês de Pombal. No parecer de Verney, naquele ano, não haveria ninguém à altura para substitui-lo em aconselhar a d. José I. Sua morte colocaria todos os 136 Alvará de 28 de junho de 1759, que suprimia as escolas jesuíticas de Portugal e de todas as suas colônias. 137 SANCHES, Antônio Nunes Ribeiro. Cartas sobre a educação da mocidade. Op. Cit. Posição: 134140. 138 Ibidem, Posição: 243. 139 ARAÚJO, Ana Cristina. Cultura das Luzes em Portugal. Op. Cit. p. 51 e p. 60-61. 140 Ao se referir a vários conselheiros estrangeiros que Pedro, o Grande, teve em seu reinado, Verney faz elogios à sabedoria do rei, de não somente acolher tais bons conselheiros estrangeiros como também de de separá-los de aduladores, de quem recebia conselhos. Quando os conselhos fossem pertinentes e sábios, o rei o “percebia logo” e, assim, os “executava sem nenhum cuidado, e sem ter vaidade de querer ser o inventor” das ideias de seus sábios conselheiros, “porque isto é um ponto essencial para o soberano”. A fonte não permite especificar a qual ou a quais dos “bons amigos forasteiros” do rei da Rússia o oratoriano se refere. VERNEY, Luís Antônio. Cartas Italianas. Op. Cit. p. 101. 154 progressos a perder e o retorno jesuítico seria iminente. Ele compara a atuação de Pombal à do “bom amigo forasteiro” de Pedro, o Grande.141 Há menção sobre a “esperança suspendida”, em que estão os jesuítas, noutra carta de 1766, escrita em Livorno, a respeito de que assim que “falecesse o senhor Conde [de Oeiras] (...) citando para este fim o exemplo de Henrique IV, a pedido de Paulo V (...) que os fizeram regressar depois de expulsos”, que também retornassem a Portugal.142 No épico O Uraguai, de Basílio da Gama, é narrada a história das guerras guaraníticas, vencidas pelo irmão de Pombal, para tirar os índios da tirania dos padres jesuítas. O tom elogioso ao pombalismo aparece já no início da obra, com um soneto dedicado a Sebastião José de Carvalho e Melo. A exaltação do pombalismo, aqui, se apresenta juntamente com uma ideia de que a corrupção e decadência das sociedades indígenas e da própria colonização da América tiveram os jesuítas como culpados.143 O índio aparece como figura central do poema, essencialmente antijesuítico. Isso contraria, por exemplo, a obra do abade Raynal, que criticava a colonização portuguesa, mas isentava dos seus vícios os “civilizados jesuítas” e a de outros pensadores ilustrados, como Buffon, que caracterizavam negativamente a natureza americana e a ela atribuíam aspectos negativos da realidade das Américas.144 O elogio ao ministro de d. José I e à sua política, nessa obra, conforme análise bastante detalhada de Ivan Teixeira, é um encômio alegórico. Com isso, na medida em que exalta o Marquês de Pombal, Basílio da Gama acaba dando contornos a esses indígenas como sendo acessórios de uma ficção planejada para elogiar.145 Nesse caso, o próprio rumo civilizatório da colonização, tratando-se especificamente dos indígenas, teria sido corrigido com ações da política pombalina, quando a causa do seu atraso fora extirpada, os jesuítas. Aqui – em concordância com os que consideram equivocado ver em O Uraguai prenúncios de aspectos da literatura brasileira oitocentista –,146 é preciso sustentar que na obra em questão são perceptíveis 141 Ibidem, p. 99-103. Ibidem, p. 206. 143 GAMA, Basílio da. O Uraguai [1766]. Rio de Janeiro, Editora Record, 1998. 144 DOMINGUES, Beatriz. O papel dos jesuítas na Ilustração brasileira. História Unisinos, v. 14, n. 2, p. 135–147, 2010. p.142-143. 145 TEIXEIRA, Ivan. Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica. Op. Cit. p.494-196. 146 Eu me refiro, sobretudo, a dois artigos de João Adolfo Hansen, que trazem como questões de fundo, cada qual à sua maneira, reflexões de caráter metodológico a respeito da leitura de textos coloniais. Segundo o autor, eles precisam ser lidos conforme categorias e convenções próprias de seu tempo, considerando sua inserção social, materialidade, práticas de leitura e as diversas conveniências estéticas que, à época de sua escrita, estabeleceram as balizas dentro das quais o texto se insere. Há um equívoco recorrente em se ler tais textos a partir de categorias pós-iluministas e românticas, que induzem os leitores 142 155 contornos marcadamente setecentistas e identificados com o Iluminismo católico português. A eliminação de signos de corrupção faz parte do repertório de exaltação de ideais de modernidade e civilidade. É importante lembrar que a ideia de que os jesuítas representam um entrave para a “civilização” dos nativos das colônias aparece também na documentação referente a Pombal. Em uma “Resposta oficial escrita de ordem de s.m. fidelíssima pelo secretário de estado Sebastião José de Carvalho e Melo, ao conde de Perrelada” – que era Francisco Xavier de Mendonça Furtado, governador e capitão general do Estado do Grão-Pará e Maranhão de 1751 a 1759 –, datada de outubro de 1754, esse assunto é apontado em uma nota explicativa, logo em sua primeira página. Na resposta, é afirmado que o referido governador “descobriu naquele tempo” que “os religiosos jesuítas, seguindo, por uma parte o diabólico sistema de consulta, que o seu visitador Alexandre Valiguano havia feito, e resoluto na China desde o ano de 1581”, com a finalidade de “arrogar a sua sociedade”, a Companhia de Jesus, “a usurpação dos domínios ultramarinos deste reino” de Portugal “pelo reprovado meio de conservar os habitantes dos ditos domínios em uma crassíssima, e brutal ignorância”. No caso das “Missões do Pará”, em que, segundo a carta e citando a Dedução Cronológica, o então governador teria descoberto que os jesuítas estabeleceram uma lei para que ninguém nelas entrasse, “tinha quase extinto os índios daqueles infelizes Estados”, pois “tratando-os como se fossem bestas de serviço, ou irracionais (...) obrigando-os a abandonarem as mulheres, e filhos para irem nove meses do ano para o mato” colher frutos em distâncias longas, para os regulares as comerciarem, eles os submetiam a uma situação que acabava privando-os de “todo o conhecimento de que tinham um rei, de quem eram vassalos, e de que haviam homens civis”. Com isso, “ali não havia, nem podia haver ou propagação da fé, ou comunicação das gentes, ou administração de justiça” ou qualquer coisa útil ao reino, à religião ou ao Estado. 147 Tais argumentos são, em grande parte, iguais aos apresentados na Relação Abreviada, importante documento a respeito da tese de uma contemporâneos a anacronismos. No caso específico de O Uraguay, conforme analisado por Ivan Teixeira, o poema, lido sem se considerar alguns dos aspectos mencionados anteriormente por Hansen, acabaram por produzir no indianismo uma leitura da obra em que o índio foi interpretado como um indício de um nativismo, na verdade inexistente naquele momento na literatura do Brasil colonial. Dessa maneira verdade, o aspecto central obra, que é o elogio à política pombalina na América, é ignorado. HANSEN, João Adolfo. Ilustração católica, pastoral árcade & civilização. Op. Cit. _____________. Leituras Coloniais. In: ABREU, Marcia (Org.). Leitura, História e História da Leitura. 1. ed. Campinas, Brasil: Mercado das Letras. FAPESP, Associação de Leitura do Brasil, 1999. p. 169–182; TEIXEIRA, Ivan. Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica. Op. Cit. p. 507-520. 147 MELO, Sebastião José de Carvalho e [1699-1782]. Cartas e outras obras selectas do Marquez de Pombal. Op. Cit. p. 244. 156 suposta conspiração jesuítica para usurpar domínios portugueses do monarca. 148 Não é estranho, então, que essa compreensão dos jesuítas como responsáveis pelo atraso português também nos domínios ultramarinos seja retomada numa obra elogiosa ao pombalismo como O Uraguai, consoante à política do mecenato. Enfim, nesta parte do capítulo desta tese, enfatizou-se que o atraso português e ibérico aparece como um tópico constante nos escritos dos ilustrados portugueses e luso-brasileiros, não como um fato natural, mas como algo reversível. É perceptível também a ideia de que tais ilustrados vivem um período em que o referido atraso será ou poderá ser superado. Para tanto, muitas reformas devem ser feitas, tocantes a todas as instituições sociais. Quanto às respostas a que tais ilustrados chegam, é importante destacar que seus temas centrais remetem a um processo de secularização, como a perda de privilégios do clero e a secularização da educação, além do ataque ao clero regular, sobretudo os jesuítas, vistos como contrários a valores iluministas, como a utilidade. Destes, me ocupo no subtítulo seguinte. 2.4 A “Companhia dita de Jesus”, o clero regular e os antimodelos de modernidade Nos “diagnósticos” sobre o atraso português, não são raras as menções aos jesuítas. Mas também são frequentes as direcionadas a outros membros do clero regular, a seus privilégios e à forma como eles contribuíram para o enraizamento de preconceitos, ignorância, isolamento e para a ruína econômica do reino de Portugal e colônias. Modernizar significava, de todo modo, se não eliminá-los, ao menos redefinir radicalmente seu lugar nas dinâmicas e instituições sociais. É falso, todavia, dizer que tais críticas se resumem tão somente a um suposto curso natural e teleológico da secularização (conforme abordagem já questionada neste capítulo), muito menos a interesses muito específicos, como o de o Estado almejar expropriar alguns domínios tradicionalmente vinculados aos eclesiásticos. Mais interessante a este trabalho é perceber, no discurso antijesuítico, em especifico, e crítico ao clero regular, no geral, a afirmação de determinados valores identificados com a modernidade que se desejava. Pode-se organizá-los em pelo menos três vertentes: em primeiro lugar, uma associada à 148 Relaçaõ Abreviada da Republica que os religiosos jesuítas das Provincias de Portugal, e Hespanha, estabeleceraõ nos Dominios Ultramarinos das duas Monarchias, e da Guerra, que nelles tem movido, e sustentado contra os Exercitos Hespanhoes, e Portuguezes. Formada pelos regidos das Secretarias dos dous respectivos Principes Comissarios, e Plenipotenciarios; e por outros Documentos authenticos. Lisboa ?. 1757. s/a. 34 p. 157 adoção e à afirmação de sistemas considerados modernos, como o experimentalismo inglês, que passava, necessariamente, pela rejeição à Escolástica; em segundo, outra, que foi fortemente ligada a uma apropriação de sistemas modernos, como o empirismo, ao campo religioso, que implica a formulação e adoção de um ideal regulado e ilustrado de Catolicismo, oposto ao exteriorismo e às formas religiosas consideradas fanáticas e supersticiosas, mas também à irreligião; e em terceiro, no processo próprio do Iluminismo católico, ajustado à crescente secularização da ideia de bem comum, uma vertente desse antijesuitismo aplicada à política e administração pública, da economia à educação, centralizadas na Coroa e incompatíveis com os privilégios eclesiásticos. Tal incompatibilidade foi conformada pelo regalismo, que se opunha ao jesuitismo, como demonstra estudo de Zília Osório de Castro. Segundo a autora, na medida em que o curso regalista do reformismo pombalino negou aos papas o poder temporal e reduziu a Igreja somente ao que tocava à sua unidade doutrinal e dogmática, o jesuitismo, identificado com tendências pró cúria romana, foi progressivamente colocado como contrário ao reformismo. Mais que isso, os jesuítas foram tomados como possíveis focos de sedição e como usurpadores de um poder temporal legítimo, também criado pela Providência divina, que possuía a Coroa portuguesa, na concepção regalista.149 Pode-se pensar num quarto aspecto, que perpassa os três anteriores em alguma medida, que é a tese de uma conspiração orquestrada pelos regulares, nomeadamente os jesuítas. Tal ideia fez parte desse discurso político e perpassou algumas das concepções acima citadas. Sobre o primeiro ponto, o Verdadeiro Método de Estudar, de Verney, é um exemplo paradigmático. Nele, há um “apelo à modernização de Portugal” através de uma reforma do ensino. O livro posicionou-se contra os paradigmas educacionais escolásticos, identificados com os jesuítas. Ao mesmo tempo, exprimiu uma defesa e adesão parcial ao empirismo inglês, tributário de John Locke e de sua fundamental obra Essay concerning human understanding (1690).150 Isso se nota, por exemplo, na Carta VIII, sobre o método de se estudar a filosofia. Segundo a carta, os “maus métodos” usados em Portugal, típicos da Escolástica, são baseados em se “excogitar sofismas, e metafísicas obscuras”, que causam danos enormes aos estudos da “Medicina, Teologia, 149 CASTRO, Zília Osório de. Sob o signo da unidade: regalismo vs. jesuitismo. Brotéria, n. 169, p. 113134, 2009. 150 ARAÚJO, Ana Cristina. Cultura das Luzes em Portugal. Op. Cit. p. 55. 158 e mais Ciências”.151 Isso ocorre, pois, sendo a filosofia “o conhecimento das coisas que há neste mundo e das nossas mesmas ações e o modo de as regular para conseguir seu fim”,152 ela somente poderia ser efetivamente compreendida por meio de uma sistematização de seus campos de conhecimento distintos, de forma a, organizadamente, por meio da crítica e da experiência, se chegar à verdade. 153 Os jesuítas, pelo contrário, somente faziam confundir a “doutrina revelada com as opiniões da Escola”, afirmando verdades que Verney considerava absurdas, sustentando, por exemplo, “que os Santíssimos Padres aprovassem profeticamente a Escolástica que se inventou alguns séculos depois deles mortos”,154 numa alusão a dissociarem a sua filosofia do conhecimento da história. Este é um ponto fundamental da crítica do Barbadinho à filosofia Escolástica, aos inacianos e ao seu modo de ensinar: a história, sagrada ou profana, serve a Verney como elemento articulador de matérias, como a Filosofia e a Teologia, ao empirismo de matriz inglesa. No caso, a historicidade de seus fundamentos e pressupostos é a forma metódica, para o oratoriano, de se verificar sua verdade e alcançar seu conhecimento propriamente dito sobre ela. Uma apropriação similar ao sistema de Locke também se nota sobre a Teologia, na Carta XIV do Método. Nela, Verney contrapõe o método escolástico ao que ele considera ideal, em que os estudos das teologias positiva, especulativa e outras deveriam se valer das Histórias profana e eclesiástica, assim como do conhecimento das línguas antigas e modernas. Sem tais conhecimentos, a crítica às escrituras sagradas era incompleta. Sem esse empirismo aplicado à teologia, o que se produzia em Portugal através do método jesuítico formava religiosos que só sabiam “opiniões da Escola” (sendo “opinião”, aqui, entendida como contrário de “verdade”). Segundo Verney, os formados nesse método antigo eram ridicularizados pelos “hereges” que conheciam a Escritura através da crítica, possibilitada pela leitura direta e com suporte de outros campos do saber sistematizados.155 151 VERNEY, Luís António. Verdadeiro metodo de estudar, para ser util à República, e à Igreja: proporcionado ao estilo, e necesidade de Portugal exposto em varias cartas, escrito polo R.P. Barbadinho do Congregasam de Italia ao R. P. Valensa : Na Oficina de Antonio Balle, 1746. Tomo 1. p.276-277. 152 Ibidem, p. 282-283. 153 TEIXEIRA, Ivan. Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica. Op. Cit. p. 170-174. 154 VERNEY, Luís António. Verdadeiro metodo de estudar. Op. Cit. p. 281. 155 VERNEY, Luís António. Verdadeiro metodo de estudar, para ser util à República, e à Igreja: proporcionado ao estilo, e necesidade de Portugal exposto em varias cartas, escrito polo R.P. Barbadinho do Congregasam de Italia ao R. P. Valensa : Na Oficina de Antonio Balle, 1746. Tomo 2. p. 195-228. 159 No Compêndio histórico da Universidade de Coimbra, algumas ideias do oratoriano são retomadas, como parte de um violento diagnóstico sobre o estado da dita universidade no início da década de 1770, com um antijesuitismo ainda mais acentuado. O texto defende uma mudança drástica no paradigma educativo da universidade coimbrã. A reforma pombalina identificava tal modelo com o “jesuitismo pedagógico” e este, com a Escolástica, “que teria feito mergulhar as letras e as ciências lusitanas numa escuridão que urgia iluminar através de um processo reformista radical e depuratório das causas recenseadas de tão devastadora decadência”.156 No preâmbulo do Compêndio, dirigido diretamente ao rei d. José I, são definidos os objetivos da obra, sendo o principal o de “eliminar a venenosa raiz Escolástica”, que “sepultou na ignorância” todas as ciências “florentes” até à época da chegada dos inacianos em Coimbra.157 Para concretizar a reforma, urgiria eliminar sistematicamente o que os jesuítas instituíram nos estatutos da Universidade de Coimbra. O que insta com tanto maior força, que nos sextos e sétimos estatutos, que desde o ano de mil quinhentos e noventa e oito até agora governaram a dita Universidade, não há coisa alguma que se possa aproveitar para o objecto de reforma. Muito pelo contrário se contém neles um doloso sistema de ignorância artificial e de impossibilidade para se aprenderem as mesmas ciências, que se fingiu quererem-se ensinar e uma oficina perniciosa, cujas máquinas ficaram desde então sinistramente laborando para obstruírem todas as luzes naturais dos felizes engenhos portugueses.158 A extirpação dos métodos escolásticos da Universidade de Coimbra, proposta no Compêndio, por meio da mudança dos estatutos “contaminados pelos jesuítas”, ainda que, à primeira vista, pareça ser apenas um ataque antijesuítico, contém, assim como se vê no Verdadeiro Método, uma preferência pelos métodos ditos modernos. Trata-se de uma referência sutil, mas de qualquer modo ela se faz presente. Por exemplo, o mesmo valor dado à sistematização do saber, tributária do empirismo, e à valorização da experiência (ambos os procedimentos, presentes em Verney e aplicados ao ensino da teologia) pode ser visto entre os “estragos” feitos pelos inacianos em Coimbra. O ponto central da decadência desses estudos na Universidade se deve à adoção da “Teologia 156 FRANCO, José Eduardo. A reforma pombalina da Universidade Portuguesa no quadro da reforma anti-jesuítica da Educação. In: POMBAL, Marquês de; Junta de Providência Literária. Compêndio histórico da Universidade de Coimbra no tempo da invasão dos denominados jesuítas e dos estragos feitos nas ciências, nos professores e directores que a regiam pelas maquinações e publicações dos novos estatutos por eles fabricados. [1771]. FRANCO, José Eduardo; PEREIRA, Sara Marques (orgs.). Porto: Campo das Letras- Editores, 2008. 1ª ed. p. 17-58. p. 36. 157 POMBAL, Marquês de; Junta de Providência Literária. Compêndio histórico da Universidade de Coimbra. Op. Cit. p. 101-102. 158 Loc. Cit. 160 Escolástica”, que “desprezava a lição da Escritura, Tradição, Concílios, História Eclesiástica”. Por isso, a dita teologia escolástica fora sendo abandonada no século XVI, “pois seu desprezo às fontes teológicas, da Filosofia, da História, das Línguas antigas e modernas, e outras ciências a tornaram inapropriada para combater as heresias, bem como instruir os povos na religião católica e também de reformar os costumes”.159 Não é fortuito que essa vertente do antijesuitismo, associada a essa tomada de lado na disputa “antigos e modernos”, em clara adesão aos últimos, apareça fortemente nas defesas de uma ampla reforma da educação. É importante observar que, no século XVIII, essa ideia de reforma educacional articula-se com um contexto mais amplo, em que a concepção de sociedade se alterava. Se, até então, predominava a ideia de “sociedade” como grupo fechado de indivíduos em comum interesse, com as sociedades maçônicas, tomava corpo a concepção de que o termo se referia à totalidade de uma comunidade organizada, cujo comportamento coletivo obedecia a leis e características próprias. Conceitos como “educação pública” e “saúde pública”, que ganharam expressão na cultura letrada iluminista e na linguagem administrativa no Setecentos, tiveram como pressuposto teórico a ideia de que o que se podia chamar de “sociedade” era algo maior que um simples agrupamento de súditos do monarca, remetendo a um corpo complexo de relações, que deveria ser percebido com características próprias.160 Em Portugal, muito do que foi produzido por letrados no sentido de se modernizar o reino e suas colônias dialogava com esse processo de mudança de paradigma a respeito de sociedade, sem, no caso, prescindir da organização e hierarquização próprias de uma sociedade de Antigo Regime. Fundamental lembrar que o todo social, entendido como análogo ao corpo humano, produziu realidades tomadas como entraves pelo regalismo pombalino que buscou os superar através de reformas. Assim, a ideia de que a educação poderia modelar todo um corpo social, corrente nas Luzes, foi pensada e formulada em conformidade com os paradigmas de sociedade estamental, hierarquizada e organizada segundo a qualidade de cada um. Sob essas linhas gerais, em Portugal, o propósito de reformar a educação foi compreendido, por muitos letrados, como um caminho para a sua modernização.161 Diante disso, a extirpação daqueles que eram identificados com o 159 Ibidem, p.174 ACUÑA, Álvaro Santana; CABRERA, Miguel Ángel. De la historia social a la historia de lo social. Ayer: Revista de Historia Contemporánea. (62), p. 165-192. 2010; GIL, Enrique Perdiguero; PABLO, Ángel Gonzáles de. Los valores morales de la higiene: el concepto de onanismo en Tissot y su tardía penetración em España. In: Acta Hispanica ad Medicinae Scientiarumque Historiam Illustrandam. Vol. 10, p. 131- 162, 1990. 161 ARAÚJO, Ana Cristina. Cultura das Luzes em Portugal. Op. Cit. p. 53. 160 161 atraso desse campo, os jesuítas, era constantemente colocada no centro dos debates identificados com as reformas das mentalidades, relacionando o funcionamento do Reino à questão da educação. Mais que isso, “sociedade”, aplicado aos jesuítas, foi, em alguma medida, associado progressivamente a algum tipo de sedição contra a Coroa. Se o discurso antijesuítico indicava uma orientação da cultura letrada a tendências vistas como modernas, como o empirismo inglês, também sinalizava para a construção de um ideal de religião identificado com uma premissa fundamental do Iluminismo católico, que era a de conciliar o dogma e a moral católicos com as referidas tendências modernas do pensamento.162 Trata-se de articular as críticas aos jesuítas e ao clero regular com um ideal regulado, segundo a razão ilustrada, de fé católica. Além disso, tal operação envolvia também uma rejeição dupla, tanto à irreligião, ao ateísmo e a formas religiosas como o deísmo e o que se entendia como a libertinagem, como também às formas religiosas não reguladas, consideradas fanáticas e supersticiosas, ou ainda identificadas a uma exteriorização barroca.163 Na carta do então Conde de Oeiras ao arcebispo de Braga, d. Gaspar de Bragança, em 1768, vê-se uma preocupação do ministro com a propagação, por clérigos, de uma religiosidade desajustada do referido ideal de Catolicismo. Nela, o ministro adverte ao religioso que, sob seu arcebispado, “a perniciosa leitura de certos livros espirituais, introduzida na cabeça das beatas por alguns frades ignorantes, tem chegado a produzir grande número de fanáticos de um e outro sexo”.164 Lembra que o bispo é vigilante na tarefa de extirpar frades, “pais espirituais de beatas, que ajuntam congregações delas debaixo de sua direção”, e que em cada uma delas “estabelecem um seminário de fanatismos e entusiasmos devotos”. Tais fanatismos e entusiasmos eram fomentados pela leitura “do pernicioso livro de Alonso Rodrigues, das obras de soror Maria de Lantígua, das fábulas espirituais da madre Agreda e da vida de soror Maria Serio”, dentre outros livros semelhantes. Juntamente, lembra ao arcebispo sobre os padres que incentivam pessoas a expelirem demônios, “levando após de si os outros grandes séquitos de endemoninhados, que nesta corte e província se extinguiram”, depois que essa prática tinha sido proibida e combatida, “de sorte que todos os antecedentes demônios têm fugido para longe do cheiro da estopa da enxárcia velha, Esse ponto já foi discutido no Capítulo 1.LEHNER, Ulrich L. What Is “Catholic Enlightenment”? Op. Cit.; SANTOS, Cândido dos. Matrizes Do Iluminismo Católico da Época Pombalina. Op.cit. 163 VILLALTA, Luiz Carlos. As imagens, o Antigo Regime e a “Revolução” no mundo luso-brasileiro (c. 1750-1812). Op. Cit. 164 MELO, Sebastião José de Carvalho e. Cartas e outras obras selectas... Op. Cit. p. 95. 162 162 que ali se desfia, e do castigo que recebem os que não dão conta das tarefas que lhe são arbitradas”.165 Luís Antônio Verney, em carta que continha propostas de reformas para a Inquisição, faz observação semelhante às do ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, acima referidas. Defende, assim, a supressão de tipologias de crime de alçada inquisitorial que considerem o pacto com o demônio. O motivo dessa supressão, de acordo com oratoriano, seria que: “aquilo de pacto com o diabo, já se sabe que só se pode acreditar em quatro padres e frades ignorantes”. Com ironia, diz, em conclusão, que “observou-se que os diabos têm grande medo de países em que se sabe bem a filosofia, medicina, lei e teologia, porque nunca se arriscam em tais lugares em fazer pacto com nenhum homem”.166 Deve-se acrescentar que, em Portugal, a crítica ao clero regular como despreparado e motor de superstição e excessos em matéria de religião com os povos existe muito antes das Luzes, remontando a uma literatura quinhentista. Por exemplo, no capítulo CII, da primeira parte da crônica Crônica do felicíssimo rei Dom Manuel, já analisada brevemente no final do Capítulo 1 desta tese, o humanista português se refere a uma “turma de maus homens & frades”, tomando-os como agitadores que deram início ao pogrom de Lisboa, em 1506. Em carta ao monarca d. João III, o poeta Gil Vicente menciona também a ignorância dos regulares, que atribuíram os tremores de terra ocorridos então em Portugal à Providência divina, ao invés de tratá-los como eventos normais no curso da natureza.167 Uma diferença de abordagem dos vícios do clero regular e, sobretudo, dos jesuítas, no século das Luzes, é tributária do processo de secularização marcante no período. Nesse momento, a crítica à falta de vocação, ao fanatismo e à pouca ou nula utilidade dos frades e freiras para o bem geral arvora-se numa separação de atribuições entre o poder civil e as religiões instituídas.168 Não se tratava, ressalte-se, de uma 165 Ibidem, p. 96. VERNEY, Luís Antônio. Cartas Italianas. Op. Cit. p. 106. 167 C.f. MUNIZ, Márcio Ricardo Coelho. 1531: Gil Vicente, Judeus e a instauração da Inquisição em Portugal. Contexto, Vitória, p. 95-108,v. 7. 2000. 168 Conforme analisa Fernando Catroga, algumas mudanças a respeito das concepções de tolerância religiosa, entre o final do século XVII e o XVIII, são em grande medida tributárias dos debates em torno da revogação do Édito de Nantes, na França, em 1685, e das querelas teológicas que marcaram o final da Revolução Inglesa. Tais debates eram conhecidos, sobretudo, pelas obras de Pierre Bayle e John Locke. Por caminhos distintos, a partir delas se formam pressupostos teóricos e políticos de uma “desteologização” do político. Com isso, separa-se a ideia de bem comum, referente a assuntos terrenos, reportados às atribuições do Estado, enquanto os assuntos tocantes à salvação ou a bens espirituais são paulatinamente circunscritos no plano do particular, das Igrejas e ordens. Assim, constrói-se também a 166 163 relativização da ideia de uma única verdade dentro da Igreja Católica, mas de pensar-se nisso como um filtro principal para o desenvolvimento dessas ideias em Portugal: são questionados, por exemplo, os desvios das verdadeiras funções, no domínio do espiritual, nos quais incorrem os regulares quando se misturam com assuntos seculares. Essa é uma inferência que se pode fazer dos vários documentos que constam das Observações Secretíssimas, do Marquês de Pombal, mais precisamente do Tratado em que mostra que os religiosos, posto que em particular, ou em comum, não podem possuir bens de raiz, que herdassem, ou possuíssem, por mais tempo que um ano e dia, sem data. Para a matéria do título desse breve tratado, Sebastião José de Carvalho e Melo apresenta quatro justificativas: o prejuízo que a Coroa experimentava pela perda de sisas e vendas, que se perdiam para sempre quando bens de raiz passavam para qualquer Religião – esta, entendida aqui, como ordem religiosa. Uma vez que esses bens estivessem em mãos de regulares, os súditos e seculares, nessas terras, não poderiam empregar sua força no estabelecimento de suas casas e atividades, como agricultura e comércio, para a utilidade e proteção da monarquia. Impedindo-se a venda dessas terras, por sua posse pelos regulares, o comércio cessava e o dinheiro não girava. Por fim, “estando os bens” de raiz “no poder dos particulares”, no caso, ordens do clero regular, “terão os diretos senhores aquelas utilidades resultantes dos laudêmios, pelas vendas” desses bens de raiz “com as quais se ajudariam”.169 A partir daí, são expostas, de forma breve e sucinta, as justificativas para a recomendação, em que incompatibiliza a função do clero com o direito de seus membros à posse de bens, sobretudo, terras, além de alguns outros importantes apontamentos. A posse de terras, primeiramente, afasta, para Melo, os regulares de seu voto de pobreza. Com elas, “se reputam como indignos, por se entregarem à glória de possuir fundos e riquezas consideráveis, sem pagar os tributos necessários com que se gravam os vassalos seculares”. Assim os regulares “se entregam à cobiça, que é o veneno da caridade e companheira da violência”, e acrescenta que: Desta perturbação e tenacidade das demandas, entre vassalos monacais e seculares, resulta contra os regulares uma concludente conjectura de corrupção dos costumes, à semelhança de Lúcifer, e distração por inveja, soberba, honra e avareza, tudo contra os votos que professaram, e certamente cessariam com a privação dos bens, que são a causa destes males, dos quais entregando-se a Deus pelo noção de que cabia ao poder civil uma ação no campo religioso somente naquilo que viria a intervir na vida pública. CATROGA, Fernando. Entre deuses e césares. Op. Cit. p. 74-84 e p. 360. 169 MELO, Sebastião José de Carvalho e [1699-1782]. Memórias secretíssimas do marquês de Pombal e outros escritos. Lisboa: Publicações Europa-América. Série Estudos e Documentos- 193, 1984. p. 54-55. 164 ingresso da Religião, ficam desapropriados com a perda do domínio, e com a proibição de testar, posto que o Papa lha permita, carecendo de licença do soberano.170 Dessa maneira, de acordo com o ministro de d. José I, quando os regulares possuem acesso a bens, sobretudo de raiz, desviam-se de suas funções espirituais, gerando perturbações e corrompendo seus verdadeiros propósitos, além infringirem a soberania real e irem contra o bem comum. Isso não iria acontecer, prossegue Pombal, “se os religiosos e monges só cuidassem na conservação de bens espirituais”. Dessa maneira, “seu exemplo não provocaria tantos seculares, aos quais eles mesmos inquietam, intrometidos em negociações profanas, perturbando a república com pleitos injustos”, fazendo-os deixar de lado “os tesouros celestes, que unicamente devem conservar conforme os seus estatutos, pela glória e riquezas deste mundo”.171 Em alguns pontos, as ideias de Pombal quanto aos regulares são idênticas às de d. Luís da Cunha, no Testamento Político. Afinal, mesmo que seja imprescindível considerar o tom cristão católico e a ausência de qualquer menção para, ao menos, relativizar-se esse pertencimento religioso, ou mesmo quanto à atuação da Coroa nos assuntos religiosos, é notável que o olhar de ambos sobre o clero regular pauta-se pela diferença de atribuições das ordens e do clero em relação às da Coroa. O bem comum, a sustentação e a proteção do Estado pertencem a este último, e a transposição desse limite resulta em prejuízos, ou mesmo, usurpações. Esse aspecto é ressaltado, também, na lei referente à expulsão dos regulares da “Companhia denominada de Jesus” de Portugal e suas colônias, de 1759.172 No século das Luzes, frades e freiras são muitas vezes abordados como sendo párias de um processo civilizatório pautado por valores como a utilidade, a preservação do gênero humano e o antifanatismo. É exatamente isto que explica Marcos Antônio Lopes, analisando o tema da luta contra o fanatismo e o surgimento da tolerância religiosa na cultura letrada europeia, a partir da leitura de autores diversos, tais como Erasmo de Roterdã, Montaigne, David Hume, Diderot, Jonathan Swift e Voltaire. Conforme explica o autor, para muitos autores da Idade Moderna, no clero regular, 170 Ibidem, p. 58. Ibidem, p. 57. 172 “(...) havendo por todos estes modos procurado que os sobreditos regulares [da Companhia de Jesus] livres da contagiosa corrupção, com que os tinha contaminado a hidrópica sede dos governos profanos, das aquisições de terras, e Estados, e dos interesses mercantis, servissem a Deus, e aproveitassem ao próximo, como bons, e verdadeiros religiosos, e ministros da igreja de Deus”. Lei pela qual S.M. é servido exterminar, proscrever, e mandar expulsar dos seus reinos, e domínios os regulares da companhia denominada de Jesus, etc. In: MELO, Sebastião José de Carvalho e [1699-1782]. Cartas e outras obras selectas.... Op. Cit. p. 75. 171 165 encontram-se elementos basilares do fanatismo: a presunção e o orgulho de serem portadores de uma verdade absoluta, a obstinação de perseguir seus adversários e imporem suas crenças e, consequentemente, o espírito de sedição e o sectarismo que os acompanham, trazendo prejuízos para toda a vida em comum. A partir dessas ideias, no século XVIII, pensadores do Iluminismo defendiam que se deveria “desfradar o mundo”, isto é, extirpar deles o clero, sobretudo o regular, pois isto seria “fazer a obra civilizadora de extirpação do fanatismo da face da terra”. Além disso, “essa cruzada contra os frades será justificada pelo fato de que eles são criaturas hostis à sociedade, porque são cadáveres que precisam ser ressuscitados para a vida e o trabalho produtivo”.173 Por exemplo, Voltaire, ao pronunciar-se a respeito dos jesuítas, em seu Dictionnaire Philosophique, mobiliza alguns desses pontos contra o clero regular, com algumas especificidades. No verbete Jesuítas e orgulho, mais precisamente, o pensador francês destaca a soberba arraigada nos inacianos, exposta no desprezo que demonstravam a todas as universidades em que não se instalavam e aos livros que não eram escritos por eles. Essa presunção de superioridade os levava a menosprezar outras ordens e mesmo a desobedecer aos reis e bispos, não tendo diminuído tal comportamento mesmo diante da certeza de sua expulsão da França, Espanha e das duas Sicílias.174 Esse mesmo orgulho é destacado e ridicularizado no capítulo XIV de Cândido, quando o protagonista e Cocambo, criado que a ele se juntou pouco antes dele chegar ao Paraguai, em meio à Guerra das Missões, encontra o irmão de sua amada Cunegundes. Cândido acreditava que ele teria morrido em uma batalha, mas, para a sua surpresa, o personagem sobrevivera e se tornara jesuíta. A prepotência deste último já aparece na sua caracterização. Na cena, só se permitiu que Cândido falasse quando disse ser alemão, pois ali, por determinação do jesuíta, espanhóis não poderiam falar. Logo em seguida, encontram-se em “uma espécie de salão de folhagens, cercado de uma linda colunata de mármore verde de dourado”, decorado de “aviários que encerravam papagaios, colibris, beija-flores (...) e todos os pássaros, dos mais raros”. Ali, foram servidos de “um excelente almoço, em baixelas de ouro”, “enquanto os paraguaios comiam canjica em escudelas de pau, ao ardor do sol”.175 E no Précis sur le siècle de Louis XV, na parte que se refere a alguns eventos que aconteceram em Portugal, o 173 LOPES, Marcos Antônio. Brigadas do antifanatismo: a invenção da tolerância religiosa. Op. Cit. p. 34. VOLTAIRE, François Marie Arouet. Dictionnaire Philosophique [1764]. Paris: Imprimerie de Cosse et Gaultier-Laguionie. 1838. p. 638-639. 175 ______________. Cândido ou o otimismo [1759]. s/c: Ed Ridendo Castigat Mores, 2002.p. 77. 174 166 ilustrado francês, primeiramente mostra indiferença à execução do padre inaciano Gabriel Malagrida pela Inquisição, por este ter defendido que o terremoto de 1755 se dera pela providência divina. Em seguida, atribui aos jesuítas a responsabilidade pelo atentado contra d. José I, feito em 1758. Além de tomar a proposição de Malagrida por supersticiosa e como razão para sua execução, soma-lhe uma rivalidade entre jesuítas e dominicanos em relação ao controle da Inquisição e demonstração de bons serviços ao rei. Descreve um cenário onde os jesuítas são apresentados, ainda, como “os verdadeiros senhores de Portugal, mantendo-o, mais que outras nações, submetido ao Papa”. Isso, em considerável medida, contribuía para deixar o país longe “das luzes que esclareciam tantos Estados da Europa”; “outros povos (do restante do continente “civilizado”) estavam no século dezoito, mas os portugueses pareciam viver no século doze”.176 Tendo em vista a forte propaganda antijesuítica que marcou a política cultural da governação pombalina, é possível se presumir que, na república das letras iluminista, havia grande circularidade de argumentos, como os de Voltaire, contra os inacianos. A Relação Abreviada, por exemplo, foi publicada, simultaneamente, em português francês, alemão e inglês177, e, segundo Kenneth Maxwell, estima-se que foram impressos mais de vinte mil exemplares da obra que, como já analisei neste capítulo, acusa a Companhia de Jesus de manter os povos das colônias portuguesas na ignorância, com o fim de controlá-los, além de responsabilizar estes regulares pelas Guerras Guaraníticas, movidas com o fim de usurpar as terras da Coroa.178 Por fim, é importante mencionar um tópico que, nas Luzes portuguesas, é constante no que se refere aos jesuítas, que é a ideia de uma conspiração. Trata-se de um tópico que não tem uma presença tão significativa quanto o dos escritos contrários às demais ordens ou ao clero regular, no geral. Nesse ponto, destacam-se a Dedução Cronológica, o Compêndio e, sobretudo, a Relação Abreviada, como já foi dito, segundo os quais os estragos dos jesuítas foram paulatinamente introduzidos pelos seus estratagemas, por estratégias conspiratórias dos inacianos, chamados, comumente, de “sócios”, a fim de penetrar nas Cortes, clero, universidades, administração do Reino e das colônias, e em todas as estruturas da sociedade, com o propósito de controlar a todos através de um domínio ideológico. Nas duas primeiras, no Compêndio e na 176 ______________. Précis du siècle de Louis XV, par M. De Voltaire Servant de suite au siècle de Luis XIV, du même Auteur. Tome second. [1769]. Géneve: De L’imprimerie des frères Mame, 1808. Book digitized by Google from the library of the New York Public Library. Disponível em: https://archive.org/details/prcisdusicledel01voltgoog. Acessado em jun./2018. p. 327-329. 177 TEIXEIRA, Ivan. Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica. Op. Cit. p. 65. 178 MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do Iluminismo. Op. Cit. p. 20. 167 Dedução Cronológica, há uma precisa localização temporal da introdução dos estragos, entre sua chegada no reinado de d. João III, intensificando-se após a morte de d. Sebastião e a União Ibérica, e conduzindo-se linearmente até a época de d. José I, quando eles viriam a ser extirpados em nome de um projeto modernizador. Verney comenta sobre a perseguição aos jesuítas, em carta de julho de 1765. O Barbadinho compara a perseguição aos inacianos à feita aos arianos, no século IV, e a vê de forma positiva, uma vez que eles, durante anos, fizeram com que vários governantes os obedecessem como escravos, causando prejuízos aos reinos por suas maquinações. Com elas, esvaziaram-se os reinos de bons homens e impediram-se progressos das ciências, das artes e filosofia. Sobre os jesuítas, dizia Verney que: Ora, privados os reinos daqueles grandes homens, que só eles podiam abrir os olhos aos seus nacionais e introduzir, com o bom gosto da ciência, o recto pensar, sem o qual na política, nem em nenhuma outra matéria, se faz alguma coisa boa; e aterrorizados os outros, que os podiam imitar, ficaram no campo os sócios [os jesuítas] triunfantes, que mantinham todos na ignorância, para eles poderem reinar sozinhos, como de facto reinaram, dando uma péssima educação aos príncipes, só condizente à conveniência jesuítica. De maneira que é um milagre se qualquer príncipe fez alguma coisa menos mal. Uma de suas maquinações favoritas era inspirar aos príncipes o espírito de desconfiança e perseguição, para lhes descrever qualquer novo sentimento como herético e de os sócios aparecerem como únicos protectores do Catolicismo. Se em França não fizeram mais, foi porque aí existiam as contra-intrigas dos parlamentos, das universidades mais iluminadas, dos prelados bem instruídos, que rebatiam estes golpes. Mas naqueles países onde faltavam estas ajudas e defensivas, tudo se sujeitava à artilharia.179 Assim, para Verney, os jesuítas escravizaram os príncipes, dominaram os povos com ignorância, sempre através de conspirações e intrigas. Apenas não lograram êxito onde houve resistência, o que não era o caso de Portugal até meados do XVIII. Portugal, segundo o Barbadinho, tornara-se um reino tão afundado na ignorância que somente expulsar os jesuítas não bastava. Os estragos dos inacianos eram um “mal crônico, inveterado, que dificilmente se trata”. Não bastava expulsar os jesuítas dos domínios portugueses. Fazia-se necessário reformar todas as mentalidades, “retirando os vícios que eles inculcaram nas mentes”, a começar pelos príncipes, que deveriam ser cercados por cada vez mais homens ilustrados, impedindo, assim, o retorno dos regulares da Companhia de Jesus.180 179 180 VERNEY, Luís Antônio. Cartas Italianas. Op. Cit. p. 80. Ibidem, p. 84. 168 Não são mencionadas, talvez convenientemente, conspirações das quais os próprios jesuítas foram vítimas, como o caso do panfleto Monita Secreta.181 Acrescentese que é ponto pacífico, para a historiografia, o exagero, ao se incompatibilizar completamente o pensamento dos inacianos com o que era moderno, seja no campo das ciências ou da filosofia.182 A despeito disso, no Iluminismo, no caso luso-brasileiro, o clero regular, no geral, e em específico, os jesuítas, constituíram “antimodelos” de modernidade em campos variados, como o religioso, o econômico, político e outros, sendo criticados fortemente na documentação apresentada até aqui. Por fim, a Companhia de Jesus e os regulares no geral, como tópico discursivo, aparecem nos escritos dos letrados do período pombalino. Em tais escritos, vê-se uma articulação bastante significativa entre sua atuação em Portugal e a tópica do atraso, além da ideia de uma forte repercussão de um conspiracionismo, particularismo e sectarismo, contraposto ao ideal centralizador do regalismo. A presunção de um atraso português e a construção de projetos para superá-lo, com os modelos e antimodelos de modernidade que lhes eram correlatos, não implicaram, todavia, qualquer forma de defesa da tolerância religiosa. Entretanto, esse tema também esteve no espaço de debates da cultura letrada sob o ministério do Marquês de Pombal, e é sobre essa questão que a próxima parte do capítulo irá tratar. 2.5 O Triumpho da Religião e o espaço para a tolerância religiosa 181 Trata-se do Monita Secreta Sociatatis Jesu, de datação imprecisa e cujo aparecimento mais antigo é do ano de 1614, em Cracóvia. É amplamente aceito que o documento é uma falsificação, atribuída ao superior geral da Companhia de Jesus, Claudio Acquaviva, em que são passadas instruções para que a Companhia de Jesus aumentasse seu poder e sua influência. Dentre as estratégias que constam no panfleto, estão o aliciamento de jovens promissores, de viúvas, dissuadidas de ter novo matrimônio e com grande herança, o incentivo de uma atitude fingida de humildade perante monarcas e outros detentores de poder político e riqueza, o desacreditar as demais ordens, além de penetrar e controlar as universidades e seminários de toda a Europa. Não se sabe o autor, mas uma das hipóteses é que a Monita teria sido escrita por um regular que fora expulso da ordem. Sabe-se, ainda, da grande repercussão do documento, com diversas traduções publicadas do século XVII até o século XX. O’MALEY, John. The society of Jesus. In: HSIA, R. P. (org.). A Companion to the Reformation Worlds. Malden, USA; Oxford, UK, Melbourne, Aus: Blackwell Publishing, p. 223-236, 2004. p. 224. 182 Sobre a relação dos jesuítas com a ciência moderna, no século XVII, uma atualização importante do debate se encontra no trabalho de Pietro Redondi, a respeito do contexto do pensamento letrado e religioso à época da condenação de Galileu Galilei. De modo geral, conforme explica o autor, grande parte do sucesso e da expansão da Companhia de Jesus e de seu reconhecimento como uma espécie de “polícia tridentina”, na Idade Moderna, deve-se precisamente à capacidade da ordem de adaptação às tendências modernas, ainda que a Ratio Studiorum servisse-lhe de arcabouço para circunscrevê-las de acordo com o dogma católico. REDONDI, Pietro. Galileu Herético [1983]. Trad. Julia Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 319-322 e p. 133-136. 169 As reformas do Santo Ofício e da censura fizeram parte do processo secularizador português. A discussão sobre tais reformas será feita de forma mais pormenorizada no Capítulo 3 desta tese. Aqui, interessa analisar somente alguns aspectos de tais reformas, que levaram Luís Cabral de Moncada a considerar que o que as moveu foi o interesse de usar instrumentos de intolerância para promover a tolerância. Trata-se de uma conclusão exagerada, uma vez que a Inquisição jamais foi usada para promover a tolerância, bem como, além disso, na cultura letrada e na linguagem política do pombalismo, essa defesa nunca se fez presente. Como pretendo demonstrar aqui, todavia, a discussão sobre esse tópico importante do pensamento iluminista estava presente, assumindo-se, então, uma posição refratária a se tolerar a diferença religiosa. Tal posição encontrava-se articulada com alguns pressupostos presentes nas defesas mais notórias da própria tolerância feitas no período. Em Origem da denominação entre christãos-velhos e christãos-novos em Portugal, Ribeiro Sanches faz um histórico do estabelecimento dessa distinção baseada na origem judaica. Para ele, tal distinção teve origem no ódio de uma plebe contra judeus e foi reproduzida pelos preconceitos nacionais, sem qualquer utilidade para a Igreja e a república. Essa diferenciação, para o médico de Penamacor, era naturalmente sediciosa e fazia com que os desvios religiosos se multiplicassem, ao invés de diminuílos. Isso se dava, sobretudo, devido ao segredo processual, que Sanches acusava de favorecer a punição dos verdadeiros cristãos, induzindo-os, ainda que inocentes, a confessar práticas heterodoxas à Inquisição. As pessoas ímpias, com maior contato com os estilos inquisitoriais, por já terem sido presas ou por terem parentes ou amigos próximos que caíram nas malhas do Santo Ofício, conseguiam administrar os procedimentos de confissão e denúncia com maior eficácia, para satisfazer às autoridades e, assim, escapavam. Além do fim da “sediciosa distinção”, o pensador português propunha que fosse permitido que se fizessem em mesa somente confissões e declarações de culpas, impedindo-se de denunciar até mesmo os cúmplices destas últimas.183 Verney faz críticas um tanto semelhantes, em carta de 1765. Além de defender alguns pontos similares aos do Ribeiro Sanches, apresenta, na verdade, diversos outros que se aproximam muito das mudanças que vieram à luz com o Regimento de 1774. A 183 SANCHES, Antônio Nunes Ribeiro. Origem da denominação e christão-velho e christão novo em Portugal [1748]. Transcrição e prefácio de Raul Rêgo (1913-2002). Lisboa: Ed. Sá da Costa, Coleção Clássicos, 2010. 170 Inquisição, para Verney, “será sempre (...) um obstáculo terrível ao bom gosto das ciências e ao progresso e à introdução de muitas outras coisas necessárias e úteis”. Segundo o pensador, ela precisava ser urgentemente reformada, pois “com os presentes regulamentos, se não se tomam as medidas justas para desenraizar as desordens”, que, “após a morte do ministro [marquês de Pombal] e do rei [ d. José I], elas desenvolverse-ão imediatamente”.184 As dez medidas mudanças ao todo – que, mais à frente, Verney propõe para a Inquisição – contêm alguns pontos, tais como: a supressão da diferença entre cristãos velhos e cristãos novos, o fim do segredo processual e da consideração da possessão demoníaca como evidência válida para delitos de feitiçaria. Além disso, Verney propõe várias medidas que rechaçam as punições públicas, numa condenação aos autos-de-fé e à publicação de listas de penitenciados. Ele defende o fim da tortura e das penas violentas, e, inversamente, uma ampliação dos direitos de defesa dos acusados de qualquer delito.185 Nessas cartas, ataca-se de forma veemente a Inquisição, associando-a ao barbarismo de outros séculos anteriores e culpando-a pelo atraso cultural de Portugal e pela recaída de grande infâmia para este país no estrangeiro, sem defender-se, contudo, a supressão do tribunal, mas, apenas, sua reforma. Conforme a análise dessas cartas feita por Cabral de Moncada, o oratoriano almejava uma forma de conquistar um “despotismo intolerante”, com o qual “far-se-ia da intolerância instrumento e meio para reabilitar uma ideia de tolerância”.186 Na leitura de Moncada, Verney acreditava que, para se “realizar [a tolerância], era indispensável ilustrar, iluminar o espírito dos povos e governos”. Por este motivo, ele não propunha a supressão da Inquisição ou a simples retirada da censura das mãos de eclesiásticos, uma vez que considerava que os preconceitos da nação, causados e reproduzidos por séculos de educação jesuítica e excessivos privilégios clericais, aliados à baixa difusão da filosofia e ciência moderna, exigiam uma intervenção mais direta de uma elite ilustrada, ligada à Coroa.187 Nas palavras de Cabral de Moncada, o olhar de Verney sobre o Santo Ofício não “se limitava no do filósofo”, sendo também o de um “político regalista”. Segundo Moncada: A concepção político-religiosa de uma Igreja intrumentum regni [o Regalismo] não foi outra coisa senão o primeiro passo de uma 184 VERNEY, Luís Antônio. Cartas Italianas. Op. Cit. p. 102 Ibidem, p. 106-109. 186 MONCADA, Luís Cabral de Oliveira. Um “iluminista” português do século XVIII: Luís Antônio Verney. Op. Cit. p. 74. 187 Ibidem, p. 93-95. 185 171 tentativa no sentido da emancipação do “político” em frente do “religioso”, conservando aquele por usurpar a dignidade ética deste, para à custa dela fundar depois a sua própria, num domínio espiritual autônomo”.188 A leitura das fontes e dos debates historiográficos recentes, entretanto, não confirmam a tese de Moncada de que houve um uso da intolerância para se alcançar a tolerância. O autor não desenvolve, de maneira mais aprofundada, o que ele entende sobre a tolerância que seria “reabilitada” –segundo suas palavras – pelo uso de alguma intolerância. Possivelmente, trata-se de uma concepção a priori do próprio autor, embora faltem informações no próprio texto que confirmem essa leitura. Porém, a sua ideia da religião instrumentum regni, aponta não para uma busca por essa tolerância, mas para um aspecto importante do pombalismo, a ser mencionado antes da análise propriamente da tolerância religiosa nesse contexto. Trata-se do dirigismo cultural, marcante na política do ministro de d. José I e com alguma continuidade ao longo de todo o período do Reformismo Ilustrado. Esse dirigismo engloba, pelo menos, duas frentes de ação da política pombalina, tocante aos campos da religião e a cultura, dentre outros. A primeira, em concordância com as análises de Ivan Teixeira e Ana Cristina Araújo, refere-se ao envolvimento de muitos letrados no projeto político do Marquês de Pombal, por meio de mecenato e do encômio, à sua inserção em redes clientelares, reunindo homens de letras mais ou menos alinhados às delimitações do discurso “oficial”.189 Desenvolveu-se uma literatura elogiosa às ações do reinado josefino, por meio da qual difundiram-se valores tornados hegemônicos naquele período. Ao mesmo tempo, com contornos específicos, em consonância com o Iluminismo católico, delimitam-se diversos aspectos estéticos e temáticos nas obras poéticas, literárias, historiográficas, tratadísticas e outras.190 Já a segunda frente, aqui em concordância com Moncada, pauta-se na ideia de que o atraso português seria vencido com um conjunto de ações vindas “de cima”, com um poder exercido por homens ilustrados e ajustados com um ideário iluminista católico. Esse ideário, por sua vez, contrapunha-se às forças que simbolizavam o “antigo” (a saber, setores do clero, sobretudo os jesuítas), mas também 188 Ibidem, p. 65. ARAÚJO, Ana Cristina. Dirigismo cultural e formação das elites no pombalismo. Op. Cit.; TEIXEIRA, Ivan. Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica. Op. Cit. p. 67-130. 190 HANSEN, João Adolfo. Ilustração católica, pastoral árcade & civilização. Op. Cit. p. 15-16. 189 172 às outras vertentes do clero e da nobreza e, ainda, às variantes mais radicais do Iluminismo.191 Em consonância com as linhas gerais do Iluminismo católico, já analisadas aqui, os “prejuízos” nacionais seriam combatidos ajustando-se a verdade católica ao ideário dos “modernos” – a saber, contrários à Escolástica, ao excesso de privilégios do clero e da ingerência da Santa Sé romana. Esse ajustamento, inversamente, envolvia uma apropriação de uma epistemologia tributária do empirismo inglês. Esse ideário, ao mesmo tempo, era refratário à defesa da liberdade de consciência, aos relativismos de base ético-teológica ou aos princípios irreligiosos irradiados de diversos pontos da Europa desde meados do século XVII, marcantes nas Luzes. Assim, nessa cultura letrada mais alinhada ao Reformismo Ilustrado no período pombalino, o espaço para a defesa ampla da tolerância religiosa estava fechado, o que era identificado, justamente, com as correntes iluministas mais radicais. Em nenhuma obra do período isso está tão claro quanto no Triumpho da Religião, poema “épico-polêmico” – explicarei, mais à frente, o que esta expressão define – escrito por Francisco de Pina e de Melo e publicado em 1756. É importante destacar algumas informações sobre o autor. Francisco de Pina de Sá e de Melo nasceu na Vila de Montemor-o-Velho, a 7 de agosto de 1695. Da terra natal, saiu apenas para frequentar a Universidade de Coimbra, além de breves passagens pelo estrangeiro. Faleceu em sua cidade natal, com 78 anos, em 22 de outubro de 1773. Era oriundo de uma família distinta, o que se comprova pela leitura dos frontispícios das suas obras, onde registra sempre a sua condição de “Moço Fidalgo da Casa de Sua Majestade Fidelíssima”. A respeito de sua formação letrada, conforme afirma Antônio Manuel Esteves Joaquim, frequentou os cursos de Filosofia e de Cânones na Universidade de Coimbra em duas ocasiões diferentes, sem, no entanto, ter concluído nenhum deles. Ao longo da vida, foi um leitor incansável e um estudioso diligente, como destacam alguns dos poucos historiadores que analisam sua obra ou sua biografia.192 Adquiriu uma cultura notável em quase todos os ramos do saber e, como 191 É uma ideia bem visível na carta de Verney, já analisada, sobre a perseguição aos jesuítas. Verney defendia que bons princípios, úteis para a liberdade e para o progresso das ciências e letras em Portugal, para a reforma completa das mentalidades e para a extirpação dos preconceitos nacionais, teriam lugar apenas com uma boa educação do príncipe, segundo o ideário moderno, e também cercando-o de uma elite ilustrada, com o afastamento dos aduladores – os jesuítas, com seu espírito de sedição, obscurantismo e despotismo. VERNEY, Luís Antônio. Cartas Italianas. Op. Cit. p. 83-84. 192 Um exemplo notável, de onde foram retiradas para esta tese algumas das informações sobre Pina de Melo, é o famoso Dicionário Bibliográfico Português, de Inocêncio Francisco da Silva, continuado por Brito Aranha. SILVA, Innocencio Francisco da, [1810-1876]. Diccionario Bibliographico Portuguez 173 explica Antônio Ferreira de Brito, foi beneficiado por breve pontifício para ler e guardar sub clavi – ou seja, direito a posse e acesso, e não comércio e divulgação de – livros proibidos.193 Pina e Melo foi sócio da Academia dos Aplicados, da Academia dos Ocultos e da Academia Real de História e teve constante interlocução, sobretudo por meio de cartas, com diversos ilustrados portugueses. Um deles foi Verney, como aponta Alberto Banha de Andrade.194 Desempenhou, em seus derradeiros anos, a função de qualificador, como censor do Desembargo do Paço, além de ter também passado alguns anos na cadeia, acusado de inconfidência.195 Chamado “Corvo do Mondego” por Filinto Elísio, seu rival na famosa “Guerra dos Poetas”, foi autor de Teatro da Eloquência ou Arte de Retórica (1766) e, sobretudo por esta última obra, tornou-se um importante nome das belas letras da Arcádia Lusitana, teorizando sobre diversas regras consoantes à escrita e à estética literárias do chamado “Neoclássico”.196 Publicou também, em Lisboa, no ano de 1752, a Balança Intellectual em que se pesava o merecimento do Verdadeiro Método de Estudar, em que fazia críticas e exaltava méritos da obra de Verney, de 1748. Com o texto, discutiu, carta a carta, o conteúdo do Verdadeiro Método do Barbadinho, de forma detalhada e demonstrando enorme erudição. Maria José Moutinho dos Santos chama atenção para as críticas de Pina e Melo às ideias de Verney sobre a educação de mulheres,197 enquanto Antônio Ferrão pondera que suas críticas e elogios à obra do oratoriano são bem embasadas e demonstram grande leitura de autores modernos e antigos.198 Essa elogiada erudição não livrou Francisco de Pina e Melo de uma contundente censura, assinada pelo frei Manuel do Cenáculo, pelo frei Inácio de São Caetano e pelo frei Luiz do Monte Carmelo, aos 6 de outubro de 1768, a respeito de sua obra Epítome Analytico, critico, e chronologico da Jurisdicção e Disciplina da Igreja, e das acções (Tomo 03: Letras Fr-Jo). Lisboa: Imprensa Nacional, 1859. 22 v. Disponível no site Brasiliana- USP < https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/5423>. Acessado em out. 2017. p. 33-36. 193 BRITO, Antônio Ferreira De. Voltairofobia e Voltairofilia na cultura portuguesa dos séculos XVIII e XIX. Op. Cit. p. 14. 194 ANDRADE, António Alberto Banha de. Op. Cit. p. 476-483, 629 e 681. 195 SILVA, Innocencio Francisco da, [1810-1876]. Diccionario Bibliographico Portuguez. Op. Cit. p.3334. 196 SANTOS, Ana Clara. Réception de la comédie française au Portugal (XVIII e-XIXe siècles). Anales de Filologia Francesa, nº. 21, p. 365-383. 2013. p. 369; TEIXEIRA, Ivan. Rosa e depois: o curso da agudeza na literatura contemporânea (esboço de roteiro). Um conceito operacional de agudeza. Revista USP-São Paulo (36), p. 100-115. Dezembro/Fevereiro 1997-98. p. 102. 197 SANTOS, Maria José Moutinho. Perspectivas sobre a situação da mulher no século XVIII. Revista de História. vol. 04, Instituto Nacional de Investigação Científica, Porto. Centro de História da Universidade do Porto, p. 35-48, 1981. p. 38. 198 SILVA, Innocencio Francisco da, [1810-1876]. Diccionario Bibliographico Portuguez. Op. Cit. Loc. Cit. 174 dos Papas, e Príncipes, que pertencem a esta matéria. No parecer de censura, introduzse o argumento contrário à obra dizendo que se trata de uma “qualificação geral” em que “se pode dar a ideia que induz à reprovação deste livro”. Isso porque, continua, “é um escrito erudito” e “mordaz”, sendo “um extrato de notícias cavadas em toda a História da Igreja com o pretexto de fazer odiosos os vícios dos Eclesiásticos”. No entanto, continua, o argumento do texto é “descrito com pena superficial, improcedente e satírica”. Na narrativa de Pina e de Melo, segundo o parecer, sobra erudição, mas falta o devido modo de se dirigir aos assuntos relacionados à Igreja e ao clero. Prossegue o parecer, dizendo que “não basta que um autor diga verdades: é necessário que a narração delas seja competente, própria, tempestiva, decente e irrepreensível”. E conclui, apontando que, “faltando estas qualidades no Livro, que se teve a temeridade de apresentar nesta Real Mesa” – no caso, a mesma obra de Francisco de Pina e de Melo, objeto do referido parecer –, “passo a individuar os motivos, porque ele me parece indigno de impressão”. Daí segue uma minuciosa análise de vários pontos considerados problemáticos na obra do fidalgo de Moncorvo. O parecer indica, por exemplo, a falta de decoro de Pina e de Melo ao falar dos vícios do clero, pois nele o autor supõe “ser erro sistemático do Estado” eclesiástico aquilo que “é vício de particulares”. O mesmo diz quanto à passagem em que o autor do Triumpho da Religião fala sobre os motivos pelos quais o monarca expulsou o núncio da Corte de Lisboa, em tom que “é intempestivo, e tem alguma coisa de temeridade”. Destaca-se ainda algumas imprecisões a respeito de fatos, como quando o livro afirma que os regulares “têm concebido apreensão de que os turcos não podem ser convertidos, e que por isso não vão pegar aos sectários de Mafoma”, o que, segundo o parecer, não era verdade. Merece destaque, por fim, a passagem da censura em que se diz que Pina e Melo “alega, e clama ao Padre [Antônio] Vieira em tom de alegria, e isto para fazer valer duas frioleiras”, ou seja, frivolidades ou tolices, elementos desnecessários ao texto. Tudo isso denotam que o tom e a forma da escrita, imprecisa e com excessivas liberdades quanto a assuntos sensíveis, além do estilo, nortearam a negativa da impressão.199 199 Documento gentilmente cedido pelo professor Luiz Carlos Villalta. Arquivo Nacional da Torre do Tombo - Real Mesa Censória/ Real Mesa da Comissão Geral para a Censura de Livros/ Desembargo do Paço - Censura, 1768, nº 115. Frei Manuel do Cenáculo e outros. Censuras - Pareceres - Caixa 4, 1786. Daqui em diante, ANTT. 175 E fundamental destacar, de início, o porquê da nomenclatura de “épicopolêmico” com a qual o autor define o estilo de sua obra, já no título.200 Na segunda parte do prolegômeno, o autor explica que “serve o título em todos os escritos de dar uma clara, ainda que breve, notícia do argumento da obra”, o que de fato o faz. Como explica o autor, o “poema épico-polêmico” vem da junção de dois estilos literários, que delimitam os objetivos da obra: “épico”, que “vem do grego Epos que significa narração, discurso, ou palavra, que os poetas têm aplicado a uma fábula ilustre” e também “digna de ser imitada e anunciada por uma narração poética”; e o “Polêmico procede do grego Polemos, que é o mesmo que guerra”. Mas, como seu poema não é uma narrativa de sucesso bélico, o significado para ele de “polêmico” provém da teologia. Segundo ele, “os Teólogos significaram com o termo polêmico, aquela Teologia, que combate os erros da nossa Religião”, e “nessa disputa é que se funda a Fábula deste Poema”.201 O propósito de se publicar uma polêmica teológica em forma de poema também é explicado pela própria concepção dessa forma literária, de acordo com o autor. A poesia, para Francisco de Pina e de Melo, tem a função de deleite, “mas também outro objeto mais sublime, a instrução dos homens”.202 Para realizar este intento, esteticamente, o poema deveria ser construído sob os princípios do gênio – ou seja, a inventividade, sem a qual o poema tornar-se-ia “frio”, sem emoção –, juntamente com o “juízo”, ou a moderação – sem a qual o texto ficaria inverossímil e hermético, demasiado apelativo para a imaginação. Trata-se de um princípio estético que, nas academias literárias luso-brasileiras e portuguesas durante todo o século XVIII, como explica João Adolfo Hansen, marca a poética da Ilustração.203 Sendo o objetivo da obra o de demonstrar a verdade da religião católica perante as demais, é fundamental se perguntar também sobre como nela se concebe o religioso. Como explica Jonathan Israel, a narrativa do Triumpho da Religião se desenvolve de maneira a incitar o leitor a considerar todos os sistemas filosóficos e religiosos como racionalmente válidos para, por fim, escolher-se o melhor e mais racional.204 Na época, em que iluministas como Verney e Francisco de Pina de Sá e de Mello escrevem sobre 200 MELO, Francisco de Pina de Sá e de. Triumpho da Religião. Poema Epico-Polemico que a’ Santidade do Papa Benedito XIV dedica Francisco de Pina e de Melo, moço fidalgo da Casa de Sua Magestade, e Academico da Academia Real de Historia Portugueza. Coimbra: Na Officina de Antonio Simoens Ferreyra, Impressor da Universidade, Anno de 1756. 201 Ibidem, p. XXX-XXXI. 202 Ibidem, p. X. 203 HANSEN, João Adolfo. As Liras de Gonzaga: entre retórica e valor de troca. Op. Cit. 204 ISRAEL, Jonathan I. Iluminismo Radical. Op. Cit. p. 589. 176 “erros” de religião, no entanto, já existia uma longa tradição ibérica de escritos polêmico-religiosos. Tais produções estão inseridas num quadro amplo e complexo de polêmicas teológico-políticas e teológico-filosóficas, que remete a gêneros literários que surgiram no final do século XV, na Península Ibérica, e permaneceram fortemente difundidos na cultura letrada portuguesa até meados do século XVIII. No caso em específico, trata-se de uma espécie de filão literário de publicações de sermões e polêmicas contra judeus e cristãos novos, que tiveram como picos os mais destacados momentos de conturbação política. Bruno Feitler estudou publicações antijudaicas feitas entre os séculos XVI e XVII, após uma onda de textos de conotação apostólica e evangélica a respeito das conversões dos judeus. Tal onda ganhou grande evidência entre meados do XVI e se manteve bastante profícua até o início do XVII, quando sucedeu outra, mais virulenta, de teor, segundo Feitler, abertamente racista, e que defendia que soluções moderadas já não teriam lugar, em Portugal, quanto à questão judaica. Houve dois grandes momentos de efervescência de produções dessas polêmicas, que se deram nas duas primeiras décadas do século XVII, num quadro de uma política considerada, por críticos, filossemítica, do rei Felipe IV e do Conde de Olivares, seu ministro. Nessas produções, a crítica política e a polêmica antijudaica andaram lado a lado, tensionadas ainda com a eminência de um novo perdão geral aos judeus portugueses, negociado com a Santa Sé. Outro momento foi a eminência de outro perdão geral, negociado por lideranças judaicas na Itália e pelo padre Antônio Vieira, nas décadas de 1660 e 1670. Paralelamente a isso, continua Feitler, desenvolveuse uma outra corrente mais moderada, sobretudo a partir de 1651 e que foi constante até os primeiros anos da segunda metade do século XVIII, em que as campanhas contra a “heresia” dos judeus e judaizantes era acompanhada pela exaltação dos benefícios para a res publica da conversão sincera destes e da esperança de que isso fosse possível através de uma via evangélica e exegética. A invectiva literária contra os cristãos-novos, de linha mais virulenta ou mais moderada, exaltando a expulsão violenta ou a conversão pelo convencimento racional, continuou até a segunda metade do século XVIII, quando o decreto de Pombal, abolindo a diferença entre cristãos novos e cristãos velhos, tornou ilegais tais obras e tirou a atualidade das discussões teológicas sobre o judaísmo.205 Assim, o Triumpho da Religião revisita uma “vertente literária” comum na Idade 205 FEITLER, Bruno. O catolicismo como ideal: produção literária antijudaica no mundo português da Idade Moderna. Novos Estudos - CEBRAP, n. 72, p. 137–158, jul. 2005. 177 Moderna portuguesa, mas com uma abordagem e estéticas mais afeitas à Ilustração europeia e às tendências das academias literárias lusitanas. Trata-se de uma perspectiva um tanto próxima da que Verney adota em sua carta sobre a teologia no Verdadeiro Método,206 em que a um Catolicismo vincado no dogmatismo escolástico é contraposto um ideal mais moderado, pensado sob paradigmas experimentais e empiristas de matriz britânica, sobretudo tributários de Locke. Parte-se, assim, do princípio de que a verdadeira fé, sob uma forma moderna de pensá-la, deve convencer aquelas que se desviam dela por meio de uma argumentação sólida, e apenas assim se convenceriam da pertinência, tanto moral, como ética e lógica, de emendar seus erros. A proximidade das concepções de religião entre o Triumpho e o Método, todavia, não se aplica à poesia, ponto este sobre o qual Francisco de Pina e de Melo discorda do Barbadinho, “ou seja, quem for o autor do Novo Metodo de estudar”, a respeito de não haver uma boa arte poética ibérica. 207 É importante reiterar que o autor, como já mencionei supra, era beneficiado por breve pontifício para ler e guardar sub clavi livros defesos e não se furta a apontar alguns de seus autores ao longo do Triumpho. Com efeito, Melo cita várias vezes a Voltaire, um dos autores com obras proibidas à época da publicação em Portugal, demonstrando grande admiração pelo ilustrado francês, seja como artista, seja por suas críticas às concepções religiosas.208 Em suma, no poema épico-polêmico, apesar de o tema da tolerância aparecer direta e indiretamente em matéria de religião, “verdade” e “erro” em matéria religiosa estão absolutamente demarcados, sendo que o sistema religioso verdadeiro, o católico, deve ser demonstrado como tal aos que dele se desviam ou o duvidam. Dito de outra maneira, mesmo os erros, no Triumpho, têm algo de válido em termos racionais e precisam ser desfeitos por meio de argumentos que convençam seus adeptos a aceitar a única verdade, que é a católica, que deve se impor pela disputa de opiniões racionalmente postas em debate, e não pelo uso da força. Cabe aqui fazer uma breve digressão a respeito de como se concebia, na cultura erudita das Luzes, a tolerância religiosa, no século XVIII, para melhor contextualizar os argumentos da obra. Tal discussão foi feita, de maneira mais aprofundada, no subtítulo final do Capítulo 1 desta tese. Aqui, importa somente fazer alguns apontamentos com a finalidade de se contextualizar melhor alguns aspectos internos do Triumpho. Habermas 206 VERNEY, Luís António. Verdadeiro metodo de estudar.... Tomo 2. Op. Cit. p. 195-228. MELO, Francisco de Pina e de. Triumpho da Religião. Op. Cit. p. XXXI. 208 São onze citações diretas, ao todo, além de várias de forma indireta. 207 178 observa haver, até a Revolução Francesa, uma concepção de tolerância que engloba dois aspectos centrais: a transigência de autoridades com minorias político-religiosas indesejáveis, e um princípio ético-teológico de reconhecimento recíproco de liberdade de consciência e prática religiosa.209 Para Fernando Catroga, por sua vez, esses princípios existiam desde o século XVI, sobretudo nos debates teológicos e políticos em torno das irrupções religiosas europeias à época das Reformas, em que não há uma necessária aceitação da diferença religiosa ou abdicação da dicotomia entre verdade e erro, mas um paulatino reconhecimento de que haveria de se conceder às “seitas errôneas” algum espaço, para a manutenção da paz civil. Nas Luzes, a novidade nas discussões sobre a tolerância arvora-se mais acentuadamente nas variadas vertentes do anticlericalismo – das críticas mais veementes às religiões instituídas até as mais específicas, como as dirigidas ao clero regular – e também na secularização da ética, em que surgem pressupostos para se pensar princípios de sociabilidade e paz civil cada vez mais autônomos do religioso. Essas mudanças se dão a partir de três ângulos essenciais, a saber, a hermenêutica bíblica, as concepções de natureza humana e as exigências concretas de sociabilidade.210 A ideia de tolerância baseada na permissão do erro, além da dissimulação diante dele – e não sua aceitação –, está presente em várias definições em alguns dicionários do período. Na definição de “tolerado”, em Bluteau, por exemplo, vem uma conceituação similar baseada em princípios teológicos, em que ele é tomado como “excomungado e tolerado”, sendo “aquele que ainda que esteja realmente excomungado, é tolerado da Igreja, a qual se permite, que Fieis possam comunicar & e tratar com ele”, atribuindo a definição aos “termos que se usa a Igreja conforme Bula de Martinho V”.211 Ou seja, dentro de um vocabulário católico, no século XVIII, faz-se presente a ideia de admitir-se um tratamento mínimo, pessoal e coletivo, com aqueles indivíduos ou grupos que viviam em erro ou dissidência em matéria religiosa. Dito isso, fica possível introduzir-se, com uma clareza maior, a narrativa e os argumentos do Triumpho, localizando-o dentro de um contexto de ideias em que múltiplos debates filosóficos, teológicos e políticos se cruzam a respeito do tratamento com a diferença religiosa. Nesta tese, analiso o poema épico-polêmico como uma possível inserção, 209 HABERMAS, Jürgen. A tolerância religiosa como precursora de direitos culturais. Op. Cit. p. 280281. 210 CATROGA, Fernando. Entre deuses e césares. p. 65-91 211 BLUTEAU, Rafael. [1638-1734]. Vocabulario Portuguez & Latino... [1712]. Tomo IX. Op. Cit. p.189. 179 dentro de uma dinâmica iluminista católica, de meados do Setecentos, nesse campo de embates. O poema épico-polêmico desenvolve a história do personagem “Peregrino”, que, ao longo de nove livros, enfrentará, em disputas de argumentos, diversos pensadores, como teólogos, filósofos e outros, que estão na base de todos os “desvios” da verdadeira religião. O triunfo, ao fim, é o de demonstrar, com erudição e argumentação sólidas, com base na discussão de filósofos modernos e antigos, na crítica das Escrituras e na história profana e sagrada, a verdade do Catolicismo romano perante todas as outras “seitas” e, inversamente, a invalidade tanto de outras confissões, como também a de proposições de matriz teológico-filosófica que admitem algum tipo de verdade universal a todos os sistemas religiosos. Embora haja livros em que os duelos são contra religiões instituídas, como o hebraísmo (Livro VII), o maometismo (Livro VI), o luteranismo e o calvinismo (Livro VIII), seu ataque mais ferrenho é contra as tendências religiosofilosóficas identificadas com o pensamento iluminista, que eram o ateísmo (Livro I), o deísmo (Livros III) e a libertinagem (Livros IV e V). Quanto a estes últimos, de fato, há na argumentação do Peregrino, uma discussão, conceituação e refutação racional mais enfática da tolerância religiosa. No livro I, contra os ateus – que Pina e de Melo define como “o mesmo que Seita que nega a existência de Deus (...) Porém os que seguem este delírio são uns monstros, ou abortos da natureza” –,212 as imagens de obscuridade são ressaltadas desde o cenário, a saber, um bosque obscuro, onde os ateus vivem privados da luz e cegos, como brutos. Entende-se, nesse ponto, haver o uso de uma alegoria quanto a um mundo secreto onde os ateus viviam e paulatinamente perdiam sua humanidade.213 Nesse ponto, aparecem no poema aqueles que seriam os “autores do ateísmo”: Epicuro, Espinosa, Lucrécio, Maquiavel e Vanini e alguns outros são mencionados. Nas notas em que são explicados os porquês das menções aos autores, há uma versão dada para o surgimento do ateísmo em cada um deles. No caso de Bento de Espinosa, por exemplo, Pina e de Melo diz que ele “foi hebreu, professor da lei de Moises”, e “por cuja causa fugiu de Portugal para Amsterdã”. Lá, “conhecendo a Sinagoga, e vendo o pouco fundamento com que os Rabinos explicavam o texto, desprezou com esta lei todas as mais religiões, e se reduziu à loucura do Ateísmo”.214 Em um sentido geral, de acordo 212 MELO, Francisco de Pina e de. Triumpho da Religião. Op. Cit. p. 1. Ibidem, p. 12. 214 Ibidem, p. 14. 213 180 com a narrativa, o indivíduo é atraído para um obscuro mundo do ateísmo por má instrução na verdade religiosa e pela sedução oferecida por sistemas errôneos, o que o poeta estiliza com a alegoria de Circe, a feiticeira que seduziu Ulisses na Odisseia, que ele junta aos ditos autores do ateísmo.215 O Peregrino desenvolve um longo diálogo, a partir daí, com Epicuro e com uma breve participação de Espinosa, embora a maior parte das falas fique sempre – não apenas neste, mas em todos os livros –, com o protagonista. O desmonte lógico do ateísmo parte tanto de uma concepção de natureza conciliada com a divindade, como também através da demonstração da quase universalidade das religiões como prova. Além disso, a descrença nos prêmios e castigos do pós-vida é colocada como impeditivo moral de sociabilidade dos ateus –por isso, as várias menções à sua “desumanidade”.216 É possível inferir que o argumento contra a tolerância, evocado no diálogo contra o ateísmo, remete a pontos sobre o tema presentes nas obras de Locke e Bayle, no final do século XVII. Para Locke, os limites da tolerância religiosa a serem respeitados por um magistrado, dentro de uma sociedade politicamente organizada, a fim de se manter o bom governo, seriam os ateus e os “papistas”, ou seja, católicos. Estes últimos, para Locke, deviam obediência a um príncipe estrangeiro, e não às autoridades nacionais. Já os primeiros, por não se organizarem como religião, mas em “conventículos e sedições”, não poderiam reivindicar o privilégio da tolerância, por não configurarem uma religião, além de a própria descrença em Deus impossibilitar-lhes um verdadeiro juramento ao contrato socialmente aceito, tornando-os, naturalmente, antissociais.217 Por outro lado, o ateu, na concepção de Pierre Bayle, não possui qualquer incompatibilidade com uma vida social virtuosa, uma vez que, para o filósofo, partindo de uma análise hermenêutica da Bíblia, princípios morais fundamentais para a vida comum independem da religião.218 A descrença na imortalidade da alma, atribuída aos ateus, não os impediria necessariamente de constituir sociedades virtuosas, guiadas por leis justas, repudiando o crime ou costumes contrários a uma vida em comum. 219 Da 215 Loc. Cit. Ibidem, p. 26-36. 217 LOCKE, John. A letter concerning tolerance [1689]. Huddersfield: Printed for the editor, by J. Brook, 1776. p.53-56 218 BAYLE, Pierre. Pensées sur l’athéisme. Paris: Edition présentée, établie et annotée par Julie Bloch. Édition Desjonquères, 2004. p. 92-94 e 97-100. 219 Ibidem, p. 96. 216 181 mesma forma, sociedades que conhecem os Evangelhos não são necessariamente virtuosas e sequer possuem uma moral universalmente cristã, propriamente dita. Pelo contrário, algumas conseguem ser injustas, por agir conforme o dogma, e transformar a religião em um mero instrumento de praticar atos imorais, conservando e perpetuando o fanatismo, a idolatria e a superstição ao invés da verdadeira religião.220 Para Fernando Catroga, a concepção de tolerância de Bayle, visível no seu tratamento aos ateus, remete a uma secularização do princípio calvinista do livre arbítrio. Nas ideias do pensador francês, a sinceridade da convicção e sua construção em cima da razão são superiores à sua veracidade ou erro. Dentro dessa concepção, a consciência constituía o único critério pelo qual se poderia julgar verdade ou erro. A universalidade da luz natural, vinda da divindade, teria de passar pelo particularismo da luz interior e, assim, sem admitir que verdade e erro não existem, equiparando-os, Bayle defende a tolerância ao “erro sincero”. A verdadeira religião, dessa maneira, somente existia na persuasão interior da alma perante Deus, e não em se seguir o dogma, que, para ele, afastava o indivíduo da verdade. Com isso, na concepção de Bayle, a matéria religiosa é algo não atribuível à coerção externa.221 Ainda que não haja menções a Locke e a Bayle no Triumpho da religião, é possível inferir que, na sua argumentação contra os ateus, há uma defesa de posição e de concepção sobre a tolerância que, de alguma forma, dialoga com pontos apresentados por eles. A relação entre a descrença e a incapacidade de se viver em sociedade, representando ateus como criaturas sombrias que fogem da luz, assim como a mesma relação entre descrença e imoralidade, nesse sentido, são indicativos. É já conhecida a circulação do iluminista inglês na cultura letrada portuguesa no século XVIII222, além das incontáveis menções à obra do exilado francês nos escritos de diversos pensadores das Luzes223, o que torna bastante plausível acreditar-se no conhecimento de Francisco de Pina e de Melo a respeito do debate a respeito da pertinência de aplicar a tolerância ao ateísmo. O lente José Anastácio da Cunha, no final do século XVIII, além de 220 Ibidem, p. 100-103. CATROGA, Fernando. Entre deuses e césares. Op. Cit. p.84-87. 222 TEIXEIRA, Ivan. Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica. Op. Cit. p. 165-208. 223 Por exemplo, Montesquieu dedica dois capítulos a respeito de Bayle e às suas ideias sobre a religião e as leis necessárias para o bom governo, no livro XXVI do Espírito das Leis: Das leis na sua relação com a religião estabelecida em cada país, considerada nas suas práticas e em si mesma. Outro exemplo são as leituras que Rousseau fez de Bayle a respeito do ateísmo, indicadas em algumas de suas obras. ALMEIDA, Maria Cecília Pedreira de. Vozes da virtude: moralidade, religião e sociedade em Bayle e Rousseau. Cadernos de Ética e Filosofia Política. Número 21. p. 219-232. 2012. MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat [1748]. Do Espírito das leis. Op. Cit. p. 458 e p. 461. 221 182 inquisidores e censores portugueses desde meados do mesmo século liam Bayle, discorreu sobre ele, como se vê em seu processo inquisitorial. Retomo esses pontos no Capítulo 4. Aqui, importa reforçar a plausibilidade de pensar em Francisco de Pina e de Melo como possível leitor de Bayle, e, efetivamente, como alguém que debate tópicas que remetem à sua obra. Nos escritos de Bayle e no Triumpho da religião, as concepções de verdade e erro são claras e marcadas. Porém, no épico-polêmico lusitano, não há qualquer defesa da liberdade de consciência. Pelo contrário, o erro alcançado por meio dela precisaria ser combatido pelo conhecimento da verdade, demonstrada com o uso de argumentos. Isso fica muito mais evidente nos livros contra o deísmo e contra os libertinos. O deísmo é definido pelo autor como originário do “Luteranismo, de Alemanha”, consistindo na crença de “que Deus não deve ser invocado senão com o entendimento, e tendo por indignas da Divindade as cerimônias exteriores”. Seu maior divulgador, em sua época, seria “o Abade [Antoine] Furetière no seu Dicionário [O Dictionaire Universel..., 1727]”, que “diz que os Franceses usam da palavra Deísmo para significarem um homem sem alguma religião”.224 O cenário do encontro entre o Peregrino e os deístas, estes últimos em assembleia, é descrito como uma cidade, sem templos ou sacerdotes, onde a liberdade é constantemente exaltada e onde se encontram pessoas de várias nações, sobretudo Inglaterra e França.225 Nessa parte da polêmica teológica, o Peregrino encontra-se com seu interlocutor Jorge Pauli, ministro e predicante de Cracóvia, apresentado como um dos autores do deísmo.226 Durante o debate, enquanto o Peregrino tenta convencer Pauli de que o 224 MELO, Francisco de Pina e de. Triumpho da Religião. Op. Cit. p.88. Ibidem, p. 90-92. 226 A referência provável é a de Gregorius Pauli, que foi ministro da congregação de Cracóvia até 1562, cargo que teve de abandonar diante das opiniões consideradas heréticas pronunciadas por ele no sínodo de Pinezow, em 1556, e repetidas na mesma cidade em 1562, em duas datas, em agosto e novembro. Polonês de ascendência italiana, ficou conhecido como notável defensor de ideias antitrinitárias, questionando também a natureza divina de Cristo, dizendo que ele não existia antes do nascimento. Defendeu ideias radicais, como a de que um cristão jamais deveria ocupar cargos públicos ou pegar em armas, afirmando, entre outros pontos, que Jesus Cristo teria abolido, com seu sacrifício, o poder temporal. Criticava também as doutrinas do purgatório, o culto aos santos, o batismo de crianças, a ideia de que o espírito não forma uma substância independente e, portanto, separada do corpo, entre outras. Tornou-se um dos mais notórios líderes da reforma na Europa central, sobretudo na Polônia. Possivelmente, pelo radicalismo de suas posições religiosas, por sua iconoclastia se assemelhar em alguns pontos com algumas defesas do deísmo no século XVIII, sobretudo em relação aos ritos instituídos e aos santos, o reformador polonês possa ter sido escolhido por Francisco de Pina e de Melo como interlocutor do peregrino. M’CLINTOCK, John, rev.; STRONG, James. Ciclopaedia of biblical, theological, and ecclesiastical literature. New York: Harper & Brothers, publishers. 1894. Vol. 7. (Digitalized by Google - Library of Congress - at Washington). p. 834-835. 225 183 deísmo era um sistema errôneo e o Catolicismo, verdadeiro, Pauli afirma que não o tentará convencer de maneira contrária: Esse mesmo vos peço (Pauli acode) Para que fique a mente desncansada Nessa lei, que supondes revelada.227 A resposta do Peregrino é um forte argumento, que marca outras passagens da obra, contra a tolerância religiosa. Não só muitos vestígios quero dar-vos (O Peregrino diz) para arrancarvos Essa triste opressão da inteligência, Mas também vos darei toda a evidência De que há lei; e que há culto, regra, e modo, Revelado por Deus ao Mundo todo (...) Que livro, e história há, que se promete Vencer as ondas do profundo Lete? Ali estão em descuidos soporosos Tantas ações, e fatos portentosos, Que aspiram à eterna melodia: Ali perde a lembrança a fantasia Da firme duração: só esta história Ficou sempre o estrondo da memória: Se acaso o não julgais por um desígnio Da excelsa prevenção, contra o domínio Do estrago temporal, então presumo Que a vossa ideia condensada em fumo, Se revolve na torpe claridade, Traçando o frenético aforismo Do delirante horror do Ceticismo [grifos nossos].228 Apesar do deísta dizer que não vai persuadi-lo para entrar no seu sistema, pois vivia em conforto “na lei que supunha revelada”, o Peregrino diz que vai apresentar-lhe as evidências de que há uma revelação divina e, nela, ritos e regras para se seguir a religião. Essas evidências estão na história dos textos sagrados, na história eclesiástica e no fato deles não terem sido esquecidos desde a Antiguidade, na universalidade dos cultos exteriores à divindade.229 Além disso, essas evidências estariam na própria propensão natural que todos os povos teriam de seguir algum culto.230 Diante desses sinais que, para ele, indicam a verdade da lei católica e de sua revelação para a humanidade, Isso estaria em contraposição ao erro do sistema deísta, de tolerar, com base no argumento de que a crença e o verdadeiro culto se dariam genuinamente a partir 227 MELO, Francisco de Pina e de. Triumpho da Religião. Op. Cit. p. 105. Ibidem, p. 106. 229 Ibidem, p. 110. 230 Ibidem, p. 103. 228 184 da consciência do indivíduo e do conforto em que ele vive, segundo seu sistema errôneo, Tal erro, além disso, torna-se um problema, por mantê-lo preso à obscuridade. Cabia, portanto, uma ação externa para dissuadi-lo, muito ao contrário da solução proposta por Bayle, segundo o qual caberia somente a Deus o julgamento do indivíduo ou sociedade quanto ao erro.231 Portanto, juntamente com uma defesa da demonstrabilidade da verdade católica, numa visível apropriação pela religião de sistemas modernos baseados no empirismo, há também uma contundente crítica à ideia da liberdade de consciência, princípio que ganhou evidência na defesa da tolerância religiosa no século das Luzes, embora suas raízes remontem ao Renascimento. Nos livros IV e V, sobre os libertinos, o argumento é retomado. No quarto, o épico-polêmico se dirige aos libertinos religionários, que são “aqueles que admitem que todo o gênero de religião (...) [em] que se reconheça a Deus, há salvação”,232 enquanto o V se dirige aos libertinos cirenaicos, que, segundo ele, duvidam da imortalidade da alma.233 Novamente, o Peregrino argumenta com ambos no sentido de demonstrar a verdade da revelação divina e o erro na tolerância a todas as formas de religião diferentes da verdade católica. Além disso, o Peregrino reitera a necessidade de instrução de quem incorreu em alguma das “seitas”. A revelação demonstra haver verdade e erro, tanto em relação ao culto quanto às normas éticas e morais de se viver em sociedade. Tais normas precisavam ser demonstradas para se vencer, de maneira argumentativa, os erros,234 o que tornava impróprio, por conseguinte, admiti-los como minimamente corretos, seja em matéria soteriológica ou em termos de sociabilidade. Assim como no caso dos ateus, a leitura da continuidade entre moral e religião ganha um peso importante. Isso ocorre, por exemplo, contra os libertinos religionários, quando o Peregrino compara a proposição de se haver salvação em todas as leis com um cenário hipotético onde um rei permite que, em cada região de seus domínios, as suas ordens e leis do reino sejam seguidas cada qual de seu jeito, considerando, ao final, todos certos e dignos de méritos.235 Isso, para ele, seria o mesmo que dizer que alguém pode se salvar mesmo agindo de forma imoral. Situação igual se verifica quando o personagem reafirma, contra os libertinos cirenaicos, ser incompatível, com a virtude e 231 CATROGA, Fernando. Entre deuses e césares. Op. Cit. p. 85. MELO, Francisco de Pina e de. Triumpho da Religião. Op. Cit. p. 118. 233 Ibidem, p. 148. 234 Ibidem, p. 134. 235 Ibidem, p. 143-147. 232 185 a bondade, a descrença nos prêmios e castigos além-vida.236 É importante também frisar que, ainda que essas críticas possam estar em diálogo com um debate erudito, possivelmente elas também evidenciem uma apropriação pelo poeta da tradição religiosa ibérica, de matriz popular e enraizada na memória, sobre a convivência entre judeus, maometanos e cristãos, no período anterior às guerras de Reconquista. Tais elementos tiveram sobrevivências no campo religioso ibérico, verificáveis durante toda a Idade Moderna.237 Em suma, entendendo o Triumpho da religião no conjunto de documentos até aqui analisados, pode-se dizer que seus argumentos sintetizam bem o lugar da tolerância no campo religioso de uma cultura letrada no contexto pombalino. Em pleno diálogo com concepções presentes em obras de pensadores renomados, como Verney e Ribeiro Sanches, faz-se uma forte defesa de um Catolicismo pensado e racionalizado segundo uma epistemologia moderna. Por sua vez, há um claro posicionamento, em consonância com essa nova leitura da fé católica, quanto à tolerância religiosa, debate em grande evidência em meados do século XVIII, sob a pena de muitos pensadores. Na cultura letrada das Luzes no mundo luso-brasileiro no período pombalino, dessa maneira, a tolerância religiosa é um ponto rejeitado, tal como as formas consideradas fanáticas e supersticiosas de religião, por ser também considerada como parte de um corpo de doutrinas irreligiosas que se desejava combater. Assim, no clima de opinião das Luzes no referido período, dentro da cultura letrada, é possível perceber um olhar ora dirigido à república das letras europeia, ora às percepções concretas desses letrados quanto ao universo cultural ibérico. De toda forma, a tolerância era um assunto que tinha lugar nos debates travados entre esses letrados, mesmo que sua defesa fosse vetada dentro de suas redes de sociabilidade e meios de circulação de ideias, uma vez que ela era tida como incompatível com o modelo de modernização que se impunha durante a governação pombalina. Assim, é esperado que as defesas mais veementes da tolerância religiosa sejam dadas externamente a esse ethos de pensadores alinhados ao Pombalismo, ou seja, nos lugares onde as correntes mais radicais da Ilustração puderam se desenvolver no mundo luso-brasileiro: entre os chamados libertinos e os livres-pensadores, nas lojas maçônicas e em outros espaços. Também deve-se pensar nos desenvolvimentos a este respeito entre pessoas simples e iletradas, que circularam em diversos espaços no 236 Ibidem, p. 171-172. SCHWARTZ, Stuart. Cada um na sua lei. Op. Cit.; KAMEN, Henry. O amanhecer da tolerância. Op. Cit. 237 186 mundo luso-brasileiro e que apresentaram, nas suas proposições, uma reflexão sobre aspectos de seu universo mental religioso, o qual desempenhou importante papel na formação de uma defesa da tolerância religiosa. 187 Capítulo 3 – Para além do dirigismo “Todas as religiões que empregam o ferro e fogo para obrigar os homens a abraçar seus dogmas são, certamente, falsas.” (Francisco Xavier de Oliveira, Le Chevalier D’Oliveira brulé em effigie comme hérétique, 1762, p. 18). As defesas mais veementes da tolerância religiosa estiveram nas proposições tidas como heréticas, documentadas pelos tribunais do Santo Ofício da Inquisição de Portugal. Para encontrá-las, no caso, foi fundamental recorrer a uma documentação que se refere a indivíduos que estiveram à margem das elites letradas e das redes clientelares das quais elas fizeram parte, como discutido no capítulo anterior desta tese. É preciso ressaltar, todavia, que, no mundo luso-brasileiro, esses indivíduos nem sempre estiveram totalmente à parte dos debates ou de seus círculos de sociabilidade típicos do Iluminismo católico. Acrescente-se a isso, tomando aqui algumas tópicas comuns à documentação inquisitorial do período (referente a proposições heréticas e blasfêmias), que a distância entre o que era “popular” e “erudito”, em matéria de ideias e religiosidade, merecem, por si mesma, problematizações mais específicas. Embora haja alguma documentação impressa e publicações em que há tais informações, a maior parte delas está na documentação inquisitorial. Cabe, aqui, tratar como problema a questão sobre em que medida as diversas proposições e outros comportamentos heterodoxos se relacionam com leituras distintas, ou mesmo críticas, por vezes, radicais, do processo secularizador das Luzes nos espaços luso-brasileiros. Essas falas, registradas pelos escrivães inquisitoriais, foram produto de um cruzamento complexo de tópicas que remetem a uma religiosidade popular, mas também aos debates letrados, iluministas ou não, mas que não se dissociaram de leituras da própria realidade e das mudanças vividas no referido contexto de meados do século XVIII. A Inquisição, a Igreja e a sua relação com Roma e com a Coroa portuguesa, os ideais de religião e de convivência com minorias religiosas, e até mesmo a figura do Marquês de Pombal, apareciam como pontos importantes nas referidas falas heterodoxas. Um pressuposto defendido aqui, produto da leitura e análise da documentação, é o de que muitos indivíduos considerados heterodoxos foram tachados dessa maneira por 188 enunciarem opiniões críticas sobre uma realidade permeada pelo Catolicismo e pela constante vigilância da ortodoxia. Além disso, foram ainda ativos praticantes, defensores e propagandistas de ideias que remetiam a formas mais tolerantes de trato com a diferença em matéria de fé. Daí é possível ter, aqui, como hipótese deste capítulo, que nessa defesa mais veemente de uma maior tolerância religiosa, cruzaram-se elementos da cultura letrada, num âmbito mais geral, e tópicos propriamente iluministas católicos, em aspectos mais específicos do contexto luso-brasileiro do Setecentos. Cruzuram-se, ainda, diversas outras tópicas que escapam da cultura letrada. Esses elementos, em seu conjunto, indicam haver muito mais filtros ligados às tradições religiosas e à cultura popular, muito anteriores à Ilustração, e que eles balizaram algumas das apropriações, formulações e leituras da realidade observadas nas falas dos réus dos tribunais do Santo Ofício português. A defesa da tolerância esteve no meio das disputas em torno do campo religioso. Ela se somou às críticas aos cleros regular e secular, à Igreja e ao lugar da religião na vida coletiva. Nota-se, também, a demanda por se aproximar as realidades da vivência da religiosidade no âmbito privado e no das sociabilidades. Isso representou o cerne de resistências, na maioria das vezes difusas, não organizadas e pouco conscientes, à hegemonia católica (tal como existia). Porém, tal posicionamento, visto nas falas documentadas pela documentação inquisitorial, também englobava críticas e ações mais conscientes. Tudo isso criou uma narrativa crítica ao status quo católico, sobretudo à Inquisição, mas, também, aos usos feitos da religião pela Coroa.1 3.1 Proposições e heresias na historiografia e no pensamento políticoreligioso moderno Antes de desenvolver a hipótese e objetivos apresentados no preâmbulo deste capítulo, é necessário fazer uma pergunta importante: o que os inquisidores queriam dizer quando acusavam alguém de proferir alguma "proposição"? Ou, mais especificamente, uma “proposição herética”? É importante aqui problematizar o termo, uma vez que a seleção de fontes inquisitoriais para esta tese obedeceu ao critério de investigar, justamente nas proposições definidas como heréticas, informações que remetam às defesas da tolerância religiosa. A partir delas, foi possível também analisar 1 Conforme a discussão a respeito da categoria campo religioso, já feita no Capítulo 2 desta tese. C.f. STEFANO, Roberto Di. Disidencia religiosa y secularización en el siglo XIX ibero-americano. Op. Cit; BOURDIEU, Pierre. Gênese e estrutura do campo religioso. Op. Cit. 189 outros tipos de delitos, que em maior ou menor medida se relacionavam diretamente com heterodoxias exprimidas através das ditas proposições. Voltando ao termo, o letrado Raphael Bluteau, no seu Vocabulário, definia “proposição” como “uma oração, que consta sujeito, atributo, & copula verbal, & chama-se Proposição, porque se propõem no silogismo para dela se tirar a conclusão”. O mesmo verbete continua definindo como “proposição”, em termos, “Geométricos”, em que “é a alegação de uma verdade, provada com demonstração. Estas proposições se dividem em Teoremas, & Problemas. Todas as Proposições de Euclides são claras, & certas”. Por fim, sintetiza o mesmo termo como aquilo “com que afirmamos, ou negamos alguma coisa verdadeira, ou falsa”.2 As definições de Bluteau são parecidas com as que aparecem no Diccionario de Autoridades, de 1737, em que se diz que “proposição” é “entre los Dialécticos (...) una oración breve, en que se assienta alguna cosa verdadera o falsa”. Neste último dicionário, assim como em Bluteau, “proposição” também é um termo adequado para se apresentar problemas filosóficos, matemáticos, teológicos e científicos a serem provados.3 Assim, no século XVIII, as proposições são entendidas como enunciados, verdadeiros ou falsos, que, conforme o contexto, são postos para ser provados e demonstrados. Décadas depois do Vocabulário português e do dicionário castelhano, proposição, no sentido de algum problema ou verdade enunciado como verdadeiro ou falso, aparece com bastante semelhança no dicionário de Antônio de Morais e Silva, que a define como: PROPOSIÇÃO, s.f. Logico, a palavra, ou palavras, em que se afirma algum atributo, ou propriedade de algum sujeito, ou se nega: v.g. escrevo; eu escrevo, eu estou escrevendo: vivo: estou vivo; sou vivente? Deus é santo, justo, misericordioso: ou com que se exprime desejo.4 Assim sendo, uma proposição dita como “herética” deveria, em princípio, enunciar algum erro contra a fé católica romana. Basicamente, afirmar algum ponto, com a estrutura lógica similar à que aparece nos dicionários, contendo algo que vá de 2 BLUTEAU, Rafael. Vocabulario Portuguez & Latino... Op. Cit. p. 784 REAL ACADEMIA ESPAÑOLA. Diccionario de la lengua castellana, en que se explica el verdadero sentido de las voces, su naturalezza y calidad, ... Dedicado al Rey nuestro senor Don Phelipe 5. ... /compuesto por la Real Academia Espanola: Tomo quinto. Que contiene las letras O.P.Q.R, Volume 5. En la Imprenta de la Real Academia Espanola: por los Herederos de Francisco del Hierro. 1737. Original da Biblioteca Nacional de Nápoles. Digitalizado por Google Books, novembro 2013. p. 406 4 SILVA, Antônio de Morais. Diccionario da lingua portugueza - recompilado dos vocabularios impressos ate agora, e nesta segunda edição novamente emendado e muito acrescentado, por ANTONIO DE MORAES SILVA. Lisboa: Tipographia Lacerdina, 1813. Disponível em Brasiliana: http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/2/Proposi%C3%A7%C3%A3o. Acessado em set./2017. p. 516. 3 190 encontro à doutrina católica ou algum dogma. Há, nas definições de “heresia” e termos análogos no direito canônico, esse tipo de construção. Conforme aparece no Cânone 751, do Livro III, do Código de Direito Canônico, a heresia pode ser definida como “a negação pertinaz”, depois de recebido o batismo, “de alguma verdade que se deve crer com fé divina e católica, ou ainda a dúvida pertinaz acerca da mesma”. Pode também englobar a “apostasia”, que seria “o repúdio total da fé cristã” e o “cisma”, que é “a recusa da sujeição ao Sumo Pontífice ou da comunhão com os membros da Igreja que lhe estão sujeitos”.5 E sobre aquilo em que um católico tem o dever de acreditar para não incorrer em heresia, o Cânone anterior a este último é bastante claro, ao afirmar: Cân. 750: No que um fiel católico deve acreditar — § 1. Deve-se crer com fé divina e católica em tudo o que se contém na palavra de Deus escrita ou transmitida por Tradição, ou seja, no único depósito da fé confiado à Igreja, quando ao mesmo tempo é proposto como divinamente revelado quer pelo magistério solene da Igreja, quer pelo seu magistério ordinário e universal; isto é, o que se manifesta na adesão comum dos fiéis sob a condução do sagrado magistério; por conseguinte, todos têm a obrigação de evitar quaisquer doutrinas contrárias. § 2. Deve-se ainda firmemente aceitar e acreditar também em tudo o que é proposto de maneira definitiva pelo magistério da Igreja em matéria de fé e costumes, isto é, tudo o que se requer para conservar santamente e expor fielmente o depósito da fé; opõe-se, portanto, à doutrina da Igreja Católica quem rejeitar tais proposições consideradas definitivas.6 Trata-se de definições segundo um direito canônico recente, distantes do contexto analisado nesta tese, mas que, por sua vez, guardam algumas similaridades com os significados correntes na Idade Moderna. Assim, servem de ponto de partida para se pensar “heresia”, “proposição herética” e alguns termos análogos, de forma que seja possível fazer uma reflexão sobre esses termos como categorias e tipologias de delito, no vocabulário inquisitorial. A definição de heresia como conceito se vale, em muito, da formulação de são Tomás de Aquino, na questão 11, da Suma Teológica. Nela, heresia se define, ao mesmo tempo, como um vício no qual o homem incorre em decorrência da fraqueza própria de sua condição, mas que, em última análise, é um desvio da verdade em 5 CÓDIGO DE DIREITO CANÓNICO. PROMULGADO POR S.S.O PAPA JOÃO PAULO II [1983]. Lisboa: Conferência Episcopal Portuguesa; Braga: Editorial Apostolado de Oração. Versão portuguesa: António Leite, S. J.; revista por SILVA, Serafim Ferreira e, d.; RODRIGUES, Samuel S.; LOPES, V. Melícias, O.F.M.; MANUEL, Luís Marques, O.F.M. 1983. 4ª ed. revista. p. 138. 6 Ibidem, Loc. Cit. 191 direção à mentira em matéria de fé, motivado por sua escolha. Dessa maneira, segundo Aquino, existem duas maneiras nas quais o homem pode se desviar da retidão na fé cristã. A primeira ocorre pelo fato dele não estar disposto a concordar propriamente com a lei de Cristo. Ele teria, assim, uma vontade maléfica, por assim dizer, em relação às matérias de fé. Isto pertence a uma espécie de infidelidade que é própria aos pagãos e judeus. Já a segunda se dá quando este mesmo homem, apesar das intenções de seguir a lei de Cristo, deixa-se levar pelas escolhas feitas em desobediência àquilo que Cristo ensinou pela Revelação divina e, inversamente, em sugestões de outros ou por seu próprio pensamento. Assim, heresia tem seu fundamento na distorção produzida por aqueles que professam a fé de Cristo, mas corrompem seus dogmas e verdades por suas vaidades e perversões.7 Delas se derivam as seitas, que colocam o bem comum da cristandade em risco, o que, portanto, torna legítimo que os hereges sejam excomungados e entregues à morte pelo braço secular.8 Essa leitura a respeito do significado de heresia indica haver, na história do Cristianismo, um movimento que confirma o argumento de José d’Assunção de Barros, segundo o qual, se ao longo da Antiguidade tardia o significado de heresia predominou como sendo um conjunto de disputas em torno de sutis questões teológicas, num momento em que a própria ortodoxia católica estava em processo de se estabelecer, entre a Idade Média Central e limiar da Idade Moderna, acrescentam-se a essa percepção do termo os questionamentos à própria autoridade da Igreja. Tais questionamentos foram comumente identificados à formação de ordens do clero regular ou no ministério dos sacramentos fora do controle do papado. Num segundo momento, o próprio tratamento aos pagãos e infiéis à lei de Cristo, como os judeus, sobretudo com o surgimento das inquisições, também passarão por substantiva mudança de tratamento por parte das autoridades, em paralelo com as mudanças na definição dos erros de fé.9 De fundo, estava a questão da pretensa universalidade do Catolicismo e o condicionamento do bem comum e da ordem temporal à unidade espiritual, para a qual o herege era visto cada vez mais com um empecilho. Um estudo sobre o conceito de “tolerância” na Idade Média, feito por Istvan Bejczy, aponta para uma conclusão nesse 7 AQUINAS, Thomas, saint. THE SUMMA THEOLOGICA of Saint Thomas Aquinas. Translated by Fathers of the English Dominican Province. Rev. SULLIVAN, Daniel J. Chicago; London; Toronto: Encyclopeaedia Britannica/ William Benton-Publisher, 1952. Vol. II. p. 438. 8 Ibidem, p. 439 e 440-441. 9 BARROS, José D’Assunção. Heresias: considerações sobre a história de um conceito e sobre as discussões historiográficas em torno das heresias medievais. Fronteiras, v. 12, n. 21, p. 33–49, 2010. p.33-49. 192 sentido. Segundo o autor, tolerantia, por volta do século XII, foi entendida como propensão a se ter paciência, transigência e permissão a algum grupo visto como mau e indesejável a princípio, como judeus, mendigos, prostitutas, hereges, entre outros. Tal conceito, em bulas e tratados teológico-políticos do período, estabeleceu-se como princípio político no sentido de se “tolerar” alguns grupos minoritários em razão de um bem comum. Porém, ele sistematicamente excluía os hereges, pois identificou nele características como o sectarismo e a capacidade de se corromper todo o seio da comunidade cristã-católica, de maneira a ser entendido, no final da Idade Média, que exterminar a heresia –e não tolerá-la como “mal menor” – seria o melhor para a preservação do bem comum.10 Cruzando-se os significados de “proposição” e “heresia”, é possível definir que uma proposição herética é uma enunciação de algo considerado contrário à fé católica, seja por negação ou por dúvida pertinaz contra ela, ou, noutros casos, uma explicitação, por meio de fala e do agir, de uma recusa ou cisão com os costumes, doutrinas, tradições e hierarquias da Igreja Católica. Trata-se de um entendimento identificado na descrição dos delitos de alçada inquisitorial feita no mais importante manual usado pelas inquisições na Baixa Idade Média, e que foi republicado na Idade Moderna: o Manual dos Inquisidores, ou Directorium Inquisitorum, escrito por Nicolau Eymerich, em 1376, e revisto, comentado e ampliado pelo inquisidor espanhol Francisco de La Peña, em 1578. No Directorium, no título a respeito da jurisdição do inquisidor, o manual é claro ao dividir essa descrição nos tópicos “A heresia” e “Os hereges”. São elas – as diversas heresias – e eles – os praticantes delas, nas suas inúmeras variações –, em última instância, a matéria sobre a qual o inquisidor deve agir. O “que deve se entender como heresia”, segundo o manual, está definido segundo as Etimologias, de santo Isidoro de Sevilha, conforme um triplo significado: em primeiro lugar, vem do verbo “eleger” (eligo, no latim), pois o herege equivale a um “eleitor” que, “ficando entre uma verdadeira e uma falsa doutrina, nega a verdadeira e escolhe como verdadeira uma doutrina falsa e perversa”; um outro significado deriva do verbo “aderir”, já que “herético” significaria “aquele que adere” (haereticus, adhaesivus), ou seja, aquele que “adere com convicção e obstinação a uma falsa doutrina considerando-a como verdadeira”; e, por fim, recorrendo novamente a Isidoro, heresia também tem uma 10 BEJCZY, Istvan. Tolerantia: A Medieval Concept. Journal of the History of Ideas, v. 58, n. 3, p. 365– 384, 1997. p. 374-375. 193 definição ligada ao verbo erciscor, sinônimo de divido, remetendo à divisão, pois o herético seria aquele que se afasta da vida comum, apartando-se do corpo do qual faz parte (dos súditos do monarca, dos fiéis à lei de Cristo etc.) movido pela obstinação pela falsidade doutrinal.11 Em síntese, no manual: E, na verdade, o herético [, ao] escolher uma falsa doutrina, e, ao aderir obstinadamente a uma doutrina rejeitada por aqueles com quem convivia antes, isola-se e afasta-se, espiritualmente, de sua comunidade, de onde será imediatamente separado através da excomunhão. Depois, entregue à autoridade secular, afasta-se para sempre da comunidade dos vivos. Portanto, é claro que existe separação quando existe heresia, e a conclusão de tudo o que se disse antes é que o conceito de heresia envolve três conceitos de: eleição, adesão e separação.12 No comentário de Francisco de La Peña, também está presente a noção de que, entre os antigos, o termo heresia não significava nada de desonroso, uma vez que remetia à adesão a escolas distintas de pensamento, i.e., o “herético” nada mais era que todos os que pertenciam a outra escola filosófica. Porém, em seu tempo, heresia tem sua significação como “condenável e indigna porque designa todos aqueles que acreditam ou ensinam coisas contrárias à fé de Cristo e de sua Igreja”. Suas consequências, segundo Peña, são “blasfêmias, agressões aos fundamentos da Igreja, transgressão das decisões e leis sagradas, injustiças, calúnias e crueldade de que os católicos são vítimas”. Além disso, a heresia faz com que “a verdade católica” se “enfraqueça e se apague nos corações”, e, com isso, “os corpos e bens materiais se acabam”, pois “surgem tumultos e insurreições, há perturbação da paz e ordem pública”, de forma que “todo povo, toda nação que deixa eclodir em seu interior a heresia, que a alimenta, que a não elimina logo, corrompe-se, caminha para a subversão, e pode até desaparecer”. Conclui, citando que “prósperas regiões e reinos em franco desenvolvimento” foram “atingidos por grande calamidade por causa da heresia”, de uma maneira um tanto geral, mas que se pode inferir, pelo contexto em que foi escrito, tratar-se das regiões da Europa então assoladas pelas guerras de religião.13 Daí em diante, o manual descreve e tipifica os artigos específicos que tornam algumas proposições “heréticas”, fazendo o mesmo sobre o termo “herege”, aspecto que se verifica repetidamente nos Regimentos da Inquisição portuguesa por toda a Idade 11 EYMERICH, Nicolau. DIRECTTORIUM INQUISITORUM. Manual dos inquisidores [1376]. Escrito por Nicolau Eymerich em 1376 e comentado por Francisco de la Peña em 1578. Trad. Maria José Lopes da Silva. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos. Brasília, DF: Fundação Universidade de Brasília, 1993.p. 31 12 Ibidem, p. 31-32. 13 Ibidem, p. 32. 194 Moderna, ainda que com significativas variações. No Directorium, continuando, o manual de Eymerich responde sobre “quando é que se pode dizer que um artigo ou proposição são heréticos”, concordando com as questões de são Tomás de Aquino, dizendo “que existem três causas ou três razões capazes de determinar o caráter herético de um artigo ou uma proposição”. São eles: a) Se é contrária a qualquer artigo de fé, como, por exemplo, o dogma da Santíssima Trindade ou da Encarnação do Filho, ou outros artigos parecidos que constituam a base de nossa fé católica e o essencial de nossa crença; b) Se é contrária a qualquer verdade que a Igreja tenha declarado de fé; por exemplo, que o Espírito Santo não procede do Pai e do Filho como de dois princípios, ou que a usura não é pecado; c) Se é contrária ao conteúdo dos livros canônicos: por exemplo, que Deus criou o céu e a terra, ou Cristo não mandou seus apóstolos pregarem (...). É necessário crer, efetivamente, em tudo o que está escrito nos livros canônicos.14 No comentário de Peña, citando o inquisidor espanhol Tomaz de Torquemada “e outros doutores”, detalha-se “a doutrina eymerichiana através de sete critérios de heresia”. Assim, “herética é toda a proposição que se oponha”: a tudo aquilo que esteja expressamente contido nas Escrituras; a tudo que decorra necessariamente do sentido das Escrituras; ao conteúdo das palavras de Cristo, transmitidas aos apóstolos que, por sua vez, as transmitiram à Igreja; a tudo o que a Igreja tenha proposto à fé dos fiéis; a tudo o que tenha sido proclamado, por unanimidade, pelos padres da Igreja no que diz respeito à reputação da heresia; por fim, a tudo que decorra necessariamente dos terceiro, quarto, quinto e sexto itens anteriores.15 Assim sendo, uma proposição é herética ou suspeita de sê-la quando, de forma mais ou menos direta ou explícita, defende algum tópico que, no entendimento eclesiástico e inquisitorial, vá de encontro a algum dogma, artigo de fé da Igreja católica – tais como as bulas, breves, encíclicas, concílios etc. –, ou contra as Escrituras sagradas. É importante salientar que um mesmo artigo ou tópico pode ser considerado “herético” por razões que entrelacem mais de um ou todos esses pontos. Além disso, há a percepção, que perpassa essa definição, de que, da defesa mais sutil à mais veemente de uma proposição herética, há uma corrupção da fé, que pode levar reinos e comunidades inteiras – e, em última instância, toda a cristandade – a grandes calamidades. Assim, a tipificação do herege, mesmo com alguns pontos um tanto gerais, obedece a um certo nível de gradação no vocabulário inquisitorial. 14 Frisando que, conforme a tradição católica, o conjunto que constitui os livros canônicos é a Bíblia, formada pelos Velho e Novo Testamentos. Ibidem, p. 33. 15 Ibidem, p. 33-34. 195 O herege, segundo o Directorium, além de incorrer nos pontos supracitados em suas proposições, deve ainda se encaixar em duas condições em que a heresia propriamente dita é tipificada: segundo o intelecto e segundo a vontade. Basicamente, o herege precisa reunir ambas condições para ser considerado como tal. O herege é aquele que tem consciência de incorrer em algum erro de fé, conforme os pontos mencionados no parágrafo anterior e ainda que é pertinaz no mesmo. A pertinácia, na definição feita por Peña, “é parecida com a perseverança: tanto uma como a outra evidenciam um apego”. Assim, “fala-se em pertinácia quando se trata de apego ao mal, e em perseverança quando se trata de apego ao bem”.16 Complementando essa definição com a feita pelo teólogo John S. Daly, entende-se que nem todo erro de heresia é imputável, pois, para sê-lo, ele deve ser caracterizado como “heresia formal”. Esta, continua, valese da perspectiva sobre forma e matéria da filosofia escolástica, que foi apropriada pelo direito canônico de maneira a chegar à definição desse tipo de desvio. Segundo o autor, qualquer indivíduo batizado que expresse uma opinião conflitante com o dogma católico ou com seus artigos de fé deixa patente que o elemento material da heresia está presente. Cabe, já na perspectiva do direito canônico, perguntar se o indivíduo entende que a sua opinião a respeito de uma matéria determinada está em conflito com esses pontos ou também com as Escrituras. Ao indivíduo, tendo consciência de seu erro e do conflito de sua opinião com o que determina a Igreja, os dogmas e as Escrituras, ainda deve-se perguntar se tal conflito se deveu à má instrução na fé católica ou a outro fator atenuante. A heresia formal, assim, caracteriza-se pela união da matéria da heresia, i.e., o comportamento, a opinião ou expressões consideradas desviantes da fé, com sua forma, i.e., a adesão consciente, formal e pertinaz, ao desvio no qual se incorre.17 Quanto aos hereges, eles podem ser “manifestos” ou “disfarçados”, isto é, com ou sem pública manifestação de sua adesão a algum “erro” de fé. Há também a distinção entre “afirmativos” e “negativos”. Os primeiros são aqueles que “estão intelectualmente errados quanto à fé que manifestam”, seja “através da palavra como através da ação, o apego da sua vontade ao erro mental”. Ao passo que os negativos são aqueles que, uma vez convencidos de alguma heresia, “continuam firmes em suas negações”, mesmo que diante das autoridades estejam “confessando em palavras a fé católica e proclamando a 16 Ibidem, 38. DALY, John S. Material and Formal Heresy. Le Bouchillou à Servanches, 1999. Disponível em: www.sedevacantist.net/pertinacity.html . Acessado em set. /2017. 17 196 sua rejeição à perversidade herética”.18 O tipo mais grave de herege seria o “heresiarca”, “que assim como a palavra ‘patriarca’ significa o ‘príncipe dos pais’ (...) a palavra ‘heresiarca’ significa ‘príncipe dos hereges’”, já que eles “não se limitam a se enganar e se apegar a seus erros”, pois “são eles que os formulam, inventam e também os apregoam”.19 Para Peña, há graves problemas em qualquer possibilidade dos heresiarcas se reconciliarem ao grêmio da Igreja católica, ao contrário dos demais hereges. Segundo o inquisidor espanhol, os primeiros podem levar até mesmo príncipes e reis aos seus erros, causando problemas tão graves que corrompem a todo o reino, de maneira que seus crimes deveriam, para ele, ser equivalentes ao de lesa-majestade.20 O tópico da decadência dos reinos e impérios causada pela corrupção moral, que afastava os homens das leis de Deus em nome do enriquecimento e da glória terrena, foi abordado e analisado a fundo por Adriana Romeiro, em trabalho sobre a corrupção, numa perspectiva histórica, dentro do Brasil colonial e império português. É bem demonstrado no trabalho que autores, distantes no tempo e espaço, tais como Camões e o padre Vieira, viram nessa forma de corrupção as causas da decadência da Índia e de outras partes do império. Na base, a imoralidade e os vícios dos governantes, que corrompiam e levavam à ruina reinos antes prósperos, tinham claros elementos religiosos, conforme diversos tratados morais e teológico-políticos da Idade Moderna. O excessivo apego a coisas terrenas, em detrimento do bem comum e dos súditos do rei, além dos abusos e desregramentos nos costumes e na moral cristãs, estavam entre as causas das calamidades que levavam grandes nações ao completo fracasso.21 Isso pode indicar que, no caso ibérico, no geral, e no português, em particular, esse tipo de justificativa para a vigilância religiosa poderia atuar em duas frentes: primeiramente, quanto à mencionada preocupação com as guerras de religião que assolavam a Europa, sobretudo países protestantes; e, em segundo lugar, evitar a heresia, sectarismos e cismas, um última análise, significava, na Idade Moderna, evitar a própria degradação dos reinos católicos, em função da disseminação de vícios contrários às leis naturais e divinas, algo bastante razoável segundo o pensamento do Antigo Regime. Voltando à questão dos heresiarcas, observa-se que mesmo no Regimento de 1774 da Inquisição de Portugal, em que já são bastante limitados os autos-de-fé e penas 18 EYMERICH, Nicolau. DIRECTORIUM INQUISITORUM. Op. Cit. p. 38 Ibidem, p. 46. 20 Ibidem, p. 48. 21 ROMEIRO, Adriana. Corrupção e poder no Brasil. Op. Cit. 19 197 públicas de qualquer espécie, bem como os tormentos, ao heresiarca cabiam esses tipos de punições. No terceiro artigo do Título III, do Livro II, do Regimento de 1774, por exemplo, os tormentos, apesar de duramente condenados no mesmo título, podem ser aplicados aos heresiarcas e dogmatistas que não confessarem e ocultarem seus seguidores. No título XV do mesmo livro, ainda que haja também uma duríssima condenação aos autos-de-fé, no segundo parágrafo existe uma exceção similar aos dogmatistas e aos heresiarcas. É fundamental se destacar que, mesmo nesses casos excepcionais, o tormento e o auto-de-fé público somente aconteceriam sob determinação do monarca, refirmando o caráter régio da Inquisição, reforçado pelo dito regimento, assunto que retornarei mais à frente. Efetivamente, tal autorização régia para tais aplicações dessas penas não chegou a acontecer, de 1774 até a extinção dos tribunais de fé, em 1821. 22 Aqui cabe destacar, sobretudo, a permanência da ideia de que o formulador de heresias foi entendido como alguém perigoso para a res publica, aspecto que perpassa todos os regimentos inquisitoriais. Dois exemplos podem ser citados a este respeito. No Regimento da Inquisição de Portugal de 1640, no Título I, dos hereges e apóstatas da santa fé católica apresentados, Livro III, das penas que hão de haver os culpados nos crimes de que se conhece no Santo Ofício, § 8, há uma menção sobre os heresiarcas e dogmatistas. Aqueles que se apresentassem, confessassem suas culpas e mostrassem sinais de arrependimento e disposição para uma “verdadeira conversão”, poderiam ser reconciliados com a Igreja. Mas, mesmo assim, isso aconteceria em lugar público e com hábito penitencial, “por razão do prejuízo e escândalo, que deram com sua falsa doutrina”.23 Há instrução similar no regimento proposto pelo frei Inácio de São Caetano à d. Maria I que, apesar de aprovado, não chegou a ser posto em execução, no final do século XVIII. Nesse regimento, em que havia formas mais brandas de punição e menor preocupação com a ortodoxia católica, se comparado com o anterior, de 1774, permanece, no Título XIV, Dos hereges obstinados e convictos, a seguinte determinação: que o “heresiarca e dogmatista que houver sectários ou sequazes, ou por causa da Religião fizer ajuntamentos e conventículos (...) assim como (...) pregar, ensinar e propagar os seus erros por palavra, ou escrito”, e seguindo tais doutrinas com 22 SIQUEIRA, Sônia (org.). Os regimentos da Inquisição. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, ano 157, n. 392, p. 495-1020, 1996. p. 911 e p. 931. 23 Ibidem, p.833-831. 198 obstinação, “perderá todos os seus bens para a Coroa do Reino e morrerá de morte natural”.24 Há também os hereges impenitentes, penitentes e os relapsos, respectivamente, aqueles que preferem se manter obstinados em seus erros, os que procuram abjurar dos mesmos e, por último, os que, mesmo tendo abjurado, reincidem nos seus erros.25 Existe, por fim, a blasfêmia, uma categoria um tanto específica de proposição, que pode ser ou não ser herética, caracterizada por uma ação ou palavra não devidamente respeitosa com o sagrado. Entre suas motivações, encontram-se, por exemplo, circunstâncias particulares, como a embriaguez, loucura, rusticidade, além de ataques diretos contra os dogmas e artigos de fé, levantando a maiores ou menores suspeitas de heresia.26 Essas tipificações de proposições e de heresias, constantes no Directorium, foram retomadas, como já foi dito acima, em todos os regimentos inquisitoriais, norteando os estilos do Santo Ofício. Trata-se de um lugar comum nos regimentos inquisitoriais portugueses. Em alguns regimentos, existem títulos específicos sobre hereges diminutivos, afirmativos, convictos, penitentes e impenitentes, como no caso dos de 1640 e 1774, ou ainda sobre heresiarcas e dogmatistas, como no de 1778, proposto pelo frei Inácio de São Caetano. Ainda é comum que apareçam esses termos nas descrições de alguns procedimentos, como no de 1613, em que se mencionam heresiarcas e dogmatistas, no artigo IX do título III, que fala a respeito de menores de 25 anos que foram “dogmatizados” em algum erro por pais e avós e se apresentam fora do tempo da graça.27 Assim, uma constante na história desses mesmos estilos inquisitoriais era uma variação e gradação das proposições heréticas quanto à sua complexidade de elaboração, sua publicidade e “escândalo”, além de sua capacidade de conseguir “sequazes”. Leva-se em conta também a propensão ou não do acusado, ou réu, de admissão de culpas e de delação de outros que tenham incorrido nos mesmos “erros”. No caso da blasfêmia, seriam avaliados ainda a circunstância e outros fatores em torno do contexto em que ela teria sido proferida, bem como o risco de seu conteúdo de se aproximar de alguma matéria condenada por herética. Aqui, optei por uma longa digressão a respeito do assunto a ser tratado neste capítulo devido a uma necessidade, por vezes negligenciada pela historiografia, que 24 Ibidem, p. 985. EYMERICH, Nicolau. DIRECTORIUM INQUISITORUM. Op. Cit. p. 47-48. 26 Ibidem, p. 49-52. 27 SIQUEIRA, Sônia (org.). Os regimentos da Inquisição. Op. Cit. p.625. 25 199 motivou o problema abordado e desenvolvido no trabalho de Alécio Nunes Fernandes: ter em conta, em análises históricas que tocam na lógica inquisitorial, seja pesquisando a respeito de sua burocracia ou funcionamento jurídico, seja na leitura e problematização de temas constantes nos processos inquisitoriais, as diversas lógicas jurídico-religiosas empregadas ou defendidas institucionalmente, em nível discursivo, pelas Inquisições. Os regimentos, manuais e o próprio direito canônico revelam concepções de justiça, ortodoxia, sociedade e bem comum, aplicadas em diversos procedimentos inquisitoriais e que remetem a todo um vocabulário político-jurídico e religioso da Idade Moderna. Porém, para Fernandes, a análise de tais textos é colocada constantemente de lado. Apresentando o problema de maneira sintética, o autor diz que: De maneira geral, os historiadores que escrevem sobre o Santo Ofício – ou com base em sua documentação – podem ser divididos em três grupos: os apologéticos, os herdeiros de uma “lenda negra” historiográfica, e os que procuram adotar uma postura mais sóbria e desapaixonada. Entretanto, nos três grupos é raro encontrar aqueles que se preocupem em analisar a legislação inquisitorial ou o discurso institucional que dá sustentação teórica às práticas do Santo Ofício; na maioria das vezes, os processos são o ponto de partida das análises. Menor ainda é o número de historiadores que procuram compreender o caráter jurídico-criminal do Tribunal; em geral, ressalta-se o aspecto religioso da Inquisição. E mesmo alguns assuntos exaustivamente discutidos, como os motivos para a instalação e manutenção do Santo Ofício em contextos espaço-temporais tão distintos, não resultaram em consenso historiográfico. Justamente as razões para o surgimento e tão longa duração no tempo do Tribunal são o ponto central dos embates entre as correntes historiográficas.28 Há, segundo Fernandes, dois problemas, sendo um de ordem teóricometodológica e outro, de ordem político-ideológica, que motivam essa negligência da historiografia sobre o Santo Ofício ou que recorre à documentação inquisitorial e que empobrecem as análises: a primeira, é a insistência em se tomar como ponto de partida, nas pesquisas, os processos inquisitoriais, colocando regimentos e manuais, no melhor dos cenários, num segundo plano, resultando em análises bastante centradas em uma anacrônica descrição de casos constantes na documentação, sem que os delitos em questão sejam colocados em seu devido tempo e espaço, considerando as tipologias e caracterizações presentes na Idade Moderna;29 a segunda, não menos importante, trata28 FERNANDES, Alécio Nunes. Da historiografia sobre o Santo Ofício português. História da Historiografia. Ouro Preto, v. 1, n. 8, p. 22–48, 2011. p. 25. 29 O autor mais criticado, nesse ponto, por Alécio Nunes Fernandes, é o historiador e antropólogo Luiz Mott. Pare ele, Mott, apesar de demonstrar conhecer os regimentos da Inquisição de Portugal, apresenta de maneira anacrônica sua análise sobre os delitos de sodomia, justamente por fazê-lo excessivamente em cima da descrição dos processos e pouco ou quase nada em termos de cruzamentos de informação com os 200 se de uma opção deliberada dos historiadores em não contextualizar devidamente os procedimentos e pensamento jurídico que permeiam os procedimentos inquisitoriais, sob a justificativa de haver um risco de se relativizar os tribunais, criando-se assim uma “lenda rosa”, contraposta à “lenda negra” do Santo Ofício – aqui, o autor cita Bruno Feitler como autor que manifesta tal preocupação –,30 ou de colocar em risco avanços relativos às conquistas do presente, sobretudo relacionados a minorias – aqui, a crítica mais veemente é ao trabalho de Anita Waingort Novinsky.31 Tomando como premissa que as questões e críticas propostas por Alécio Fernandes objetivaram realçar a importância de uma história social e institucional da Inquisição portuguesa – nas suas palavras, “silenciada” por uma tradição que privilegia os processos –,32 salvo algumas exceções, observo alguns problemas. Reconheço que a provocação feita pelo autor é extremamente válida. Todavia, o trabalho de Fernandes é criticável por fazer uma separação um tanto simplista, com uma carga valorativa óbvia, que resulta nos “três grupos” de historiadores sobre a Inquisição portuguesa. Uma ressalva advém das dificuldades naturais de se fazer algum agrupamento dessa natureza, considerando-se uma historiografia tão vasta, como a inquisitorial. Diante da quantidade de abordagens e recortes, bem como da profusão de obras a este respeito do século XIX até hoje, algumas simplificações seriam inevitáveis. De toda forma, os historiadores que adotam uma “postura mais sóbria”, segundo sua análise, seriam, os merecedores de maiores elogios do ponto de vista metodológico e teórico, ao passo que os demais, tributários da “lenda negra” da Inquisição ou os apologéticos, viriam a ser alvos naturais mencionados regimentos. Mott faz, conforme a leitura de Fernandes, uma “história na perspectiva da vítima”, o que, na sua avaliação, não é problemático em si. Porém, o que se torna alvo das críticas do autor é a caracterização feita por Mott de condenados por sodomia como “filhos da dissidência”, “portadores de uma contracultura temida como imoral e revolucionária”, punidos pela Inquisição em um contexto de intolerância e preconceito, tratando, inclusive, valores como tolerância com minorias religiosas e sexuais como categorias não-históricas a partir das quais os próprios tribunais seriam analisados e, em grande medida, julgados a posteriori pelo historiador. Com base nas leituras da obra de Luiz Mott, vejo como bastante pertinentes as críticas feitas por Fernandes nesses pontos, justamente por conta de Mott insistir no tratamento das tipologias criminais de alçada inquisitorial como transhistóricas e, muitas vezes, como indicativos de alguma resistência direta a uma hegemonia cristã-católica, o que não observo nas fontes. Ibidem, p. 31-32; MOTT, Luiz. Sodomia não é heresia: dissidência moral e contracultura. In: VAINFAS, Ronaldo; FEITLER, Bruno, LAGE, Lana, (orgs.). A Inquisição em xeque: temas, controvérsias, estudos de caso. Rio de Janeiro: Ed. Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 2006.p.253-266; _________. Filhos de Abraão & de Sodoma: cristãos-novos homossexuais no tempo da Inquisição. In: GORENSTEIN, Lina; CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (orgs.). Ensaios sobre a intolerância: inquisição, marranismo e antissemitismo. São Paulo: Humanitas/LEI, 2005. p. 67-100. 30 FERNANDES, Alécio Nunes. Da historiografia sobre o Santo Ofício português, Op. cit., p.24. 31 Ibidem, p. 28. 32 _________ Dos manuais e regimentos do Santo Ofício português: a longa duração de uma justiça que criminalizava o pecado (séc. XIV-XVIII) [Dissertação de mestrado]. Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília. Brasília, DF, 2011.p. 16-47. 201 de suas críticas mais fortes. Estes últimos, no caso, uma literatura revisionistaapologética,33 são muito pouco abordados no trabalho de Fernandes, embora ela, efetivamente, exista. Evidentemente, por se tratar de uma dissertação de mestrado, há de se considerar as limitações quanto à amplitude do trabalho de Fernandes. Porém, entendo que, em relação à proposta do trabalho, esse tipo de escrita sobre a história das Inquisições poderia ser melhor abordada. Isso porque, avalio, boa parte dessas obras incorre no mesmo problema teórico-metodológico realçado de maneira mais contundente pela crítica feita por Fernandes , qual seja, a problemática contextualização dos tribunais do Santo Ofício em relação ao pensamento jurídico-teológico de sua época, muitas vezes motivado por ideologias e alinhamentos político-ideológicos e identitários daqueles que escrevem sobre os tribunais. Sobre a historiografia revisionista-apologética sobre as Inquisições, Giuseppe Marcocci e José Pedro Paiva demonstram que, tão logo a Inquisição portuguesa chegou ao fim, uma historiografia que defendia pontos como a importância das Inquisições para se evitar as guerras de religião no sul da Europa, ou a necessidade de contextualização dos procedimentos inquisitoriais em sua época, contrária aos argumentos pautados na “lenda negra”, surge já na primeira metade do século XIX. Ela foi um tanto motivada pelas disputas de memória sobre o Antigo Regime e a efervescência política daquele contexto.34 É necessário se observar que as publicações apologético-revisionistas se valeram de motivações políticas óbvias. Por exemplo, o conhecido político contrarrevolucionário saboiano Joseph-Marie de Maistre publicou sua Lettres à un gentilhomme russe sur l’Inquisition espagnole, em 1822, em que fica claro que, 33 A apologética católica é um aspecto fundamental dessa literatura que tem, por intenção, defender teses favoráveis aos tribunais do Santo Ofício ou que minimizem algumas das violências historicamente atribuídas a eles. Em termos filosóficos, “apologética” se define como sendo uma defesa de algo através de argumentos racionalmente válidos. Dessa maneira, a “apologia” a alguém ou algo seria usar de argumentação para justificar ou defender ações e ideias. Aplicado à teologia, o termo se refere à defesa da religião a partir de “uma reflexão crítica que tenta apresentar o conteúdo da fé diante das exigências da razão”, segundo Fisichella. No que toca aos textos apologéticos sobre a história da Inquisição, na sua forma, esta escrita se aproxima do que vários autores do século XX chamaram por “revisionismo”, aqui entendido como reelaborações do passado de maneira a se relativizar ou negar culpas ou traumas historicamente ligados a grupos ou correntes hegemônicas do presente no qual se escreve tal narrativa histórica. Dessa maneira, entende-se como uma literatura apologética-revisionista uma tradição de publicações, comumente feitos por católicos, nas quais a defesa da fé católica, por um lado, e a rejeição de valores modernos identificados como inimigos do Catolicismo e/ou “seculares”, por outro, são feitas tendo narrativas do passado inquisitorial como meio. FISICHELA, R. Apologética. In: Lexicon: dicionário teológico enciclopédico. Vários autores. Trad. João Paixão Neto; Alda da Anunciação Machado. São Paulo: edições Loyola, 2003. p. 44-45; ADORNO, Theodor W. O que significa elaborar o passado. In: __________. Educação e emancipação. Trad. Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1995. p. 29-49. 34 C.f. MARCOCCI, Giuseppe, PAIVA, José Pedro. História da Inquisição portuguesa. Op. Cit. p.449468. 202 juntamente ao apelo crítico para se entender as Inquisições em seu tempo histórico, havia uma claríssima exaltação dos tribunais de fé como mantenedores de uma ordem e uma hierarquia sociais. Defender a atuação dos tribunais do Santo Ofício, em termos de narrativa histórica, foi, assim, uma defesa de valores tradicionalistas e reacionários.35 Trata-se de um argumento que se assemelha significativamente a alguns pontos da obra de Marcelino Menéndez y Pelayo, historiador de visão política bastante conservadora. Em sua História dos heterodoxos espanhóis, apresentou a Inquisição como um último bastião de defesa da nação espanhola e de sua tradição católica, contra, por exemplo, as reformas protestantes e guerras de religião e as tendências modernas, como o enciclopedismo e o liberalismo.36 Trata-se de um ponto que vai no sentido oposto de teses clássicas, como as de Henry Charles Lea e de Alexandre Herculano, segundo as quais um estado de atraso cultural, científico e econômico dos países ibéricos teria, em grande parte, sido produto de longos séculos de perseguição inquisitorial, sobretudo às mentes que poderiam tê-lo evitado.37 A partir do século XX, observam-se alguns novos argumentos e algumas atualizações de debates revisionistas-apologéticos sobre a história das Inquisições. Por exemplo, as conhecidas Letters, publicadas no contexto da II Grande Guerra pelo historiador de ascendência judaica e posteriormente convertido ao Catolicismo David Goldstein. Nas Letters, o autor questiona a natureza “preconceituosa” das fontes que falam das perseguições inquisitoriais, além de apontar como uma das causas da desagregação das comunidades judaicas e também do enfraquecimento de sua fé a insistência na narrativa de perseguidos, fortemente amparada por uma historiografia inquisitorial. Além disso, de certa maneira, Goldstein culpa os próprios judeus de terem criado uma tradição de perseguições religiosas da qual as Inquisições se valeram.38 O já mencionado historiador jesuíta Giacommo Martina, entre outros pontos, defende a importância das Inquisições para o surgimento do procedimento investigativo criminal e 35 MAISTRE, Joseph-Marie de. Lettres à un gentilhomme russe sur l'Inquisition espagnole. Lyon: J-B. Pélagaud, 1846. Disponível em Bibliothèque nationale de France – Gallica http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k62190868/f1.image.texteImage# . Acesso em jun./2018. 36 MENÉNDEZ Y PELAYO, Marcelino. Historia de los heterodoxos españoles. Tomo III. Madrid: Librería católica de San José, 1880. [digitalizado por Wellesley College Library]. p. 197-412. 37 LEA, Henry Charles. Historia de la Inquisición española. Trad. Angel Alcalá y Jesús Tobio. Edición y Prólogo: Angel Alcalá. Vol. III. Fundación Universitaria Española. Madrid, 1993.p. 531; HERCULANO, Alexandre. História da origen e estabelecimento da Inquisição em Portugal. Porto Alegre: Ed. Pradense, 2002. 38 GOLDSTEIN, David. The Goldtein’s Letters [1943]. Letter 16 (Spanish Inquisition pt. 1), Letter 17 (Spanish Inquisition pt. 2) e Letter 18 (Jewish Inquisition). Disponível em http://www.catholictradition.org/Tradition/goldstein18.htm . Acessado em mar./2018. 203 do direito à defesa do réu, pontos fundamentais ao direito liberal contemporâneo. Além disso, destaca uma relativa “brandura” dos tribunais de fé em relação à justiça secular, sobretudo entre a Baixa Idade Média e Idade Moderna. O mesmo historiador italiano também incorre em algum nível de apologia às Inquisições quando, por exemplo, fazendo uma citação descontextualizada (e, em grande medida, desonesta) de Henry Charles Lea, endossa a tese, completamente equivocada, além de prescritiva e excessivamente especulativa, de que que se os cátaros não tivessem sido exterminados, certamente, a Europa voltaria à barbárie39 Essa “antecipação do direito moderno”, quanto a procedimentos e a princípios, na qual se ampliam direitos de defesa ou se adota a presunção de inocência, atribuído aos tribunais do Santo Ofício. Esse também é um ponto central da obra de João Bernardino Gonzaga, ex-professor de direito penal da Universidade de São Paulo (USP) em obra que veio à luz no início dos anos 1990. Para Gonzaga, os tribunais do Santo Ofício, a despeito do que se produziu contra sua imagem por uma “historiografia secular” e anticatólica, contribuíram para a superação de um “direito feudal” – baseado no ordálios e no arbítrio dos senhores, e não em princípios de justiça. Os crimes atribuídos às Inquisições, em sua quase totalidade, teriam se dado por ingerências do poder civil no seu funcionamento ou por desvios isolados de alguns de seus agentes. Além disso, por meio de uma análise quantitativa dos números de mortos, presos e torturados, Gonzaga defende a tese de que a violência dos tribunais de fé foi superdimensionada em função de se atacar a imagem da Igreja católica.40 Considerando também a escrita não acadêmica da história, é possível localizar discursos revisionistas-apologéticos sobre as Inquisições que ascenderam com grupos católicos ultraconservadores surgidos após o Concílio Vaticano II (1962-1965). Um exemplo disso foi mencionado em trabalho de Yllan de Mattos: são os artigos organizados e produzidos no Simposio Internazionle di Studio sul Tema L’Inquisizione, organizado em outubro 1998, promovido e organizado pela Comissão históricoteológica para a preparação do Grande Jubileu, tendo o papa João Paulo II 39 O que Henry Charles Lea cita, em trabalho famoso sobre as Inquisições medievais, é uma discussão sobre as justificativas, presentes nas bulas e outras publicações dos séculos XII e XIII, que justificaram a cruzada contra aos albigenses, no sul da França, entre 1209 e 1244. Entre as acusações, consta a ameaça de espalhar a corrupção e barbárie em toda a Europa. O autor, repito, focaliza tais acusações como problema de análise histórica, o que não significa, obviamente, endossar esse ponto de vista. MARTINA, Giacommo. Op. Cit. p. 138 e p. 139-143; LEA, Henry Charles. A history of the Inquisition of the Middle Ages. Vol. I. New York: Harper& Brothers, 1887. p. 128-208. 40 GONZAGA, João Bernardino. A Inquisição em seu mundo. São Paulo: Ed. Saraiva, 1993. 4ª edição. 204 discursando em sua abertura.41 No Brasil, alguns dos pontos colocados por este simpósio têm sido amplamente divulgados, sobretudo em setores fundamentalistas do Catolicismo vinculados à vertente da “renovação carismática”, como, por exemplo, na entrevista dada pelo padre Wander Maia à rede católica Século XXI, recentemente,42 além do livro Para Entender a Inquisição, do engenheiro, radialista e missionário Felipe Aquino.43 Repletas de imprecisões facilmente apontáveis com o conhecimento de estudos históricos, clássicos ou recentes, sobre a história dos tribunais do Santo Ofício, que vão de erros factuais a anacronismos grosseiros, tais obras remetem a aspectos que exigem algumas discussões sobre os usos da história no âmbito da cultura e opinião pública. Tanto a entrevista como a obra supracitada são construídas sob o questionamento sobre se, do ponto de vista moral e ético, a modernidade pode condenar as Inquisições. Optam, assim, mais por fomentar uma discussão ética no presente do que disputar, per se, algum tipo de “verdade histórica” no sentido tradicional do termo. Esse questionamento pode ser desdobrado num segundo: se na contemporaneidade aqueles que defendem valores considerados modernos (tolerância, igualdade, liberdade etc.), estejam em quais grupos estiverem ou seguindo quais ideologias modernas seguirem (comunismo, socialismo, liberalismo, pós-modernismo, esquerdas, etc.), estariam aptos, do mesmo ponto de vista – moral e ético –, a julgar a Inquisição ou a Igreja católica. As respostas negativas dessas narrativas históricas para ambas as questões têm a função de convidar seus leitores a uma rejeição aos valores ditos modernos, com todas as implicações ético-políticas que isso traz em si.44 41 MATTOS, Yllan de. A Inquisição contestada. Op. Cit. p. 25. O discurso do pontífice pode ser acessado no site do Vaticano. É interessante frisar que, nele, o pontífice assume um tom muito mais moderado do que o adotado por muitos textos que tomaram este simpósio como referência para as suas obras apologéticas. Por exemplo, no quarto parágrafo do discurso, o papa diz que o “problema da Inquisição pertence a uma fase conturbada da história da Igreja, sobre a qual já convidei os cristãos a tornarem com ânimo sincero”, completando com a citação de uma Carta Apostólica em que diz que a Inquisição foi um “capítulo doloroso, sobre o qual os filhos da Igreja não podem deixar de tornar com espírito aberto ao arrependimento, é a condescendência manifestada, especialmente nalguns séculos, perante métodos de intolerância ou até mesmo de violência no serviço da verdade”. Ao longo de todo o discurso, fica patente o tom de se levantar a necessidade de uma apuração, “das mais imparciais e isentas de julgamento moral”, “que escapa da competência dos historiadores”, a fim de, num outro momento, “haver um posicionamento ético moral, baseado na verdade, por parte da Igreja”. Discorso del santo padre Giovanni Paolo II ai partecipanti al Simposio Internazionale di studio sul tema “l’inquisizione”, 31 ottobre 1998. [Artigo online]. < https://w2.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/speeches/1998/october/documents/hf_jpii_spe_19981031_simposio.html>. Acessado em dez./ 2017. 42 MAIA, Wander da Silva, pe. [Entrevista] O que foi a Inquisição: Contexto Histórico | Entendendo a Inquisição - Parte 1. Programa Ecclesia. Youtube, Publicado em 4 de ago/ de 2016. Disponível em https://youtu.be/ilH7Mt7BmgE . Acessado em nov/ 2017. 43 AQUINO, Felipe. Para entender a Inquisição. 9ª ed. Lorena, SP. Ed. Cléofas, 2016. 44 Duas discussões a respeito de como revisionismos dialogam com objetivos político-ideológicos conservadores ou reacionários muito marcantes, configurando um modelo de se narrar o passado para o 205 Trata-se, usando terminologia discutida por Hayden V. White, da construção de uma narrativa de um “passado prático”,45 onde está, num primeiro plano, a elaboração de discursos que recorrem à História para se agir no presente, conferindo-lhe sentido histórico.46 Assim, esse tipo de narrativa apologética-revisionista sobre as Inquisições medievais e modernas articula-se com agendas políticas reacionárias, anti-modernas, anti-intelectuais e antiliberais, em seu conjunto de intencionalidades, mais do que no sentido de se disputar alguma verdade ou interpretação historiográfica, acadêmica e cientificamente.47 fim de atenuar culpas passadas de grupos hegemônicos do presente, aparecem em: FONTE, Sandra Soares Della; LOUREIRO, Robson. Revisionismo Histórico e o Pós-Moderno: Indícios de um Encontro Inusitado. Impulso, v. 20, n. 49, p. 85–95, 2010. p.88-92; VENÂNCIO, Renato P. O Incorreto no Guia politicamente incorreto da história do Brasil. Resenha do livro: Guia politicamente incorreto da história do Brasil. 2 ed. São Paulo: Leya, 2012. (Primeira edição em 2009), versão ebook. Disponível em: < https://www.academia.edu/36354688/O_Incorreto_no_Guia_politicamente_incorreto_da_hist%C3%B3ri a_do_Brasil> . Acessado em abr./2018. 45 WHITE, Hayden V. The practical past. Evanston, Illinois: Northwestern University press, 2014. 3-24. 46 Conforme a definição de Jörn Rüsen, discutida em ensaio a respeito do tema, em que faz uma distinção entre “memória” e “consciência histórica”, objetivando problematizar a busca por sentidos no passado na construção de identidades e justificativas de ações do presente. Para o autor, há uma distinção entre o papel das representações históricas na orientação cultural e na vida prática e os procedimentos racionais narrar o passado, pelos quais o conhecimento do que aconteceu, de fato, é conquistado. O primeiro (memória) se interessa pelos modos de fazer e manter o passado no presente; já o segundo (sobre consciência histórica) inclui em si a racionalidade dos mecanismos de produção de sentido do espírito humano, especialmente interessado nos modos de representação que dão ao passado uma forma distintiva entre o que é “histórico” e o que é “memória”. A partir daí o autor aponta que o recurso das sociedades humanas ao passado, com uma intencionalidade “prática” com o presente, acaba por produzir um “sentido histórico” para ações e aspectos do presente, em que a mediação do passado com o presente feita pela narrativa historiográfica – profissional ou não – representa o passado em um interrelacionamento mais explícito com o presente, guiados por conceitos de mudança e reivindicações de verdade. O passado, ainda que distante, assume um papel de legitimador, e a narrativa histórica revela uma historicidade ligada a identidades e interesses de grupos que a produzem e seus objetivos de agir, somados às suas constituições identitárias. Partindo disso, entendo que historiadores e não historiadores que se interessam pela historiografia inquisitorial, produzida sob objetivos apologéticos-revisionistas, têm um sentido claro na sua produção sobre o passado inquisitorial: trata-se de uma intencionalidade de se justificar no passado ações e pensamentos reacionários do presente. Não tenho dúvidas que tais pressupostos desenvolvidos por Rüsen, que explicam como usos do passado atuam na formação de identidades dos mais variados grupos politicamente organizados (dos mais progressistas aos mais reacionários), respaldados pela construção de uma memória histórica, aproximam-se, nos textos revisionistas analisados, com as premissas de White quanto a um uso prático do passado inquisitorial. Este serve para legitimar posturas conservadoras e reacionárias católicas de grupos do presente por meio da narrativa histórica. Narra-se um passado que ressalte pontos como a primazia dos valores cristãos e ocidentais perante os demais, a “necessidade histórica” da intolerância contra minorias ou contra quaisquer ideias progressistas, dando a tópicas defendidas por diversos grupos (conservadores católicos, por exemplo) um regime de verdade cuja significação se legitima no passado. Em suma, a Inquisição aparece, nessas narrativas, desde como uma necessidade do contexto, até como um símbolo de um bastião de valores de uma sociedade branca, cristã e masculina –idealizada e “inventada” -, que foi corrompida pela modernidade. RÜSEN, Jörn. Como dar sentido ao passado: questões relevantes de meta-história. História da Historiografia. Ouro Preto, v. 2, nº2 (163–209), 2009. P. 168-170. 47 Devo aqui dar os devidos créditos a um amigo e colega de curso de História na Universidade Federal de Minas Gerais, Hugo C. Palmier, pois foi depois de uma conversa que tivemos a respeito da historiografia sobre as Inquisições que pensei na necessidade de uma reflexão crítica sobre esse tipo de uso da história tocante a elas, o que merece, inclusive, novas pesquisas. A partir dessa discussão, publiquei um artigo cujo objetivo foi discutir a escrita apologética da história das Inquisições, sobretudo pelo seu viés 206 Essa digressão a respeito das atualizações dos discursos apologéticosrevisionistas sobre as Inquisições se justifica nesta tese. As críticas apresentadas a respeito do trabalho de Alécio Fernandes não diminuem a importância que ele teve para a reflexão teórica proposta a respeito dos objetos desta tese. Afinal, ainda que se reconheça que, de fundo, existam consideráveis motivações político-ideológicas na literatura apologética-revisionista sobre a Inquisição, em termos metodológicos, elas se constroem, em grande parte, em cima de problemas que Fernandes analisa em sua dissertação, a saber, a precária – e, muitas vezes, funcional – contextualização social e institucional dos tribunais inquisitoriais em sua época. Nesse ponto, a pouca reflexão sobre regimentos e manuais inquisitoriais, bem como quanto a textos jurídicos e teológicos, e as inadequações referentes às categorias de delitos inquisitoriais – proposições heréticas, blasfêmias, entre outros – acabam por aproximar os escritos tributários da “lenda negra” aos da tradição revisionista-apologética. Diante disso, justifica-se a discussão feita supra a respeito do Direito Canônico, dos regimentos e de outros documentos inquisitoriais a fim de se evitar, do ponto de vista metodológico, problemas similares. Todavia, ressalto, tais considerações estão longe de objetivar a reivindicação de uma “neutralidade” no sentido político-ideológico desta tese, a meu ver, tão contraproducente quanto impossível de se alcançar. Com essa discussão, além disso, objetiva-se evitar problemas de outra ordem ao se analisar documentação inquisitorial. Um deles, por exemplo, pensando nas questões levantadas por Fernandes, seria o de procurar, nas proposições, aproximações um tanto forçadas com ideias de tolerância estranhas à maioria ou a todas as vozes que aparecem nos processos, ao se desconsiderar todo um quadro de sustentação teórica e filosóficoreligiosa que emoldurava os debates sobre a tolerância religiosa no contexto das Luzes, assim como a própria historicidade das proposições e publicações do período sobre o tema. O propósito, enfim, é o de evitar-se a armadilha de pautar a análise sobre a tolerância religiosa a partir somente de definições exteriores aos contextos em que as fontes foram produzidas. Outro risco seria reproduzir um procedimento análogo ao da literatura apologético-revisionista sobre as Inquisições, mas com uma intencionalidade oposta – o que, também, não seria o ideal, dos pontos de vista ético e científico. Acrescento que a problematização das tipologias de delito, segundo definições correntes negacionista, ressaltando algumas de suas intencionalidades. ROCHA, Igor Tadeu Camilo. Entender ou defender o Santo Ofício? Negacionismo, apologética e usos da história inquisitorial em Para entender a Inquisição (2009), de Felipe Aquino. História da Historiografia. Ouro Preto, v. 12, nº 29 (179-213), 2019. 207 na Idade Moderna, atenua o risco de tomar as “proposições heréticas”, analisadas neste capítulo, como auto evidentes ou importantes somente em relação a seu conteúdo interno, dissociado de sua tipificação e percepção pelas autoridades, que, em última análise, produziram a documentação inquisitorial que vai ser aqui analisada. Diante do que foi discutido e exposto até aqui, os próximos subtítulos analisarão, respectivamente, blasfêmias e outros tipos de proposição no mundo luso-brasileiro; sobre o mesmo tema. Isso será feito a partir de casos referentes a estrangeiros, católicos ou de outras confissões, que caíram nas malhas inquisitoriais; e, por fim, analisando a defesa da tolerância religiosa e os ataques contra a Inquisição que aparecem na análise de alguns processos e algumas produções literárias de meados do século XVIII. 3.2 Blasfemadores e hereges: “delitos de fala” Em setembro de 1755, o inquisidor Luiz Barata de Lima mandou à então vila de Punhete, que passou a ser chamada de Constância, a partir de 1837, 48 uma comissão para averiguar uma denúncia contra Lourenço Ferreira. Este, um homem do mar, casado e natural de Santa Margarida, também em Portugal, era acusado de proferir uma série de blasfêmias que constam no 131º Caderno do Promotor e que foram retomadas no seu processo. Segundo denúncia de uma mulher chamada Catarina Maria, Lourenço Ferreira “blasfemava contra Deus e contra os santos”. Ela relatou que ele, com uma faca em mãos “dissera para um Sñr. crucificado que lha havia de pregar” nele. Relatou ainda que em “uma festa que se faz nesta terra do Divino Espirito Santo” que, “caindo um tabuleiro de pão na rua”, teria dito que “Nosso Sñr. havia de dar com cada espiga de trigo uma dúzia de cabelos” somente, e que o pão, criado a partir do trigo, era dado pelo Diabo. Na mesma festa, teria proferido ainda que Deus “não tinha Misericórdia para o governar” e também teria dito a seu filho pequeno “que quando fosse a um mandado seu e encontrasse Nosso Senhor Jesus Cristo” que “o corresse a pedradas e seguisse [o] seu mandado”, pois “valia mais o que ele mandava do que aquilo que Deus mandava”. A denunciante disse ainda que Lourenço Ferreira tinha o costume de dizer “que o Diabo tomasse sua alma”, entre outras proposições, “todas escandalosas, falsas e ridículas”, segundo os inquisidores.49 48 COELHO, Antonio Matias. Crónica: de Punhete a Constância, por António Matias Coelho [online]. Portal Mediotejo.net. 16/12/2015. Disponível em http://www.mediotejo.net/cronica-de-punhete-aconstancia-por-antonio-matias-coelho/. Acessado em nov. 2017. 49 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Denúncia de Lourenço Ferreira, proc. 1561. Fl. 1-4v. 208 Noutra acusação, Catarina Maria ainda disse que, na mesma ocasião, “com grande escândalo”, teria ouvido o acusado dizer que “nem clérigo”, “nem frade nem nenhum dos que serviam o Espírito Santo eram mais que ele e nem capaz[es] de falar diante dele”, e que “o Espirito Santo” ali festejado “não era capaz de andar debaixo das solas de seus sapatos”. Afirmou que o mesmo acusado, enquanto entalhava uma rede, “pegou uma faca e disse virado para um crucifixo que tem em um oratório” que, “já que não tendes onipotência, estou capaz de vos pregar esta faca”, repetindo, ainda segundo ela, noutra ocasião, que Deus “não tem onipotência” para lhe governar e “nem Misericórdia”.50 Outro caso de blasfêmia foi denunciado por Luiz de Souza e Silva contra Francisco José, durante a visitação da Inquisição portuguesa ao Grão-Pará (1765-1769), em agosto de 1765. Francisco José também foi acusado de uma gama ainda mais variada de proposições malsoantes e escandalosas. O denunciante, preso na Enxovia das Almas, no mesmo Grão-Pará, apresentou-se ao visitador Geraldo José Abrantes. Disselhe que, no período de seis meses em que estivera ali recolhido, tem presenciado Francisco José praticar diversos “atos [...] sem temor algum da Divina Justiça, e à vista de todos os presos, tem proferido execrandas heresias [...] e escandalosíssimas blasfêmias, as quais continua[m] sem emenda”.51 Luiz de Souza e Silva disse também que o denunciado fora soldado na praça no Grão-Pará, tivera ofício de alfaiate e era nascido no reino de Portugal. Continuando a denúncia, contou que Francisco José costumava dizer, pública e obstinadamente, “que não há Deus, e que o Deus que há o pisa debaixo dos pés”. Também denunciou que, tendo passado no período em que conviveram “muito mais de cinquenta vezes o Santíssimo Sacramento por de fronte da dita Enxovia”, enquanto os “mais presos, como cristãos, se punham de joelhos e lhes rendiam adoração”, Francisco José costumava “virar de costas ficando em pé e batendo ele no chão com sinais de entranhável ódio”, enquanto dizia as palavras “cão perro”.52 Noutra ocasião em que os presos se levantaram por ter passado uma imagem do Senhor Sacramentado, continuando a denúncia, Francisco José tornou a virar-se de costas a ela. Ao mesmo tempo, proferia ele não ser “filho de Deus e que antes se queria com o diabo que com Deus e que ele não tinha poder algum e somente o tinha o diabo”. 50 Ibidem, Fl. 12v-13. ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Denúncia contra Francisco José, Inquisição de Lisboa, proc. 38/0785. Visitação do Santo Ofício da Inquisição, feita pelo inquisidor Geraldo José de Abranches, no Estado do Grão-Pará, Brasil (1765-1769). Fl.79 52 Ibidem, Loc. cit. 51 209 O denunciante também declarou que Francisco José se recusava a ouvir missas “de propósito e caso pensado”, pois, “quando o sacerdote se achava no altar que está de fronte da cadeia e os mais presos estavam ouvindo [a missa],virava as costas para o mesmo altar” e, algumas vezes, “rindo se altamente, e outras vezes cometendo o abominável pecado da molície”. Quanto a esse pecado, ele não se contentava em apenas de o cometer diante dos demais presos “quando se celebrava o santo sacrifício da missa, mas descarada e atrevidamente o faz em qualquer hora que lhe parecia, dizendo e afirmando que aquilo não era pecado”. E, havendo presos que o repreendiam por isso, para “que não dissesse [a tal proposição] que naquelas poluções procuradas por ele não havia pecado, por quanto não tinham ouvido dizer que São Paulo declarara contra semelhantes fatos,”53 respondia Francisco José que “São Paulo era um bêbado, e um asno, que não sabia o que dizia”.54 Fora isso, em todas as noites, Luiz de Souza e Silva denunciou que Francisco José se recusara continuamente a rezar o terço de Nossa Senhora, como era costume dos demais presos. Mais que isso, “antes virava as costas para a imagem do Nosso Senhor Crucificado, sem que lhe nunca ouvisse rezar nem Padre Nosso e Ave Maria nem palavra alguma pela qual dê ao menos um leve indício de ser cristão”. E mais, em algumas ocasiões em que “os presos tinham de beijar os pés do mesmo Senhor crucificado, lhe levaram para o mesmo fim sua sacrossanta imagem, e ele respondia que lhe tirassem [a imagem] de diante e metessem na parte mais imunda do corpo humano”. Ele, além disso, fazia o mesmo com “as imagens do Senhor dos Navegantes e sua coroa, e outros santos”. 55 Francisco José e Lourenço Ferreira, separados no tempo por aproximadamente dez anos e no espaço, por um ser colono no Grão-Pará e, o outro, homem do mar em Portugal, possuem muitos pontos em comum nos seus atos e falas. Saltam aos olhos diversos aspectos que podem ser relacionados às suas percepções e relações com as autoridades estabelecidas e a religião. Tais pontos formam um conjunto de visões de mundo muito mais complexo que, pura e simplesmente, o escândalo causado por suas proposições – que, aos olhos contemporâneos, poderiam ir do cômico, para os mais 53 Em matéria de posições teológicas quanto ao sexto preceito do decálogo, e mais especificamente quanto à proibição masturbação masculina, existem frequentes interpretações sustentadas em leituras de algumas das cartas de São Paulo, em trechos em que fala sobre os pecados da carne e da submissão do homem a elas. São elas: 1 Coríntios 6:12, Gálatas 5:16, Gálatas 5:22-23, Romanos 13:14, entre outras. Esse ponto será retomado mais à frente, no Capítulo 4. 54 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Denúncia contra Francisco José. Op. Cit. Fl. 79v. 55 Ibidem, Fl. 79v-80. 210 céticos, ao criminoso, para os mais conservadores.56 O primeiro aspecto é a ênfase que as denúncias dão à publicidade das proposições, no caso, especificado por termos como “escândalo” ou sinônimos. O lugar público das blasfêmias torna-se relevante para entender sua recepção e sua interlocução, mas também remete a uma segunda 56 A sensibilidade quanto a posturas irreverentes frente a elementos religiosos é bastante variável na contemporaneidade, considerando, conforme os recortes do trabalho, o Ocidente de tradição judaicocristã. São conhecidíssimos alguns casos de grande sucesso de produções que tiveram como temática central sátiras a temas religiosos, tais como a feita pelo grupo britânico de comédia Monty Python Monty Python's Life of Brian (1979). Trata-se de uma obra que conta a história de um personagem que fora confundido com um “messias”, embora nunca quisesse ter seguidores, construindo, ao longo da trama, uma série de críticas, em tom irônico, à credulidade e hipocrisia dos que seguem as religiões instituídas. Por outro lado, o direito a manifestar tais posturas quanto ao cristianismo tem sido, frequentemente, usado como uma espécie de moeda de troca no campo da política por grupos conservadores. Foi o caso da PL 8615/2017, que propôs modificar o artigo 74 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, apresentada pelo deputado Marco Feliciano. Tal proposta de lei pretendia proibir o que o deputado brasileiro chamou de “profanação de símbolos religiosos em manifestações artísticas”. Tais manifestações seriam filmes, jogos, apresentações artísticas, entre outros. Trata-se de um tipo de ação anti-moderna e fortemente alinhada com discursos conservadores, contrária a qualquer fala ou expressão nos espaços públicos, tradicionais ou não, de dissenso, crítica ou irreverência quanto à crença dos grupos proponentes ou apoiadores deste tipo de lei –afinal, na referida PL, não há qualquer sinalização quanto a se entender como “símbolo religioso” quaisquer elementos que não sejam cristãos, católicos ou protestantes, contrariando quaisquer princípios de igualdade entre religiões e grupos religiosos, caros às constituições liberais contemporâneas. Outro exemplo vem do padre Paulo Ricardo Azevedo, conhecido no Brasil por suas posições ultraconservadoras e que, em texto recente, chegou a criticar a própria Igreja católica quanto às representações de nudez na arte sacra, em especial a da Capela Cistina. Ele atribui a permissão a essas pinturas a um “novo ambiente cultural” do qual a Igreja fazia parte, “cuja base não era mais cristã”, sendo essa permissão fruto de um “período de declínio de sua própria história”. Devo também lembrar que esse tipo de ação conservadora, ligada ao fundamentalismo religioso, dá-se também fora do âmbito da política institucional, motivando ações diretas contra “blasfemadores” diversos, muitas vezes de maneira violenta. O ataque à redação do jornal satírico Charlie Hebdo, em janeiro de 2015, feito por fundamentalistas islâmicos ligados a um grupo extremista, é um exemplo claro desse tipo de ação. É um equívoco, porém, pensar que tais atos violentos motivados por supostas violações do sagrado por grupos fundamentalistas estejam ligados somente ao Islã. Trata-se de uma forma de pensar motivada por preconceitos, norteados por aquilo que Edward Said chamou de “orientalismo”, termo que define, em linhas gerais, uma “invenção do Oriente” pelas mentalidades ocidentais, ressaltando aspectos anti-civlizados, como a violência, a incontinência sexual, o exotismo, entre outros. Pode-se, por exemplo, mencionar as ameaças e os ataques do grupo fundamentalista estadunidense Army of Christ contra clínicas de aborto em estados dos EUA onde ele é legalizado e regulamentado, entre os anos 1980 e 1990. Enfim, seria um sem número de exemplos, mas estes aqui bastam para se colocar em perspectiva que a postura perante o que se considera sagrado, em alguma medida relacionado a definições próximas daquilo que denominamos “blasfêmia”, no seu sentido tradicional, ainda que com outros nomes, está presente e permeia alguns discursos contemporâneos. É um tema que extrapola em muitos os objetivos desta tese e, certamente, merece uma dedicação mais aprofundada noutros trabalhos. C.f. Monty Python's Life of Brian. Dir. Terry Jones. Produção: John Goldstone. Escrito por: Monty Python. Cinema International Corporation (UK), Orion Pictures/ Warner Bros. (US), 1979. 93 min; OLIVEIRA, Luccas. Projeto de lei quer proibir filmes e jogos com símbolos religiosos no Brasil. O Globo, Rio e Janeiro, 04/10/2017, Cultura. Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/projeto-de-lei-quer-proibir-filmesjogos-com-simbolos-religiosos-no-brasil-21907256. Acessado em jan./ 2018; AZEVEDO, Paulo Ricardo, padre. É verdade que a arte sempre retratou a nudez? Site: Padre Paulo Ricardo. A resposta católica. 27/10/2017. Disponível em https://padrepauloricardo.org/episodios/e-verdade-que-a-arte-sempre-retratoua-nudez. Acessado em jan./2018; Attentat de Charlie Hebdo: il y a trois ans, l’horreur au coeur de Paris. Rfi – Le voix du monde. 07/01/2018. Disponível em http://www.rfi.fr/france/20180107-attentat-charliehebdo-trois-ans-horreur-coeur-paris-kouachi-hommage-macron . Acessado em jan/2018; SAID, Edward Wadie. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007; “Army of God” Anthrax Threeats. CBS News, Novembrer 9, 2001. Disponível em: https://www.cbsnews.com/news/army-of-god-anthrax-threats/ . Acessado em jan./2018. 211 característica que é o fato de que tais falas malsoantes, de maneira espontânea e não organizada, indicam, de maneira mais ou menos veemente, uma resistência a instituições católicas e a obrigações delas derivadas, tais como os sacramentos, as festas religiosas, a moral e os costumes, além da autoridade conferida ao clero. Aproximandose ambas denúncias, é possível pensar uma inserção dessas pessoas acusadas de blasfêmias e proposições heréticas –delitos ligados à fala e públicos, em alguma medida, a disputas específicas dentro do campo religioso em meados do século XVIII. Uma defesa mais ou menos explícita ou consciente de formas mais tolerantes no trato com a religião foram um elemento central dessas disputas. Obras clássicas da historiografia sobre a Idade Moderna, como as de Lucien Febvre e Mikhail Bakhtin, já abordaram esse falar no espaço coletivo, bem como se detiveram sobre a conotação desse tipo de prática na vida social, além de examinarem alguns enredamentos dele com a religiosidade. Ambos trabalham com a França da época de Rabelais, no caso, o século XVI. Isso, avalio, não impede que algumas de suas categorias sejam consideradas aqui para a condução desta tese. Todavia, são necessárias algumas ponderações e matizes, de sorte a se formular chaves de leitura consistentes para se analisar os delitos de fala presentes na documentação inquisitorial no período do reformismo ilustrado português. Na clássica obra do teórico russo Mikhail Bakhtin, o desenvolvimento feito das categorias grotesco e cultura cômica popular revela haver, na Idade Moderna, um campo bastante sofisticado de visões de mundo, verificáveis em muitos estratos sociais, que ultrapassa muito as tradicionais simplificações contidas na dicotomia entre culturas erudita e popular. Trata-se de complexos entrelaçamentos, que envolvem diversas concepções de corpo, da natureza e da própria religiosidade. Tais entrelaçamentos implicam uma igualmente complexa circularidade, na qual se cruzam constantemente as abstrações filosóficas e teológicas e as visões de mundo construídas dentro de uma cultura predominantemente iletrada. Dentro desse processo, constroem-se filtros culturais que permeiam representações da realidade amplamente compartilhadas por homens e mulheres entre finais da Idade Média e o limiar da Modernidade. A partir desses filtros, é possível observar e identificar alguns dos elementos presentes nas proposições aqui analisadas. Bakhtin lança mão de um amplo aparato conceitual ao estudar linguagem e cultura populares à época de Rabelais. Com ela, o autor discute o “riso popular” como objeto de análise histórica, considerando-o parte de uma “cultura 212 específica da praça pública e também o humor popular em toda a riqueza de suas manifestações”.57 Baseado nesses pressupostos, Bakhtin formula a categoria da carnavalização, com a qual define um sistema de imagens e cosmovisões, presentes na cultura popular medieval e renascentista, e que, em grande medida, traduzem-se no campo da linguagem como expressão de uma relativa liberdade na fala em relação a “qualquer dogmatismo religioso ou eclesiástico, do misticismo, da piedade”, e, além disso, “completamente desprovidos de caráter mágico ou encantatório”. Mais além, sintetiza o Carnaval no referido período de maneira que não englobe somente a festa que sucede à Quaresma, mas um sistema de representações da realidade que rompe, ainda que provisoriamente, algumas das barreiras hierárquicas presentes na vida social moderna.58 Em termos de religiosidade, o “carnaval”, no sentido posto pelo autor, define uma conjugação de elementos chave para representações da vida real muito própria da Idade Moderna, que se faz presente nas mais variadas leituras culturalmente difundidas da realidade. Essas leituras tomam forma numa mistura do sagrado com o profano, do espiritual com o corpóreo, dentro das mesmas formas de representar o mundo real. Assim, a carnavalização permeia uma leitura do religioso que é oposta a uma religiosidade “oficial”, abstrata e erudita, e, ao mesmo tempo, constituinte de um amplo campo relativamente autônomo de filtros culturais, difusos na cultura popular. Tais filtros, por sua vez, norteiam a compreensão do mundo e extrapolam, em muito, as reduções e os enquadramentos criados por uma cultura letrada.59 Sobre tal sistema de imagens da cultura cômica popular, o chamado “realismo grotesco”, Bakhtin explica que: No realismo grotesco (...), o princípio material e corporal aparece sob forma universal, festiva e utópica. O cósmico, o social e o corporal estão ligados indissoluvelmente numa totalidade viva e indivisível. É um conjunto alegre e benfazejo.60 No século XVIII, Bakhtin observou uma tendência do grotesco ser separado do cômico popular e colocado como elemento que reduzia sua qualidade, caindo numa espécie de “decomposição naturalista”, segundo a qual as representações do físico, do 57 BAKTHIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. Brasília/São Paulo: Editora UnB; Hucitec, 2008. 6ª edição. p. 3. 58 Ibidem, p. 7-8. 59 Ibidem, p. 16-17. 60 Ibidem, p. 17. 213 visceral e do corpóreo remetiam sempre ao baixo, vulgar e obsceno, contraposto ao que era de bom gosto nos domínios da cultura erudita.61 Bastante conhecida também é a importante discussão que Lucien Febvre fez a respeito do suposto ateísmo do humanista francês Rabelais. No referido trabalho, Febvre contraria grande parte da historiografia. Em sua concepção, ela exagerava na descrença atribuída ao autor de Pentagruel (1532) e caía em enormes anacronismos, por ele entendidos como “o grande pecado do historiador”. Febvre escreveu: Historiadores, falemos sobretudo da adaptação ao tempo. Cada época fabrica mentalmente o seu universo, não só com todos os materiais de que se dispõe, todos os fatos (verdadeiros ou falsos) que herdou ou que acaba de adquirir, mas também com os seus próprios dons, a sua engenhosidade específica, os seus talentos, as suas qualidades e as suas curiosidades, tudo o que a distingue das épocas precedentes. [...]. Paralelamente, cada época constrói mentalmente a sua representação do passado histórico.62 Assim, Febvre introduz a sua tese de que Rabelais não poderia ser um ateu, no sentido contemporâneo, uma vez que isso seria conceber o mundo de uma maneira completamente estranha a seu tempo. Noutras palavras, a descrença atribuída ao humanista francês seria impensável dentro de um mundo cujas formas de percebê-lo perpassavam, em todas as suas concepções e representações, elementos religiosos. Analisando suas proposições, Febvre aponta para a inadequação metodológica de “se ler um texto do século XVI com olhos de homem do século XX e de lançar gritos de assombro”. Afinal, “a mesma proposição articulada por um homem de 1538 e depois por um homem de 1938” não produzem, nas suas palavras, “o mesmo som”.63 Uma das grandes distinções entre as leituras feitas por homens tão distantes no espaço e tempo, conforme explica Febvre, sintetiza-se na sua asserção de que “não somos teólogos e os homens do século XVI eram”. Nas suas palavras, homens e mulheres da Idade Moderna, ainda que não passassem anos em conventos, colégios e universidades, viviam imersos numa realidade na qual temas como a imortalidade da alma, de onde ela vem quando entra no corpo ou para onde vai quando o corpo morre, e questionamentos a respeito da salvação eterna, sobre o Paraíso, o Inferno ou o Purgatório, dentre outros, eram parte das concepções mais centrais de mundo. Tais temas eram discutidos e 61 Ibidem, p. 29. FEBVRE, Lucien. O problema da incredulidade no século XVI: a religião de Rabelais. Trad. Maria Lúcia Machado; José Eduardo dos Santos Lohner. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 30 63 Ibidem, p.181. 62 214 vividos com “um zelo, uma preocupação com os antecedentes, um respeito às tradições, um ardor de curiosidade inaudito para nós”.64 Até pelo status de clássicos que as obras de Bakhtin e Febvre adquiriram ao longo da história da historiografia, do século XX até hoje, não chega a ser novidade o fato de que trabalhos recentes dialoguem com as problematizações nelas encontradas a fim de buscar chaves de leitura para a compreensão dos conteúdos das proposições blasfemas e heréticas, similares às que foram e ainda serão analisadas aqui. Trabalhos como os de Adriana Romeiro, Yllan de Mattos e Stuart B. Schwartz já fizeram tal aproximação, levantando importantes considerações a respeito do universo mental e cultural que pode ser desvelado na análise da documentação do Santo Ofício. Adriana Romeiro, por exemplo, analisou e questionou, em sua dissertação de mestrado, aquilo que comumente se entende como um “exteriorismo” marcante na religiosidade colonial, em reflexões feitas a partir da documentação da Primeira Visitação às partes do Brasil, de 1596. Para a autora, tal “exteriorismo” em nada lembra qualquer estado de “vazio espiritual”, como entende equivocadamente parte da historiografia. Segundo Adriana Romeiro, esse traço remete a um certo “materialismo”, fundamentado na valorização do corpo e expresso em proposições que indicavam concepções corporificadas do sobrenatural, que muitas vezes eram identificadas com as necessidades, desejos e temores dos colonos quanto à vida cotidiana. Essa relação com o imaterial e espiritual foi denominada pela autora “materialismo popular”, conceito que exprime a tendência à valorização da vida presente, de seu caráter imediato e concreto, em detrimento de concepções mais abstratas sobre milagres, salvação ou danação eternas, entre outros. Isso não significava, no entanto, uma negação da vida após à morte, mas remetia a um maior acento na percepção do religioso nas conquistas da vida material. Exprimia-se, também, um desejo popular de uma religiosidade mais tolerante e branda, questionando-se, por exemplo, a pertinência, com relação à misericórdia divina, da existência de nações inteiras condenadas ao Inferno, como seriam a dos mouros, a dos judeus, a dos indígenas e a das demais não conversas à lei de Cristo, além da própria dureza, conforme o mesmo entendimento, das realidades de privação material à qual eram submetidas.65 Stuart B. Schwartz, por sua vez, demonstrou o quão próximos estiveram, na cultura ibérica da Idade Moderna, os sentimentos de tolerância religiosa e as injúrias, 64 65 Ibidem, p.182 ROMEIRO, Adriana. Todos os caminhos levam ao céu. Op. Cit. 215 blasfêmias e proposições contrarias ao Santo Ofício, Igreja, sacramentos ou figuras sagradas, como os santos. De acordo com o autor, tais demandas por uma maior tolerância estiveram presentes na cultura popular e eram visíveis nas proposições heréticas, colocando no mesmo plano uma relação entre heterodoxia e espiritualidade, que constituíram um campo de contestação não organizado e, muitas vezes, pouco consciente, a todo um status quo cristão católico.66 Uma crítica que o trabalho de Schwartz recebeu do historiador italiano Giuseppe Marcocci, com a qual concordo em grande parte, incide sobre a grande autonomia que o autor estadunidense confere à religiosidade popular na Idade Moderna ibérica. Segundo análise de Schwartz, “o caminho da crença de cada um parece ter sido determinado mais por decisões e convicções individuais que por características sociais”.67 Marcocci argumenta que esse ponto é uma fragilidade da tese de Schwartz por reivindicar, de maneira excessiva, a autonomia de uma tolerância religiosa de matriz popular, não explicando sua falta de relação com posições mais elaboradas, assumidas por teólogos, humanistas e letrados em geral, que a apoiaram, em medidas e formas variadas, bem como construíram uma gama variada de argumentos críticos às autoridades eclesiástica e inquisitorial.68 De toda forma, a crítica de Marcocci a Schwartz vale para grande parte de seu importante trabalho, exceto para a final, focada no século XVIII. Nela, o autor de Cada um na sua lei defende a hipótese de as matrizes populares do tolerantismo se entrecruzam a perspectivas teológicas e filosóficas letradas, típicas do século das Luzes, produzindo substantivos efeitos nas mudanças sociais que viriam a abalar as estruturas do Antigo Regime na Península Ibérica e colônias do Atlântico.69 Stuart Schwartz, não justifica suficientemente o porquê de os cruzamentos entre as perspectivas mais eruditas de religiosidade e formulações filosóficas e matrizes populares de defesa da tolerância serem típicos do século XVIII, ou mais acentuados nele. Porém, aponta para um aspecto importante a ser analisado nesta tese: no “mundo de teólogos” da Modernidade, alguns temas e problemas de natureza religiosa e teológica articulam e unem, em alguma medida, representações de mundo absolutamente separadas pelas hierarquias de Antigo Regime e por diferenças de letramento nos variados estratos sociais. É o que se verifica na análise das proposições e blasfêmias no mundo luso-brasileiro do Setecentos. 66 SCHWARTZ, Stuart. Cada um na sua lei. Op. Cit. p. 148-150. Ibidem, p.146. 68 MARCOCCI, Giuseppe. Review of “All can be saved: religious tolerance and salvation in the iberian atlantic world” (Stuart Schwartz). E-Journal of Portuguese History online. Vol. 8, n. 1, p. 76-78. 2010. 69 SCHWARTZ, Stuart. Cada um na sua lei. Op. Cit. p. 315-384. 67 216 Yllan de Mattos demonstra aproximações importantes ao que foi discutido acima. Além disso, ressalta um aspecto fundamental desse relativo tolerantismo depreendido da documentação inquisitorial, analisando questionamentos e mesmo ataques veementes e injuriosos em delitos de fala contra autoridades eclesiásticas e inquisitoriais: trata-se de seu caráter de resistência difusa às imposições da ortodoxia, sem qualquer tentativa substancial de se constituir algum tipo de resistência organizada.70 As blasfêmias analisadas pelo autor (no caso, injúrias ao Santo Ofício e aos agentes inquisitoriais) tomaram parte de um conjunto maior de atitudes e falas que indicavam haver um constante entrelaçamento entre a mencionada defesa de uma tolerância de matriz popular e outras matrizes mais eruditas, sem que uma determinasse o funcionamento da outra, ou, ainda, que existissem de maneira absolutamente autônoma uma em relação à outra. As conclusões do autor, nesse ponto, aproximam-se das encontradas na parte final da obra de Stuart B. Schwartz, já mencionada. Nesta tese, não sustento uma discordância substancial em relação ao trabalho de Yllan de Mattos. Entretanto, as fontes aqui analisadas indicam haver entre os defensores dessas proposições heréticas, em alguns momentos e casos específicos, ações mais diretas e conscientes de confronto à ordem cristã-católica e absolutista. Essa situação é identificável na profusão e divulgação de ideias mais veementes contra a intolerância institucionalizada, nos ataques às instituições centrais de uma monarquia católica, vistas como potenciais focos de sedições pelas autoridades, mesmo que esse risco seja, constantemente, superdimensionado por elas. Acrescenta-se a isso algum nível de conexão desses indivíduos, que caíram nas malhas inquisitoriais, com circuitos mais amplos de ataques incisivos contra as Inquisições ibéricas e em defesa de uma tolerância religiosa. São proposições que relacionam, igualmente, experiências cotidianas com a diversidade de opinião e de religião presentes nos debates do contexto, que remetem a uma cultura letrada iluminista, mas também a outras, que não se limitam a ela. Primeiramente, o objetivo aqui será mapear alguns aspectos constantes nas falas de diferentes pessoas, provenientes de variados estratos sociais e com níveis distintos de instrução formal, a respeito do lugar do religioso na vida coletiva. Tais pessoas manifestaram uma rejeição relativa ou um desajuste em relação à ortodoxia. Essa perspectiva é um elemento constitutivo das blasfêmias e proposições heréticas. 70 MATTOS, Yllan. "Me tome o Santo Ofício no cu": injúrias populares, críticas e vocábulos da praça pública contra a Inquisição portuguesa (séculos XVI-XVIII). In: ASSIS, Angelo Adriano Faria de; LEVI, Joseph Abraham; MANSO, Maria de Deus Beites. (Org.). A expansão: quando o mundo foi português. 1ed.Viçosa / Braga / Washington: Ed. Évora,2014, v. 1. p. 132-151. 217 Um tipo de ato, considerado blasfemo, bastante comum, era o de se adotar algum tipo de postura imprópria ou de zombaria face aos sacramentos da Igreja, tal como foi apresentado acima na denúncia contra Francisco José, no Grão-Pará, em relação às missas. Na mesma visitação, quando Manoel de Oliveira Pantoja se apresentou ao visitador, foi relatado um caso similar, envolvendo uma representação cômica da missa e do rito do casamento. No dia 20 de setembro de 1763, Pantoja se apresentou perante o inquisidor visitador. Disse que haveria pouco mais de dezesseis anos antes daquela apresentação, no Engenho do mestre de campo Antônio Ferreira Ribeiro, às margens do rio Acará, entraram ele e mais um grupo de pessoas, entre as quais o referido mestre de campo, na capela de Santo Antônio, ali localizada. Disse que, naquela ocasião, “achando-se ele confitente com as referidas pessoas praticando depois da missa ainda dentro da dita capela”, falara ser “a grande apetência que tinha de casar uma mulher já velha”, chamada dona Clara. Declarou que Antônio Ribeiro, “para lhe saciar a sua loucura e desejos de casar, lhe tinha dito por graça que havia de receber o dito João de Brito”, outro dos denunciados na apresentação. E para que esse casamento se realizasse, o apresentado disse ter-se fingido de pároco para celebrar a cerimônia, tomando “uma loba e barrete”. E chamando Clara e o dito João de Brito, por vezes também nomeado Alonso, ao altar, para realizar o matrimônio encenado, Pantoja disse ter perguntado para Clara “se ela era capaz de aturar o Alonso porque era um homem que tinha o membro viril de demarcada grandeza, apontando a grandeza com o braço”. A isso, Clara respondeu, conforme a denúncia que “isso não importava porque também ela pari[r]a uma criança com grande cabeça”, do que “resultou um geral riso”.71 Semelhantes desacatos contra ritos e sacramentos católicos apareceram na denúncia que José de Faria fez contra José Vienne, que segundo ele era natural do Rio de Janeiro, fora para Lisboa aos cinco anos de idade e, à época da denúncia, era corretor mor das letras dos câmbios reais e provedor da mesa de seguros. Vienne foi acusado de várias proposições, tais como, por exemplo, de dizer, num dia de guarda, ao responder à sua família que lhe dizia para ouvir missa que "leve o diabo a missa e quem a diz e mais quem a ouve”. Ele o acusou também de dizer, diante de uma imagem da Virgem Maria, "que Nossa Senhora fora concebida em pecado como outra qualquer mulher”. Também consta na denúncia que, quando Vienne esteve gravemente doente, diante da visita de 71 AMARAL LAPA, José Roberto do. Livro da visitação do Santo Ofício ao Estado do Grão-Pará: 17631769. Texto inédito e apresentação de J. R. Amaral Lapa. Petrópolis: Ed. Vozes, 1978 (Coleção História Brasileira, 1). p. 126-128. 218 um pároco, disse "antes queria ver seiscentos mil diabos que o pároco”, além de “que a cruz não tinha a adoração de latria”, e também “que o Pontífice era Pontífice de merda e cagalhões”. Disse ainda que livros portugueses e espanhóis “não servem senão para limpar o cu”, além de comer carne em dias de preceito e “guardar livros mundanos” em sua casa. Além disso, consta que o denunciado demonstrava não crer em jubileus, terços, nem em religiosos, assim como não reza e não ouve missa. Manifestava, ainda, dúvidas quanto à existência do Purgatório e dizia “saber tudo o que acontecia (...) dentro do Santo Oficio, pois conversou com muitos judeus que estiveram lá presos”. Concluiu a denúncia dizendo que sua mulher compartilhava das mesmas proposições. Ela trataria escravas com crueldade, "tiranias que não devem obrar se entre católicos”, além de dizer que seu irmão é "o diabo de tanta missa". O denunciante, ainda, recomendava cautela com o denunciado por ele ser muito violento.72 Outra denúncia que trata de proposições contrárias à missa foi a denúncia de Tereza Nunes contra seu marido José Pereira, sapateiro, dada ao inquisidor Luiz Barata de Lima. No caso, a denunciante declarou que o marido a teria impedido de frequentar a missa. Ele a teria tentado persuadir que largasse a lei de Cristo para viver na lei de Moisés, na qual havia de se salvar e, diante de sua resistência em aderir à fé hebraica, começou a maltratá-la, além de a impedi-la de guardar os preceitos católicos e obrigá-la a guardar a sexta-feira. A mulher declarou ainda ter pedido licença ao marido, após confessar-se com um religioso no Convento de Santo Antônio da Vila, para voltar para a sua terra natal, Vila Cova dos Tavares (morava na de Covilhã), mas dali foi para Lisboa para denunciar ao seu marido.73 Na documentação examinada, são, também, inúmeras as proposições contrárias à confissão auricular. A importância desse sacramento, dentro da dinâmica das sociabilidades nos reinos católicos da Idade Moderna, era abordada por diversas áreas do conhecimento. Santo Afonso de Ligório (1696-1787), por exemplo, redigiu uma obra de grande influência, chamada Instrução prática para um confessor (1757), em que, contrariando os rigoristas, procura mostrar aos confessores como confortar, tranquilizar, apaziguar os penitentes. Mas, além desse autor, os debates a respeito da confissão entre diretores espirituais, teólogos e outros, valiam-se de uma vasta literatura, que perpassava pensadores católicos diversos, como São Tomás de Aquino e São Francisco 72 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. 121º CADERNO DO PROMOTOR 121, liv. 313. Fl, 247, 247v, 248, 248v. 73 Ibidem, Fl. 306-308 219 de Sales, o que denota que o ato de confessar, em si, tinha uma importância significativa no contexto.74 Jean Delumeau ressalta que tais autores católicos, ainda que com enormes discordâncias, tendendo a posturas mais ou menos rigorosas em relação ao pecado, aproximavam-se quando ressaltavam a importância do ato de se confessar a eclesiásticos para isso autorizados. Eles exaltavam o triplo papel dos confessores: de “médico”, de “juiz” e de “pai”,75 sendo também a confissão um instrumento importante para uma disciplinarização de corpos e mentes no período moderno.76 Um exemplo de proposição malsoante ligada a atos irreverentes contra a confissão auricular encontra-se numa carta do reverendo João de Jesus Nazaré denunciando duas irmãs, no ano de 1759, identificadas somente como Francisca e Isabel, de alcunha “lagartas”. Segundo o padre, as duas, residentes na cidade da Guarda, tinham “de uso e costume chegarem-se junto aos confessionários e neles ouvir os pecados dos penitentes, e depois pela sua malevosidade [sic] de língua os andar em ódio”, juntamente com uma vizinha, identificada como Maria Trindade. As três, segundo a denúncia, “lhe põem rosto em todos os pecados que podem alcançar e ouvir das confissões”, e “depois [de] dizerem os confessores, lhos dizem e lhos revelam, e daqui se levantam tanta ruína e descrédito”. E conclui que as acusadas ainda teriam se aproveitado de tal procedimento a fim de lhe levantarem falso testemunho.77 Já o escravo Luiz Pinto, pardo e cativo de Rosa Maria da Encarnação, ao ser repreendido por comer carne em dia de preceito pelo denunciante Teodoro José, no lugar onde hoje é o distrito de Roça Grande, nas Minas Gerais, no ano de 1758, foi denunciado porque teria respondido que continuaria a não guardar aquele jejum católico, uma vez que os “confessores sempre o absolviam e que isso não era pecado”. Tornando a ser repreendido, respondera, conforme a denúncia, que “se (comer carne em dia proibido) fosse pecado grande [...] os confessores o não haviam de absolver”. O denunciante, na sua denúncia, ressaltou o tom de zombaria do escravo quanto à confissão.78 Algumas das violações do sacramento da confissão foram denunciadas como tendo religiosos como seus agentes. É o que se verifica na denúncia contra frei Francisco Xavier do Salvador, franciscano, feita pelo frei Lourenço Caldeira de Abreu 74 COUTINHO, Sérgio Ricardo. Biografia, Documento e Vida Religiosa em Goiás: uma 'outra' história cultural. Rev. Mosaico, v.1, n.1, p.13-26, jan./jun., 2008. p. 22. 75 DELUMEAU, Jean. A confissão e o perdão. A confissão católica, séculos XIII a XVIII. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 26. 76 Ibidem. 77 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. 121º CADERNO DO PROMOTOR. Op. Cit. Fl. 31. 78 Ibidem, Fl. 185-185v. 220 Bento, em 1759. Segundo o frade, na Vila de Montargil, patriarcado de Lisboa, o franciscano teria contado o nome de um confitente a quem remediou e absolveu, acrescentando que a dita pessoa absolvida era conhecida por incontinente.79 Algo similar foi denunciado pelo frei Antônio de Melo Pereira de Faria contra o vigário José Ramos de Morais, que, no Rio de Janeiro, em 1758, foi acusado de quebrar o sigilo da confissão com frequência, especialmente em se tratando do sexto preceito.80 Outra proposição contrária ao sacramento que obriga o católico a confessar-se com um sacerdote aparece na denúncia contra o padre espanhol d. Gabriel de Mira, dada por João de Morais, que se achava no Hospital Real de Todos os Santos, na enfermaria de São José, em Lisboa, aos 26 de março de 1760. Segundo a denúncia, o padre teria dito, à data da confissão da quaresma, que bastava mostrar pesar por ter ofendido a Deus que o confitente estaria absolvido e, assim, não ouviu os pecados do denunciante na confissão.81 Já no ano de 1750 e sem ter local especificado no documento, o padre Antônio Rabelo, ao saber que um confitente cometia pecados contra o sexto mandamento, teria, com alguma publicidade, procurado o cúmplice, colocando em risco o segredo da confissão.82 Já o padre Antônio Pedro de Carvalho, em denúncia dada na Freguesia de Nossa Senhora do Socorro, localizada onde hoje seria o estado brasileiro do Sergipe, foi acusado de se jactar por revelar segredo de confissão, também relacionado a violações do mandamento a respeito da castidade.83 Já na denúncia datada de 28 de maio de 1759, em carta assinada pelo capelão Ângelo de Bastos ao inquisidor Luiz Barata de Lima, o mesmo padre é acusado de, durante uma procissão realizada no mês anterior, ter revelado ao denunciante que “ele, confessando um penitente que, a título de casado, andava amancebado com uma mulher que tinha em casa, e ele, com esta notícia o fora denunciar”. Isto teria terminado, segundo a denúncia, na prisão do confitente.84 De maneira similar ao caso das blasfêmias atribuídas a Lourenço Ferreira, acima analisado, aparecem na documentação alguns casos de desacatos e de agressões a imagens de santos e outras consideradas sagradas. Um exemplo é denúncia foi dada em Pedrogão, bispado da Guarda, em Portugal, no ano de 1759, e passada pelo comissário Francisco Luiz Aires contra Diogo José Sanches e sua esposa Leonor Maria Sanches. 79 Ibidem, Fls. 134. Ibidem, Fls. 137-137v. 81 Ibidem, Fls. 276 e 276v 82 Ibidem, Fl. 50 83 Ibidem, Fls. 120 e 120v 84 Ibidem, Fls. 121-121v. 80 221 Sobre ela, foi-lhe recomendada a abertura de diligências para se apurar a informação segundo a qual o casal mantinha uma imagem do Cristo crucificado em uma latrina, que teria sido achada por Isabel Gertrudes, denunciante. Esta conta também que viu ambos denunciados darem pancadas no Cristo crucificado. O mesmo Diogo Sanches teria, conforme a denúncia, jogado um crucifixo ao chão, com desprezo, quando estava com um carriel que ajustava uma cruz de ouro para vendê-la. A mencionada Isabel Gertrudes faz outra denúncia, de mesmo teor, no mesmo Caderno do Promotor.85 Por sua vez, um dos denunciados, Diogo José Sanches, compareceu em mesa no mesmo ano de 1759 a fim de dizer que Isabel Gertrudes (na sua apresentação, referida como Isabel Gonçalves) teria feito uma denúncia falsa contra ele e sua esposa, motivada por viver em trato ilícito com um Alexandre Fernandes, “com quem vivia de maneira indecente, escandalosa, sendo público e notório o fato de que ambos os queriam prejudicar [o casal antes denunciado] e eram afeitos a dar falsos testemunhos”.86 Mesmo com a tentativa de defesa de Diogo Sanches, o comissário da Inquisição Francisco Luiz Aires apresentou denúncia contra ele e sua esposa, Leonor Maria Sanches, tidos por cristãos novos e donos de uma loja de bacalhau, conforme denúncias anteriores. Eles foram denunciados por “terem metido um Cristo crucificado em um vaso cheio de urina e, depois de tirado, a risadas, lhe encheram de pancadas”. A denúncia do comissário se baseou na que foi apresentada por Isabel Gonçalves, que afirmou que esteve na casa deles. Segundo a denúncia, ela os tentou repreender, mas lhe “disseram que se calasse, se não a culpariam”. Em uma ocasião em que ajudava a vender "uma cruz de ouro com crucifixo na ponta", atirou-a no chão de forma desrespeitosa, “o que teria sido visto por uma segunda testemunha, Tereza Antunes, solteira, filha de Aleixo Pires”, que também depôs na diligência. Além disso, teria dito, na mesma ocasião, que "antes havia de meter no rabo de seu cavalo o crucifixo, a vender a quem o ajustava".87 Em seguida, o comissário da Inquisição tomou o depoimento de Isabel Gonçalves. Esta, além de repetir as denúncias anteriores, descreveu a cena, salientando as risadas do casal ao açoitarem o Cristo crucificado, e também de o ver várias vezes urinando no bacalhau que vendia. Os inquisidores, porém, não deram inteiro crédito à testemunha, por já ter sido culpada na visita ocorrida em 85 Ibidem, Fls. 237-238. Ibidem, Fls. 240 e240v. 87 Ibidem, Fls. 243 e 243v. 86 222 1757, ser de "mau procedimento”, "faladora" e "travessa", e que o denunciado, "em razão do sangue, poderia obrar o acima deferido", mas era "homem atencioso".88 Noutro testemunho, a acima referida Tereza Antunes disse que Diogo Sanches varria o lixo de sua loja em cima do crucifixo e confirmou ainda a história de que ele teria atirado um crucifixo ao chão, demonstrando desprezo. Porém, a cruz, segundo seu testemunho, não teria crucifixo, ao contrário da denúncia de Isabel Gonçalves.89 Posteriormente, Isabel Gonçalves deu novo testemunho. Nele, detalhou que o caso da cruz teria ocorrido haveria entre seis e sete anos, e que o dito Diogo Sanches teria dito para sua mulher não colocar o crucifixo novamente no pescoço, mas "antes o meter no rabo de seu cavalo" e que não voltasse a lhe cobrar dinheiro. 90 Ao final da diligência, o comissário concluiu que Isabel Gonçalves vivia amancebada com Diogo José Sanches fazia algum tempo antes das denúncias, o que deixou de acontecer havia aproximadamente um ano. Desde então, tratavam-se com inimizade. Portanto, não se devia dar crédito à denunciante. Apontou ainda algumas incoerências no depoimento de Isabel, não tendo mais andamento no caso.91 Na visitação ao Grão-Pará também houve denúncias de alguns casos de agressões a imagens. Por exemplo, no dia 18 de outubro de 1763, José da Costa compareceu perante o visitador para denunciar Tomaz Luiz Ferreira. Diante de uma procissão, realizada em 1742, na quaresma, quando um grupo de meninos carregava “um andor ou carola muito bem asseado e armado com oito velinhas de cera e dentro do dito andor uma imagem perfeita do Senhor Crucificado”, o denunciado atirou pela “janela um vaso de imundícias fétidas e asquerosas sobre o dito andor, com tamanho ímpeto que, com a pancada e peso do dito vaso, caiu o dito andor no chão e quebrou”, ficando ainda “maculado com as ditas imundícias humanas”.92 Noutra denúncia, feita por Caetano da Costa, em setembro de 1764, o denunciante afirmou que, durante uma viagem sua, havia oito anos, à vila de Cametá, estando ele em casa de um Manoel Arnaut, outro homem identificado por Luiz Fagundes “saíra de dentro de sua casa com uma imagem do Senhor Crucificado e a pusera em um galho de goiabeira e lhe dera uma quantidade de açoites” que não sabia ao certo, nem com qual instrumento eles foram feitos. Ele apontou, ainda, que o próprio Manoel Arnaut teria sido testemunha do 88 Ibidem, Fls. 244-246. Ibidem, Fls. 246-247v. 90 Ibidem, Fls. 247v-249. 91 Ibidem, Fls. 252-253. 92 AMARAL LAPA, José Roberto do. Livro da visitação do Santo Ofício ao Estado do Grão-Pará. Op. Cit. p. 168-169. 89 223 ocorrido, que foi denunciado como sacrilégio ao bispo d. Francisco Miguel de Bulhões.93 Noutra denúncia, ainda no Grão-Pará, feita por Romão Lourenço de Oliveira, é relatada uma série de agressões feitas pelo capitão mor José Miguel Aires e alguns de seus parentes contra imagens e símbolos sagrados. Segundo o denunciante, uma jovem de doze anos de idade chamada Ana, que “por caridade”, durante algum tempo, morava em sua casa, juntamente com os pais e irmãos, muito “viva e desembaraçada”, lhe contou sobre o sádico e bizarro hábito do capitão mor de punir seus criados e escravos mantendo-os durante todo o dia “em um artefato de taboas” em posição similar à crucificação. Uma das vítimas, inclusive, teria sido a jovem Ana. Fora isso, disse também que “tendo o dito Capitão Mor um Oratório em sua casa (...) para nele ouvir missa, ao qual costumavam ouvir seu irmão André Miguel Aires, capitão de auxiliares”, além de sua mulher e filhos, teria visto a mesma Ana, “por muitas e repetidas vezes, a dois filhos do dito André Miguel Aires”, um chamado Manoel e outro chamado Pedro, este “mais moço”, a fazer “horríveis desacatos” e “ações que costumam fazer os índios” contra imagens sagradas que estavam no oratório. Por exemplo, costumavam cuspir nelas continuamente “e, depois de estarem cuspidos lhes chamaram nomes infuriosos [sic], como hipócritas, judeu e outros, e se retiravam para fora do altar”. Além disso, costumavam, durante os desacatos, a virar-se de costas para as imagens “desabotoando os calções” e depois “levantavam a camisa pela parte de trás e viravam esta parte para a dita imagem” do Cristo crucificado e, “abrindo as nádegas lhas mostravam olhando ao mesmo tempo com o rosto torcido e violenta postura”. Acrescenta ainda que seus pais não os repreendiam, alegando que eram “rapazes, e que não sabiam o que faziam e entenderiam que aquela imagem era alguma boneca”.94 As críticas ao clero, regular e secular, muitas vezes misturadas a críticas à própria Igreja e suas hierarquias e contra a Inquisição também aparecem constantemente nos delitos de fala. É o que se verifica na apresentação do religioso Pedro Papito,95 feita em 1759, em Lisboa. Natural de Chatellerault, no reino da França, e residente em Lisboa, alegou ter proferido diversas proposições desse tipo em discussões com vizinhos. Por exemplo, contou que, certa vez, quando lhe disseram que “o papa podia 93 Ibidem, p. 229. Ibidem, p. 218-220. 95 Este sobrenome é, provavelmente, uma corruptela, na tentativa de aportuguesamento de um sobrenome francês ou de país francófono. Na impossibilidade de se verificar isso no documento e na ausência de documentação suplementar para viabilizar esse procedimento, optei por transcrever seu nome exatamente com a mesma grafia do documento. As atualizações da grafia, conforme a língua do país de origem das ditas pessoas, serão, nesta tese, feitas quando possível. 94 224 meter no céu quem quisesse”, respondera “que o papa não era mais santo que eles e que não podia dar um escrito, e mandar para o céu”. Noutra discussão, teria dito que não acreditava nas indulgências que se vendiam nas portas das Igrejas, ao que se seguiu que seus vizinhos disseram que “o Santo Ofício o há de queimar”. A isso respondeu que o mesmo tribunal “não havia pegar nele sem ter bens”, além de dizer que “não era bom beijar as mangas dos frades nem as cruzes por ganhar indulgências”. Concluiu, dizendo que as proposições não passavam de respostas às provocações que recebia constantemente e não “por duvidar do poder de Cristo Senhor Nosso, ou o do papa, nem da autoridade da Igreja e valor das indulgências”.96 Também no sentido de críticas ao clero, mas aqui com alguma coloração mais direta de tolerantismo, há uma denúncia feita pelo padre Rodrigo Lopes Coelho contra o carpinteiro Antônio da Silva, em 1761, no arraial de Nazaré, freguesia da Vila de São João Del Rei, nas Minas Gerais. Disse o denunciante que, achando-se na capela do dito arraial, ouviu “umas heresias proferidas” pelo acusado, que então trabalhava na dita capela. O denunciante disse tê-lo repreendido, dizendo que proferiu tais heresias diante do oficial de carpinteiro Manoel da Mota. As proposições foram várias. Teria dito que “os preceitos da Igreja não obrigavam a culpa mortal por serem postos por homens” e também teria proferido que o “sumo pontífice era homem”, e que por isso as pessoas não devem se obrigar a ele. Também teria dito que não existiam nem Inferno e nem demônios, e que estes últimos eram homens. E que tudo isso se falava “para florear quando se falava em milagres e prodígios que os santos fazem e faziam”. Disse ainda, segundo a denúncia, “que era boa a lei da liberdade de consciência”, ao que uma testemunha mencionada, chamada Thomas de Souza, teria respondido ao acusado “muitas vezes para que fosse para a Inglaterra”. E diante do mencionado Manoel da Mota teria dito, ainda, “que a lei maometana, ou a dos mouros, era boa”, ao que a referida testemunha lhe teria respondido “que a seguisse ele”. A isso, segue a denúncia, Antônio da Silva “replicou” ao dito Manoel da Mota, indagando-lhe: “você não tem fé nela?”. E a isso o denunciado teria respondido, após Mota dizer que não tinha nenhuma fé na religião maometana, que “se não tem fé na dita seita dos mouros, não se há de salvar”.97 Mais críticas contra o clero são encontradas na denúncia feita ao cônego Francisco Fernandes Simões, comissário do Santo Ofício, pelo padre Domingos 96 97 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. 121º CADERNO DO PROMOTOR. Op. Cit. Fl. 5. ANTT. Tribunal do Santo Ofício. 122º CADERNO DO PROMOTOR, livro 314. Fls. 228, 230-230v. 225 Teixeira Teles, da paróquia de Nossa Senhora das Necessidades, da Ilha de Santa Catarina, contra o governador da ilha, d. José de Melo Manoel. No documento, não consta a data da denúncia, mas infere-se que ela tenha sido dada no período de governação do denunciado, que foi nomeado em 1753 e ficou no cargo até 1762.98 Na denúncia, o governador é acusado de várias proposições. Teria dito que os clérigos e frades são a coisa mais supersticiosa que há no mundo, além de que o estado sacerdotal é somente um “ornato público do urbe cristão”, pois não são “outra coisa os sacerdotes mais que uma quadrilha de ladrões, cuja cabeça dela é o sumo pontífice”. Na denúncia, acrescentou-se: “e isso se acha provado no cartório religioso do Rio de Janeiro, na defesa de uns capítulos que o governador maquinou do denunciante”. O denunciante, ainda, afirmou que José de Melo Manoel “acredita ou se persuadiu da superficialidade da Missa e mandou dizer aos testamenteiros que não façam missas, por não dar dinheiro aos sacerdotes ladrões, pois não fazem nada além de comer e beber vinho”. Além disso, que o denunciado “despreza os ritos da Igreja, as bulas e coisas sagradas, publicamente, e que vai à igreja somente para zombar”. Além disso, “demonstrava irreverência diante das imagens, especialmente a cruz de Cristo, arrancando-as da casa do governador seu antecessor e distribuindo entre os guardas”. O denunciante o acusou de zombar das “conjuras” da Igreja. Conclui a denúncia dizendo que "sua vida é um complexo de abominações, e se não vê que pratique alguma virtude cristã, antes persuade não só em palavras, [...] também com as obras os vícios mais perniciosos ao grêmio Católico".99 Consta ainda, no Arquivo Histórico Ultramarino, uma denúncia feita pelo ouvidor da comarca de Santa Catarina Manuel José de Faria ao juiz e mais oficiais da Câmara pela má administração de d. José de Melo Manuel, datada de 1758.100 Mais denúncias de irregularidades contra ele foram feitas no mesmo ano pelo capitão-general do Rio de Janeiro Gomes Freire de Andrade aos juízes e oficiais da Câmara da vila de Nossa Senhora do Desterro.101 Neste caso, não se pode dissociar as denúncias contra o 98 No Arquivo Histórico Ultramarino, consta, por exemplo, um documento de 29 de outubro de 1753 em que d. José de Melo Manuel envia um ofício a Sebastião José de Carvalho e Melo sobre sua posse no governo da ilha de Santa Catarina, além de informar ao secretário de negócios estrangeiros de d. José I que enviara, para o Rio de Janeiro, o bergantim que o trouxera, para transportar o seu antecessor para a Corte. Há menção a uma devassa que mandou tirar da administração da Ilha de Santa Catarina o denunciado, datada de 3 de maio de 1762. AHU-Santa Catarina, cx. 2, doc. 19. AHU_CU_0-21, Cx. 2, D. 90; AHU-Santa Catarina, cx. 3, doc. 37. AHU_CU_021, Cx. 3, D. 180. 99 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. 121º CADERNO DO PROMOTOR. Op. Cit. Fls. 250-250v. 100 Arquivo Histórico Ultramarino-AHU. 1758, Agosto, 12, rio Pardo. AHU-Santa Catarina, cx. 3, doc. 2. 101 Arquivo Histórico Ultramarino-AHU .1758, Agosto, 25, [forte de São Miguel]. AHU-Santa Catarina, cx. 3, doc. 3. 226 governador de presumíveis tensões nas relações que ele mantinha com outras autoridades locais. No processo envolvendo um estudante de dezesseis anos, apresentado ao Santo Ofício em meados do século XVIII, leituras e interpretações heterodoxas das Escrituras se entrecruzam numa gama bastante variada de proposições. Trata-se de José Caetano de Miranda, estudante de Moral, que foi levado à mesa do Santo Ofício pelo tio Martinho Lopes de Miranda, em 1765. Diante do inquisidor Joaquim Jansen Müller, o denunciante afirmou que o jovem teria escrito “dois ou três” cadernos que, segundo a denúncia, foram rasgados em pedaços pelo jovem assim que descobertos, em que havia muitas proposições heréticas organizadas em dezessete capítulos. Na apresentação, Miranda afirmou que o “padre eterno”, ou seja, Deus, “não tinha princípio, posto que o desconhecesse”. Disse também que no “cálice consagrado não podia estar o sangue de Cristo”, já que “se o acólito lançasse no cálice muito vinho e o sacerdote o bebesse se havia embebedar”, e “como o sangue não embebeda era certo que não era o sangue de Cristo, mas o vinho que o sacerdote bebia”. Também apresentava uma dúvida quanto à virgindade de Maria Santíssima, inferida a partir de uma leitura heterodoxa do livro do Cântico dos Cânticos.102 O jovem também dizia que a Igreja errava ao dizer “In nomine Patris, et filii, et Spiritus Sancti”, porque se devia dizer, segundo ele, “in nomine Patris, et Filii, atque illus monitoris ad aliquos”103, pois, se o Espírito Santo fosse para todos, “a todos inspiraria os acertos, e ninguém seria desamparado, nem incorreria em delitos”.104 No sumário, dois comissários do Santo Ofício consideraram que o jovem incorreu em heresia formal pelas quatro proposições. O inquisidor recomendou-lhe penas espirituais, seguidas por um exame de crença, uma espécie de interrogatório, no qual ele foi perguntado sobre diversas matérias referentes à fé católica. Isso ocorreu aos 6 de fevereiro de 1766.105 O que se pode depreender dessas diversas denúncias e processos é, em primeiro lugar, a centralidade de temas teológicos nos vários espaços de sociabilidade, Da parte citada no documento consta o trecho “Nigra sum sed formosa”, que compõe um trecho que completo é “Nigra sum, sed formosa, filiæ Jerusalem, sicut tabernacula Cedar, sicut pelles Salomonis”. Em português, “"Sou morena, mas sou bela, filhas de Jerusalém, como as tendas de Cedar, como os pavilhões de Salomão”, capitulo 4, versículo 1. C.f. The Knox Bible. New Advent. Disponível em: http://www.newadvent.org/bible/ Acessado em fev./2018; Bíblia Católica Online: https://www.bibliacatolica.com.br/neo-vulgata-latina-vs-biblia-ave-maria/canticum-canticorum/1/ . Acesso em jun./2018 103 “Em nome do Pai, do Filho, e alguns que ele guiar”. Tradução minha. 104 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Apresentação de José Caetano de Miranda, proc. 4.070. Fls 24v, 25 e 25v. 105 Ibidem, Fl. 36v. 102 227 frequentados por pessoas de todos os estratos sociais. Temas como os sacramentos, a importância da Igreja e do clero na vida coletiva, além do pós-vida, a salvação ou danação eternas, formavam um campo complexo de assuntos a serem discutidos e que motivavam preocupações bastante concretas entre as pessoas da Idade Moderna. O mesmo se pode dizer a respeito de diversas dúvidas acerca do sobrenatural, como a “concepção sem pecado” de Maria Santíssima (proposição das mais comuns no Brasil colonial, como atesta pesquisas de Ronaldo Vainfas e Luiz Mott),106 a predominância de aspectos divinos ou humanos em Jesus Cristo ou questionamentos sobre a ação divina no mundo material. Trata-se de indagações que estavam intimamente ligadas a muitas outras ações na vida coletiva, a vivências e a sociabilidades. E, justamente neste ponto, é que se pode pensar na categoria de “campo religioso”, explicada no Capítulo 2 desta tese, para se entender a dinâmica das proposições no século XVIII. Por mais necessário que seja ressaltar a presença de uma intolerância institucionalizada – em diversos níveis, dentro dos quais os tribunais do Santo Ofício e um amplo aparato de vigilância da ortodoxia católica e absolutista eram plenamente estabelecidos –, essa enorme diversidade de ideias, atitudes e falas heterodoxas indica algum nível de disputa pelo religioso, dentro da qual o alcance e o poder do clero institucionalizado e dos teólogos jamais se tornou absoluto, ainda que fosse hegemônico. Nesse “mundo de teólogos”, aqui, novamente, tomando de empréstimo o termo usado por Febvre sobre o universo de Rabelais, forma-se um complexo enredamento de ideias a respeito de elementos religiosos, profundamente vincados com a vida coletiva e que fazem mediações fundamentais na relação de pessoas da Idade Moderna com o mundo, envolvendo questões de moral, dúvidas existenciais e mesmo a relação com as autoridades estabelecidas. No caso das heterodoxias, nota-se que existe, no contexto mencionado supra, um espaço de reinvindicações, tomado por agentes diversos, nos vários estratos da sociedade, de acesso aos “bens de salvação”, aqui, tomando um termo de Bourdieu107. Ali, encontravam-se elementos que vão das interpretações autorizadas e das Escrituras, da administração e acesso a ritos e sacramentos, até a questões que relacionem moral e salvação, entre outros. É uma dissidência contra a religião, de natureza absolutamente religiosa, pois se pauta por uma disputa por um capital 106 VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados. Moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: ed. Campus, 1989. p. 59; MOTT, Luiz R. B. Maria: virgem ou não? Quatro séculos de contestação no Brasil. Comunicação apresentada na 15ª reunião da Associação Brasileira de Antropologia. Curitiba, 1986. 107 BOURDIEU, Pierre. Gênese e estrutura do campo religioso. Op. Cit. 228 simbólico religioso e, por conseguinte, contra os que o possuem legitimamente e de maneira socialmente reconhecida. Atacar símbolos, instituições, práticas, ideias ou pessoas com acesso a esses capitais simbólicos implica, também, tomar parte de uma realidade relacional entre a dissidência religiosa e a religião, propriamente dita.108 E, em concordância com discussões já feitas por Yllan de Mattos e Stuart mencionadas anteriormente, trata-se, em princípio, de resistências Schwartz, difusas, desorganizadas, onde mesmo os radicalismos, contra clero, dogmas e a própria Igreja, passam longe de algum vislumbre por uma ruptura substantiva com o Catolicismo ou com a autoridade eclesiástica em si. Enfim, têm-se aqui movimentos de mudança e de ressignificação das relações das pessoas, nos espaços mais diversos no mundo lusobrasileiro, com a hegemonia cristã católica. Se não restam dúvidas de que portugueses e colonos, espalhados pelo Império, ocupavam-se consistentemente de assuntos teológicos, tocantes a diversas matérias, e que estes faziam parte dessas mencionadas resistências difusas no âmbito da religião, há alguns aspectos que merecem alguma atenção mais pormenorizada. Um primeiro, que já foi discutido acima, é o referido “materialismo”, marcante na relação destes indivíduos com o espiritual,109 notável, entre outros pontos, nas ações físicas feitas contra imagens sagradas. Em Portugal ou no Grão-Pará, tendo como agentes pessoas de variados níveis de letramento, alguma ação física contra símbolos e imagens sagrados parecia ser um tanto comum na documentação inquisitorial de meados do século XVIII. Possivelmente, nessas agressões, de fundo, há alguma percepção compartilhada sobre o espiritual que se aproxime das analisadas no famoso livro O queijo e os vermes, de Carlo Ginzburg, sobretudo as relacionadas diretamente ao moleiro Domenico Scandella, ou Menocchio, preso pela Inquisição no norte da Itália, por proposições contidas em suas elaborações cosmológicas. Numa delas, o moleiro dizia que “morre o corpo, morre a alma”, amparando partes das suas elaborações à leitura que fez das Viagens de Mandeville (1371).110 Ginzburg ainda menciona e analisa mais dois casos em que a mesma proposição aparece, referentes aos processos de Alessandro Mantica, que negava a imortalidade da alma baseado em uma interpretação do livro de Eclesiastes, e o processo de Pelegrino Baroni, com pontos similares. Assim, o autor observa haver um 108 STEFANO, Roberto Di. Disidencia religiosa y secularización en el siglo XIX ibero-americano. Op. Cit. p. 158. 109 SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. 110 GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. Op. Cit. p. 89. 229 componente materialista no universo religioso e espiritual de Menocchio. Trata-se, nas suas palavras, de uma espécie de recusa de componentes imateriais como filtros para interpretar a realidade, o que ele associa a um “radicalismo camponês” aplicado ao religioso e com diversas implicações noutros campos, designando, assim, fenômenos estudados no Friuli que dão conta de particularidades da religiosidade popular anteriores ao século XV. Tal “materialismo camponês ou popular” indica um certo nível de resistência em se admitir um princípio imaterial, mesmo relacionado a Deus, ao mundo, ao além-vida e às almas dos mortos, que são vistos como entes materiais, tangíveis, formados por substâncias concretas, algo expresso de forma bastante clara na proposição “não há mais que nascer e morrer”.111 Já mencionei, também, o trabalho de Adriana Romeiro e o conceito de “materialismo popular” utilizado pela historiadora para analisar as proposições no Brasil colonial, no final do século XVI. Um exemplo são as atribuídas a Lázaro Aranha, que teria afirmado, conforme denúncia analisada, que “no mundo havia vários deuses, sendo um deus dos cristãos, outro dos mouros, outro dos gentios”, além de dizer que “o deus dos mouros era somente mais um dos deuses do mundo”. Ele também dissera, conforme denúncia, que “neste mundo havia [somente] uma coisa imortal, que era o carvão metido debaixo da terra”.112Relacionando o materialismo, presente na espiritualidade medieval e moderna nos estratos populares, conforme analisados por Ginzburg e Adriana Romeiro, há algumas considerações a respeito das agressões e desacatos feitos a símbolos sagrados. Conforme foram analisadas anteriormente, tais agressões e desacatos indicam um tipo de relação “materialista”. Reitero, aqui, a conotação do termo para a Idade Moderna, de alguma materialização do sobrenatural. Não se tratava de algo encontrado no sentido contemporâneo, que muitas vezes se refere a doutrinas ateístas. Essa materialização do sobrenatural e, por conseguinte, do espiritual, certamente, permaneceu nas mentalidades e no campo religioso no mundo lusobrasileiro séculos após os contextos analisados pelos dois autores discutidos supra. Essa seria a chave mais evidente para se entender o que pensava ou sentia um indivíduo como Lourenço Ferreira, ao atacar imagens de santos com uma faca. Pode isso ser o tal “materialismo” ou “radicalismo popular”, pensado quanto ao religioso na Idade Moderna? A meu ver, as fontes, analisadas à luz da historiografia, apontam para uma resposta afirmativa. A isso, acrescento mais uma observação: uma agressão dessa 111 112 Ibidem, p. 116-117 e 186-188. ROMEIRO, Adriana. Todos os caminhos levam para o céu. Op. Cit. p. 228-235 e 294-295. 230 natureza poderia, perfeitamente, significar, no plano simbólico, uma ação contra uma realidade cristã católica propriamente dita, num sentido mais amplo e profundo, uma vez que esta, vigiada por diversas estruturas e devidamente enraizada nas mentalidades, em alguma medida, gerava níveis diversos de insatisfação ou mesmo de revolta nos contemporâneos. Nas Luzes católicas, com a tentativa de tornar hegemônico um outro Catolicismo, adequado a uma linguagem racionalista de cariz iluminista, abre-se um uma fissura inédita e um campo de conflito entre uma ideia de religiosidade conforme uma “sã teologia”, abstrata e uma epistemologia ilustrada – conforme discutido no Capítulo 2 – com matrizes populares e “materialistas”, no sentido colocado acima. Isso se fez notar nas proposições heréticas da documentação inquisitorial a partir de meados do século XVIII. Esse ponto será retomado e melhor desenvolvido neste capítulo. Por fim, vejo como necessário pensar em possibilidades de se problematizar tais pontos de insatisfação e desajuste que, em alguma medida, movimentam essa disputa pelo religioso, no contexto luso-brasileiro, em meados do século XVIII. Anita Novinsky observou que algumas dessas características relacionadas ao religioso no universo lusobrasileiro têm relação com uma espécie de “mentalidade inquisitorial”, desenvolvida ao longo de séculos de perseguições religiosas, responsável por um estado de identidade ontológica, típico do indivíduo ibérico, sintetizado no que ela chama de uma condição de “desenraizado” em termos de espiritualidade. Essa condição, que ela utiliza como categoria para pensar o estatuto do cristão-novo na Idade Moderna ibérica, seria marcada por uma permanente percepção de desajuste em relação ao status-quo religioso. À época, o sujeito nunca se percebia plenamente inserido em alguma comunidade de maneira ampla e plena, tendo uma identidade ontológica dividida. Afinal, a auto representação ontológico-religiosa do cristão novo da Idade Moderna se formou, na sua análise, de uma maneira em que ele nem se encaixaria mais em um judaísmo tradicional, distante dele temporal e espacialmente e precariamente preservado na memória social, nem mesmo em uma identidade católica de maneira plena, uma vez que o estado desses sujeitos na modernidade no espaço ibérico e colonial é de constante suspeição de heterodoxia. Nas palavras da autora, isso descreve o que ela denomina de um “homem dividido”.113 Anita Novinsky vai além ao dizer que esse estado “dividido” do cristão-novo foi responsável por uma “inquietude interna, produto de sua condição” na Idade Moderna e 113 NOVINSKY, Anita W. Cristãos-novos na Bahia. Coleção Estudos nº9. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972. p. 141-162. 231 que “provavelmente terá inclinado muitos de seus descendentes a se tornarem posteriormente maçons e precursores dos ideais de libertação do Brasil”. 114 Em trabalho, publicado no início dos anos 1990, a autora desenvolve melhor essa relação feita entre os séculos de repressão inquisitorial aos suspeitos de judaizar e cristãos novos com as heterodoxias do final do século XVIII. O trabalho tem por objeto as apropriações heterodoxas dos libertinos luso-brasileiros, estudantes da Universidade de Coimbra, de uma literatura e um ideário iluministas. Para ela, as vertentes radicais das Luzes nos espaços lusófonos tiveram suas repercussões e desenvolvimentos mais ricos e ativos na crítica religiosa. A inquietude espiritual, herança da condição dividida em relação à identidade religiosa, somada a uma “mentalidade subterrânea” produzida por séculos de perseguição inquisitorial, contribuiu para que se formassem indivíduos e grupos mais receptivos às críticas contra a Inquisição ou às ideias em favor da liberdade e tolerância religiosas no último quartel do Setecentos. Isso se deu, todavia, em contraste com desenvolvimentos da Ilustração que aconteceram apenas “palidamente em Portugal”. Anita Novinsky qualifica essas “Luzes estrangeiradas” como “acovardadas e de compromisso”, sem propostas de grandes mudanças estruturais, tal como o que aconteceu nos Além-Pireneus.115 O trabalho de Anita Novinsky e essa instrumentalização do conceito de “homem dividido” para se discutir a heterodoxia na Idade Moderna, bastante discutida na historiografia, possuem alguns pontos que merecem a devida crítica. A meu ver, a isso, naturalmente, se soma a necessidade de constante atualização de sua leitura, dada sua importância nos estudos sobre a religiosidade do período. Um apontamento importante, feito por Luiz Carlos Villalta, refere-se a uma contradição metodológica na construção feita pela autora, ao relacionar a dita “mentalidade subterrânea” com a radical crítica religiosa no final do XVIII, influenciada pelas Luzes. Afinal, a concepção negativa das Luzes portuguesas construída por Anita Novinsky, tomadas como conservadoras e compromissadas com a ordem cristã católica e monárquica, desconsidera alguns aspectos peculiares que conformam as elites letradas portuguesas do Setecentos, ao passo que outras características específicas luso-brasileiras e ibéricas somente são levadas devidamente em conta ao analisar o radicalismo religioso dos heterodoxos.116 Nesse ponto, há de se sublinhar que Anita Novinsky não considera adequadamente – 114 Ibidem, p. 64. _________________. Estudantes brasileiros “afrancesados” na Universidade de Coimbra. Op. Cit. 116 VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do livro no mundo luso-brasileiro sob as Luzes. Op. Cit. p. 127-128. 115 232 acredito que por se valer de concepções de Luzes muito centradas nas grandes sínteses de Peter Gay, de Paul Hazard e de Ernst Cassirer, centradas na França setecentista e tomadas como origem de uma modernidade secular e liberal – os desenvolvimentos específicos que a Ilustração teve nos países católicos do sul da Europa. As Luzes esmaecidas de Portugal, como tomadas pela autora, são produzidas a partir dos mitos de modernidade relacionados ao Iluminismo. A ausência de radicalismos no campo político e a existência apenas de uma vertente radical, discreta e localizada na crítica religiosa, são compreensões claramente teleológicas. Apesar disso, como categorias de análise, a “mentalidade subterrânea” e a condição de “homem dividido”, aplicadas às disputas no campo religioso, podem fornecer chaves de leitura importantes a respeito de sua estruturação e formulação de ideias que remetam à tolerância. A condição “dividida” e a “mentalidade subterrânea” são categorias formuladas a partir de uma ampla pesquisa documental, feita por Anita Novinsky, a respeito de perseguições contra cristãos novos. Faz-se necessário indagar se o que tais construções definem em matéria de vivência relacionada ao religioso e da percepção da ortodoxia católica não abrangia grupos mais amplos, também sujeitos à repressão inquisitorial. Embora o “homem dividido” constitua um arquétipo que descreve um conflito ontológico, em grande parte tributário das conversões forçadas e das perseguições aos suspeitos de judaizar, há exemplos de instrumentalizações dessa categoria para outros grupos. Adriana Romeiro, em trabalho já discutido aqui, mobiliza tal aporte conceitual para pensar a condição do mameluco no Brasil colônia, cuja identidade ontológicoreligiosa e cultural não se localiza de maneira muito precisa nem entre o branco europeu e nem entre o indígena e, mais tarde, entre o escravizado africano.117 Nesse caso, o mameluco, assim como o cristão-novo, estava, do ponto de vista cultural, numa condição de trânsito. Tratava-se de um estado de não pertencimento ou pertencimento incompleto a algum grupo estabelecido. Com isso, tais sujeitos estariam, do ponto de vista ontológico, em posição privilegiada no sentido de criticar dogmas, doutrinas e pressupostos teológicos e morais da ortodoxia católica – ainda que, dentro da dinâmica de sociedades da Idade Moderna, tal “privilégio” também implicava um risco constante por conta da vigilância inquisitorial. Essa foi uma posição muito específica na Idade Moderna, mas, dentro do processo de estabelecimento dessa mesma ortodoxia católica e das estruturas de sua vigilância – em especial, a Inquisição –, enraizaram-se algumas 117 ROMEIRO, Adriana. Todos os caminhos levam para o céu. Op. Cit. p. 233-234. 233 percepções do religioso de forma mais ampliada no tecido social. Dito de outra maneira: num universo cultural em que conceber o pleno uso dos corpos e mentes, a livre expressão de opiniões e a livre vivência religiosa não passavam de utopia para alguns, e sequer eram vislumbrados pela maioria das pessoas – tal como aponta Stuart Schwartz – 118 , um certo dissenso conflituoso, entre aquilo no qual se acredita por “assenso interno” (usando, aqui, termo comum na documentação) e o que se professa publicamente, tende a ser mais geral e enraizado nos diversos grupos sociais, e não próprio de um grupo específico. É importante ponderar que grande parte da ideia de uma “mentalidade subterrânea” é tributária do debate historiográfico que defende a existência e permanência de um judaísmo, em nível privado e doméstico, de maneira clandestina, em função da vigilância dos tribunais do Santo Ofício. Sem a pretensão de ir muito a fundo nessa complexa esfera de discussões, há de se considerar que a tradição ibérica no trato com a minoria judaica, que remonta a processos históricos que vão desde as chamadas Guerras de Reconquista até as formações das Inquisições espanhola e portuguesa, passando pelas conversões forçadas e por ações que visaram à sua expulsão da Península. Como lembra Bartolomé Bennassar, a relativa tolerância anterior às ditas Guerras de Reconquista foi, em grande medida, produto do equilíbrio político e militar existente entre muçulmanos e cristãos, entre os séculos VIII e XIII, tendo como marco central de sua deterioração a batalha de Navas, em 1212119, após a qual o lado cristão saiu-se amplamente fortalecido. A partir daí, no quadro das crises da Europa no final da Idade Média, os judeus foram relegados ao papel de bode expiatório, o que intensificou o processo de hostilidade contra esse grupo nos domínios cristãos. Nesse contexto, sancionaram-se leis de conversão e realizaram-se batismos forçados, que, segundo Bennassar, por terem sido desacompanhados da instrução na nova fé, criaram multidões de indivíduos considerados católicos apenas de modo exterior, mantendo secretamente práticas judaicas. No pico da hostilidade contra judeus, formou-se um ideal de pureza de fé, segundo o qual estes outsiders deveriam ser eliminados do reino de Castela – em alguma medida, de toda a Ibéria –, o que se materializou com a criação dos tribunais do Santo Ofício, em 1478.120 Sobre o caso português, Henry Charles Lea fala de uma 118 SCHWARTZ, Stuart. Cada um na sua lei. Op. Cit. p. 335. Batalha em que uma coligação entre reis ibéricos, de Portugal e Navarra, derrotaram o Califado Almóada, marcando de forma decisiva o processo da chamada Reconquista dos cristãos na Península Ibérica. 120 BENNASSAR, Bartolomé. L’Inquisition Espagnole. Op. Cit. p. 143-151 119 234 tentativa de “absorção”, materializada nas diversas leis de conversão da minoria judaica no reino católico, com a qual gozaram de uma certa proteção régia durante o reinado de d. Manuel I, paralela com hostilidades populares fomentadas pelo baixo clero, como o pogrom de 1506. Tal condição tornou-se mais precária a partir do reinado de d. João III, durante o qual, sob influência espanhola – sob reinado de Carlos V – e eclesiástica, em especial da Companhia de Jesus, fundou-se a Inquisição portuguesa em 1536. 121 Essa relação com os seguidores da lei de Moisés – também com os suspeitos de a seguirem –, de acordo com José Pedro Paiva, explica o porquê de Portugal e Espanha não terem experimentado processos de “caça às bruxas” idênticos aos da Europa setentrional, uma vez que os hebreus ocuparam, nesse imaginário político-teológico e cultural, o lugar de bodes expiatórios.122 A vasta produção literária antijudaica, entre os séculos XVI e XVIII, foi estudada por Bruno Feitler. Segundo esse autor, nenhuma outra minoria religiosa obteve uma atenção tão grande de tratadistas e teólogos lusos na Idade Moderna, 123 sendo evidente a constância da “obsessão antijudaica” da Inquisição portuguesa, observável na reiterada perseguição que lhe foi movida.124 Essa produção literária aponta para uma chave de leitura: a perseguição contra judeus e suspeitos de judaizar marcou o próprio delineamento da ortodoxia político-religiosa em Portugal, com contornos muito significativos, bastante estudados pela historiografia. Dentro desse processo, retomando aqui a construção de Anita Novinsky, essa mesma ortodoxia em muito se valeu, na sua formação discursiva, da ideia de haver minorias religiosas, heterodoxas e, em alguma medida (ou consequentemente) sediciosas, que praticavam seus “desvios” em relação à fé católica de maneira subterrânea e secreta. A digressão supra se justifica em função de se pensar mais solidamente uma outra chave de leitura, esta derivada da releitura a respeito da “mentalidade subterrânea”, sobretudo, mas também da ideia de “homem dividido”, constantes nas obras de Anita Novinsky. Analisando os casos das blasfêmias e de proposições heréticas, como as discutidas neste título e que ainda vão ser discutidas ao longo deste capítulo, observo que esse tipo de percepção estrutura, em grande parte, as disputas dentro do campo religioso. As várias proposições, desacatos, blasfêmias e demais 121 LEA, Henry Charles. Historia de la Inquisición Española. Op. Cit. p. 23-41. PAIVA, José Pedro. Bruxaria e superstição num país sem “caça às bruxas” (1600-1774). Lisboa: Notícias, 1997. 123 FEITLER, Bruno. O catolicismo como ideal: produção literária antijudaica no mundo português da Idade Moderna. Op. Cit. 124 MARCOCCI, Giuseppe; PAIVA, José Pedro. História da Inquisição portuguesa. Op. Cit. p. 49-76. 122 235 críticas à Igreja, à Inquisição e a outras autoridades apontam para um substrato bastante múltiplo de relações com o sagrado e com as autoridades, no qual se colocava em questão, ainda que sem constituir sistemas ou doutrinas, a própria pertinência dessa ortodoxia. Trata-se de um aparato conceitual importante para se entender alguns conflitos de natureza religiosa, presentes nas proposições, sem, efetivamente, concordar com algumas das conclusões encontradas nos trabalhos de Anita Novinsky, aqui discutidos. Repita-se, nesta tese, tendo em vista a compreensão das blasfêmias e proposições heréticas que constituem seu objeto, julgam-se úteis as categorias “mentalidade subterrânea” e “homem dividido”, formuladas por Anita Nonvinsky. Por isso, torna-se importante avaliar a percepção, a meu ver, geral, de que existe uma distância entre o que prescreve a ortodoxia e o que de fato se pensa, professa e discute em matéria religiosa, relacionando-se tal percepção diretamente à resistência difusa à ortodoxia presente nas proposições heréticas, blasfêmias e mesmo nas agressões a imagens religiosas ou injúrias ao Santo Ofício e seus agentes, como explicam Yllan de Mattos e Stuart B. Schwartz. Ela forma um substrato de uma ampla e multifacetada crítica religiosa radical, perceptível nas fontes e que aponta, justamente, para uma disputa em torno do religioso – insista-se, disputa difusa, pouco consciente e organizada, constituinte de um ideal relativamente claro de se diminuir, ao máximo, a diferença entre o expresso publicamente e o que era aceito internamente, em termos de religião. Pleiteia-se, dessa maneira, uma religiosidade e um trato mais brando e tolerante com os súditos católicos por parte de quem zelava por sua ortodoxia, assim como um acesso mais direto à administração dos “bens de salvação” (celebrações, missas, moral, confissões, etc.), menos dependente de sacerdotes, da teologia e dos inquisidores. Antes de prosseguir com esse ponto, a análise se volta para outra forma especifica de experiência com o religioso, que vai servir para se desenvolver o argumento apresentado acima de uma maneira mais densa. No caso, pensar a questão da tolerância associada à experiência das viagens e dos contatos com estrangeiros, tão importantes a um período histórico que, conforme os recortes tradicionais, começou com as grandes navegações e conquistas do “Novo Mundo”. 3.3 Fronteiras nacionais, fronteiras do religioso 236 A viagem se incorporou no imaginário das pessoas da Idade Moderna, ainda que as condições para as fazer fossem precárias, dificuldade esta que se soma com as longas distâncias. Em um capítulo a respeito do assunto, Adriana Romeiro diz que: As paisagens inauguradas pela expansão ibérica no século XV abriram-se como sendas de complexas mediações culturais: por elas, transitavam os mediadores que assimilavam as diferenças, estabeleciam trocas, promoviam invenções sincréticas, que, mais tarde, renovariam a cultura erudita e abalariam os fundamentos da ortodoxia religiosa. Nas bordas do Império português, estava em curso uma experiência singular que desembocaria na relativização das culturas e das crenças religiosas.125 Dessa maneira, segundo a autora, a experiência da viagem esteve, ao longo do período moderno, intimamente ligada com a da tolerância religiosa. Isso porque o deslocamento físico, de diversas maneiras, acontecia juntamente com deslocamentos de percepções de mundo, na medida em que mediações e filtros de representação do outro deixavam para trás a estabilidade de um presumível isolamento cultural, curvando-se à experiência concreta com a alteridade. Partindo desse ponto, Adriana Romeiro aponta para o fato de que, junto à “gente miúda” no Império português, durante a Modernidade, floresceu uma nova atitude perante o mundo e também quanto ao “novo” em que o alargamento de horizontes promovido pelas conquistas em América, África e Ásia andou em conjunto com uma disposição inédita para o conhecimento de outras culturas. Disso resultou, também, a adesão aos códigos e valores do outro. Mais que uma incursão por novas paisagens e culturas, muitas vezes, buscava-se experimentar outros universos culturais e religiosos, ou até viver entre outras crenças, explorando credos e tradições religiosas estranhas a princípio, criando-se mecanismos diversos para se conviver com eles. Assim, num período em que a “escolha religiosa” estava fora de questão, uma vez que o pertencimento a uma lei específica “determinava o estatuto ontológico do indivíduo, espraiando-se por todas as esferas de sua existência e integrando-o ou não ao seio da cristandade”, a experiência das trocas com os demais sistemas de crenças era mais frequente no mundo colonial. Nas conquistas ultramarinas, “nas quais os moradores estavam sempre de passagem, misturando-se às levas de forasteiros que vinham e iam a toda hora – e, dessa forma, impossibilitando as estratégias de controle e vigilância tão características das aldeias e cidades da Europa 125 ROMEIRO, Adriana. As aventuras de um viajante no Império Português: trocas culturais e tolerância religiosa no século XVIII. In: PAIVA, Eduardo França; ANASTASIA, Carla Maria Junho (orgs.). O trabalho mestiço: maneiras de pensar e formas de viver - séculos XVI a XIX. São Paulo: Annablume: PPGH/UFMG, 2002. p. 483-497. p. 483-484. 237 Moderna –”, formava-se um terreno de identidades mais fluidas, que revelavam novas sensibilidades diante do outro. Estas eram mais abertas e provisórias, mesmo em matéria tão central na vida da Idade Moderna como a religiosa.126 O estudo de caso sobre Simeão de Oliveira e Souza foi a forma com a qual Adriana Romeiro demonstrou a ligação entre a experiência da viagem a terras estrangeiras e da tolerância religiosa na Idade Moderna. No caso mencionado, concretizaram-se possibilidades de trocas culturais, levando-se em conta o trânsito desse indivíduo pelo Império português e também por regiões que o ultrapassavam. Graças a seus contatos com outras culturas e à vivência em meio delas, a uma ampla gama de trânsitos e de vivências, constituiu-se uma identidade bastante complexa. Segundo a autora, sua trajetória ajuda a pensar sobre “as possibilidades de mobilidade geográfica que estavam à disposição dos aventureiros, revelando o quanto eram pequenas as distâncias no universo colonial”. Ela também “joga luzes sobre a ação dos mediadores culturais que, dispersos pelas fímbrias do Império, operavam as sínteses culturais que, resignificando velhas práticas e forjando outras”, fecundaram “a própria cultura no confronto com novas paisagens culturais”.127 Simeão de Oliveira e Souza, de acordo com as fontes analisadas por Adriana Romeiro, em suas perambulações por territórios na Américas portuguesa e espanhola, pela Espanha, por Argel e pela África, conheceu o protestantismo com os ingleses e outras leis com outros povos, tendo se convertido diversas vezes, além de haver participado de várias ordens católicas, como a dos franciscanos, dos carmelitas e outras. Caindo nas malhas inquisitoriais, vieram à tona suas dezesseis trocas de identidade, um caso de amizade ilícita com uma mulher enquanto era religioso, somada às suas experiências religiosas dentro do Catolicismo, nas ordens, e fora dele, nas “escandalosas” incursões ao Protestantismo, Judaísmo e no Islã.128 O que chama a atenção é a enorme disposição que o indivíduo analisado demonstrava em se inserir nos diversos contextos religiosos da maneira mais íntima possível, e, conforme os depoimentos e demais falas na documentação inquisitorial, mostrava, em alguma medida, se apropriar de diversos pontos de crenças os mais diferentes para elaborar suas próprias cosmovisões. Stuart Schwartz também discute, numa parte de seu trabalho sobre a tolerância religiosa no mundo atlântico ibérico, a importância que as autoridades inquisitoriais 126 Ibidem, p. 485. Ibidem, p. 486. 128 Ibidem, p. 486-490. 127 238 davam a esses trânsitos de viajantes, nas colônias, no que toca à defesa da ortodoxia. No caso, sua análise tem como foco o espaço do Caribe espanhol. Lá, os diversos contrabandistas e comerciantes que atuavam na região desde o século XVI, passando pelos estabelecimentos de colônias inglesas, francesas e holandesas ao longo do XVII, além do contato de colonos católicos com protestantes, judeus e populações escravizadas, que tornavam o referido espaço profícuo para os mais intensos contatos entre tradições religiosas distintas. A isso, segundo o autor, somava-se uma escassez de agentes inquisitoriais dos tribunais hispânicos na região, o que levou autoridades religiosas estabelecidas no Caribe, no século XVII, a reclamar diretamente com o monarca sobre essa dificuldade diante da constante ameaça de heresia.129 No século XVIII, ainda segundo Schwartz, “por meio do comércio, do contrabando e da guerra”, criou-se um espaço caribenho bastante promissor dentro do qual “pessoas e mercadorias, e também ideias e livros deslocavam-se entre sistemas imperiais diversos”, intercambiando, assim, experiências e sistemas religiosos que possibilitaram trajetórias de conversões, defesas da tolerância religiosa e de maiores liberdades nesta matéria.130 A respeito da relação entre a experiência do deslocamento geográfico e a tolerância religiosa, duas considerações devem ser feitas: a primeira é que, de fato, a viagem na Idade Moderna, entendida como um espaço privilegiado de trocas culturais e experiências com a diversidade, em alguma medida, abalou visões de mundo, que eram um tanto sólidas e constituintes de identidades, visões essas que tinham no religioso um campo fundamental. Com isso, a viagem proporcionou, efetivamente, um conjunto importante de experiências que remetem à tolerância religiosa. Advirta-se que essa “tolerância” deve ser tomada de acordo com definições próprias da Idade Moderna, ou seja, que, em linhas gerais, não prescinde da distinção entre erro e verdade, ou que, muitas vezes, também depende da delimitação de um “outro” como mau ou indesejável. As fontes apontam que, no período, as relações entre a tolerância e as mediações culturais e religiosas foram tão diversas quanto os trânsitos dos indivíduos, nem sempre – raramente, melhor dizendo – com respostas muito similares entre si. Novamente, o que se observa é um padrão difuso, algo semelhante às proposições e blasfêmias, analisadas anteriormente. Nesse caso, os mencionados abalos relacionados às percepções de mundo das pessoas que cruzaram fronteiras geográficas e, também, culturais e religiosas, implicaram ajustes relacionados à alteridade, à tolerância e mesmo 129 130 SCHWARTZ, Stuart B. Cada um na sua lei. Op. Cit. p. 340-341 Ibidem, p. 341-342. 239 à intolerância. Dentro dessa zona de conflito, localiza-se um importante campo de críticas à ortodoxia católica que pretendo aqui explorar. É importante ressaltar, por isso, uma pequena discordância com uma conclusão de Adriana Romeiro, no mesmo trabalho analisado neste título: ao contrário da autora, não vejo, nesse processo relacionado aos trânsitos do período moderno, uma “antecipação das ideias das Luzes”131. Como já foi exposto nos capítulos anteriores desta tese, a própria definição do que era a tolerância religiosa e do que ela representava esteve muito em aberto nas próprias Luzes. Não havia uma disposição unívoca e claramente predominante a seu respeito naquele contexto sociológico, cultural e letrado. Muitas vezes, por exemplo, ideias de tolerância conviviam com a defesa de algum nível de defesa de verdades absolutas e da coerção institucional para mantê-las. Esse ponto era tópico comum no universo letrado católico. Reconheço, porém, que essas as experiências dos indivíduos em trânsito possuem uma similaridade com os debates e a defesa da tolerância – ou mesmo ressignificações das diversas intolerâncias – encontrados no contexto da Ilustração. Nas falas de sujeitos que caíram nas malhas inquisitoriais registradas na documentação, há uma enormidade de experiências com a alteridade proporcionadas pelas viagens. Tais experiências potencializaram visões e desejos por vivências mais tolerantes em matéria de religião, assim como níveis de conflito e confronto entre realidades e visões distintas de mundo, inéditas para muitos deles, e perfeitamente afinadas com perspectivas mais diacrônicas e plurais de desenvolvimento das Luzes.132 Dentro de um campo religioso em constante 131 ROMEIRO, Adriana. As aventuras de um viajante no Império Português. Op. Cit. p. 493. Stephen J. Barnett, ao abordar a tolerância religiosa nas Luzes, sustenta que, tão ou mais importante que as elaborações dos philosophes a respeito da tolerância religiosa, foi o peso da experiência das guerras de religião, que se arrastaram entre os séculos XVI e XVII e que, após a revogação do Édito de Nantes, no final do XVII, eram percebidas, por alguns, como risco iminente. A isso, também, se somam debates no âmbito da teologia e em outros círculos letrados, não necessariamente considerados como pertencentes às Luzes (numa perspectiva mais tradicional, sobretudo). A questão importante aqui é a enorme diversidade de percursos e tradições pelos quais essas pessoas passavam, assim como a quais aparatos recorriam em suas elaborações sobre a tolerância religiosa. A experiência colonial foi, também, um dos seus elementos importantes, como discute Alan Lavine. Henri Kamen também defende que os séculos XVIII e XIX, no Ocidente, “foram devotados à aplicação fragmentária” de princípios de tolerância, “cujo surto” se observa desde o século XVI, com raízes anteriores, referindo-se a dinâmicas bastante complexas de elaborações e que envolvem pensadores, formação e conflitos de igrejas e seitas ou grupos que perpassavam religiões e denominações diversas, bem como experiências com guerras e perseguições, entre outros. BARNETT, Stephen J. The Enlightenment and religion. Op. Cit.p.54-55; LEVINE, Alan. Introduction: the prehistory of the toleration and varieties of skepticism. Op. Cit. p. 1-10; KAMEN, Henri. O amanhecer da tolerância. Op. Cit. p. 242. Em síntese, a pequena discordância apresentada se refere a uma concepção de Ilustração específica. Apesar de discordar que experiências como as analisadas por Adriana Romeiro teriam antecipado defesas da tolerância religiosa que saíram da pena de autores como Voltaire, considero de suma importância pensar as experiências de indivíduos como Simeão de Oliveira, bem como as dos diversos comerciantes do Caribe espanhol analisadas por Stuart Schwartz. dentro do mesmo universo mental em que se formaram as ideias das Luzes. Dentro de uma perspectiva diacrônica para se pensar a formação dos debates e ideias das Luzes, na qual se valoriza o 132 240 disputa, tolerância e intolerância eram constantemente repensadas e reelaboradas, podendo ser entendidas pela chave da alteridade. A diversidade de possibilidades e de caminhos em disputa sobre o lugar da diferença religiosa na realidade próxima, dessa maneira, torna-se o vínculo mais visível dessas experiências e narrativas com a Ilustração do setecentos. A segunda consideração é a de que, a partir da análise das fontes, houve um conjunto de experiências relacionadas ao religioso que, com algum grau de autonomia, dialogou com a cultura letrada das Luzes, embora com dinâmicas absolutamente distintas. No caso, o trânsito geográfico e cultural, em questão, impacta também em apropriações dos debates mais eruditos. Há alguma similaridade entre as dinâmicas de abalos na estabilidade e cosmovisões religiosas potencializadas pelos trânsitos espaciais e culturais com os debates letrados sobre a tolerância, e mesmo alguma conexão entre ambas, sem haver, entretanto, necessariamente, uma interdependência entre essas realidades. O que se nota na elaboração de proposições é um trânsito bastante diverso dos que as enunciam. Esse trânsito envolve leituras, autorizadas ou não, de textos e das próprias tradições religiosas nas quais esses viajantes estiveram imersos. Retomando a análise da documentação estudada sobre o espaço colonial, volto à visitação ao Grão-Pará. No dia 10 de outubro de 1763, o padre Miguel Ângelo de Morais compareceu diante do visitador Geraldo José de Abrantes para denunciar um homem que nomeou apenas por “Monsieur Gronfelt”. Tratava-se de um engenheiro, residente no Grão-Pará, ao qual o padre se referiu pelo nome que ele era conhecido na freguesia do Rosário, bairro da Campina, onde o denunciante era cura e o denunciado, morador. As denúncias se referem a proposições que o padre teria ouvido do engenheiro, de quem declarou saber que era “alemão”, em conversas informais. Na primeira, disse que “indo ele denunciante visitá-lo”, o “denunciado excitou em matéria de Teologia” e “foi dizer” a proposição de que “Deus parecia iníquo”, já que “sabendo que uma alma se havia de perder a errava neste mundo”. Complementou, segundo o padre, dizendo que “assim o sentiam os luteranos que pareciam que tinham razão”. Com isso, o denunciante inferiu que Gronfelt era “sequaz dos mesmos luteranos ou dos pensamento sistemático elaborado por letrados de diversos âmbitos, sem a dissociar de outras ideias e debates cuja origem remete a experiências práticas concetas, num contexto em que os trânsitos de ideias e práticas também formavam arcabouços fundamentais para as críticas às autoridades e tradições, analisalos se faz imprescindível. Entendo esses agentes não como antecipadores de pontos que constam e serão sistematizados pelos philosophes, mas como constituintes, em pontos e âmbitos distintos dos quais os letrados partem, de um mesmo e multifacetado processo. 241 hereges que assim o afirmam”. Ao ser repreendido, continua o padre Miguel de Morais, o engenheiro se retirou para o seu quarto.133 Ainda na mesma denúncia, o mesmo padre disse que, fazia dois meses e meio antes da denúncia, aproximadamente, que estando ele e o engenheiro em suas respectivas casas, que eram próximas de maneira que era possível alguma comunicação entre eles, ouviu mais algumas proposições. Segundo ele, Gronfelt disse que “muitos santos cujas imagens estão nos altares estão ardendo suas almas nos infernos”. O religioso prontamente o repreendeu, dizendo que “não proferisse tal coisa porque, para se canonizar um santo, se faziam exatíssimas diligências”, além se de gastarem com elas “larguíssimos anos”. Mais que isso, continuou o eclesiástico, “tudo aquilo que o Sumo Pontífice dizia ex cathedra se devia ter por infalível pela assistei [sic] que tem do Espírito Santo”, ao que Gronfelt respondeu que “o Pontífice era homem e como tal podia errar”. Ao ser repreendido novamente, o denunciado voltou ao seu quarto.134 Ainda na Colônia, nas Minas Gerais, no ano de 1744, o padre Inácio Gonçalves de Souza denunciou o francês Felipe de La Contrice por cisma. Ele teria dito proposições sobre as imagens que se adoram e veneram na Igreja católica, afirmando que elas foram instituídas para os ignorantes, não para os sábios e entendidos. Além disso, sustentou que os bispos anglicanos, da Inglaterra, eram legítimos.135 Nos dois casos, o estatuto do Sumo Pontífice e dogmas do Catolicismo, além da própria questão da canonização e veneração dos santos, apareceram como pontos de conflito associados a percepções de realidades religiosas distintas. É possível presumir que os denunciados, indivíduos nascidos em contextos mais próximos do protestantismo, trouxessem aos espaços coloniais da América portuguesa as críticas à veneração dos santos e ao estatuto do papa, proposições bastante vivas em suas tradições religiosas de criação. Por sua vez, estrangeiros católicos também estiveram no centro de conflitos em matérias similares, ao tomarem contato com comportamentos de católicos lusobrasileiros. Ainda na América portuguesa, destaco a denúncia do doutor “José Baltazar Auger”, nome aportuguesado no documento do italiano Giuseppe Baldassare Augeri, contra Gaspar Rodrigues dos Reis Calçado. Augeri apresentou denúncia, em 21 de 133 AMARAL LAPA, José Roberto do. Livro da visitação do Santo Ofício ao Estado do Grão-Pará. Op. Cit. p. 144-145. 134 Ibidem, p. 145. 135 RESENDE, Maria Leônia Chaves de. Anexo documental. FURTADO, Júnia Ferreira; _____________ (orgs.). Travessias inquisitoriais das Minas Gerais aos cárceres do Santo Ofício: diálogos e trânsitos religiosos no império luso-brasileiro (sécs. XVI-XVIII). Belo Horizonte, Fino Traço- 1ª edição. 2013.Coleção História. Anexo documental. p. 415-476. p. 433. 242 novembro de 1758, contra várias proposições que afirmou ter ouvido e visto. O denunciante se apresentou como homem solteiro de trinta e quatro anos, natural da Freguesia de Santo Cosme e Damião, da cidade de Turim, em Piemonte, na Sardenha, e morador no curato de Nossa Senhora das Russas, Vila de Santa Cruz do Aracati, em Pernambuco. O piemontês disse que ouviu o denunciado “dizer várias coisas malsoantes, protervas e escandalosas” contra a fé católica, “indicativas de Judaísmo”, como “que Maria Santíssima não podia parir e ficar virgem”, e ainda “achando-se o denunciante com o denunciado pela Semana Santa, na Igreja Matriz das Russas, disse o denunciado”, ao ver uma imagem de Cristo preso em uma coluna em que representava o passo dos açoites, “que aquela figura que estava presa” era “um macacão”. Depois disso, continua o italiano, “com grandes risadas escarnecia da Santa Imagem e disse”, ainda, “que as cerimônias da Semana Santa eram macaquices”. Noutra ocasião, estando novamente junto ao denunciado na igreja, “reparou que o denunciado entrava com umas esporas nos pés”. Então, ele o advertiu “ser indecência e irreverência” entrar daquela maneira na igreja, ao que o Gaspar Calçado respondeu-lhe “que tanto fazia entrar com esporas na igreja como dentro de uma estrebaria, e fazendo mofa do sacrifício da missa”, acrescentando que “tanto fazia ouvir ou não ouvir, porque missa não enchia a barriga”. Giuseppe Baldassare Augeri denunciou ainda que, ao advertir o denunciado por seus excessos de risos e insolências durante a missa, já que “lhe poderiam chamar judeu pelo portar escandaloso na igreja”, o denunciado respondeu “que ele se prezava muito de ser judeu”. Denunciou ainda que, por algumas vezes, o denunciado teria dito que a “igreja do lugar de Aracati não servia para nada, só sim para cagar nela”.136 Na documentação encontram-se alguns casos de estrangeiros que, em Portugal, de forma e intensidades variadas, viveram situações em que se denota uma espécie de fronteira entre realidades e práticas religiosas, proporcionada ou potencializada na situação de viagem por pontos diversos do Império ou fora dele. É o caso de um irlandês que se apresentou, em Lisboa, em 1760, perante o inquisidor Alexandre Janssen Muller e cujo nome, no documento, aparece como Olivieiro de São João, um provável aportuguesamento de Oliver St. John. O apresentado disse que se converteu ao Catolicismo na França, mas que começou a viver entre os protestantes de várias nações, tais como holandeses, ingleses e franceses, vindo a praticar seus costumes em Portugal e nas Índias orientais, onde caíra nas malhas do Santo Ofício. Na apresentação, reforça 136 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. 121º CADERNO DO PROMOTOR. Op. Cit. Fl. 146. 243 seu arrependimento e sua fidelidade à fé católica.137 Tal tipo de conflito também se viu na apresentação de d. Maria Ilate, dada em 11 de janeiro de 1760, em mesa da Inquisição de Lisboa. Ela foi levada por seu confessor, o padre Jonh Preston, do Colégio dos missionários ingleses da mesma cidade. Ela, casada do Jonh Ilate, inglês e morador também em Lisboa, vivia na casa do Conde de Santiago. Através de seu confessor, que também foi seu intérprete, a inglesa disse “que se acusa à Mesa do Santo Ofício”, “depois de ter abjurado” dos “erros dos protestantes”. Ouvindo uma irlandesa, que morava na mesma casa que ela, dizer que “os parentes dela (...) todos foram para o inferno ainda crianças de pouca idade”, teve um acesso de raiva e, então, proferiu algumas proposições malsoantes. Confessou que durante a discussão disse “que se ela dantes tivera sabido que seus parentes foram para o inferno, que também ela Maria Ilate houvera de ir”, Falou também que “a seita dos protestantes fora boa”, e que “o sacramento deles é alguma coisa, a saber pão e vinho, mas que o sacramento dos católicos não é nada”. Disse ainda que os “católicos são pagãos e gentios, e outras coisas semelhantes”. Concluiu dizendo que não tinha certeza se “consentiu ou não interiormente à alguma heresia”, pois “nunca lhe sucedeu antes ou depois de abjurar do dito acesso de raiva duvidar ou negar qualquer ponto da fé católica”. 138 Outro caso de súdito de origem britânica em terras portuguesas, é o de Thomas Callis (provavelmente o nome é Thomas Call, aportuguesado), mercador e marinheiro inglês, nascido e criado no protestantismo, foi para Portugal após converso à lei católica. Em Lisboa, ele se apresentou em outubro de 1755, perante o Santo Ofício, com um intérprete, que também era o já mencionado padre John Preston. Na apresentação, deixou claro que viveu durante longo tempo entre o Catolicismo e Protestantismo e que também defendia que os protestantes podem se salvar dentro de sua própria lei. No Caderno do Promotor, há alguns detalhamentos a respeito de sua apresentação, em que se nota uma importante fluidez entre os limites nos modos como, na Idade Moderna, eram percebidas e vividas as confissões religiosas pelas pessoas. Thomas vivia, segundo a apresentação, em casa de outro inglês, que se chamaria Anthony Moore e que tinha um armazém de vinhos. Disse que “nascendo na heresia protestante que seguiam seus pais”, viveu nela até os 16 anos. Nessa idade, foi catequizado por um padre, cujo nome, à época da apresentação, perdera na memória. Assim, “abraçou a religião católica romana, na qual foi instruído e nela continuou a viver”. Mas quando foi para Lisboa, 137 138 Ibidem, Fls. 231-231v. Ibidem, Fls. 238-238v. 244 quatro meses antes da apresentação, os contatos com católicos romanos portugueses, “que lhe falavam o que lhe deviam”, fizeram-no entrar “em alguma exasperação”. Isso o teria motivado a dizer muitas proposições, que veio a declarar em seguida em mesa. Disse, como mencionado anteriormente, “que os protestantes podiam se salvar na sua lei”, o que também dizia a respeito dos católicos. Sustentou que o “Rei da Inglaterra era a cabeça da Igreja da Inglaterra”. Mas o que chama mais a atenção é o fato de ele admitir que, “na presença de hereges”, no caso, protestantes, “dizia algumas coisas contra católicos para o fim de alcançar daqueles (protestantes) algum benefício”. Afirmou ter falado que não temia ser punido pelas suas proposições, porque “se cá o prendessem, também em sua terra prenderiam os missionários”. Além disso, deixara a entender que lhes dizia que poderia tornar ao protestantismo.139 Acrescentou que estivera em cerimônias protestantes ao voltar para Inglaterra e, na presença de irlandeses e ingleses em Portugal, participava de tais cerimônias entre os “hereges”. As proposições, logo em seguida, foram detalhadas em uma carta escrita em latim por seu confessor e intérprete na apresentação. Não houve indicação de qualquer andamento da denúncia.140 Alguns pontos similares são notados na denúncia contra Ana O’Kelly, irlandesa, casada com um protestante holandês, residente em Lisboa. Segundo a denunciante Antônia do Sacramento, casada com alguém identificado somente como Jacome Lon ou Marquete Lon, natural da Ilha Terceira e residente no beco dos Alciprestes, freguesia de Santa Catarina, Anna O’Kelly ou Anna Lon casou-se com Estevão Lon, que era homem de negócios e, como já foi dito, protestante. Anna foi presa e, depois de solta, voltou para a Irlanda, onde permaneceu por um ano, retornando em seguida a Portugal. Depois de seu retorno, dormiu durante algum tempo na casa da denunciante e não quis buscar a desobriga141 dos preceitos da quaresma, por estar oculta na Corte de Portugal. Ao ser repreendida pela denunciante a este respeito, disse-lhe que ela não era sua tutora e nem 139 Ibidem, Fl. 51. Ibidem, Fls. 51v, 52 e 52v. 141 A “desobriga” ou “desobriga pascal” é um preceito católico pelo qual o fiel deve se confessar à época da quaresma e pedir a contrição de seus pecados. Na Idade Moderna, a desobriga, por meio da confissão e do perdão, tinha a função de tornar visível que a Igreja católica salvava e era santa. Para a Igreja, o funcionamento da desobriga tinha várias funções. A começar por tornar claro e público que o clero cumpria sua função. Além disso, disseminava-se que “a confissão se realizava, espalhando seu efeito de perdão, de recomposição da graça perdida”. Também fazia com que, “por meio da aparição dos públicos penitentes”, se sentissem os efeitos benéficos da “cura das almas”, “fazendo voltar os pecadores ao rebanho, à confissão e à graça”. Por fim, funcionava como eficiente punição dos que não cumpriam o preceito da confissão obrigatória anual, por meio de listas de desobriga. Algumas vezes, estas tornavamse processos. TORRES-LODOÑO Fernando. A outra família: concubinato, Igreja e escândalo na Colônia. São Paulo: Edições Loyola, 1999. p.130. 140 245 sua diretora espiritual. Por isso, ela, a apresentada, era obrigada somente ao seu marido, que vivia sob a lei de uma Igreja reformada. Disse ainda que não havia terra como sua terra natal, onde "cada um podia viver na lei que queria viver", além de comer carne nos dias proibidos. Disse ainda, casualmente, diante de um religioso e na presença de seu marido, que "Nossa Senhora parira três vezes".142 A mesma denúncia, bem menos detalhada que a anterior, foi feita por outros dois denunciantes, sendo um identificado como José Rodrigues Chaves. Logo em seguida, foi denunciada também por Tereza da Ponte, viúva, que disse aos inquisidores que Anna O’Kelly ou Lon "vivia como esposa de um herege protestante chamado Estevão Lon", mesmo sendo batizada na Igreja. Reafirma que ela fora presa e que depois de solta voltou para a Irlanda, retornando depois como "oculta" para Portugal. Disse que viveu oito dias na casa da denunciante, onde comia carne em dias de preceito. Na ocasião, a denunciada dissera que havia de fazer, em matéria de religião, somente aquilo que ordenava seu marido. 143 Os documentos analisados até aqui possuem, no mínimo, dois pontos em comum. O primeiro, como já foi dito anteriormente, é o conjunto de aspectos que remete ao “mundo de teólogos”, recorrendo novamente à terminologia da obra de Lucien Febvre, no qual as pessoas viviam imersas. Discussões pessoais, disputas de argumentos e conversas informais podiam, na Idade Moderna, tornarem-se proposições, uma vez que a própria informalidade dessas situações, somada aos elementos que remetiam ao religioso e que, frequentemente, permeavam e pautavam qualquer tipo de assunto, traziam esse risco em potencial. No caso dos estrangeiros, a isso se soma ao fato de que sua memória e suas tradições religiosas, distintas das do Catolicismo português ou colonial, também enredavam-se em tais falas e ações. Trata-se de algo observável entre estrangeiros que viviam sob outras confissões e também em católicos, o que denota a diversidade imensa que esta última confissão possuía internamente no período, constituindo filtros culturais dos mais variados. Por sua vez, há um outro aspecto, talvez mais importante para o tema central desta tese. É, no caso, a situação em que o estrangeiro se coloca, num contexto em que está imerso numa tradição religiosa distinta da que foi criado, diante de uma dinâmica nova, mais fluída, quanto à própria tolerância com o outro, em matéria religiosa. Dito de outra forma, a própria tolerância e mesmo a intolerância religiosas eram reorganizadas junto a todos os mecanismos que permeavam as percepções da realidade desses homens 142 143 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. 121º CADERNO DO PROMOTOR. Op. Cit., Fls. 295 e 295v. Ibidem, Fls. 296 e 297. 246 e mulheres da Modernidade. São evidências dessa realidade o trânsito entre protestantes e católicos, além da “exasperação” ao lidar com falas de católicos distintas das aprendidas quando da catequização, de que é exemplo o caso do marinheiro Thomaz Call. A relação com o marido protestante e o também constante trânsito entre Catolicismo e Protestantismo, no caso de Ana O’Kelly ou Lon, são também outra evidência. O mesmo se pode dizer a respeito do caso de d. Maria Ilate, mais precisamente da discussão motivada por ouvir que seus parentes foram condenados ao Inferno. Fica claro que a experiência concreta e as sociabilidades que possibilitam o contato com alguma alteridade em matéria de religião, muitas vezes, abalam esquemas mais fixos dados pelas tradições, doutrinas e dogmas protestantes ou católicos. Seria possível observar tal situação quando o trânsito e o abalo mencionados anteriormente aconteceram em contextos não cristãos? Nos documentos dos arquivos inquisitoriais, encontram-se casos de alguns estrangeiros que se converteram, em algum momento, ao Islã. Tais casos deixam algumas dúvidas, mas fornecem alguns indicativos para uma resposta positiva quanto a esse problema. Alguns estrangeiros caíram nas malhas da Inquisição portuguesa acusados de islamismo. No geral, os documentos referentes a tais personagens não possuem uma grande riqueza de detalhes sobre suas vivências em contextos islamizados. Mesmo não tendo aspectos fundamentais a este respeito, que possibilitem ir mais a fundo quanto às várias possibilidades de relações desses indivíduos com contextos religiosos absolutamente distintos dos de seus nascimentos, seus processos inquisitoriais indicam pistas importantes nesse sentido e também sobre suas relações com a ortodoxia católica. Um bom exemplo é o do processo de Miguel Gregg, marinheiro, natural da Ilha de Malta e vindo da Praça de Mazagão, que se apresentou ao Santo Ofício quando tinha trinta e três anos de idade. Em 7 de junho de 1769, em Lisboa, o maltês apresentou-se diante do inquisidor Miguel Barreto de Menezes. Ele havia ficado preso nos cárceres da Inquisição lisboeta cerca de um mês antes. Ele declarou que havia quatro anos que ele saíra da mencionada ilha mediterrânea, em um navio mercante carregado de trigo para o porto de Cádiz, no reino de Castela. De lá, embarcou para Portugal, dessa vez numa embarcação pequena e carregada de chumbo. Em meio a essa última viagem, passou pelo Estreito de Gibraltar, onde se encontrou com duas embarcações de “mouros”, que o capturaram. Gregg estava junto a um companheiro seu, identificado apenas como José – cujo sobrenome esqueceu, mas disse que era natural de “Geneva” –, não havendo mais informações sobre ele no processo. Passando um mês na “terra dos mouros”, ouviu dizer “que se 247 fizesse mouro havia de viver na sua liberdade e livre do cativeiro em que se achava”, e assim “se resolveu o dizer que era mouro e a sujeitar-se ao que o circuncidassem”. Também recebera um nome diferente do seu de batismo, no caso, o nome de “Josef”. Porém, disse que, interiormente, jamais se apartara da fé cristã, vivendo apenas exteriormente “a Lei de Mafoma”. Por esse motivo, “depois de estar em Larache coisa de dois anos”, e indo com uma “carta para Marrocos a entregar ao mesmo Rei [em] cuja terra se demorou coisa de três meses”, o mesmo rei “o mandou outra vez (...) com a resposta” para outra cidade. Todavia, ele, ao invés de “tomar o caminho para a dita cidade de Larache”, seguiu “em direitura para a Praça de Mazagão”, com a finalidade de “nela se ver em terra de católicos”. No entanto, “sendo preso no caminho, para ocultar ao ‘Bachá’144 Mogamet o fim com que tomava o caminho de Mazagão, lhe disse que, como não sabia o caminho, Larache inadvertidamente se perdera”. Depois, o mesmo bachá o deixou novamente em liberdade, no que, segundo a apresentação, fez com que retomasse o caminho para a cidade de Larache, de onde foi “mandado vir para o exército que estava sitiando a dita Praça de Mazagão na mesma noite em que chegou”, em 8 de março do mesmo ano em que se apresentava. Durante esse tempo, disse ter passado para a dita praça pelo mar e que, estando em território católico, logo pediu para se confessar. Isso não foi possível de imediato, pois dali a três dias, numa zona de conflito, teria de obrigatoriamente embarcar para Lisboa, o que fez.145 Outro maltês que se apresentou à Inquisição para se confessar por “culpas de islamismo” foi Arrigo Grec, ou Rodrigo Grec – aparecem ambos os nomes no documento –, também marinheiro, no ano de 1755, quando tinha 36 anos. Ele apresentou no dia 30 de julho, diante do inquisidor Luiz Barata de Lima, através do intérprete Joaquim Sader Mougella, já que não sabia falar português. Disse que havia aproximadamente seis anos e três meses “o capturaram os mouros andando em uma galera, ou galeote maltês” e que, na condição de cativo, fora levado a Túnis, que atualmente é a capital da Tunísia. Passados, depois desse acontecimento, sete meses, disse ter sido persuadido por uma mulher chamada “Anja Pelegrina” para que se casasse com ela. Para tanto, seria necessário que “abraçasse a seita maometana, o que ele, com as persuasões da dita mulher e por querer com ela casar-se, resolvera fazer-se turco Provavelmente, o documento se refere ao termo “paxá”, utilizado para se referir a oficiais de alta patente do Império Otomano desde a década de 1640, também derivado dos termos basha, que vem de bash, que significa “cabeça” ou “chefe”. Online etymology dictionary. Disponível em https://www.etymonline.com/word/pasha . Acessado em jan./2018. 145 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Processo de Miguel Gregue, proc. 9840. Fls. 3, 3v e 4. 144 248 exteriormente”. Com isso, ele veio a “deixar a religião católica em que tinha sido criado e que com efeito o fizera assim consentindo em que o circuncidassem”. Disse ainda que, depois que se casou com a dita mulher, com a qual teve um filho, “ficava vivendo como turco, indo às mesquitas dos mesmos (...) e fazendo com eles as cerimônias da seita maometana”, mas que tudo o fazia “exteriormente, porque no coração conservava sempre a fé católica”. Por isso, concluindo a apresentação, disse que decidiu por fugir de Túnis em um navio inglês que fazia viagem para Londres, de onde depois partira para Lisboa e fora procurar confissão.146 Outro processo apareceu contra um francês de 32 anos, chamado Jean Guibert. Seu ofício não consta no processo, e nele aparece o nome de outro francês, identificado como Jean Danté, de 23 anos. Consta que Manoel Tavares da Silva, escrivão do juízo e auditoria, além de eclesiástico na Praça de Mazagão por provimento do provisor e vigário geral da mesma praça, passou aos inquisidores, em 1764, um auto de perguntas feito aos franceses sobre fatos acontecidos no ano anterior. Guibert, nascido Montbouton, província de Borgonha, no reino da França, conforme os autos, “estava assistindo na Praça” de Mazagão “no serviço de Espanha”, mas “desertara para a Berbéria, onde foi apresentado ao rei Mohamed de Marrocos”. Já Danté, segundo os mesmos autos, disse que também estava na mesma praça, à mesma época, “da qual fugindo em uma lancha para Castela”, foi surpreendido por “um chavelho de mouros”, que “lhe tomou o caminho de sorte que o fez dar à costa da Berbéria a quatro companheiros que (...) iam na mesma lancha”. Eles, sendo “vistos dos mouros, estes os captivaram [sic]”, i.e., os fizeram cativos. Danté e seus companheiros, conforme o documento, também foram apresentados ao mencionado rei de Marrocos, e este “fez trabalhar mais o sobredito (...) Guibert [de sorte] a romper uma muralha”. Tal trabalho, segundo o que foi dito pelos acusados, era “de muito custo”. Eles alegaram “que não podiam com tanto trabalho, padecendo de moléstias rigorosas na dita escravidão, onde foram sempre católicos”. Então, para conseguirem ser libertos, “disseram que queriam ser mouros e, com efeito, para se livrarem das violências e rigores, disseram ao dito rei” de Marrocos, segundo eles, “de palavra somente”, que queriam aderir à lei islâmica. Depois, tendo notícia, por parte de cativos portugueses, sobre os domínios dos mesmos naquela região, para lá fugiram e se confessaram, comprometendo-se a apresentar ao Santo Ofício dali a quinze dias, o que fizeram. 146 147 147 Este caso e os dois anteriores sobre ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Processo de Rodrigo Gree, proc. 5168. Fls. 1, 3, 3v e 4. ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Processo de João Guibert, proc. 9694. s/n. 249 acusações de Islamismo tiveram sentenças iguais: abjuração de leve, absolvição ad cautellam da excomunhão em que incorriam, instrução nos mistérios da fé, penas e penitências espirituais, além do pagamento de custas. Isabel M. R. Mendes Drumond Braga, em análises muito mais aprofundadas que as desta tese acerca da relação entre Inquisição portuguesa, o Islã e islamizados, apresentou pontos de concordância com os aqui já ressaltados. Ela também defrontou-se fortemente com o problema do pouco detalhamento que tais processos oferecem a respeito da vivência dessas pessoas dentro do Islã.148 Seria precipitado e ingênuo endossar suas falas diante dos inquisidores, concluindo que viviam a lei islâmica somente de forma exterior e de maneira utilitária. Por outro lado, há indícios bastante fragmentários sobre alguma vivência mais substantiva nesse contexto cultural e religioso. Os exemplos podem ser vários, como o casamento de um dos marinheiros malteses, os motivos da deserção de um dos franceses para a Berbéria, entre outros. De toda forma, caberiam, na ausência de mais documentos ou detalhes mais profundos na documentação, somente conjecturas. Seria um assunto que, certamente, demandaria outras pesquisas que verticalizassem mais sobre o tema. Ao que interessa aqui, o importante é observar que a ideia de uma religiosidade interior e de outra exterior – aqui, pouco importando se o que todos afirmaram ao Santo Ofício era falso ou verdadeiro–fazia-se muito presente nas mentalidades desses homens da Idade Moderna. Tal ponto, inclusive, é comum entre esses soldados e marinheiros que viveram sob a lei islâmica ou entre estrangeiros protestantes ou católicos que viveram no mundo lusobrasileiro, sob a ortodoxia católica e a vigilância inquisitorial. Da mesma forma, aparentemente, essa noção se relacionava com algumas percepções de mundo, quando eles imergiam em realidades religiosas distintas das suas, o que, de alguma forma, se relacionava com sua percepção de alteridade. Há de se considerar, também, que a circulação de pessoas e, consequentemente, de suas ideias, crenças e práticas religiosas, conforme analisado até aqui, algumas vezes, teve algum tipo de relação com a cultura letrada. Na documentação, há casos um tanto peculiares, como o do músico italiano e cantor da Patriarcal João Batista Brace, de alcunha “Tita”. Em abril de 1757, foi enviado um papel aos inquisidores Luiz Barata de Lima e Joaquim Janssen Muller, contendo algumas proposições atribuídas a ele. Tal 148 C.f. BRAGA, Isabel M. R. Mendes Drumond. Os Irlandeses e a Inquisição portuguesa. Revista de la Inquisición, n. 10, p. 165–191, 2001. p. 182-183 e p. 189; ______________. Entre a cristandade e o Islão (séculos XV-XVII): cativos e renegados nas franjas de duas sociedades em confronto. Ceuta: Instituto de Estudos Ceutíes, Ciudad Autónoma de Ceuta, 1998. 250 papel foi entregue por outro italiano, chamado Angelo Miguel Galini. As proposições, um tanto complexas, indicam que o cantor da Patriarcal e ordenado de epístola fazia muitas críticas à formação da mocidade católica da época em que vivia, misturando no documento trechos em português e em latim, cujas referências são difíceis de se identificar – entre textos canônicos, Escrituras e vários outros. Dentre as proposições que constam da denúncia, há a de que não existe pecado leve por pravidade de matéria, “mas sim por falta de plena advertência, o de conhecimento ou de ignorância”, e que o “contrário desta doutrina merece condenar-se por herética”. Também dizia que se devia seguir às cegas e “com o entendimento totalmente rendido à Verdade, apesar de toda a natureza”, as máximas da fé cristã, advindas da revelação divina e ensinadas pela Igreja romana. E isso se daria pelo combate às doutrinas errôneas, condenadas pela doutrina católica, “por serem origem de todo o gênero de vícios e opostas aos que creem e professam a Fé”. Diante disso, concluindo seus argumentos contidos no papel de denúncia entregues à Inquisição, condenava o “ensinarem os meninos e mocidade com livros profanos, de autores gentios, como são Cícero, Virgílio” e outros. Junto a isso, também questionava o ensino das teologias especulativa e escolástica, “qual dizem ser necessária para convencer hereges”, bem como a teologia moral, segundo ele, “fundada em opiniões que não deixam o entendimento certo do como se deve obrar”. E sobre a ciência (e seu ensino), dizia que ela “se funda na curiosidade, na estimação vã e cobiça do mundo, e não em buscar o próprio conhecimento, e pura glória de Deus”. Tudo isso em conjunto, continuava, levava as pessoas a uma condição em que não se “pode dar de si senão que heresias, dogmas depravados e todo o gênero de seitas opostas à puríssima e Santíssima lei evangélica”. E, por fim, concluíra que “a experiência muito bem o mostra”, ao ver a mocidade ser ensinada com livros profanos, que “por tais canais não se pode comunicar a graça de Deus”. Com isso, naqueles “deploráveis tempos”, entre essa mocidade, “em lugar de crescer com as letras no conhecimento e próprio desprezo, modéstia e pureza da alma”, e também “com ter refreados e rendidos os apetites brutais e terrenos, tendo-os sujeitos à santíssima vontade de Deus”, acontecia o contrário. Os estudos, como eram feitos, não eram “outra coisa que uma quintessência da malícia, porque tudo o seu [sic] fundamento consiste em idear razões para resistir às Divinas Inspirações e Verdades”. Na denúncia, contudo, se menciona que o acusado era reputado em Lisboa como “doido”.149 149 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Processo de João Baptista Brace, proc. 4189. Fls. 4-7. 251 Na apresentação do francês Aleixo Escribot, clérigo de prima tonsura, mestre em latim e francês, natural do marquesado de Chamerix, aparecem formulações elaboradas a partir da leitura de um livro cujo título não foi dado nem o autor nomeado. O apresentado disse que, de dois anos até a sua apresentação ao inquisidor Luiz Barata de Lima, em 1755, “esquecera tanto da sua obrigação”, perdera “o temor de Deus Senhor Nosso” e, “por cegueira sua, ou corrupção dos costumes, entrara a esfriar na fé”. Daí, começou a ter algumas dúvidas quanto aos mistérios do Catolicismo, duvidando da existência do Purgatório, “tendo para si que podia ser uma invenção artificiosa (...) para enriquecer a Igreja à custa dos povos”. Além disso, naquela época, o juramento da penitência “lhe parecia uma invenção humana e inútil para a salvação das almas”. Também passou a duvidar das indulgências que o Sumo Pontífice concede, reprovando ainda a credulidade dos povos em relação às bulas apostólicas, verônicas e outras devoções católicas. Por fim, duvidou também do poder do Papa em canonizar os santos, o que para ele “era um invento da Igreja Romana para persuadir os católicos a fazerem obras pias e boas”, com a intenção de serem também canonizados. Todas essas proposições ele comunicara a um outro francês, também residente em Lisboa, a quem nomeou por Leronycont. Tal interlocutor não manifestara quaisquer reprovações a elas, lendo com ele um livro de que, como foi dito acima, não se lembrava do título ou autor, o qual Escribot se comprometeu a levar à Inquisição caso ele não tivesse sido queimado por seu confessor.150 Acusado de culpas de ateísmo, o clérigo de prima tonsura assinou um termo de abjuração sobre seus erros. Escribot e Brace, de formas distintas, nas suas respectivas apresentações ao Santo Ofício, esboçaram elaborações críticas a dogmas e doutrinas católicos. Tratam-se de elaborações que eram similares a algumas que eram comuns à religiosidade portuguesa e luso-brasileira, sendo encontradas em proposições e dúvidas heterodoxas e, mas que eram filtradas e reelaboradas a partir de suas formações letradas e religiosas. Elaborar ideias heterodoxas, muitas vezes a partir de uma leitura inventiva, caracterizada por uma liberdade maior em relação aos textos – da sua posse à interpretação – e por uma menor reverência a eles, foi uma atitude marcante do setecentos151. Ela é mais observável no caso de Brace do que no de Escribot, mas ambos os casos indicam haver uma conexão entre a experiência religiosa, a leitura e as 150 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Processo de Aleixo Escribot, francês de nação, proc. 1900. Fls. 34v. 151 VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do livro no mundo luso-brasileiro sob as Luzes. Op. Cit. p. 409-458. 252 proposições, sendo indicativas de uma espécie de percepção do mundo e de apreensão de realidades do seu entorno por parte desses estrangeiros em suas respectivas passagens por Portugal. Trata-se menos da relação entre leituras heterodoxas de determinados conteúdos e a elaboração de proposições do que da mudança na própria relação com o texto, fosse ele sagrado ou profano, referente a que tema fosse. Em Brace, essa conexão mencionada é observável quando, nas suas proposições, ele relaciona uma leitura livre de textos diversos, que vão da teologia à literatura clássica romana. Sublinhe-se que, no caso, esse entrelaçamento serviu de arcabouço para uma interpretação conservadora do músico sobre os tempos em que vivia e sobre a realidade da educação da mocidade portuguesa, segundo as leis e ideias católicas. Assim, suas proposições sustentaram algumas de suas críticas à forma e ao conteúdo do que se ensinava com o objetivo de se manter a ortodoxia católica, de alguma forma tomando alguma posição sobre a querela de antigos contra modernos. No caso de Escribot, por sua vez, faz-se ver, de uma maneira menos explícita, sua apropriação de leituras, mas fica patente alguma liberdade de posse e circulação de escritos. Além isso, evidencia-se, no caso, a prática de se “colar” proposições a leituras, algo relativamente constante, no século XVIII, entre heterodoxos luso-brasileiros.152 Todas essas situações anteriormente analisadas evidenciam importantes chaves de entendimento a respeito da tolerância religiosa a partir da alteridade, tema principal desta parte da tese. Durante a Idade Moderna, conforme se depreende dos processos, denúncias e apresentações aqui analisados e contidos na documentação inquisitorial, tais chaves são encontradas nos trânsitos de experiências, nas tradições religiosas, nos livros e em outros elementos. É possível vê-las também nesses sujeitos que atravessam fronteiras, dentro e fora da Europa. A viagem, em alguma medida, reorganiza, na experiência de pessoas com as mais diversas origens e confissões, alguns elementos de conflito e de percepção das diferenças religiosas, antes estranhos. A experiência concreta com a diferença rearticula filtros de entendimento sobre o outro. Mesmo os conflitos, enraizados em uma memória histórica que remete à intolerância entre os diferentes credos, acabam por passar por processos de mudança. Juntamente com isso, é perceptível que, assim como já foi identificado com os blasfemadores do mundo luso-brasileiro, havia, em meados do século XVIII, duas vivências religiosas separadas, sendo uma interna e particular, e outra pública. Esta NOVINSKY, Anita Waingort. Estudantes brasileiros “afrancesados” na Universidade de Coimbra. Op. Cit. 152 253 última deveria dar-se em conformidade com a ortodoxia, e tal entendimento parecia estar bem difundido, embora, como já foi mencionado, seja imprudente se considerar que tais afirmações, feitas diante dos inquisidores, correspondam, necessariamente, à verdade para esses indivíduos. Estes pontos aqui elencados foram vistos, em meados do Setecentos, como alguns dos elementos característicos da “seita” dos pedreiros livres, a maçonaria, juntamente com alguns outros aspectos bastante peculiares destes indivíduos, reunidos em “conventículos” – conforme a terminologia da Inquisição portuguesa –, em que se ganhou força a representação desses grupos como ameaça séria à ordem estabelecida. Um dos pontos nos quais essa ameaça era mais fortemente percebida, precisamente, a tolerância que pregavam com quaisquer religiões, chama a atenção. Sobre os pedreiros livres e, mais precisamente, sobre o famoso processo do maçom John Coustos e os relatos de sua fuga das malhas inquisitoriais, será desenvolvido o próximo tópico desta tese. 3.4 A lodge de Lisboa, os sofrimentos de John Coustos e uma narrativa antiInquisição Proposições consideradas heréticas, vivência em contextos religiosos diversos e a noção de uma fissura entre a ortodoxia estabelecida e uma religiosidade mais particular, em meados do século XVIII, compunham um campo de ideias em torno do religioso que se relacionava, em grande medida, com os debates do contexto das Luzes. Pode se observar isso não somente na busca por argumentos e ideias de autores importantes ou de apropriações deles nas proposições heterodoxas espalhadas por Portugal e seus domínios coloniais, mas também na percepção disseminada naquele contexto de mudanças, um tanto agudas, no que toca a este campo, quanto às críticas ao status quo católico. Os ataques à Inquisição ou às posições dos eclesiásticos não eram novos, muito pelo contrário. Mas o processo de secularização que estava em curso oferecia novos problemas e elementos inéditos para esse contexto de críticas difusas em matéria de disputa em torno do campo religioso. Efetivamente, tais novidades afetavam os heterodoxos, mas, também, as próprias autoridades régias e inquisitoriais. Nos processos sobre a maçonaria, tais relações podem ser percebidas em contornos bastante visíveis. Maria da Graça Silva Dias fala sobre quatro fases da implementação da maçonaria em Portugal, sendo que a primeira remonta à década de 1730. Nela, em 254 período que vai de 1731 até 1737, existiram em Lisboa duas casas maçônicas: a dos Mercadores Ingleses, de predominância protestante, além da Casa Real Lusitânia, composta por uma maioria de irlandeses, que, segundo a autora, eram quase todos católicos. Após a condenação da maçonaria por bula papal em 1738 – que será discutida mais à frente –, cessaram as suas atividades, embora não existam evidências de que tenham abandonado, efetivamente, a maçonaria. Ainda segundo a mesma autora, na segunda fase, iniciada em 1743, adquirem importância a “loja” de John Coustos e mais um núcleo de maçons de diversas nações, como França e Inglaterra, “onde traços do maçonismo inglês, andersoniano,153 são indiscutíveis”.154 Segundo Alexandre Mansur Barata, tudo leva a crer que, nessas organizações maçônicas que surgiram em Portugal entre a virada dos anos 1720 para os 1730, não havia a presença de portugueses.155É possível, no entanto, encontrar muitos portugueses envolvidos em processos contra maçons em períodos posteriores, tanto a partir da época de Coustos como, sobretudo, depois da década de 1780 – algo que será analisado no último capítulo desta tese. É importante retomar que, paralelamente ao desenvolvimento da maçonaria em Portugal, a Santa Sé Romana publicou bulas que a condenaram. Alguns pontos contidos nelas são fundamentais para que se entenda como as autoridades viam a heterodoxia religiosa nas atividades dos maçons. A tolerância religiosa é um aspecto fundamental, visto como escandaloso o fato de que as “congregações” da “seita” dos pedreiros-livres aceitassem em seu interior pessoas de todos os credos, impedindo-lhes, por meio de suas constituições e alguns estatutos internos, de participar de polêmicas e querelas teológicas. Além disso, o segredo e o juramento para mantê-lo foram condenados pelas bulas, sendo esse aspecto algo sobre o qual os inquisidores insistiram fortemente nos processos. Jurar com a mão sobre a Bíblia e se reunir onde, presumidamente, os olhos vigilantes das autoridades católicas não alcançavam, eram práticas que causavam 153 Referente à Constituição de Anderson, marco da maçonaria moderna. Em 1721, quatro anos após a inauguração da Grande Loja Inglesa, produto da reunião e organização das outras quatro então lojas londrinas, o pastor presbiteriano James Anderson (1679-1739) foi incumbido de reunir regras e preceitos adotados na Ordem para lhe elaborar uma constituição. Ela ficou pronta dois anos após, em 1723, depois de ter sido revista por uma comissão da mesma ordem, objetivando ser uma espécie de documento básico universal da maçonaria. C.f. VALADARES, Virginia Maria Trindade. A maçonaria moderna nas malhas do Santo Ofício no Império Português no setecentos. Revista de História Regional, v. 19, n. 2, p. 346– 360, 2014. p. 348-349. 154 DIAS, Maria da Graça Silva. Anglismo na Maçonaria em Portugal no limiar do século XIX. Análise Social, v. XVI, n. 61–62, p. 399–405, 1980. p. 399-400. 155 BARATA, Alexandre Mansur. Sociabilidade Ilustrada & Independência no Brasil. 1790-1822. Editora UFJF. Juiz de Fora, 2006. p. 52. 255 particular incômodo. Na bula In Iminenti, de 1738, publicada no papado de Clemente XII, esse incômodo se evidencia: Agora, chegou a nossos ouvidos, e o tema geral deixou claro, que certas Sociedades, Companhias, Assembleias, Reuniões, Congregações ou Convenções chamadas popularmente de Liberi Muratori ou Franco-Maçonaria ou por outros nomes, de acordo com as várias línguas, estão se difundindo e crescendo diariamente em força; e que homens de quaisquer religiões ou seitas, satisfeitos com a aparência de probidade natural, estão reunidos, de acordo com seus estatutos e leis estabelecidas por eles, através de um rigoroso e inquebrantável vínculo que os obriga, tanto por um juramento sobre a Bíblia Sagrada quanto por uma variedade de severos castigos, a um inviolável silêncio sobre tudo o que eles fazem em segredo em conjunto. Mas é parte da natureza do crime trair a si própria e para mostrar ao seu próprio clamor. Assim, estas citadas Sociedades ou Convenções têm causado na mente dos fiéis a maior suspeita, e todos os homens prudentes e íntegros têm apresentado o mesmo juízo sobre eles como sendo pervertidos e depravados, pois se eles não estão fazendo mal, então não deveriam ter um ódio tão grande da luz. De fato, este rumor tem crescido a tais proporções que, em vários países estas sociedades têm sido proibidas pelas autoridades civis como sendo contra a segurança pública, e por algum tempo pareceu terem sido prudentes eliminá-los (grifos meus).156 Os mesmos aspectos são confirmados numa segunda bula condenatória contra a maçonaria, a Provida Romanorum Pontificum, de 1751, dada no papado de Bento XIV. O tom dessa bula é de uma confirmação da proibição da anterior, somado à reafirmação dos pontos sobre os quais a proibição se sustenta. Cita, como primeira causa da proibição, que, “entre as causas mais graves das supraditas proibições e condenações enunciadas” na bula anterior, “a primeira é: que nas tais sociedades e assembleias secretas, estão filiados indistintamente homens de todos os credos; daí ser evidente a resultante de um grande perigo para a pureza da religião católica”. Além disso, detalhando mais que na bula anterior, enuncia que: — a segunda é: a obrigação estrita do segredo indevassável, pelo qual se oculta tudo que se passa nas assembleias secretas, às quais com razão se pode aplicar o provérbio (do qual se serviu Caecilius Natalis, em causa de caráter diverso, contra Minúcius Félix): “As coisas honestas gozam da publicidade; as criminosas, do segredo”; — a terceira é: o juramento pelo qual se comprometem a guardar inviolável segredo, como se fosse permitido a qualquer um apoiar-se numa promessa ou juramento com o fito de furtar-se a prestar declarações ao legítimo poder, que investiga se em tais assembleias 156 In Eminenti Apostolatus Specula, papal bull dealing with the condemnation of freemasonery. Pope Clement XII. [1738]. Disponível em: www.papalencyclicals.net/clem12/c12inemengl.htm . Acesso em fev./2018. 256 secretas não se maquina algo contra o Estado, contra a Religião e contra as Leis; — a quarta é: que tais sociedades são reconhecidamente contrárias às sanções civis e canônicas; o direito civil proíbe ajuntamentos e sodalícios, como se pode conferir no XLVII livro de Pandectas, tit. 22 de Collegüs et Corporibus illicitis e na célebre carta de Plinius Caecilius II, que é a XCVII, livro 10, na qual diz ser proibida pelo Imperador a existência de “Hetérias”: isto é, sociedade alguma ou reunião podia existir e constituir-se sem a devida autorização do príncipe; — a quinta é: que em muitos países as ditas sociedades e agregações foram proscritas e eliminadas por leis de príncipes seculares; — a última enfim é: que as tais sociedades e agregações são reprovadas por homens prudentes e honestos e, no pensar deles, quem quer que se inscreva nelas merece o ferrete da depravação e perversidade.157 Nas bulas, a tolerância religiosa é vista como ameaça à pureza da fé católica, já que as “congregações” aceitavam pessoas de diversas confissões de maneira igual. Elas apresentam, no geral, uma sofisticada visão de conjunto. De acordo com o conteúdo dos ditos documentos pontifícios, as reuniões secretas quebravam ou conspiravam contra laços de fidelidade que eram caros à estrutura social do Antigo Regime, quais sejam: a autoridade eclesiástica e uma estrutura social própria de uma sociedade monárquica, estamental e altamente hierarquizada. É importante lembrar que um dos fundamentos do ordenamento social e jurídico da sociedade portuguesa se sustentava em cima da categoria “ordem”, que, segundo Antônio Manuel Hespanha, constituiu uma moldura explicativa do modo de ser das estruturas institucionais da Idade Moderna. “Ordem” consistia no entendimento de que a sociedade seria um todo composto por partes desiguais e autônomas, sendo que essa desigualdade se refletia tanto no ordenamento jurídico como nos ideais e paradigmas de formação da sociedade.158 A manutenção desse modelo de estruturação social e política, que visava, em última análise, harmonizar em suas estruturas as várias partes desiguais e hierarquizadas centrada na figura do monarca, assentava-se no ideal distributivo de benesses, privilégios e castigos, segundo a qualidade de cada um, em uma cadeia de negociações de redes pessoais, clientelares e institucionais.159 Assim, era perfeitamente entendível que a prática dos juramentos, feitos à parte dessas redes, pudesse ser entendida como potenciais focos de 157 Provida Romanorum Pontificum, Benedetto XIV. [1751]. Disponível em http://digilander.libero.it/magistero/b14provi.htm . Acessado em fev./2018. 158 HESPANHA, Antônio Manuel. Imbecilitas: As bem-aventuranças da inferioridade nas sociedades de Antigo Regime. São Paulo: Anablume, 2010. p. 47-67. 159 GOUVÊA, Maria de Fátima S. Poder político e administração na formação do complexo atlântico português (1645-1808). In: FRAGOSO, João. et alli. (orgs.) O Antigo Regime nos trópicos. Rio de Janeiro: Civilização, 2001, p. 285-316. 257 sedição, uma vez eles eram dados a instituições (as “lojas”, ordens etc.) não ajustadas a esse paradigma de governação, e entre indivíduos membros delas, em desconformidade com os ajustes internos desse ideal de sociedade. Juntamente com o destaque de que tais sociedades aceitavam homens de diversas religiões, vinha também um apontamento condenatório por eles terem diversas origens, algo que poderia ser visto como subversivo, dentro de dessa mesma ordem estamental. Além de tudo, o juramento e o segredo possuíam um peso simbólico importante, que será aqui analisado ao longo da discussão sobre alguns dos processos. Deve-se salientar que, em meio ao contexto de publicação de ambas bulas, formava-se em toda a Europa, sobretudo na Inglaterra e na França, uma relativamente vasta literatura antimaçônica que, em grande medida, se pautava em pontos que remetem a uma suposta conspiração vinda da maçonaria contra as autoridades estabelecidas e contra a religião.160 As lojas maçônicas constituíam, no século XVIII, parte de uma esfera pública burguesa, formada pelo uso, no espaço público, da razão por pessoas privadas. Isso marcou uma mudança nas práticas de discussão no contexto das Luzes, tornando a crítica racional, para além das distinções sociais, uma espécie de crivo definitivo para quaisquer argumentações, algo possível, de início, somente em instâncias preservadas da vigilância absolutista.161 Alguns historiadores veem nessa situação um dos elementos chave de corrosão de estruturas do Antigo Regime.162 Segredo, igualdade e tolerância, além dos próprios rituais e detalhes dos ajuntamentos – na documentação, termo constantemente usado pelos escrivães do Santo Ofício para se referir às reuniões maçônicas, assim como “conventículos”, “congregações” e “assembleias” –, são elementos frequentes nos interrogatórios e apresentações dos maçons à Inquisição, sendo um exemplo o núcleo supracitado do protestante suíço e maçom John Coustos, processo que será analisado mais à frente. Antes, começo a análise com a apresentação do português, filho de francês com uma portuguesa, Feliciano de Oliveira, datada de 1743. O alfaiate tinha 26 anos quando se apresentou em mesa, em abril do mencionado ano, diante do inquisidor Manoel Varejão e Távora. 160 MAGALHÃES, Pablo Antonio Iglesias. O caçador de pedreiros-livres: José Anastácio Lopes Cardoso e sua ação contra a maçonaria luso-brasílica (1799-1804). Revista de História, v. 0, n. 176, p. 1, 4 ago. 2017. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/111602>. Acesso em: 6 fev. 2018. p. 8 161 HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Op. Cit. p. 42-50. 162 C.f. CHARTIER, Roger. As origens culturais da Revolução Francesa. Op. Cit.; OZOUF, Mona. Le concept d’opinion publique au XVIIIe siècle. Op. Cit. 258 Em suas falas, declarou que, pouco mais de dois anos antes daquela data, “em um porto de França chamado Ave de Graça”, se encontrou com um estrangeiro “chamado Monssier Custô, suíço de nação”, que disse a ele ser lapidário e morar na Corte de Lisboa. Com ele “travando amizade”– o referido era o próprio John Coustos –, foi persuadido, ao lado de “outros mais que se achavam na dita estalagem, para que quisessem ser da Congregação dos Francomaçons, ou Pedreiros livres”.163 Oliveira foi recebido com todos os rituais, aprendendo gestos e hierarquias da referida ordem, o que ele descreve de forma bem pormenorizada, o que não será feito aqui para se evitar uma digressão muito longa.164 Um ponto, porém, da descrição de seus ritos iniciáticos interessa bastante aqui. Oliveira declarou que, após prestar o juramento em que prometia, sob pena de severos castigos, manter o segredo da “congregação”, com a mão sobre a Bíblia, foi iniciado nos sinais com os quais se identificaria com seus companheiros. Então, “lhe disseram que havia de observar aquela religião que seguisse e que não havia de falar mal do Rei, do próximo e nem da República”. Além disso, ao final da iniciação, descreve a celebração da relativa igualdade exaltada entre os membros desses encontros, ao dizer que: [...] ficando o dito Custó [Coustos] na parte principal dela [da mesa em torno da qual estavam reunidos], como mestre e cabeça que era daquela Congregação e ajuntamento; e, postos assim todos por sua ordem [de graus dentro da loja maçônica], principiaram a comer e fazer várias saúdes, em que observavam todos a igualdade de pegar nos copos ao mesmo tempo, levantá-los ao ar, chegá-los à boca e, ao depois de beber, faziam a ação de chegar três vezes com os mesmos copos à cara e os assentavam todos ao mesmo tempo na Mesa, dando então todos três pancadas e dizendo: viva, viva.165 Seguir a própria religião, independentemente das que seguissem os demais membros da congregação, além de um relativo igualitarismo, exaltado em simbolismos presentes no banquete ao final da celebração, tudo isso parecia chamar bastante a atenção dos inquisidores. Nos demais processos do núcleo de Coutos isso fica ainda mais evidente. Por exemplo, no processo contra Jean-Thomas Bruslé, lapidário francês, preso pelo Santo Ofício de Lisboa em 1743, também por delitos de maçonaria. Nascido em Paris e morador na Corte, tinha 45 anos quando foi preso pela Inquisição local, depois de uma denúncia dada em 1742. Na sua ordem de prisão, datada de 16 de março de 1743, notifica-se que se proveu um sumário contra os pedreiros livres e nele que está 163 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Processo de Feliciano de Oliveira, proc. 5344. Fls. 3-3v. Ibidem, Fls. 4, 4v, 5, 5v e 6. 165 Ibidem, Fl. 6v. 164 259 um assento do Conselho Geral de 5 de março de 1743, no qual consta que os denunciados no processo de Feliciano de Oliveira foram mandados vir presos. Eram eles; Alexandre Jacques Mouton e John Coustos, além do próprio Bruslé. O termo foi assinado por André Corsino de Figueiredo, notário do Santo Ofício.166 A denúncia, datada de 6 de outubro de 1742, foi dada em mesa na Inquisição de Lisboa, diante do inquisidor Francisco Mendo Trigoso, pelo procurador de negócios Henrique Machado de Moura, natural da Ilha da Madeira e morador de Lisboa. O denunciante disse que, havia pouco mais de um mês, lhe chegara a notícia de que em Lisboa havia vários “professores e sequazes da nova seita intitulada Franco [sic] maçons ou Pedreiros Livres, há poucos anos condenada pela Sé Apostólica”. Segundo ele, era “cabeça da seita” um “inglês” chamado “Monssieur Custó” [sic], mestre lapidário e morador na rua dos Mercadores, da parte de Terreiro do Paço, e que este “é herege e sabido deste, e sequazes da dita seita”. Nela, frequentavam também outras pessoas: um outro estrangeiro nomeado por “João Pierre”, ourives, morador na rua das Flores, no Bairro Alto, na casa de madame de Vandrevel; Miguel Vandrevel, lapidário, cunhado da dita madame; Alexandre Jacques Mouton, também lapidário e irmão da madame; Lamberto Boulanger, “monssieur Bilha [sic, no caso, Monsieur Billar]”, guarda livros de um inglês, que mora nas casas da marquesa de Távora; e João de Villanova, ourives, “todos franceses e católicos”.167 Consta ainda que Henrique Machado Moura declarou que os denunciados fazem seus ajuntamentos umas vezes durante o dia, outras durante a noite, e em diferentes lugares. E que nesses ajuntamentos fazem “suas profissões solenes os que de novo entram e se alistam nesta seita”. No dia seguinte à denúncia, 7 do então corrente mês de outubro, iria haver um “ajuntamento destes” na “referida quinta” de Lamberto Blanger, “e que para tal profissão havia comprado algumas velas e que havia acontecido uma cerimônia semelhante no domingo anterior, ao receberem um capitão de navio”, cujos nomes e nacionalidade eram desconhecidos do denunciante. Tudo o que sabe foi contado, segundo a denúncia, pela Madame Larriet e seu marido “Monsieur Larriet. Denunciou, ainda, que soube por outra madame, de nome Clavé, que o dito Blanger também teria comprado cera de velas para a próxima cerimônia.168 166 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Processo de João Tomás Brulé, proc. 10683. Fls. 5, 6 e 7. Ibidem, Fls. 9 e 9v. 168 Ibidem, Fls. 10 e 10v. 167 260 Conforme o denunciante, ele ouvira dizer de “Pedro Serjan, grego de nação”, que frequentavaa casa de Phillippe Balestre, mercador da Rainha, e também deste último, que em Lisboa havia “a dita seita” e que “eram professores dela todos os referidos, e percebeu dele ser o sabedor de outros particulares nesta matéria”. Denunciou, ainda, o segundo secretário do Núncio, chamado d. Matheus, capelão, que aconselhara a não delatar e divulgar a dita “seita”, para que não se resultasse disso algum dano. Dos denunciados, Moura declarou ter inimizade somente com Lamberto Blanger e Alexandre Mouton, que o teriam mandado esfaquear “por ser procurado contra ele (Blanger)”.169 Seguiu-se a inquirição de diversas testemunhas, seis ao todo. Elas, em grande parte, repetem, com menos detalhamento, pontos da denúncia original. Além disso, o próprio acusado compareceu diante dos inquisidores para uma confissão de suas culpas. No dia 20 de março de 1743, Jean-Thomas Bruslé, preso desde 18 do mesmo mês, compareceu diante do inquisidor Simão José Silveira Lobo, confessando-se. Apresentou-se como francês, católico, contratador de diamantes, casado com Francisca Marcela Milfotf, além de morador em Lisboa e de 44 anos de idade. Disse, na confissão, que haveria sete para oito anos antes de sua prisão que saíra de sua pátria e passara por portos da Itália, Holanda e Inglaterra, com interesses de melhor empregar os negócios dos quais vivia (no caso, o de lapidário de diamantes). Chegou em Portugal fazia então algo em torno de três anos ali vivendo de polir pedras preciosas, arte que em disse ter “uma grande prática”. Para Portugal levara a sua família. Ao longo das viagens, foi conquistando a amizade de muitos estrangeiros de cada país em que passava, entre as quais destacou a do francês e também católico monsieur Billart, citado no processo, além de um inglês não mencionado no mesmo. O primeiro o convencera a entrar em uma “companhia que se achava estabelecida na cidade, chamada de Franc Massons, na língua francesa e, na portuguesa, pedreiros livres”. Disse que a “tal companhia se compunha de muito boa gente, e que entrando ele confitente nela seria ajudado e socorrido de todos nas suas necessidades”. Além disso, “passaria uma vida alegre, porque muitas vezes se havia achar em convites e banquetes em casas que para isso tinham destinadas”. Para tanto, deveria somente contribuir com uma moderada despesa, que teria na ocasião do jantar em celebração à sua entrada. Após pensar na oferta de Billart, disse que aceitou fazer parte da francomaçonaria. Foi 169 Ibidem, Fl. 11 261 admitido e, então, teve contato com “João Custó, grão-mestre”, que ele apresenta aqui como “francês de nação, e um inglês, [d]o qual não se lembra o nome”.170 Bruslé descreveu a cerimônia de admissão com detalhes parecidos com os apontados por Feliciano de Oliveira. Fez o juramento de pertencimento à ordem com a mão na Bíblia, jurando obedecer a todos os seus princípios. Disse que lhe fora perguntado se fora até ali por sua boa vontade, ao que respondera que sim. Depois, o grão-mestre lhe explicou os princípios da ordem. Foi então que lhe afirmou que “a primeira cousa”, entre as obrigações da ordem “que lhe recomendou, foi que não havia de fazer, nem falar mal de nenhuma sorte contra a religião”, não importando qual fosse, e que não se pronunciasse dessa maneira “especialmente contra aquela que professava, nem também havia de mover disputas nem contendas sobre esta matéria, nem sobre ela introduzir nem admitir práticas”. Também não havia de falar mal contra o seu rei, nem contra o Estado, nem contra os bons costumes. Além disso, deveria jurar não revelar direta ou indiretamente nada a respeito dos “pedreiros livres” por nenhum meio, e dentro de suas lojas e cerimônias, precisaria guardar decoro, sem proferir “palavra obscena ou cantar ou dizer cousa desonesta”.171 No exame de fé, ao qual Bruslé foi submetido após sua confissão e inquirição de testemunhas e antes da conclusão do processo, é notável o desconcerto dos inquisidores diante do juramento, do segredo e da tolerância religiosa que perceberam na “seita” maçônica. Há, ainda, uma atenção sobre os rituais descritos no processo. Isso fica claro, por exemplo, quando o acusado foi inquirido insistentemente sobre a que se devia o segredo a ser guardado dentro da ordem. A isso, ele respondeu ser referente aos sinais, gestos e palavras com os quais os membros se identificam. Os inquisidores também, durante o exame, insistiram na questão do juramento, ressaltando a importância de um juramento sobre a Bíblia, e também que se jurar em nome de “matérias horrorosas e ridículas”, classificando-as como atos “impertinentes, sediciosos e pecaminosos”. Foi perguntado também sobre “a frivolidade de se jurar não falar mal da religião, contra o príncipe e contra o Estado”, pois isso seria “desnecessário”, já que “sem preceder [sic. No caso, é “proceder”] juramento algum” se devia agir assim. Mas, sendo em seguida perguntado se nas congregações, em Portugal e noutros reinos, “se observam proposições contrárias à fé católica ou ao uso comum da Igreja”, respondeu que não e reafirmou um dos preceitos da ordem, que “é o não dizer uma só palavra direta nem 170 171 Ibidem, Fls. 31 e 31v e 32. Ibidem, Fl. 38. 262 indiretamente em matéria de religião”. Foi ainda perguntado se reconhecia que todos os rituais presentes na sua recepção foram atos supersticiosos, ao que respondeu que “em todas as sobreditas ações entende que não houve sombra alguma de superstição”. Acrescentou “que tudo o que se obrava nas ditas recepções não era outra cousa mais do que um juvenil divertimento”, com o qual os presentes “querem passar o tempo [...] comendo e bebendo à custa dos que são novamente admitidos”.172 Virgínia Maria Trindade Valadares, em trabalho recente sobre a perseguição inquisitorial aos francomaçons em Portugal, faz uma interessante relação entre as leituras sobre o juramento e sobre o segredo pela Inquisição e pela maçonaria, no século XVIII: Ao analisar os processos, nota-se o significado do juramento e do segredo transmutado sob forma de poder tanto pela Igreja quanto pela Maçonaria. O juramento do segredo era usado no exercício do poder, na medida em que ambos, tanto o Santo Ofício quanto a Maçonaria, pediam segredo dos seus atos ou aos inquiridos ou aos membros da sociedade (...). Assim, jurar compromisso de segredo em público, tanto para o inquirido do Santo Ofício, quanto para o sócio da confraria maçônica, representava não um ato de liberdade, mas uma obrigação devida, como se não houvesse confiança na verdade proferida – o juramento significaria a certeza da inviolabilidade do segredo institucional.173 Nesse ponto, a autora dá relevo a uma dimensão fundamental do conflito estabelecido entre maçonaria e a Inquisição, uma vez que, aqui, o juramento era, também – mas não apenas –, uma forma de exercício de poder. Ainda segundo Virgínia Valadares, nessa relação estabelece-se um paradoxo, pois ao mesmo tempo em que o tribunal da fé pedia segredo aos réus sobre tudo o que se passasse durante o processo, tentava-se obter deles todo o segredo guardado pela maçonaria.174 A este respeito, faço uma leitura distinta. Não observo haver um paradoxo na defesa do segredo de um e no questionamento da legitimidade, juntamente com a insistência da quebra, do segredo de outro: nessa operação, o que se evidencia, tanto a partir da leitura das bulas que proíbem a maçonaria como no exame dos processos, é uma disputa por imposição de poder, claramente pendente para o lado das autoridades régias e eclesiásticas. Disso se depreende uma ideia de que o segredo das congregações maçônicas era, potencialmente, se não essencialmente, sedicioso e perigoso ao trono e ao altar, ao passo que, por 172 Ibidem, Fls. 59-64v. VALADARES, Virginia Maria Trindade. A maçonaria moderna nas malhas do Santo Ofício no Império Português no setecentos. Op. Cit. p. 356. 174 Ibidem, p. 357. 173 263 exemplo, o segredo judicial do Santo Ofício, era legítimo, posto que ajudava a conservação da ordem. Existe ainda uma diferença na natureza do segredo, dentro das perspectivas da Inquisição e da maçonaria: enquanto a primeira respaldava seu segredo no dogma católico, reafirmado nos regimentos e manuais do Santo Ofício (conforme analisado no Capítulo 3), a segunda tinha no seu segredo um mecanismo de se preservar das autoridades, tendo liberdade para seus debates e práticas. Há estudos que demonstram o poder simbólico do segredo na manutenção do poderio das inquisições ibéricas. É bem conhecido o trabalho de Bartolomé Bennassar a respeito da Inquisição espanhola, no ponto em que trata do que chamou de “pedagogia do medo”, mecanismo que, na sua análise, foi o maior responsável pelos tribunais de fé durarem, com relativo poderio e estabilidade, por três séculos, aproximadamente. O segredo processual foi um de seus instrumentos centrais, pois, ao se impossibilitar o acusado de saber quem era seu acusador, envolvia-o de tal maneira que o levaria a confessar culpas, nem sempre verdadeiras, o que tornou o procedimento inquisitorial uma verdadeira “fábrica de culpados”. O autor pôde constatá-lo na documentação da maioria dos tribunais espanhóis, em que os acusados, somente na minoria dos casos, eram absolvidos ou tinham seus processos suspensos, mesmo que quase sempre resultassem em penas leves, como abjurações e penitências.175 O segredo que envolvia o processo inquisitorial e a forma com a qual ele absorvia os acusados inspiraram o historiador português Antônio José Saraiva a compará-lo ao universo ficcional e distópico narrado por Franz Kafka, no romance O processo (1925).176 O declínio desse procedimento, acentuado a partir da segunda metade do século XVIII e completamente abolido da legislação inquisitorial portuguesa no Regimento de 1774, esteve diretamente relacionado com o próprio declínio do temor generalizado a respeito dos tribunais, parte de um mais amplo processo de dessacralização que perpassou muitas das proposições heterodoxas dos chamados libertinos luso-brasileiros, no referido contexto.177 O segredo possuía um peso simbólico significativo para os tribunais do Santo Ofício. Sua quebra era duramente punida e havia grande preocupação a respeito de sua 175 BENNASSAR, Bartolomé. L’Inquisition espagnole: XVe,-XIXe siècle. Collection Marabout Université. Paris: Hachete, 1979. p. 127-128. 176 SARAIVA, Antônio José. Inquisição e cristãos novos. Lisboa: Editorial Estampa, 1994. 6ª edição. p. 98. 177 ROCHA, Igor Tadeu Camilo. Não se fazem mais excomunhões que prestem nos dias de hoje: libertinos, Reformismo Ilustrado e a defesa da tolerância religiosa no mundo luso-brasileiro (17501803). Almanack. 2016, n.14, p.196-240. 264 preservação nos processos.178 Ele se justificou pelo entendimento, no pensamento jurídico moderno, de que era necessário, sempre, algum nível de segredo em se tratando de justiça, presente na tradição jurídica e que as Inquisições apenas aprimoraram179. Foi justificado também nos manuais inquisitoriais, que o associavam ao objetivo de preservação dos inquisidores, do processo e da própria integridade da instituição.180 A afirmação dele também era a afirmação do poderio dos tribunais e da própria ortodoxia perante alvos considerados heterodoxos, como a maçonaria. O segredo processual, entretanto, foi duramente criticado ao longo da história das Inquisições ibéricas, num processo que envolveu desde argumentos em defesa dos perdões gerais até publicações contra o Santo Ofício. Exemplos de manifestações sobre o assunto são as de autoria do padre Antônio Vieira e de outros letrados. Em relação à tolerância religiosa, é interessante ressaltar que a proibição, mencionada por Bruslé, de falar-se mal de qualquer religião que seja, sobretudo a sua, ia ao encontro de um ideal de tolerância católica que se consolidava, embora não de maneira completamente hegemônica, entre o final da primeira metade do século XVIII e princípio da segunda. Segundo esse ideal, a tolerância concebida conforme as ideias ditas como “modernas” e pela qual se aceitariam certos níveis de verdade em todos os credos, deveria ser combatida, em privilégio de uma tolerância conjugada com a verdade católica. A liberdade de consciência e de religião, dentro do entendimento católico sobre a tolerância religiosa, seria equiparável ao indiferentismo, ao colocar a verdade no mesmo nível do erro, entendendo-se que era, também, uma forma do agir tolerante o ato de instruir o herege no conhecimento da verdadeira fé, possibilitando-lhe felicidade em vida e no além vida, beneficiando também aos povos e estados.181 Esses pontos são ainda mais visíveis no processo contra John Coustos, mencionado, nos processos anteriormente examinados, como “grão-mestre” da loja de 178 Sobre a gravidade da quebra do segredo, ver: PIERONI, Geraldo. Profanadores do segredo: a Inquisição e os degredados para o Brasil-Colônia. Revista Varia História. Departamento de História UFMG. Nº 22. Belo Horizonte, (42-55), 2000. 179 VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: ed. Campus, 1989. p. 191; BENNASSAR, Bartolomé. L’Inquisition espagnole. Op. Cit. p. 123-123. 180 No Directorium Inquisitorum, a justificativa para se manter o segredo processual era, sobretudo, os riscos a que o inquisidor, o processo e os delatores estariam sujeitos diante da possibilidade de retaliação das famílias e pessoas próximas dos delatados, sobretudo as que fossem “ricas e generosas”. Por esse motivo, afirma que os Concílios de Béziers e Narbona “(...) retomaram essa prática do sigilo, acrescentando a proibição formal de se revelarem as circunstâncias, tanto de depoimento quanto do delito: através das circunstâncias do depoimento o acusado poderia descobrir, por dedução, a identidade de seu acusador”. DIRECTTORIUM INQUISITORUM. Manual dos inquisidores. Op. Cit. p.223. 181 MARTINA, Giacommo. La Iglesia, de Lutero a nuestros días. Op. Cit. p. 175; DOMÍNGUEZ, Juan Pablo. Reformismo cristiano y tolerancia en España a finales del siglo XVIII. Op. Cit. 265 Lisboa. Chamam a atenção ainda – isso será analisado mais à frente – alguns desdobramentos envolvendo esse famoso maçom, que vão muito além de seu processo, como a publicação de seu livro de memórias sobre sua experiência com o Santo Ofício de Portugal. Seu processo valeu-se da mesma denúncia feita em 6 de outubro de 1742, ao inquisidor Francisco Mendo Trigoso, pelo procurador de negócios e causas Henrique Machado de Moura. O teor e os detalhes são os mesmos da denúncia contra JeanThomas Bruslé. A diferença é que, em fevereiro de 1743, o mesmo denunciante compareceu novamente, mas dessa vez diante do inquisidor Manoel Varejão e Távora, “confrontando a denúncia retro”. Na ocasião, foi perguntado se sabia mais algo em relação aos “ajuntamentos” dos pedreiros livres desde sua primeira denúncia até então. Respondeu, então, que apenas pôde averiguar “que quando fazem as suas entradas, é com tal cautela e segredo que fecham as portas e janelas, e levam velas acesas para se alumiarem na mesma função, e fazem seu banquete à custa do que entra de novo”. Nada mais afirmou saber além disso. Mencionou a participação do cozinheiro do núncio num dos banquetes e falou sobre mulheres irlandesas, dando nome somente a uma, Ana Anastácia, que frequentavam as casas onde as reuniões ocorriam. Disse, por fim, que todos os “sócios” delatados eram católicos, exceto “Custon” (como aparece no documento, mas nesta tese, será usado seu nome, Coustos). Ele o descreve como chefe da “congregação” e que teria ouvido do monsieur Billar que “o dito Coustos lhe consta diz que não necessita de trabalhar, porque bastam para o sustentar os sócios da mesma congregação”.182 Seguiram-se a isso alguns depoimentos. Um importante é do francês, então com 49 anos de idade, Cornélio Larriet, que também se declarou católico e depôs ao inquisidor da primeira denúncia, Francisco Mendo Trigoso. Após negar duas vezes conhecer alguma matéria pertinente a ser denunciada à Inquisição, disse que Coustos era francomaçom, declarando ainda que falou sobre isso com o denunciado, e ele comentou sobre a “congregação” com sua mulher, Madame Larriet, também mencionada nesse processo e no de Jean-Thomas Bruslé. Cornelio Larriet apontou os mesmos integrantes da “seita” que foram denunciados quando depôs nesse processo e no anteriormente analisado, do mesmo núcleo, dizendo que também fora convidado para fazer parte dela, além de ter afirmado saber que Coustos era seu grão-mestre. Perguntado, ainda, sobre “em que consiste esta nova religião, ou congregação, a que se 182 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Processo de João Custon, proc. 10115. Fls. 7, 7v e 8. 266 obrigam os professores dela”, respondeu que “a utilidade que desta companhia tiram os congregados [...] é o ajudarem uns aos outros em qualquer parte, ou Reino, aonde se acharem, conhecendo-se por tais por sinais que para isso tem”. E acrescentou que Coustos “lhe disse que esta congregação nem era prejudicial à Religião, nem ao próximo, nem à república, nem a testas coroadas”.183 Depois de mais testemunhas ouvidas, foi ordenada a prisão de Coustos, em março de 1743. No sumário de testemunhas, é destacada a proibição da “seita dos pedreiros livres” por bula do papa Clemente XII. Além disso, menciona-se “também constar das mesmas testemunhas”, ouvidas no processo que os delatos, entre os quais Coustos, não só se publicam, professam e observam “a dita seita, mas igualmente a inculcam e persuadem a outros muitos católicos, causando assim escândalo, e ruína aos fiéis cristãos, que como filhos da Igreja devem cegamente observar os seus preceitos, e proibições”. Acrescenta que “o dito Coustos é herege, como dizem as testemunhas”, visto que também sofreu uma acusação de protestantismo – o que explica sua pena mais dura que a dos demais condenados em seu núcleo. Como tal, além de estrangeiro, segundo o Regimento, não poderia ser castigado e molestado nas matérias que pertencem à Religião católica. Porém, “fica sendo certo, e indubitável que assim ele e os mais delatos ficam sujeitos à jurisdição deste tribunal”, no caso, “os católicos, por seguirem uma congregação que se acha condenada pela Sé Apostólica; e os hereges no escândalo que dão em se publicarem professores da dita seita, e prejuízo, que com ela causam aos católicos que adquirem por sequazes da mesma”. Em 5 de março de 1743, o Conselho Geral julgou que o sumário de testemunhas oferecia provas para se mandarem prender John Coustos “e monsieur Motton”.184 Mas o que chama mais a atenção, considerando os pontos destacados até o momento nos processos contra maçons, é a confissão de Coustos, dada em 21 de março de 1743, estando já preso. Nela, o lapidário disse que, havia pouco mais de dois anos, indo ele para Lisboa “e querendo introduzir nela uma congregação de francomaçons, que na nossa linguagem quer dizer pedreiros livres”, começou a convidar várias pessoas para ela. Acrescentou que aceitou e providenciou suas entradas, “na mesma forma que se observa na França e Inglaterra e outros mais Reinos, donde ele confitente vinha, sendo sido aceito na corte de Londres, cuja entrada e formalidade” ele descreveu na 183 184 Ibidem, Fls. 11-14. Ibidem, Fls. 35v-38v. 267 confissão com muitos detalhes.185 Não vou entrar nos detalhes da cerimônia, atendo-me apenas aos elementos que interessam diretamente a alguns aspectos centrais pertinentes ao argumento da tese, apontados anteriormente. A questão do juramento aparece juntamente com a descrição do processo de aceitação de novos membros. Depois que o dito é aceito, e ele se dirigindo à “loge”,186 onde encontrará seus irmãos de congregação, descreve Coustos, o mestre então lhe pergunta se foi até ali por sua livre vontade. Respondendo de forma afirmativa, tiramlhe uma venda dos olhos, que era colocada ao início da cerimônia. Depois disso, o servidor, sob comando do mestre, acompanha o novo membro e é pedido que lhe ensine a postura “em que se deve pôr como maçom”. Coustos descreve minuciosamente a cerimônia de iniciação, chegando à parte do juramento, em que “mandam por a mão direita sobre uma Bíblia, estando esta aberta no lugar em que se acha o Evangelho de São João, e ao mesmo tempo, lhe mandam pegar com a esquerda em um compasso”. Depois disso, “descoberto [...] o peito esquerdo, lhe mandam por sobre ele a ponta do compasso, e ao mesmo tempo lhe diz o mestre, em nome de toda aquela congregação e do grão-mestre de Inglaterra, França e outros reinos, que pelo juramento que toma” deve saber as suas obrigações.187 São elas as de “guardar inviolável segredo em tudo o que passar na dita congregação, e a não fazer coisa alguma que ofenda algum dos confrades, nem ao rei, nem a república, ou à sua religião”, porque se fizer o contrário “a sua língua será arrancada e na mesma forma seu coração, para ser enterrado junto do mar, e o seu corpo queimado para se lançarem as cinzas ao vento de sorte que não haja mais [...] memória dele, nem lembrança dele”. Disse, na confissão, “que se observa este juramento tão fortemente que, nos reinos estrangeiros, mais fácil é deixarem-se matar, que haverem de descumprir os segredos a que se obrigam”.188 Feito isso, prossegue, o mestre toma pela mão o novo confrade, chama por mais dois servidores da mesma 185 Ibidem, Fls. 39, 39v e 40. Um aportuguesamento de lodge, que em inglês, no seu uso como substantivo, seria traduzido mais propriamente como “abrigo”, “pousada”, “cabana” (no sentido de um lugar para se hospedar) e “loja” seria um sentido menos frequente. Nas memórias de John Coustos, aparece um pequeno estranhamento dessa questão linguística. As lodges de Lisboa, ou os alojamentos, que nos processos traduziam como "lojas", não eram feitas em tavernas, como na Inglaterra, mas em casas privadas dos amigos escolhidos para fazer parte da congregação, conforme a descrição. C.f. COUSTOS, John [1703-1746]. The Sufferings of John Coustos, for Free-masonry, and for His Refusing to Turn Roman Catholic, in the Inquisition at Lisbon: Where He was Sentenc'd, During Four Years to the Galley; and Afterwards Releas'd from Thence by the Gracious Interposition of His Present Majesty, King George II. To which is Annex'd The Origin of the Inquisition, with Its Establishment in Various Countries .... London: printed by printed by William Strahan, for the author, 1746. p. 9. 187 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Processo de João Custon. Op. Cit. Fl. 40 v. 188 Ibidem, Fls. 40, 40v. 186 268 “loge” para que façam seu ofício e lhe coloquem suas insígnias “que lhe competem por razão daquela nova ordem à que se alista, dizendo juntamente ao que entra de novo que aquela religião que professa é muito mais nobre que a ordem do tostão de ouro, de Santo Spiritus, de Cristo e de todas as mais do mundo por ser esta mais nobre e mais antiga que todas aquelas”.189 Há ainda a descrição de saudações que celebram a igualdade entre os membros, similar ao que foi descrito no processo de Jean-Thomas Bruslé 190 , bem como a menção às constituições das ordens maçônicas, ao ser perguntado pelos inquisidores se tais regras e etiquetas estão escritas em algum livro.191 Continuando a confissão, feita em 26 de junho de 1743 diante do inquisidor Manoel Varejão e Távora, Coustos explica mais detalhadamente a simbologia do segredo e o juramento. Sobre o segundo, explica que razão pela qual os iniciados na francomaçonaria fazem juramento sobre uma Bíblia, no livro de Evangelhos de São João, é porque: (...) destruindo-se e arruinando-se o famoso Templo de Salomão, se achou debaixo da primeira pedra uma lâmina de bronze em que se achava esculpida a palavra seguinte – Jeová – que quer dizer Deus, dando assim a entender que aquela fábrica e Templo foi construído e edificado em nome do mesmo Deus, a quem se dedicava, sendo o mesmo senhor o princípio e o fim de tão magnífica obra; e como no Evangelho de São João se acham as mesmas palavras e doutrina, por essa razão se manda tomar o juramento sobre aquele lugar, para assim o mostrar que todo o instituto desta congregação se vai fundando na mesma doutrina que Salomão observava da sua suntuosa obra, e que a razão que tem para assim dizer o referido é pelo ter ouvido a alguns mestres de França e Inglaterra, porém não sabe aonde eles acharam a referida doutrina para assim a haverem de explicar.192 E sobre o segredo, disse que ele se justifica para que não saibam dos sinais e demais mecanismos de identificação dos confrades e da formação das lodges. Uma das funções disso seria manter pessoas estranhas às assembleias distantes delas, sobretudo das caixas onde guardam pagamentos de novos membros ou algum outro que pague algum valor por alguma regra, com o que eles ajudam os confrades mais pobres. Ressalta, nesse ponto, a função de socorro mútuo da ordem.193 O fato é que as explicações não livraram Coustos de uma dura condenação, ao fim do processo. Juntamente com o analisado Jean-Thomas Bruslé, além de outros mencionados nos processos, Jean-Baptiste Richard e Alexandre Mouton, Coustos saiu no auto-de-fé de 189 Ibidem, Fl. 40 v. Ibidem, Fls. 42-42v 191 Ibidem, Fl. 46v. 192 Ibidem, Fls. 49-49v. 193 Ibidem, Fls. 50 e 51. 190 269 junho de 1744. Na sentença, publicada em 21 de junho do mesmo ano, foi condenado ao degredo pelo período de quatro anos para as galés, além do pagamento de custas, tomado por maçom e protestante. Em 22 de setembro também do mesmo ano, Coustos entregou uma petição pedindo que a pena nas galés lhe fosse perdoada, argumentando que tinha uma lesão num braço e uma inflamação na mão, sendo que a 6 de outubro foi levado a um cirurgião, que servia os cárceres da Inquisição, o qual comprovou não ser totalmente verdade o que o réu alegava e que ele estava com capacidade para poder satisfazer à pena. Entendendo ser ele o cabeça da “seita” e sua dura pena como exemplo aos mais hereges para viverem com menos soltura e mais moderação, o requerimento foi indeferido.194 Além de ter sido apontado como “cabeça da seita” dos pedreiros-livres e ser protestante, também pesaram a favor da condenação de Coustos alguns aspectos já levantados acima, como a associação do segredo de uma assembleia de pessoas à parte do que era vigiado pela Inquisição e autoridades civis com algum tipo de sedição, além de, claro, os presumidos riscos à ortodoxia na aceitação indiferenciada de membros que professassem qualquer credo, impedindo-lhes de se empenhar em polêmicas e disputas em matéria de religião. John Coustos, porém, não cumpriu totalmente sua pena, tendo escapado das galés e, posteriormente, publicado um livro de memórias que acabou funcionando como uma publicação panfletária em favor da tolerância religiosa e também como um veemente instrumento de ataque à Inquisição portuguesa. Trata-se da obra The Sufferings of John Coustos (1746), publicada a partir do relato do próprio sobre sua passagem pela Inquisição de Lisboa e pelas galés. Na edição de 1746, há um prefácio do editor escocês William Strahan, o qual entraria para a carreira política alguns anos depois. A começar pelo seu título, A Prefatory discourse, on occasion of the present rebellion, by the editor, o texto assume forma de um discurso político que se dirigia à situação política britânica daquele ano.195 No geral, faz uma verdadeira apologia à tolerância religiosa, com todas as diversas acepções e ambiguidades que este termo possuía no século das Luzes, indo sua 194 MARCOCCI, Giuseppe e PAIVA, José Pedro. História da Inquisição portuguesa. Op. Cit. p. 299-300. O editor se refere a situações conturbadas no cenário político britânico – como o Levante Jacobita, que ocorreu até 1746, por exemplo – ao final da primeira metade do século XVIII, em que se observa, também, o que Luiz Caros Soares chamou de uma segunda fase do Iluminismo inglês, marcado tanto por uma crise do latitudinarismo, como, também, pela interiorização das academias de ciência e da “opinião pública”. Juntamente com as conturbações políticas, aparecia uma “era da conversa”, em que pubs, cafés, teatros, jornais, entre outros, ganhavam um destaque importante na cena pública, marcando uma entrada mais significativa nela das camadas médias das populações, sobretudo, das cidades grandes. C.f. SOARES, Luiz Carlos. A Albion revisitada no século XVIII. Op. Cit. p. 200. 195 270 argumentação da completa condenação aos tribunais do Santo Ofício, sua história e procedimentos, até, por exemplo, ao risco desses tribunais e da intolerância do “papismo” dissolverem a tolerância reinante em terras inglesas desde a Revolução do século anterior. Strahan, por exemplo, destaca não ser maçom, mas acrescenta que isso não lhe impede de publicar e trazer à luz a irracionalidade, cometida pelos inquisidores, de se condenar uma pessoa que, segundo ele, até a edição do livro, trazia em si terríveis marcas feitas pelos "infernais espíritos em forma de homem, os inquisidores", somente por ele ser pedreiro-livre. Além disso, ele sustenta que essa sociedade, a francomaçonaria, não era prejudicial à comunidade, mas lhe era benéfica.196 O autor diz ainda que “em sua humilde opinião”, nesses assuntos, condenar a Inquisição e demonstrar toda a solidariedade às suas vítimas era fundamental a todo homem que, naqueles anos, se considerasse "ilustrado". Tratava-se, acima de tudo, de "um dever moral de se dispender qualquer esforço em nome de nossa religião, nossa soberania, nossas vidas, nossas liberdades e nossos destinos" – novamente, aqui, referindo-se ao quadro de tolerância britânico, existente desde o século XVII. 197 Diz ainda que se isso não for feito pelas mentes ilustradas de sua época, há riscos de a intolerância papista se instalar na Inglaterra novamente e extirpar a tolerância britânica, vista como um "baluarte da reforma" no contexto das divisões religiosas da Europa. Por isso, era necessário mobilizar artistas, jornais, pensadores e toda a sorte de pessoas que falassem ao público para a divulgação dos sofrimentos de Coustos e contra a toda a intolerância que o lapidário sofreu.198 Acrescenta, ainda, algumas críticas mais fortes contra o próprio Catolicismo em si. Fala sobre o quanto é antinatural o clero regular e sua vida sem trabalho, critica o voto obrigatório de celibato, fazendo também algumas menções ao que considera como idolatria presente no culto católico. Conclui dizendo que uma religião ruim, o Catolicismo, e um monarca ruim, ou um déspota que zele por essa religião por meio dos inquisidores – possivelmente se referindo a d. João V –, podem levar quaisquer povos, por melhores que sejam, à completa ruína.199 O autor equipara viver sob um país católico a viver sob a tirania, tanto dos reis católicos como de formas de governar que oprimem os indivíduos e os exploram, como as ordens do clero regular e a redução do país à província do papa. Quanto ao caso de a Inglaterra ser 196 COUSTOS, John. The Sufferings of John Coustos. Op. Cit. p. XXVII. Ibidem, p. XXIX. 198 Ibidem, p. XXXI-XXXII. 199 Ibidem, p. XXXVII-XXXIX. 197 271 conquistada pela França, adverte, suas liberdades e sua boa constituição seriam corrompidas e perdidas.200 A narrativa das memórias de John Coustos, por sua vez, começa com sua biografia, mencionando o fato de ter nascido em Berna, atual Suíça, onde fora criado na lei protestante. Depois, mudara-se para a Inglaterra, onde conhecera a francomaçonaria e a profissão de lapidário. Foi por ela, e com a esperança de ir para o Brasil fazer alguma fortuna, que se mudou para Portugal em 1741.201 Enquanto esperava pela resposta sobre ir para o Brasil – que lhe foi negada, inicialmente –, começou a viver em meio a várias pessoas do meio de joias e mercado de créditos, em Lisboa. Tais pessoas lhe fizeram generosas ofertas para o caso dele decidir permanecer definitivamente na Corte, sem perder as esperanças, no entanto, de ir à colônia.202 É a partir daí que Coustos desenvolve algumas reflexões a respeito da Inquisição, em si, no que antecede à narrativa sobre seus sofrimentos. Descreve, por exemplo, como observava a posição dos inquisidores nas sociedades ibéricas: Eu devo observar, a propósito, que os inquisidores usurparam, de maneira tão formidável o poder em Espanha e em Portugal, que os monarcas daqueles reinos não são mais, se posso usar essa expressão, do que seus principais súditos.203 Depois, Coustos faz uma série de descrições que destacam a falta de escrúpulos dos mesmos inquisidores em buscar provas que o incriminassem. Um exemplo é o episódio em que o lapidário suíço diz que, talvez, tivesse escapado das “impiedosas patas” da Inquisição, se “não tivesse sido traído da forma mais bárbara” por um amigo português, atribuindo, em partes, tal traição a estratégias dos inquisidores.204 Conforme os objetivos desta tese, entrarei nos detalhes da narrativa somente naquilo que toque, diretamente, aos tópicos já levantados nas análises dos processos. O primeiro deles é o segredo processual e dos cárceres secretos. Coustos descreveu ambos como um imenso “labirinto de horror”, destacando sua solidão, sua angústia e o terror de estar numa prisão escura por vários dias. A isso se somava, nas suas palavras, o 200 Ibidem, p. XVII. Há uma coincidência, aqui, com a narrativa ficcional de Daniel Defoe, no romance “Robinson Crusoé”, de 1719, marco das Luzes. O protagonista, depois de sair da Ilha na foz do Orenoco e ir para a Inglaterra, aventa a possibilidade de se instalar no Brasil, o que refuta por conta da Inquisição e do papismo aqui reinates. C.f. VILLALTA, Luiz Carlos. Robinson Crusoe e Cartas Persas: romances, viagens e devir histórico (1719-1806). In: BORGES, Célia Maia Borges. (Org.). Narrativas e Imagens. Juiz de Fora: Editora da Universidade Federal de Juiz de Fora, 2006, p. 102-155. 202 COUSTOS, John. The Sufferings of John Coustos. Op. Cit., p. 7. 203 Ibidem, p. 8. 204 Ibidem, p. 16. 201 272 medo da morte pelo fanatismo dos frades, “de sofrer o mesmo que tantos cujo único crime era diferir em opiniões religiosas”. O medo se deu, justificou, por ele ser protestante e estar naquela situação.205 O segredo, o processual e o dos cárceres secretos, descritos com terror com relação à experiência de Coustos ao ser preso, é um tema que será retomado na sua descrição sobre os depoimentos e o exame de fé. John Coustos diz que foi chamado a falar em mesa três vezes, voltando sempre para o cárcere secreto, ao qual se referia com termos como “masmorra”. Ao relatar que, depois de resistir, a princípio, veio a falar sobre a maçonaria aos inquisidores, em especial os seus princípios – no caso, a caridade, a tolerância religiosa e a fidelidade à religião e à autoridade civil –, conta que os inquisidores insistiram, nos interrogatórios, em dois pontos: primeiramente, que seria impossível uma ordem condenada e proibida ter sido fundada em tão bons princípios, como aqueles que mencionava e afirmava sua opinião; e, em segundo lugar, que mesmo que fosse verdade a virtude dos fundamentos da francomaçonaria, não fazia sentido terem criado regras tão específicas para guardar o segredo sobre ela. A isso, Coustos explica, segundo seu relato e de maneira um tanto parecida com o que se narrou em seu processo, que o segredo era necessário, pois, com ele, apenas poucos e bons membros de aproximariam da ordem, movidos seja por curiosidade, seja por identificação com seus princípios. Se o segredo não existisse, continuou, e a ordem fosse totalmente aberta com qualquer um podendo a adentrar, seria difícil administrar o decoro e os bons ensinamentos o tempo todo, assim como os pagamentos necessários para que fosse feita a caridade.206 A respeito da tolerância religiosa, o lapidário conta que também foi perguntado várias vezes pelos inquisidores Suas falas extrapolam, em vários pontos, a narrativa que envolve a maçonaria. Isso porque, segundo Coustos, a tolerância fizera parte de sua criação na lei protestante. No seu exame de consciência, conta que teve de deixar a França ainda jovem devido à sua religião, nas primeiras décadas do século XVIII. Sua experiência de vida e criação familiar, nas suas palavras, ensinaram-lhe “que em certos países nunca se devia conversar sobre religião”. Acrescenta a isso que aprendeu com seus pais que nunca se deve entrar em disputas de religião, uma vez que elas apenas "amarguram as mentes, ao invés de as reconciliar".207 Daí entra na questão das regras da maçonaria, ao dizer “que pertencia a uma sociedade da qual havia uma regra que proibia 205 Ibidem, p. 21 Ibidem, p 33-34 207 Ibidem, p. 26. 206 273 seus membros de entrar em disputas religiosas, sob penas determinadas em seus estatutos”.208 Ainda inquirido sobre a questão da tolerância religiosa, Coustos relata uma disputa com os inquisidores, que insistiram que a sociedade de que declarou fazer parte, era, ela própria, uma religião. A isso respondeu, conforme a narrativa de suas memórias, que a maçonaria poderia ser considerada como uma religião, mas de forma distinta da que estava colocada pelos inquisidores, pois, ao invés de seguirem uma lei específica, viviam todos nela como uma irmandade, na qual as pessoas deveriam viver sob amor fraternal e caridade o quanto mais fosse possível, ainda que pudessem diferir em princípios confessionais.209 Sobre sua fala diante dos inquisidores, Coustos repete, na sua narrativa, ainda mais uma vez, um princípio: amor e caridade entre os membros, independentemente do credo. Isso reforça o tom do relato de que a afirmação de tolerância, indo frontalmente de encontro à tirania da Inquisição, foi o ponto que contribuiu de maneira central para a condenação e os sofrimentos do autor nas galés.210 São destacados ainda outros pontos, tais como o tratamento similar ao de um escravo nas galés,211 a desumanidade do processo (em especial, a malícia de seus acusadores juntamente com as nove sessões de tortura pelas quais passou)212 e a terrível ignorância daqueles povos que o condenavam.213 O clímax das memórias de Coustos sobre sua condenação é marcado por um tom religioso, que funciona como uma espécie de redenção do lapidário diante dos sofrimentos causados pela intolerância inquisitorial: ao final, Coustos agradece a Deus por ter resistido até ali a todos os diversos suplícios, causados pela paixão, fanatismo, ignorância e tirania dos inquisidores. 214 Um apontamento curioso é o fato de que os mesmos inquisidores, segundo Coustos, ainda insinuaram haver algum tipo de licenciosidade na sociabilidade maçônica, por ela não permitir a entrada de mulheres.215 Antes da descrição da sua fuga, ainda cabe menção às ofertas que diz ter recebido do Santo Ofício para apostatar de sua fé, convertendo-se ao Catolicismo para não ser condenado, o que ele recusou. Isso o também reforça a 208 Ibidem, p. 27. Ibidem, Loc. Cit. 210 Ibidem, p. 31. 211 Ibidem, p. 67-68. 212 Ibidem, p. 63-66. 213 Ibidem, p. 39. 214 Ibidem, p. 50. 215 Ibidem, p. 34. 209 274 narrativa de seu martírio e redenção, associada à sua resistência contra a impiedade do Santo Ofício português.216 Se, como a historiografia demonstra, o impacto destas primeiras fases da maçonaria na sociedade portuguesa foi pequeno e ela talvez tenha inexistido nos domínios coloniais, é impossível desconsiderar-se a importância que obras como The Sufferings of John Coustos assumiram, em meados do século XVIII, nos debates sobre a tolerância religiosa. Nos circuitos letrados da Europa, narrativas de ex-prisioneiros tiveram uma importância significativa para um combate, cada vez mais aberto, contra os tribunais do Santo Oficio. À altura da sua publicação, em 1746, ele se somava a um filão crítico que ganhava grande força fora de Portugal.217 Já foi anteriormente analisado, nesta tese, o libelo Origem da denominação e christão-velho e christão novo em Portugal, que também significou uma crítica veemente à Inquisição portuguesa, acompanhando uma tendência que vinha desde o final do século XVII, com as publicações do Notícias Recôndidas, atribuído ao padre Vieira, o Historia Inquisitionis (1683), do teólogo neerlandês Von Limborch e da obra de Charles Dellon a respeito de sua passagem na Inquisição de Goa (1697). Sobre essa conjuntura de publicações antiInquisição, Francisco Bethencourt afirma haver uma articulação entre essas produções e algumas mudanças de valores, experimentadas no continente europeu em matéria religiosa, o que afetou todo um campo de representações correntes sobre os tribunais de fé, sobretudo na Europa protestante: A formulação dos novos valores fez-se, assim, por oposição à imagem da Inquisição: em primeiro lugar a liberdade de consciência, noção que emerge durante a segunda metade do século XVI; em seguida a tolerância, durante as últimas décadas do século XVII. Ao longo do século XVIII e do início do século XIX pudemos seguir, do lado protestante, o desenvolvimento desses temas, o enraizamento das memórias dos ex-presos e das narrativas dos dissidentes do tribunal, a autonomia progressiva da historiografia sobre a Inquisição em face dos envolvimentos polêmicos mais visíveis, segundo a sólida tradição das principais publicações de Reginaldus Montanus e de Von Limborch.218 Há uma outra publicação, feita na Holanda, em língua francesa, das memórias de John Coustos sob a Inquisição portuguesa, por culpa de francomaçonaria e protestantismo.219 Nesta pesquisa, foi identificada outra publicação do relato do 216 Ibidem, p. 46. MARCOCCI, Giuseppe e PAIVA, José Pedro. História da Inquisição portuguesa. Op. Cit. p. 433. 218 BETHENCOURT, Francisco. História das inquisições. Op. Cit. p. 354. 219 COUSTOS, John. Procédures curieuses de l'inquisition de Portugal contre les Francs-Maçons, pour découvrir leur secret, avec les interrogatoires et les réponses, les cruautés exercées par ce Tribunal, la 217 275 lapidário, do início do século XIX.220 Dessa forma, ainda que nada indique que a do maçom, ao viajar para Portugal, tenha sido a de ser uma espécie de mártir, sua tragédia pessoal teve circulação significativa na cultura letrada europeia das Luzes e contribuiu tanto para a defesa da tolerância religiosa como para difundir, ainda mais, a imagem dos tribunais do Santo Ofício como tirânicos, contrários aos ideias de civilização que então estavam sendo difundidos. Além disso, ressaltava o caráter anticristão dos tribunais, apontados como opostos aos Evangelhos por seus procedimentos, que iam de encontro ao que pregam à piedade cristã e qualquer sã teologia. A pergunta que fica é se outros heterodoxos portugueses, mais ou menos intencionalmente, manifestaram ideias semelhantes e as colocaram em público contra a Inquisição e em defesa da tolerância religiosa. Trata-se de outro ponto de vista, vindo de portugueses criados dentro do Catolicismo, vivendo dentro ou fora Portugal. Dessa maneira, à resistência difusa ao status quo católico, manifesta nas proposições de pessoas em todos os espaços de Portugal e domínios coloniais, soma-se os casos de narrativas de súditos lusos que ou tentaram empreender ou foram acusados de ações mais diretas contra ele. Efetivamente, pontos relacionados a um campo mais difuso e menos consciente de críticas religiosas cruzam-se com outros nos círculos letrados. Cumpre destacar, ainda, que narrativas como as de Coustos fizeram parte de um processo de enraizamento de narrativas antiinquisitoriais, baseadas, sobretudo, nas memórias de ex-presos e condenados pelos tribunais de fé. Este será o tema da próxima parte deste capítulo. description de l'intérieur du S.Office, son origine, et ses excès, divisées en trois parties, par un frère maçon sorti de l'inquisition. Revues et publiées par L.T.V.I.L.R.D.M. Dans la vallée de Josaphat, l'an de la fondation du Temple de Salomon MMDCCCIII. [Hollande], (1745), pet. in 8°, de VIII-264pp., demiveau blond époque à petits coins, dos à filets dorés, étiquette au dos. (ex-libris Grande Loge du Danemark, Den Danske Landsloge Biblioth.). Esta obra não foi lida e analisada nesta pesquisa, fazendo parte somente de um levantamento de fontes. 220 ______________. The Mysteries of Popery Unveiled in the Unparalleled Sufferings of John Coustos at the Inquisition of Lisbon: To which is Added the Origin of the Inquisition, and Its Establishment in Various Countries, and The Master Key to Popery. By Anthony Gavin, one of the Roman Catholic priests of Saragossa. Hartford: printed for the Publisher R. Reynolds & H. Thompson, 1820. 276 Figura 3- Frontispício da versão, também em inglês, das memórias de John Coustos, na versão publicada em 1820. À esquerda, uma ilustração sobre a chegada do lapidário suíço à Inquisição de Lisboa, imagem idêntica à da capa da mesma publicação. COUSTOS, John. The Mysteries of Popery Unveiled in the Unparalleled Sufferings of John Coustos at the Inquisition of Lisbon…1820. Op. Cit. Figura 4 - Ilustração sobre uma das seções de tortura a que John Coustos foi submetido. Ibidem p. 137. 277 3.5 Antigas e novas críticas ao Santo Ofício Em alguns momentos, as fontes demonstram que houve um ponto de intercessão entre as críticas difusas à ortodoxia, já analisadas, com outras, em que há alguma intencionalidade mais aparente em, por exemplo, criticar a Inquisição, ou ainda em realizar críticas religiosas mais gerais e que, direta e indiretamente, englobam alguma defesa da tolerância religiosa. Há exemplos de defensores da supressão dos tribunais de fé ou de críticos a seus procedimentos que articularam essas suas críticas a debates das Luzes e, em alguma medida, trouxeram suas ideias à luz para serem discutidas, desafiando as autoridades político-religiosas instituídas. É importante, porém, salientar que há diferenças substanciais nas ideias e proposições defendidas e na percepção que autoridades régias e inquisitoriais tinham. O mesmo se pode dizer a respeito de outros agentes alinhados a forças mais conservadoras – num sentido lato, isto é, aliadas ou afins às autoridades vigentes – percebem as proposições mencionadas como risco para o establishment, num movimento que é, em partes, similar ao que foi acima analisado sobre a maçonaria. Dito de outra maneira: ao sustentarem proposições tais como as que indicam, por exemplo, usos “não cristãos” da repressão religiosa, articulando-as a debates ilustrados e a sociabilidades um tanto típicas desse contexto, isso não significa que os agentes que as pronunciavam representassem um risco substantivo de sedição ou de algum confronto mais organizado, como acusava o discurso das autoridades. Porém, tais tópicas indicam haver, no contexto português e externo a ele, tomadas de posição críticas ao status quo cristão católico e contra a Inquisição, que pleiteiam uma maior liberdade religiosa, que extrapolam à espontaneidade e à intuitividade analisadas, por exemplo, nos acusados de blasfêmias. A crítica religiosa, assim, entrelaça, por meio de uma circularidade complexa, influenciada diretamente por um processo secularizador próprio da segunda metade do Setecentos, aspectos da religiosidade do mencionado “mundo de teólogos”, com críticas da cultura letrada das Luzes e narrativas relacionadas às memórias de ex-presos e anti-inquisitoriais. A pretensão aqui é de se analisar, nas proposições heréticas, um ponto já presente desde a fundação dos tribunais de fé, e que revela uma imagem negativa do Santo Ofício, segundo a qual ele era manipulado pelos interesses mundanos, e não pela defesa da ortodoxia católica. Esse ponto assumiu alguns contornos novos em meados do século XVIII, diante de duas realidades que ali se colocavam, que eram a cultura letrada 278 das Luzes e um processo de secularização, tocante, inclusive, aos ditos tribunais. Esse ponto articula-se a outra face da defesa da tolerância e da resistência à ortodoxia católica e à sua pretensa vigilância por autoridades eclesiásticas e régias e, por conseguinte, a defesas mais diretas e intencionadas da tolerância religiosa. Será este o próximo aspecto a ser analisado nesta tese. Um caso importante nesse sentido é o de Francisco Xavier de Oliveira, ou Cavaleiro de Oliveira, conforme tradução do francês de nome que atribuiu a si mesmo em suas publicações, Chevalier d’Oliveira. É bastante conhecida, por biografias publicadas no século XX, sua trajetória fora de Portugal, especialmente na Holanda e Inglaterra. Suas Cartas Familiares foram censuradas quando residia no primeiro país, em 1746, por conter “expressões indecorosas contra o clero e a religião”. Mas foi durante sua passagem por terras inglesas que chegou ao Santo Oficio sua adesão ao protestantismo, seguida de publicações que foram posteriormente censuradas por seu tom severamente crítico aos tribunais de fé.221 O Cavaleiro de Oliveira morava em Londres quando a Inquisição de Lisboa o condenou por publicar o Discours Pathétique au sujet des calamités présentes, arrivées au Portugal, feita em Londres no ano de 1756. Na mesma cidade publicou, em 1757, o Suite du Discours Pathétique: ou Réponse aux objéctions et aux murmures que cet Ecrit s’est attiré à Lisbonne. Nessas obras, Oliveira satirizava a Inquisição, reprovava a não publicação da Bíblia em língua vulgar (o que, para ele, causa de danos a Portugal e à república cristã, pois impedia a lição das Escrituras e a meditação da Divina Palavra, nos seus termos), condenava o culto a imagens de santos e outras práticas católicas. Defendia, entre outros pontos, a liberdade de culto e a abolição do Santo Ofício, alegando que os portugueses viviam sob a “lei dos inquisidores”. Além disso, fazia uma provocação ao propor que os judeus construíssem uma sinagoga no Rossio.222 Oliveira teria tentado convencer os leitores que mazelas da nação portuguesa, como as práticas religiosas que dizia serem condenáveis, e a perseguição aos judeus seriam, no limite, responsáveis pela ira divina expressa no Terremoto de 1755. Sobre isso, Antônio Baião diz que, “à semelhança do que se passou com o (terremoto) de 1536, se aproveitaram 221 MARCOCCI, Giuseppe e PAIVA, José Pedro. História da Inquisição portuguesa. Op. Cit. p. 343. Ibidem, p. 432-433; RODRIGUES, Antônio A. Gonçalves. O Protestante Lusitano: estudo biográfico e crítico sobre o Cavaleiro de Oliveira. MDCII-MDCCLXXXIII. Coimbra: Coimbra editora, 1950. p. 253-254. 222 279 d’este fenômeno natural para d’ele tirarem efeitos políticos ou religiosos!”223 Antônio Gonçalves Rodrigues, em estudo biográfico sobre Francisco Xavier de Oliveira, ao discutir a recepção do terremoto na literatura europeia, é enfático ao afirmar que a explicação dada pelo letrado português não destoava muito das inclinações das classes médias europeias e, sobretudo, britânicas, em meados do século XVIII. Não era estranho ao gosto estético do período se atribuir fenômenos como o dito sismo a causas teológicas, ainda que as descrições e narrativas também se detenham nas causas naturais, pois “logo as ultrapassam, procurando num providencialismo ortodoxo a explicação da tragédia portuguesa”. Analisando sobretudo a poesia e produção literária da Grã-Bretanha a respeito do trágico evento de 1755, Rodrigues conclui que a “imaginação britânica, mais ou menos puritana, não satisfaz no plano científico, que explica, mas não justifica” e, por isso, “sente-se mais à vontade no plano moral, em que atinge a verdadeira e magnífica eloquência”.224 Essa explicação de Rodrigues leva em conta, de maneira mais incisiva que Baião, o lugar da religião na produção letrada das Luzes. Atribuir a narrativa que afirma causas teológicas ao sismo a somente seu uso político puro e simples é, em grande medida, analisar tais argumentos partir de valores seculares e secularistas de contextos posteriores a eles. As proposições presentes nas obras de Oliveira podem e devem ser pensadas conforme esse trânsito e complexidade, existentes na busca por explicações, tanto em linguagem secularizada como na teológica, afinal, ambas estavam longe de serem mutuamente excludentes. Tampouco, deve-se entender esse trânsito, entre explicações dos fenômenos que se valem da linguagem secularizada, a das razões naturais, e as assentadas em leituras teológicas dos mesmos fenômenos, meramente como acessórios, isto é, compreendendo que seu uso simultâneo (ou seja, de uma linguagem religiosa que traga, implicitamente, propósitos e ideias absolutamente seculares, ou vice-versa) serve tão somente de meio para se argumentar da outra forma.225 BAIÃO, Antônio. Episódios dramáticos da Inquisição Portuguesa. Volume II – Homens de letras e sciências por ela condenados- Varia. Rio de Janeiro: Álvaro Pinto –editor, 1919-1938. p. 68. 224 RODRIGUES, Antônio A. Gonçalves. O Protestante Lusitano: Op. Cit. p. 240. Sobre a repercussão do terremoto na Inglaterra à época da produção do Cavaleiro de Oliveira: Ibidem, p. 232-240. 225 Conforme o que foi dito por Stephen J. Barnett sobre se repensar o lugar da religião nos estudos sobre as Luzes, sem atribuir-lhes um “mito secularizador”, construído a posteriori. A ideia do autor, no que toca ao combate, por exemplo, ao que chama de ilusão de uma “conspiração deísta”, as ideias, debates, obras e proposições de autores ilustrados precisam ser compreendidas tendo como pressuposto que, em grande parte, sua interlocução se deu com outras ideias e realidades fortemente marcadas e permeadas pela religião. Assim como a análise das ideias de Locke não deve deixar de lado o fato de ele ter sido protestante, de publicar estudos teológicos diversos e de boa parte de seus debates se dirigir a religiosos, sobre temas também religiosos, a obra do Cavaleiro de Oliveira deve ser entendida conforme os diversos 223 280 No processo do Cavaleiro de Oliveira, publicado em fragmentos por Antônio Baião e outros historiadores, o padre José Tomás Borges depôs dizendo que conhecia o Discours Pathétique. Disse que a obra era dividida em três livros, cujo objetivo principal era convencer o monarca de que o terremoto “viera em castigo dos pecados públicos da nação, os quais eram na primeira parte a idolatria cometida no culto das imagens a que se dava adoração”, e também “a conservação do tribunal da Inquisição neste Reino”, acrescentando ainda que poderia vir outro castigo se tais inconvenientes não fossem eliminados. Já o frei Francisco da Visitação Massarelos disse que não viu o livro, mas sabia que ele era escrito em francês e que seu autor “seguia a seita de Lutero”, certamente em referência a Oliveira ter-se convertido ao anglicanismo.226 No testemunho do frei Domingos da Encarnação, há menção de que o livro é “cheio de impiedades, blasfêmias e calúnias contra o Tribunal do Santo Ofício e seu retíssimo procedimento”. Ao todo, Antônio Baião lista 12 testemunhas em seu processo.227 Antônio Gonçalves Rodrigues também destaca alguns depoimentos importantes, como foi o caso do feito pelo frei Tomás de Aquino, da ordem de São Bento, irmão do Cavaleiro de Oliveira, que teria recebido as publicações do próprio irmão e as teria queimado, além de delatar proposições que tiveram peso significativo para o resultado final do processo. Em 16 de outubro de 1756, Oliveira foi citado para se apresentar dentro de 120 dias ao Santo Ofício “e dizer de sua Justiça, sobre certos artigos pertencentes à Fé”, intimando-se à denúncia a todos que soubessem de sua presença dele no Reino ou seus domínios. Oliveira não se apresentou, incorrendo em excomunhão maior, e seu processo correu à revelia. A carta que condenava todas as publicações do autor foi lida, em 17 de outubro de 1756, pelo pároco da freguesia de Nossa Senhora da Pena. Prosseguido o processo até o fim, alguns anos depois desses fatos, ele foi condenado como “convicto, negativo, pertinaz, revel e contumaz”, por herético e apóstata, sendo sua obra classificada por “herética, cismática, sediciosa, errônea, injuriosa à Igreja Católica Romana e contrária aos dogmas da nossa Santa Fé”. contornos religiosos que seu contexto lhe oferecia, entre os quais a possibilidade e o alcance, do ponto de vista moral e político, de explicações sobre fenômenos que ultrapassassem as balizas de uma linguagem científica. C.f. BARNETT, Stephen J. The Enlightenment and religion. Op. Cit. p. 11-44. 226 Antônio Gonçalves Rodrigues define o Discours como “uma interpretação providencialista do terramoto” de Lisboa, “estranhamente semelhante à do jesuíta Malagrida”, cujo objetivo de fundo era “estimular a criação de uma Igreja Lusitana submetida ao gládio político” régio, “à imagem e semelhança da Igreja anglicana que o aceitara como membro”. RODRIGUES, Antônio A. Gonçalves. O Protestante Lusitano. Op. Cit. p. 252. 227 BAIÃO, Antônio. Episódios dramáticos da Inquisição Portuguesa. Op. Cit. p. 69-70. 281 Foi relaxado ao braço secular e queimado em efígie no auto-de-fé de 20 de setembro de 1761, um dos últimos da história da Inquisição de Portugal.228 Para Sônia Siqueira, a condenação e relaxamento ao braço secular do Cavaleiro de Oliveira aceleraram a sua hostilidade contra a Inquisição de Portugal.229 Assim, morando, à época, em Londres, Oliveira publicou uma resposta à sua condenação: se tratava do Le Chevalier d’Oliveira brulé en figure. Comment héretique et pourquoi? Anedotes et réflexions sur ce sujet donnent au public par lui même, publicado em 1762. O livro é dividido em 15 artigos, cada qual explicando algum ponto em que critica os inquisidores e a Inquisição, mais introdução e uma “advertência” ao leitor, no final (Avertissement). Nesse escrito, também defende a liberdade de consciência e de religião, além de criticar o Catolicismo como ele era vivido e praticado em Portugal, o que, na sua concepção, não coincide necessariamente com o Catolicismo de modo geral. Na introdução, o Cavaleiro de Oliveira explica claramente quais são os objetivos ali propostos: responder à sentença da Inquisição, submetendo-a a dois juízes, a saber, Deus e o público. Além de examinar as proposições pelas quais foi acusado, o autor afirma que pretende demostrar o absurdo que significa, de acordo com as leis de Deus, a própria Inquisição.230 Para abordar os argumentos mais interessantes a esta tese contidos na obra, vou analisá-los agrupando-os em três tópicos, que são: sua defesa da tolerância religiosa, suas críticas à Inquisição e, não menos importante, suas concepções e críticas sobre o Catolicismo. Com isso, quero destacar alguns aspectos de suas proposições intimamente relacionados a debates das Luzes, sem com isso perder de vista a questão da tolerância em suas relações com a realidade e as tradições religiosas em Portugal. Inicialmente, é importante analisar o que o Cavaleiro de Oliveira, na sua resposta, concebia como o Catolicismo. Como foi dito acima, isso não necessariamente correspondia universalmente a todos os que seguiam a Igreja Católica Romana. No artigo XIII, Oliveira faz um apontamento fundamental, que permeia todos os pontos em que critica a Igreja católica e o Catolicismo, separando de uma maneira bastante peculiar duas formas de se seguir essa religião, às quais denominou “papismo” e 228 Ibidem. p. 51-53. RODRIGUES, Antônio A. Gonçalves. O Protestante Lusitano. Op. Cit. p. 256-258. SIQUEIRA, Sonia. A Inquisição e o inquisidor no outono da modernidade. Sæculum–Revista de História, (30), João Pessoa, jan./jun. , p. 141-159. 2014. p.149. 230 OLIVEIRA, Francisco Xavier de [1762]. Le Chevalier D’Olivera brulé en effigie comme hérétique. Comment & Pourquoi? Anecdotes & Réflexions sur ce sujet, donné au Public par lui-meme. Londres: De l’imprimerie de J. Haberkorn, Grafton-Street St. Ann’s Sobre; & se vend chez W. Nicoll, dans St. Paul’s Church-yard. M. DCC. LXII. p. 13. 229 282 “catolicismo”. Papistas, segundo sua definição, são aqueles que sustentam e acreditam na autoridade de um “déspota mortal”, o Sumo Pontífice, e com isso sustentam “iniquidades e absurdos como a Inquisição”. Conforme seu argumento, trata-se de países como Portugal, Espanha e de algumas partes da Itália. Por outro lado, há nações esclarecidas, como França, Suécia, Alemanha e Áustria, onde se professa o verdadeiro Catolicismo Romano, pois nelas não existe Inquisição e o respeito pela figura do papa se dá tão somente como autoridade religiosa e nada além disso. Com isso, nesses espaços, preserva-se a autoridade nacional, sem venerar-se o Papa como um deus e obedecê-lo servilmente. Para os pensadores católicos romanos e não papistas, conclui Oliveira, os procedimentos inquisitoriais são abomináveis e execráveis, contrários à justiça natural e divina.231 Além da separação entre Catolicismo e papismo, tomando o segundo como uma forma degenerada do primeiro, o Cavaleiro de Oliveira dedica o artigo XII à defesa da proposição de que o terremoto de 1755 teria sido causado pela ira divina contra seu país e, nesse ponto, constrói um pressuposto que vai perpassar toda a sua argumentação crítica à lei católica. Nos argumentos teológicos, Oliveira busca explicações que sustentem sua proposição de que o terremoto, juntamente com uma outra infinidade de suplícios pelos quais Portugal passava até meados do XVIII, são fruto da forma deturpada pela qual segue-se naquele ali tal confissão religiosa, sobretudo quanto ao tratamento da diferença como heresia, através das perseguições inquisitoriais, que isolam o país, em suas palavras, “na sua própria soberba e orgulho”.232 O autor compara, ainda, a liberdade de exame das Escrituras nos países protestantes e nos católicos, com vantagem aos primeiros, ponto em que a liberdade de pensamento é exaltada, pois, com ela, se combate a ignorância, elemento que explica grande parte de todos os problemas das nações papistas, que vão de questões como o fanatismo e a intolerância, até o isolamento econômico e político, que seriam intimamente ligados.233 Esse argumento está colocado de maneira implícita no artigo IX da obra, em que se sugerem ao rei d. José I reformas baseadas na sua definição de “catolicismo”, não no “papismo”. Com isso, a autoridade real seria estabelecida na Igreja nacional, em detrimento da papal, além de haver liberdade religiosa, sobretudo em relação aos judeus 231 Ibidem, p. 92-93. Ibidem, p. 77. 233 Ibidem, p. 66. 232 283 e a abolição da Inquisição, sendo todos esses pontos centrais para livrar Portugal de todos os seus problemas.234 Com base em tais pressupostos, apresentados de maneira um tanto espaçada ao longo do texto, seus ataques contra a Inquisição desenvolvem-se de maneira bastante veemente. Uma informação que se depreende do texto, no entanto, é que, talvez com uma função retórica, a figura do inquisidor é apresentada ao leitor da resposta do Cavaleiro de Oliveira como todo e qualquer agente, ao longo de toda a História, que tenha utilizado de maneira ilegítima e contrária à razão natural alguma coerção contra o dissenso religioso. Para ele, “inquisidor” seria um termo que tem aplicabilidade para se definir realidades históricas e atitudes perante a diferença que ultrapassam a própria existência dos tribunais de fé. Dito de outra maneira, ser inquisidor, para Oliveira, era algo que unia aqueles que condenaram Jesus ao calvário com os que condenaram Sócrates ao suicídio na Grécia Clássica,235 ou ainda com os brâmanes que enviavam à morte infiéis na Índia.236 Assim, a narrativa de Oliveira transformava todos esses “inquisidores” e inquisidores (sem aspas) em uma coisa só, mesmo estando eles tão separados no tempo e no espaço e por confissões religiosas distintas. O que os unia era seu despotismo, tirania, hipocrisia e também a ignorância, que os tornava incapazes de provar que o outro estava errado, em matéria doutrinal, através de qualquer outro meio que não fosse violento, desonesto e malicioso.237 Oliveira os contrapunha, dessa forma, a quaisquer ideais de civilização, dizendo que os “inquisidores são tão bárbaros quanto os povos de África, América e Ásia para onde eles mandam constantemente missionários para pregar a palavra que eles dizem ser a de Deus”.238 O Cavaleiro de Oliveira também questiona os métodos e o fundamento da Inquisição. A começar que, conforme o argumento do protestante lusitano, os tribunais do Santo Ofício são tão absurdos e inúteis que não combatem, sequer, a heresia. Pelo contrário, seus tormentos, prisões e violências, no geral, fazem que, no máximo, as pessoas que as praticam escondam seus erros por medo, ou ainda que, motivadas pela condenação e perseguição, obstinem-se ainda mais neles, havendo reincidência, 239 do 234 Ibidem, p. 56-60. Ibidem, p. 49. 236 Ibidem, p. 94 237 Ibidem, p. 99. 238 Ibidem, p. 23. 239 Ibidem, p. 69. 235 284 que, neste caso, o próprio autor seria um exemplo.240 De alguma maneira, Francisco Xavier de Oliveira sistematiza a tópica, já presente nas proposições de portugueses e luso-brasileiros, desde a fundação dos tribunais, de que a repressão não combatia, mas apenas enviava para o subterrâneo as heresias que se propunha a combater, multiplicando-as, como as cabeças da hidra de Lerna241 da mitologia grega. Esse processo produzia uma “divisão” e uma “mentalidade subterrânea”, numa compreensão um tanto similar à que já discutiu em relação aos trabalhos da historiadora Anita Novinsky. Tocando diretamente no processo que o levou à sua condenação, Oliveira afirma que a ira dos inquisidores contra as suas proposições a favor dos judeus deu-se não porque os inquisidores demonstraram que elas eram erradas, mas porque a sugestão feita ao rei de se adotar a tolerância aos judeus, juntamente ao apontamento de que os procedimentos inquisitoriais eram execrandos e contra as leis divinas e humanas, não era suficientemente contra argumentada pelos inquisidores, seja por sua incapacidade, seja por seu costume em tratar de maneira tirânica as discordâncias resolvíveis pelo embate racional.242 Essa tópica, aliás, reforça um entrelaçamento entre ignorância e intolerância, marcante na sua descrição dos inquisidores, segundo a qual a força contra o herege só é utilizada na medida em que a própria impotência dos agentes da Inquisição em provar sua verdade mediante à razão vem à tona. Assim, o Cavaleiro de Oliveira busca sustentar sua proposição favorável aos seguidores da lei de Moisés. O autor defende seus argumentos em prol dos judeus com exemplos de santos, papas e concílios que dizem que a existência de hebreus no seio da cristandade não a ameaçava. Seu objetivo, com isso, era reafirmar suas proposições e a ideia de que os inquisidores são tão ignorantes que não perceberam que os argumentos que sustentavam para condenar um protestante, como Oliveira, poderiam perfeitamente condenar um papa como herege ou apóstata. Isso reforça, na sua polêmica, que o uso da força para defesa 240 Na introdução, o Cavaleiro de Oliveira dá a si mesmo como um exemplo para reforçar seu argumento, dizendo que a condenação lhe fez obstinar-se ainda mais na lei protestante e no seu combate contra a Inquisição. Ele diz, assim como as publicações do processo relatam, que seu irmão pediu-lhe, em carta, uma abjuração das proposições defendidas no Discours (1756), ao que ele teria refutado, mostrando-se resoluto em defender cada uma das proposições pelas quais foi condenado. Ibidem, p. 11. 241 A analogia entre a heresia e a Hidra combatida por Héracles, na mitologia grega, que teria infestado o lago na região de Lerna, em Argolis, foi amplamente usada na retórica e na iconografia inquisitoriais ao longo dos séculos XVI e XVII. PACHECO, Milton Dias. Greek Mythology at the Service of the Portuguese Inquisition: The Case of Hercules and the Hydra of Lerna. Athens Journal of Mediterranean Studies. Vol. 1, No. 1 (25-44), January 2015. 242 OLIVEIRA, Francisco Xavier de. Le Chevalier D’Olivera brulé em effigie comme hérétique. Op. cit. p. 54. 285 da ortodoxia, ao invés do uso da razão exposta por meio de argumentos, feria gravemente a própria doutrina supostamente defendida, por ancorá-la cada vez mais no obscurantismo, ao invés da verdade.243 A Inquisição, ainda segundo Oliveira, isola Portugal dos demais países. A partir disso, ele levanta a seguinte questão: “como os portugueses podem querer ter aliados se tratam a todos como hereges dignos de fogo?”244E, além disso, conforme defende no artigo VIII, há uma completa falta de imparcialidade e, por conseguinte, de justiça, por parte dos inquisidores, pois eles somente julgam com rigor a quem estiver numa posição de poder desfavorável em relação a eles.245 Seria, assim, um tribunal político, não defensor da fé. Eram, acima de tudo, nada mais do que a manifestação da falta de virtudes cristãs e de Luzes: tratava-se de indivíduos que tinham como propósito somente escravizar os povos através da ignorância. Na argumentação do Cavaleiro de Oliveira, as críticas à Inquisição e a separação entre um Catolicismo “ilustrado”, independente da ingerência papal e inquisitorial, daquele a que chama de “papismo”, confluem numa defesa da tolerância religiosa. O artigo primeiro, cujo título é Persecution, Oliveira, assenta-se na premissa segundo a qual “todas as religiões que empregam o ferro e fogo para obrigar os homens a abraçar seus dogmas são, certamente, falsas”.246 Além disso, tais credos selam seu destino na medida em que a própria história do Cristianismo, segundo ele, prova que confissões que são perseguidas, num determinado momento, serão as perseguidoras no seguinte, e assim por diante, numa espécie de ciclo de intolerância que atravessa a História. Essa perseguição, segundo ele, diz mais sobre o ímpeto mundano dos homens que sobre a natureza das religiões, pois, nas suas palavras: É muito verdade que o nome de Jesus Cristo, bem como aquele de Júpiter e de Maomé, tem muitas vezes servido de pretexto às paixões não reprimidas dos eclesiásticos e dos magistrados, para colorir seus obscuros desejos e autorizar sua impetuosidade e suas injustiças (Tradução minha).247 No segundo artigo, em que sua reflexão parte de alguns apontamentos feitos no livro do Êxodo, na passagem dos dez mandamentos, o Cavaleiro de Oliveira argumenta que forçar alguém a cumprir a lei divina ofende à autoridade de Deus, por julgar e perseguir matérias de sua alçada, equiparando os perseguidores aos mesmos ímpios aos 243 Ibidem, p. 55. Ibidem, p.73. 245 Ibidem, p. 55-56. 246 Ibidem, p.18. 247 Ibidem, p.19. 244 286 quais se diz perseguir.248 Assim, conforme sua argumentação, as perseguições religiosas são tão irracionais quanto mundanas e anticristãs. A respeito das acusações de seguir “doutrinas novas” – o que, para ele, não passava de uma acusação vazia e um tanto geral, feita em muitos momentos da história a quem pensasse diferente apenas pelo ímpeto da tirania dos “inquisidores” –, defendese em duas frentes. Em primeiro lugar, referindo-se à fé protestante que seguia, argumenta que sua doutrina é tão antiga quanto a dos papas, mas estes, com sua presunção de detentores de verdade o acusam de se desviar dela, dando-lhe uma condenação que poderia ser dada apenas por Deus, único que pode saber qual das leis é verdadeira ou falsa. Em segundo lugar, já tocando não somente seu credo, mas incluindo suas proposições e até mesmo outras religiões, mesmo aquilo que se definia como “heresia”, Oliveira diz que a presunção de porte legítimo e único da veracidade em matéria de fé, típica daqueles que impõe aquilo que acreditam por meio da violência, leva os homens à ignorância ou à malícia de afirmarem, contra qualquer coisa que desafie seus sistemas dogmáticos, que não passariam de “novidades”, no sentido de que vieram para contrapor-se à verdade e causar desordens e sedições.249 Isso levava, continua o Cavaleiro de Oliveira, a grandes mentes e espíritos serem perseguidos pelos “inquisidores”. Isso porque são exatamente as pessoas mais ilustres de suas épocas que com frequência são acusadas de criar ou defender “novidades”, já que apontam as incoerências e inconsistências dos dogmas de seus acusadores. Além disso, segundo o ilustrado português, suas vozes dissidentes são silenciadas porque trazem à luz a ignorância desses “inquisidores”, estejam em que época estiverem. Tal procedimento, para ele, era a razão pela qual as artes e as ciências não floresciam nos países onde a Inquisição existia – dentre os quais, obviamente, Oliveira incluíra Portugal –, pois, além de perseguir àqueles que desafiavam tais verdades e consensos defendidos pelos inquisidores, os mesmos agentes inquisitoriais semeavam a ignorância entre os povos, escravizando-os e fazendo-lhes tratar como criminoso quaisquer pessoas que ousassem dizer verdades baseadas na razão.250 Por fim, a respeito de sua defesa da tolerância religiosa, cumpre aqui ressaltar sua definição de heresia. Ao se defender das acusações sobre essa matéria, no artigo X, Oliveira diz que o herege nada mais é que uma pessoa que conhece os verdadeiros 248 Ibidem, p. 24-27. Ibidem, p. 47-48. 250 Ibidem, p. 48-51. 249 287 fundamentos da religião cristã e que, por algum ponto, distingue-se do que é tido como ortodoxo e, ao dizer isso a alguém, torna-se, aos olhos das autoridades, inimigo de Deus e de Jesus Cristo. Mas essa lógica não se aplica aos próprios inquisidores, que se comportam como donos da verdade, usurpando a própria autoridade divina. Privando o resto da comunidade católica do direito de julgar o que é ou não conforme às verdades da fé por ela mesma, examinando os argumentos de quem defende uma suposta heresia ou examinando as condenações dos hereges, os inquisidores conduzem “um julgamento tirânico, que tem a liberdade de pensamento e a sã religião como inimigos”. Assim, ele argumenta que sua doutrina protestante não é falsa e, ainda que o fosse, não o seria somente porque os inquisidores disseram que ela é herética, sem poderem ser contestados pelo uso da razão e da liberdade pelos seus compatriotas. Isso, explica, dáse porque somente o uso da razão, necessário para o exame das Escrituras e dos Evangelhos, pode servir como base para se decidir se uma doutrina é errônea ou não. Apenas através do uso dela é que as pessoas devem decidir, em conformidade com as leis de Deus e da razão natural, o que elas vão seguir como verdade em matéria de religião. O arbítrio dos inquisidores, ao decidir o que é erro ou verdadeiro, é, duplamente, uma afronta contra a racionalidade humana e à misericórdia divina.251 Antônio Gonçalves Rodrigues afirma ter encontrado, entre 1762 e 1763, menção ao Le Chevalier D’Olivera brulé em effigie comme hérétique somente no Journal Encyclopédique, no número de 1 de abril de 1762, onde lhe dedicam uma resenha bastante elogiosa de treze páginas. Nela, há destaques diversos sobre a obra, como algumas considerações contra a Inquisição portuguesa; na resenha, afirma-se também que houve uma tradução para a língua inglesa do texto, que não é conhecida, até então.252 Porém, o próprio autor afirma ter encontrado algumas reimpressões de suas obras a respeito do terremoto de 1755,253 o que pode ser um indicativo de uma circulação não desprezível, porém de difícil localização dentro da documentação disponível. Se não há informações suficientes sobre a amplitude da circulação da obra, é certo que, tal como a narrativa anti-inquisitorial, já analisada, de John Coustos ou a passagem de Candide,254 de Voltaire, em que a Inquisição portuguesa é apresentada de 251 Ibidem, p. 62-64. RODRIGUES, Antônio A. Gonçalves. O Protestante Lusitano. Op. Cit. p. 273-275. 253 Ibidem, p. 250. 254 Cândido, protagonista, e seu mestre Pangloss, caracterizado por defender sistematicamente que estamos no melhor dos mundos possível, no capítulo VI, passam por Lisboa no dia seguinte ao terremoto de 1755. Na cena, os inquisidores, apresentados irônica e acidamente como sábios, decidem que o sismo poderia ser acalmado com um auto-de-fé público, para o qual escolhem o mesmo mestre de Cândido, 252 288 maneira satírica e caricatural, a resposta do Cavaleiro de Oliveira à sua sentença somase a uma literatura crítica ao Santo Ofício, que contribuiu para um desgaste da imagem dos tribunais de fé na cultura letrada europeia. As informações contidas nos trechos do processo publicados por Antônio Baião e a resposta do Cavaleiro de Oliveira à sentença que lhe foi aplicada pela Inquisição portuguesa indicam alguns pontos importantes para se entender uma disputa em torno do religioso, no sentido que foi apresentado neste capítulo. Tal disputa, como foi repetidamente defendido nesta tese, não implicava uma ruptura com a religião, demandando apenas uma religiosidade mais branda e tolerante, alternativa à proposta pela ortodoxia e contornada pelo dirigismo do Reformismo ilustrado. Oliveira, muitas vezes de forma direta, e implícita, noutras, vislumbra algum horizonte de possibilidades menos duras e mais livres de se professar e seguir a religião, inclusive a católica, da qual apostatou. A forma como o autor problematizou tal questão e a expôs em texto, que circulou entre letrados no século XVIII, distanciam-no das proposições que foram analisadas, pronunciadas por pessoas de estratos sociais mais modestos e mesmo iletradas. Todavia, depreende-se um ponto de aproximação entre letrados, como Oliveira, e essas mesmas pessoas com níveis menores de letramento que caíram nas malhas do Santo Ofício, pertencentes a outros grupos sociais: em comum, havia a percepção, ainda que distante da realidade concreta na Idade Moderna, segundo a qual era desejável viver religiosidades mais livres. Vislumbravam-se formas de viver a religiosidade sob maneiras que as autoridades externas interferissem menos no seu controle, em que também as pessoas pudessem conceber realidades dentro das quais seus corpos, mentes e ideias e desejos de salvação da alma fossem mais livres, diminuindo-se a distância entre vivências interiores e expressões exteriores da religião. acusando-o de dizer, ao defender que estamos no melhor dos mundos possível, uma proposição contrária ao dogma da Queda do homem após a criação, conforme interpretação de Gênesis, 3:1-24. Assim, a descrição que Voltaire faz da narrativa destaca sempre a irracionalidade e incivilidade de todo o ato, construindo-se uma imagem do Santo Ofício associada a percepções supersticiosas e fanáticas da realidade, associadas à crueldade e à injustiça que se cometem por conta delas: “Tinham pois, prendido um biscainho que casara com a própria comadre, e dois portugueses que, ao comer o frango, lhe haviam tirado a gordura: vieram depois do almoço prender o doutor Pangloss e seu discípulo Cândido, um por ter falado e outro por ter escutado com ar de aprovação: ambos foram conduzidos em separado para apartamentos extremamente frescos, onde nunca se era incomodado pelo sol; oito dias depois vestiramlhe um sambenito e ornaram-lhe a cabeça com mitra e papel: a mitra e o sambenito de Cândido eram pintados de chamas invertidas e diabos que não tinham cauda nem garras, e as flamas eram verticais. Assim vestidos, marcharam em procissão, e ouviram um sermão patético, seguido de uma bela música em fabordão. Cândido foi açoitado em cadência, enquanto cantavam. O blacainho e os dois homens que não tinham querido comer gordura foram queimados, e Pangloss enforcado, embora este não fosse o costume. No mesmo dia a terra tremeu de novo, com espantoso fragor”. VOLTAIRE, François Marie Arouet. Candido ou o otimismo. Op. Cit. p. 42. 289 Francisco Xavier de Oliveira, assim, é um exemplo importante de pensador que sistematiza, sob o signo da razão ilustrada, tópicas já há muito presentes em mentalidades portuguesas e coloniais, na sua relação com a vigilância da ortodoxia católica, dentro do “mundo de teólogos” da Idade Moderna. No texto de Oliveira, constantemente, aparece a ideia de que existe, de maneira mais ou menos demarcada, uma cisão entre uma religiosidade interior e uma exterior, sendo que a segunda é a que se expressa num contexto em que vigilância que zelava pela ortodoxia vigente era uma constante. Essa cisão, que no texto é mais ou menos sistematizada pelo Cavaleiro de Oliveira, é produto direto da vigilância e da tirania dos inquisidores, além de um empecilho para o desenvolvimento da sã teologia, que só existe por meio do exame crítico e racional das Escrituras, segundo as leis da razão, decidindo-se, por esse meio, qual doutrina seria a melhor e verdadeira. A repressão conduzida pela Inquisição, assim, atuava como um fator decisivo para esse problema. O desejo, expresso nas proposições heréticas registradas em denúncias e processos da Inquisição, era de que essa cisão deveria, no mínimo, ser atenuada. 255 Isso porque ela reforçava uma religião vivida apenas exteriormente, sem assenso interno – como nos depoimentos dos estrangeiros que se apresentaram por terem, em algum momento, se convertido ao Islã –, sendo ruim para a verdadeira fé, baseada na razão, podendo, até mesmo, fomentar cada vez mais a heresia. Tais pressupostos permeavam os desejos e defesa por uma maior tolerância religiosa. Por fim, há a problematização, feita pelo Cavaleiro de Oliveira, que associa a intolerância religiosa institucionalizada, na Idade Moderna, em seu país natal – e noutros “papistas”, valendo-me do termo usado por ele –, com objetivos mais mundanos e materiais, e não artigos de fé ou defesa da religião. Esse é também um ponto em que, na obra de Oliveira, verifica-se a articulação de diversas tópicas, sobretudo no que diz respeito às críticas à Inquisição, mas também aos eclesiásticos. Aparecem, na pena do ilustrado lusitano, elementos que remetem ao ideário ilustrado, principalmente a vertentes protestantes da Ilustração inglesa e a seus debates públicos, em circulação em meados do XVIII.256 Veem-se também outros aspectos que se assemelham às proposições críticas ao universo católico da Modernidade e ao Santo Ofício, 255 Luiz Carlos Villalta chegou a conclusões similares analisando um outro escopo de fontes, discutindo práticas de leitura e a formação de uma incipiente esfera pública no Brasil, na virada do século XVIII para o XIX, naquilo que é comumente chamado de “crise do Antigo Regime”. C.f. VILLALTA, Luiz Carlos. O Brasil e a crise do Antigo Regime português: (1788-1822). Rio de Janeiro: Editora FGV, 2016. p. 4581. 256 SOARES, Luiz Carlos. A Albion revisitada no século XVIII. Op. Cit. p. 197-200. 290 encontradas na documentação inquisitorial, vindas de pessoas dos mais variados estratos sociais. Um apontamento necessário é que o “ímpeto secularizador” pombalino, nesse contexto, oferecia elementos distintos dos encontrados em épocas anteriores e, por conseguinte, provocava esse tipo de crítica. A documentação indica evidências importantes quanto a este último ponto na acusação e condenação de três pessoas, dentre os quais um comissário do Santo Ofício, por proposições e por sedição, associadas a palavras malsoantes que teriam dito na ocasião do famoso auto-de-fé em que o padre Gabriel Malagrida foi executado. Nos casos desses homens, a crítica à ilegitimidade da Inquisição se somava a uma associação direta à condenação ao Marquês de Pombal, insinuando-se uma ingerência dele na condenação do jesuíta, entendida como baseada em motivos políticos, havendo uma inocência ou mesmo santidade do religioso. A execução do padre Gabriel Malagrida foi o último grande auto-de-fé público da Inquisição portuguesa, realizado em 21 de setembro de 1761. A perseguição e a morte desse religioso repercutiram em toda a Europa. Voltaire escreveu sobre ele, relatando, com diversas imprecisões, detalhes do processo, sempre em tom um irônico e ressaltando aspectos, conforme o texto, insólitos, como “as poluções dentro da prisão”, que constam em partes do documento inquisitorial contra o jesuíta, além de passagens de seus textos que contêm detalhes que considerava supersticiosos, como predições e milagres atribuídos ao eclesiástico. No mais, o ilustrado francês dava a entender que esse conjunto de situações, tratadas como absurdas, teriam sido usadas para entregar Malagrida à Inquisição a fim de condená-lo, na verdade, pela tentativa de assassinato contra d. José I, em 1758.257 O próprio Cavaleiro de Oliveira menciona algumas vezes a condenação do inaciano no Le Chevalier D’Oliveira brulé em effigie comme hérétique. Numa passagem, Oliveira se refere a ele como chefe da conspiração que culminou no atentado contra o monarca, mas também acrescenta, nas suas críticas à doutrina do purgatório, que essa crença foi utilizada pelos inquisidores para se conseguir bens e recursos materiais de fieis e do próprio Malagrida, sob o pretexto de lhe diminuir as penas no além vida. Noutra passagem, à semelhança de Voltaire, o mesmo autor percebe o uso da acusação de heresia para se condenar Malagrida pelo atentado ao rei, sem se indispor com Roma.258 Se essas e outras publicações indicam haver uma 257 VOLTAIRE, François Marie Arouet. Précis du siècle de Louis XV [1768]. Op. Cit. p. 219-220. OLIVEIRA, Francisco Xavier de. Le Chevalier D’Olivera brulé em effigie comme hérétique. Op. Cit. p. 36-38 e p. 80-81. 258 291 repercussão significativa da execução do jesuíta na cultura letrada europeia do início da segunda metade do século XVIII, alguns processos encontrados na documentação inquisitorial, por injúrias e proposições contra o “reto procedimento” da Inquisição, mostram haver alguma repercussão do caso em Portugal. As impressões sobre a execução de Gabriel Malagrida, assim, serviram de suporte, em alguma medida, a críticas contra os estilos e procedimentos inquisitoriais, mas com alguns elementos peculiares, em especial, a interferência do ministro plenipotenciário de d. José I. Por sua vez, não se deve desconsiderar as críticas a ele pelo seu lado positivo, segundo valores das Luzes. A execução de Malagrida também serviu de exemplo do combate do pombalismo contra a superstição e em favor do racionalismo iluminista, com o qual empreendia eu projeto modernizador em Portugal. O primeiro dos acusados a ser analisado aqui foi o padre Jacinto José Coelho, vigário da igreja de São Martinho da Golegã e comissário do Santo Oficio, natural da Vila Franca de Xira. No início do processo, consta que ele estava preso pela Junta de Inconfidência desde 17 de outubro de 1761, ou seja, foi preso menos de um mês após o auto-de-fé em que Malagrida fora queimado vivo. Em 9 de outubro de 1761, em Lisboa, diante do deputado do Conselho Geral d. Nuno Alves Pereira de Melo, José de Oliveira Machado, escrivão adjunto da Junta de Inconfidência e familiar do Santo Ofício, compareceu para denunciá-lo. Disse que lhe foram delatadas matérias pertencentes ao Santo Ofício envolvendo Jacinto Coelho, além de algumas testemunhas. Declarou que, “sendo no dia de domingo vinte de setembro”, do mesmo ano “em que se celebrou o auto público de fé, aí nos claustros do convento de São Domingos”, em que foi lida a sentença do jesuíta Gabriel Malagrida, chegara à companhia das testemunhas “o padre Jacinto José Coelho”. Na ocasião do auto-de-fé, perguntando uma delas – que mais à frente seria indicada na denúncia e ouvida no processo – ao padre denunciado “o que lhes parecia aquilo, fazendo relação para o auto de fé que já estava no cadafalso”, uma das testemunhas respondera “que estavam vistas as virtudes do Santo Malagrida”. Ainda conforme a denúncia, o padre Jacinto Coelho teria dito “que há mais, e menos, seis ou sete postilhões que têm vindo de El Rei de Castela para a Sua Majestade Fidelíssima (d. José I) quisesse aceitar a Bula, que mandou se não relaxasse pessoa alguma eclesiástica sem ordem de Roma”.259 A isso, o denunciado teria completado 259 No texto do Cavaleiro de Oliveira, em resposta à sentença que lhe foi dada pela Inquisição, há uma menção a essa bula, dada pelo papa Gregório XIII, feita a pedido do rei Felipe II, da Espanha, que determinava que religiosos só fossem entregues ao braço secular mediante autorização direta de Roma. 292 dizendo que, “de dentro do Santo Ofício, lhe tinham dito que na noite antecedente tinha chegado outro postilhão”, insinuando, na denúncia, que o padre passava informações confidenciais do Santo Ofício sobre haver um pedido similar em favor do jesuíta.260 O escrivão José Machado ainda declarou que o denunciado, ao ser indagado por uma das testemunhas que apresentou para “que não desse ele, denunciado, crédito a tal, porque um Tribunal reto, com tanta circunspecção”, não condenaria daquela forma alguém que fosse inocente, e que isso “nem sua Majestade o aprovaria”, Jacinto José Coelho respondera que: “diz isso porque não sabe o que eu sei, porque o processo do mesmo Malagrida foi feito fora”. Complementou, ainda segundo a denúncia, “que [o] daqui há de resultar há de ser mandar-se fechar o Santo Ofício, como já esteve quarenta anos e sabe Deus, se El Rey sabe de tal”, dando a entender que “os senhores inquisidores não obraram livres neste procedimento, de que até os secretários do Santo Ofício choravam, nem Sua Majestade de tal soubera, mas que tudo fora sugerido” externamente. Todavia, segundo mesma denúncia, o padre não teria dito diretamente de quem, ou de onde, viera a interferência de fora. Porém, complementando a denúncia, Machado declarou que o padre dava a entender que o interventor “era o excelentíssimo Conde e Secretário de Estado”, Sebastião José de Carvalho e Melo.261 Inicialmente, três testemunhas foram chamadas a depor no processo: Pedro Florêncio Barroso de Almeida, cavaleiro professo da Ordem de Cristo e familiar do Santo Ofício, morador em Lisboa, perante o deputado do Conselho Geral d. Nuno Alves Pereira de Melo; Luís José da Silva Pereira, que vivia de suas fazendas e era também familiar da Inquisição, morador na Vila Franca de Xira, que compareceu, em 21 de outubro de 1761, diante do inquisidor Luiz Barata de Lima; e, por fim, Jerônimo Tavares Mascarenhas da Cunha, que compareceu, em 29 de outubro de 1761, também diante do inquisidor Luiz Barata de Lima. Com pequenas diferenças – por exemplo, a segunda testemunha disse que estava na presença de Pedro Florêncio Barroso quando ouviu as proposições do padre Jacinto José Coelho, mas denunciou as proposições, mesmo não sabendo nomear o denunciado –, as falas repetem, em linhas gerais, as proposições inicialmente denunciadas, somente acrescentando que o padre Jacinto Coelho teria dito que tinha informações internas do Santo Ofício, por ser um Isso, conforme a proposição atribuída ao religioso, teria sido mobilizado em favor do padre Malagrida. Francisco Xavier de Oliveira também menciona isso nas suas reflexões a respeito da jurisdição do Santo Ofício. Ibidem, p. 80. 260 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Processo do padre Jacinto José Coelho, proc. 9068. Fls. 7, 7v e 8. 261 Ibidem, fl. 8v. 293 comissário, sobre um religioso que não teria saído naquele auto de fé porque “não estava nos termos”.262 Este último era o frei Gabriel da Anunciação, acusado de ser solicitante. No sumário das testemunhas, assinado pelo inquisidor André Corsino de Figueiredo, o padre Jacinto Coelho, então comissário do Santo Ofício, foi acusado de duvidar do reto procedimento da Inquisição, além de violar seu segredo, ao mencionar detalhes sobre o processo do religioso acusado de solicitante, citado supra. 263 Foi condenado a sair no auto de fé de 27 de outubro 1765, além de abjuração de leve, sendo privado do cargo de comissário e excluído do serviço da Inquisição, além de degradado para Angola por sete anos. Condenaram-no, ainda, a penitências espirituais, instrução ordinária e pagamento de custas.264 Proposições e destino similares foram documentados no processo de Boaventura de Santiago e Silva, presbítero secular da ordem de São Pedro, em documento que envolve um grupo maior de pessoas. No processo, registram-se também proposições que teriam sido ditas sobre a condenação de Gabriel Malagrida, na ocasião da leitura de sua sentença. À época do processo, consta que o religioso estava preso nos cárceres secretos do Santo Ofício desde 06 de novembro 1762, por ordem do inquisidor Joaquim Jansen Muller. Na denúncia, dada em 14 de agosto do mesmo ano, feita, tal como no processo do comissário da Inquisição Jacinto José Coelho, por José Antônio de Oliveira Machado ao deputado do Conselho Geral da Inquisição d. Nuno Álvares Pereira de Melo, menciona-se que Boaventura Santiago já estava preso anteriormente pela mesma Junta de Inconfidência, na cadeia do Limoeiro “por ordem de sua Majestade”. Machado também denunciou mais pessoas, além de Boaventura Santiago. Foram eles o padre José Tomás Borges, presbítero e recluso, e o padre Sebastião Madeira, cura que foi da freguesia de São Nicolau e Francisco Stocler, “todos por matérias que julgava pertencer à alçada inquisitorial”. Na denúncia, o desembargador disse que, no mês de maio do ano anterior, fora denunciado à Suprema Junta da Inconfidência Domingos Gonçalves, por culpas de sua alçada. Sendo ele preso, declarou debaixo de juramentos, que o padre Boaventura costumava ir à sua casa e lá blasfemar. Segundo consta, o padre dizia “que não importava serem expulsos os jesuítas, que eles haviam de ser restituídos a este Reino”; dizia também “que o excelentíssimo conde e secretário de Estado”, o então conde de Oeiras Sebastião José de Carvalho e Melo, “havia feito bispo de Angola a frei 262 Ibidem, fls. 9-19v. Ibidem, fls. 21-21v. 264 Ibidem, fls. 186-188 e 190. 263 294 Francisco de Santo Tomás para o botar fora do Santo Ofício”, com o objetivo de “fazer inquisidor geral a seu irmão, o excelentíssimo senhor Paulo de Carvalho, fazendo ao mesmo tempo da Mesa Grande ao senhor d. Nuno Álvares Pereira de Melo para ser adjunto”, além do “padre mestre [frei João de] Mansilha, na Mesa Pequena”. Tudo isso seria “para sentenciarem Malagrida, que era tido e havido como homem santo, causa por que ele, Domingos Gonçalves, tivesse por certo e por fé que o tal Malagrida não havia morrer”. E que, depois que vira Malagrida morrer, segundo denúncia, “levou as mãos à cabeça e disse ‘Jesus ando perdido do juízo’, repetidamente, e a isso não sabia o sentido que dizia”.265 Declarou também que o denunciado, conforme disse outra testemunha citada, o mercador José da Costa Soares, na devassa da Inconfidência, que “com a mesma, ou mais liberdade”, o padre Boaventura era “sumamente falador, novelista, e maldizente”, e “que todas as suas notícias eram prognósticos perniciosos, persuadindo a todos com quem facilmente falava das fatalidades que nos esperavam”, e que também “tratasse cada um de fugir e pôr-se em salvo”, já que em breve “os castelhanos tomarão este Reino e esta Corte, que já Sua Majestade tinha mandado preparar a armada” para nela fugir. Também, segundo a denúncia, dizia-se que o conde de Oeiras planejava fugir, “mas que não havia [de] poder, porque o não haviam [de] deixar, por ter urdido tudo isto”, referindo-se à expulsão dos jesuítas e à injusta condenação de Malagrida. Completava, continuando a denúncia, reafirmando que “os jesuítas haviam tornar para este Reino”. Também foi denunciado que o padre Boaventura Santiago maldizia os mencionados ministros do Santo Ofício, dizendo que “todos os mais eram bons cacos”. Repetia que disse que, para degredarem o frei Francisco de Santo Tomás, o fizeram bispo de Angola, e que “o padre Malagrida era um homem santo, que até na prisão estava fazendo milagres”, e “que tivessem todos por certo que ele não havia morrer”. Porém, vendo que o jesuíta morrera e ouvindo sua sentença “fez grandes escarcéus”. No testemunho do mercador acima nomeado, em conclusão, foi dito que o padre ia muito à casa do mencionado doutor José Tomás Borges e do dito Stocler filho, e este último trazia notícias vindas em uma gazeta de Colônia, logo depois da morte de Malagrida, em que se repercutia a influência da vontade do conde de Oeiras na sentença do jesuíta. Nessas notícias, “diziam que mesmo os estilos do Santo Ofício foram manipulados em função da condenação de Malagrida”, pelo ministro de d. José I.266 265 266 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Processo do padre Boaventura de Santiago, proc. 9066. Fl. 5-7. Ibidem, Fl. 7-7v. 295 Consta ainda que o eclesiástico Boaventura Santiago fazia os mesmos discursos junto ao padre Sebastião Madeira, sobretudo a respeito dos jesuítas com os quais “o dito Madeira [era] muito apaixonado, sendo muitas vezes o primeiro que falava na matéria” a respeito da manipulação dos estilos inquisitoriais contra Malagrida e sobre sua inocência e santidade, “declarando a paixão e ódio do excelentíssimo Conde [de Oeiras] contra os jesuítas, que tinham sido expulsos sem causa, nem razão alguma”, sendo esta paixão e ódio causas para a condenação e morte de Malagrida. Quanto ao doutor José Tomás Borges, declarou que, além da mesma relação com os jesuítas, costumava afirmar “que quem se opunha aos jesuítas se opunha a Deus e ao Papa”, repetindo as mesmas proposições sobre a maquinação do ministro de d. José I contra Malagrida. O doutor Borges demonstrava, segundo a denúncia, concordar com as informações da dita gazeta publicada no estrangeiro e citada na denúncia, afirmando ainda que o empenho dos ministros do Santo Ofício na condenação do inaciano era uma prova da verdade dessas notícias. No entanto, “no dia do auto de fé [de Malagrida] descompusera com palavras ao dito Malagrida e que tinha botado a perder a sua religião”, que “suposto ele denunciado [o padre Boaventura] tenha dito que, no Tribunal do Santo Ofício, não havia homens letrados, isto dissera porque lho tinha dito o mesmo doutor José Tomás Borges”, “porque ele denunciado não conhecia nenhum dos senhores do Santo Ofício, exceto ao senhor dom Nuno [Álvares Pereira de Melo]”.267 Ao longo do processo, vários dos denunciados se apresentaram e houve acareação entre alguns para esclarecimento de alguns pontos. As proposições do padre em favor dos jesuítas e suas discussões sobre a repercussão da sentença de Malagrida, o uso que teria sido feito pelo Conde de Oeiras do Tribunal do Santo Ofício para condenálo e as diversas menções à santidade de Malagrida aparecem nas falas de várias testemunhas. Boaventura Santiago, segundo o padre José Tomás Borges, falara “por três vezes contra a literatura dos ministros do Santo Ofício”, afirmando, entre outras questões, “que faltavam os ministros antigos” ao tribunal no presente. O padre Boaventura Santiago e Silva, acrescentou, lera uma sátira, feita em duas colunas, uma em português e outra em francês, feita sobre a condenação do padre Malagrida. Esta teria sido divulgada a eles por seu autor, que dizia ser “o abade de Platel de Lorena”,268 muito possivelmente o franciscano Norbert de Bar-le-Duc, que assinou algumas obras 267 268 Ibidem, Fl. 8,9 e 9v. Ibidem, Fl. 20. 296 como “abade de Platel”, entre as quais Mémoires historiques (1760).269 É importante lembrar que a obra em questão era laudatória ao Marquês de Pombal e de tom extremamente antijesuítico. Nela, o argumento de que houve aparelhamento, por parte do Conde de Oeiras, da Inquisição portuguesa, com o fim de fazê-la condenar Malagrida, era apresentado como algo positivo ao combate do fanatismo e práticas supersticiosas, em prol da modernização de Portugal. Na obra, há uma argumentação que exalta a campanha do ministro de d. José I contra a Companhia de Jesus. Trata-se de uma obra, sublinhe-se, que teve uma circulação considerável no contexto francês das Luzes, entre os philosophes, em meados do século XVIII.270 Às proposições consideradas injuriosas contra o Santo Ofício, somou-se uma acusação contra Boaventura Santiago e Silva, por violar o segredo processual dos tribunais. Entre as proposições que entenderam haver no livro, estava a de que Malagrida teria sido julgado e condenado antes mesmo de passar pelo Tribunal do Santo Ofício, de acordo com o rito processual previsto nos regimentos e manuais.271 Tudo isso em conjunto foi suficiente para que o padre fosse condenado a sair no mesmo auto de fé que o padre Jacinto Coelho, além de abjuração de leve, degradado para o reino de Angola por cinco anos, ficando obrigado a penas e penitências espirituais, mais o pagamento de custas. O auto de fé de 27 de outubro de 1765 ainda teve mais dois condenados por proposições contra o “reto procedimento” do Tribunal do Santo Ofício, também relacionadas diretamente à execução do padre Malagrida: o padre Anastácio dos Santos e o tabelião José Antônio da Silva Freire. Ambos foram objeto de uma denúncia dada em 22 outubro de 1763, mais uma vez diante do deputado do Conselho Geral da Inquisição, d. Nuno Alves Pereira de Melo, pelo desembargador José Antônio de Oliveira. Os denunciados se encontravam presos por ordem da Suprema Junta de Inconfidência. Na denúncia, consta que o oficial de carpinteiro Domingos Francisco denunciou o padre Anastácio dos Santos por inconfidente. Ele vivera em sua companhia, juntamente com sua esposa, desde o terremoto de 1 de novembro 1755 até julho do ano anterior à denúncia. Domingos Francisco disse que Anastácio dos Santos proferiu, 269 CASTELO BRANCO, Camilo. Perfil do Marquês de Pombal. Porto/Rio de Janeiro: EditoresProprietários Clavel & Cª e L. Couto e Cª, 1882. p. 96-97. 270 CUNHA, Paulo Ferreira. La culture portugaise et la France Littéraire. Videtur, n. 19. Ed. especial. (online). Univ. do Porto – Faculdade de Direito, Instituto Jurídico Interdisciplinar; Centro de Estudos Medievais – Oriente & Ocidente; Editora Mandruvá. Disponível em: http://www.hottopos.com/videtur19/pfcunha.htm Acessado em mar./2018. 271 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Processo do padre Boaventura de Santiago. Op. Cit. fl. 35-35v e 4848v. 297 “entre outras blasfêmias, que jurou de vista, ouvida e fato próprio, contra a Sua Majestade e seu primeiro ministro e governo, a favor dos jesuítas, e outras pessoas mais”. Relatou que, na ocasião da leitura da sentença condenatória contra o padre Gabriel Malagrida, o religioso denunciado dissera-lhe que o dito jesuíta “era um homem santo, tido e havido por tal para com todos e que, assim a prisão, como as culpas que dizia a sentença do Santo Ofício”, era “tudo maquinado pelo Excelentíssimo conde [de Oeiras] e secretário de Estado contra o dito Malagrida a fim de mostrar ao mundo que todos os jesuítas eram assim e que todos mereciam o mesmo”. E para tanto, continuando a denúncia, o padre argumentava que o conde de Oeiras “tinha feito Ministros de sua facção como seu irmão, o senhor Paulo de Carvalho [nomeado por Pombal como inquisidor geral], e o senhor d. Nuno Alves Pereira de Melo, que lhe fizeram a vontade”, em postos chave do Santo Ofício, de forma muito similar ao que relata o processo analisado antes deste.272 Contra o tabelião José Antônio da Silva Freire, constam as mesmas acusações que foram feitas ao padre Anastácio do Santos, passadas em treslado para o Santo Ofício, com a diferença em que nelas se menciona o fato dele ter negado, inicialmente, as acusações e as ter confirmado somente depois de acareação com o padre Anastácio dos Santos. Da mesma forma, os seus inquiridores da Junta de Inconfidência contestaram um ponto de sua alegação no processo, pois teria dito que tais proposições em favor de Malagrida e dos jesuítas, contrárias à Inquisição e críticas ao Conde de Oeiras, eram “pontos (...) vulgares, falados por muitas pessoas” do seu entorno. Eles exigiram que fosse esclarecido quem disse e de onde tirou tais informações, ao que respondeu “se tratar de impressos jesuítas, publicados em Roma e vistos com um livreiro chamado Miguel Rodrigues, que os vendia”.273 Nos dois processos, são descritos diálogos que ambos teriam tido enquanto assistiam ao auto de fé de Malagrida. Em um deles, o padre Anastácio dos Santos, em sua confissão, declara ter tido com Freire conversas a respeito de detalhes bem específicos da sentença. O padre disse, na confissão, que arguindo Freire “com o que do dito Malagrida tinha ouvido na sentença, especialmente dos tratos impudicos que consigo tinha”, referindo-se à prática do onanismo na cela, o tabelião teria respondido que Malagrida “estava na sua necessidade”, e o “conde de Oeiras quis-nos fazer ver aquilo que todos vimos” com intenção de denegrir sua imagem, e teria completado que “ele governa tudo e quererá 272 273 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Processo do padre Anastácio dos Santos, proc. 9070. Fl. 7, 7v e 8. ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Processo de José António da Silva Freire, proc. 9069. Fl. 12-12v. 298 também governar o Tribunal, para o que meteu nele fulano e fulano, declarando os senhores Paulo de Carvalho e Mendonça e d. Nuno Alvares Pereira de Melo”.274 Já no processo de Freire, e ao mesmo diálogo, o acusado declarou, em confissão feita em 2 de junho de 1763, que, “encontrando-se com o delato [Anastácio dos Santos], antes” da leitura da sentença “do penitenciado Malagrida, lhe dissera ele = o que estou vendo é se ele faz papel=”, ao que respondera o delato “= fará, fará, que nisso não tenho eu dúvida”, porque “o conde [de Oeiras] é, ainda que ele seja um santo,” mostrará Malagrida “ser um demônio ou feiticeiro, ou o que ele quiser”, pois “ele tem o irmão” no tribunal inquisitorial.275 Nos processos de Freire e do padre Anastácio dos Santos, existem, ainda, diversas passagens em que há menção de contato deles e de outros que foram processados e condenados à mesma ocasião com uma literatura favorável aos jesuítas.276 Registra-se também que ambos seriam defensores dos religiosos da companhia e que, a partir dessa posição, pautaram partes de suas críticas a Sebastião José de Carvalho e Melo.277 Além disso, existem menções sobre estarem convictos da inocência e mesmo santidade de Malagrida.278 A isso, somavam-se diversas críticas, que indicam que os acusados e algumas pessoas de seu entorno viam aquele julgamento apenas como um mis en scène, em que o réu já havia sido condenado previamente. O religioso e o tabelião, além de também terem saído no auto de fé já mencionado, foram condenados à abjuração de leve, degredo por cinco anos para Angola, instrução na fé, penas e penitências espirituais, além de pagamento de custas. Freire, por sua vez, ainda foi absolvido ad cautelam da excomunhão de que incorria. Trata-se de ponto pacífico na historiografia que a Inquisição portuguesa foi mais fortemente submetida à Coroa e mesmo ao controle direto de Sebastião José de Carvalho e Melo, depois do Terremoto de 1755. O sismo do Dia de Todos os Santos daquele ano, que trouxe consequências das mais dramáticas a Portugal, não deixou por menos o Santo Ofício. Para Giuseppe Marcocci e José Pedro Paiva, ele significou um momento especialmente marcante dentro de um contexto mais amplo de decadência dos tribunais de fé, que antecedia ao seu controle mais incisivo por parte do Marquês de Pombal. Isso se deu porque, a partir de 1750, depois da morte do inquisidor geral d. 274 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Processo do padre Anastácio dos Santos. Op. Cit. Fl. 33. ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Processo de José António da Silva Freire. Op. Cit. Fl. 21. 276 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Processo do padre Anastácio dos Santos, Fl. 26; ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Processo de José António da Silva Freire. Fl. 27 277 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Processo do padre Anastácio dos Santos. Fl. 32; ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Processo de José António da Silva Freire. Fl. 35v. 278 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Processo do padre Anastácio dos Santos. Fl. 26v; ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Processo de José António da Silva Freire. Fl. 27 275 299 Nuno da Cunha e Ataíde e Melo, bastante próxima ao falecimento de d. João V, o cargo de inquisidor geral passou por um período de vacância de oito anos. O Conselho Geral assumira a governação dos tribunais, designando para isso uma equipe formada pelo frei Rodrigo de Lancastre, d. Nuno da Silva Teles, Antônio Ribeiro de Abreu, João Pais do Amaral, além de Manuel de Almeida Carneiro e Francisco Mendo Trigoso. Estes últimos eram os únicos com serviços mais recentes à Inquisição, na qual ingressaram respectivamente em 1741 e 1745; os demais eram ligados ao Santo Ofício desde datas que vão de 1714 até 1734. Nesse período, confirmou-se a tendência de decréscimo de condenações e processos concluídos, assim como se verifica o mesmo quanto as publicações de sentenças e autos de fé, em grande medida, decorrentes de uma significativa crise econômica que se abateu sobre a instituição.279 No terremoto de 1º. de novembro de 1755, em meio a esse quadro de crises, várias instalações da Inquisição de Lisboa foram abaladas de forma bastante considerável, como as do Palácio dos Estaus, bem como as do edifício destinado à habitação do inquisidor-geral, que foi completamente arruinado. Houve grande repercussão, à época, das tentativas de fugas de presos, aproveitando-se da situação caótica. Nesse contexto, o Tribunal de Lisboa viu-se obrigado a funcionar em barracas instaladas no Rossio, enquanto se tentava reconstruir às pressas suas instalações, situação que durou até 1756. Não menos importante foi o poderio alcançado por Sebastião José de Carvalho e Mello, o que, em grande medida, se deveu à sua atuação quando da ocorrência do referido sismo, como afirma Kenneth Maxwell.280 Dessa maneira, diante de um tribunal em crise desde os derradeiros anos da “Inquisição Barroca” – período que, segundo Marcocci e Paiva, corresponde à restauração dos tribunais de fé portugueses, em 1681, até a morte de d. Nuno da Cunha e Ataíde e Melo, marcado pelo apogeu dos tribunais em termos enraizamento institucional e social, além da magnificência e fausto em suas cerimônias públicas –, abriu-se ao ministro de d. José I uma espécie de “janela de oportunidades”, pela qual se viabilizou a instrumentalização e o controle mais efetivo da Inquisição portuguesa, no contexto do Reformismo Ilustrado. O plano Sebastião José de Carvalho e Melo para o Santo Ofício se ajustava ao projeto maior que ele tinha para Portugal e domínios, afinando-se às tendências externas e a seus propósitos de modernização, de reforço da secularização do Estado, diminuindo 279 280 MARCOCCI, Giuseppe; PAIVA, José Pedro. História da Inquisição portuguesa. Op. Cit. p. 302-302. MAXWELL, Keneth. Marquês de Pombal. Op. Cit. p. 26-32. 300 o poder eclesiástico e seus privilégios, além de reafirmar a soberania da Coroa perante a Santa Sé.281 Boa parte das ações que incidiu sobre os tribunais de fé se justificou pelo objetivo de reabilitá-los de um quadro de declínio acentuado. Assim, o então Conde de Oeiras tomou medidas que visavam submetê-los mais fortemente à Coroa, de tal sorte que, por um lado, a Inquisição se reabilitasse e, por outro, a autoridade civil a dominasse, de forma a poder contar com o seu aparato para usá-lo contra possíveis oposições.282 Francisco Falcon, a respeito da política pombalina para os tribunais do Santo Ofício, afirma: A Inquisição, como bem o compreendera d. Luís da Cunha, era uma instituição que a monarquia não se poderia dar ao luxo de extinguir. O próprio Oeiras dela se utilizou, por exemplo, contra o Pe. (Gabriel) Malagrida, em cujo auto-de-fé foi queimado também, embora em efígie, o Cavaleiro de Oliveira. Exemplo talvez este último de um certo tipo de pensamento ou de atitude mental intoleráveis até mesmo para o ‘pensamento ilustrado’.283 Dessa maneira, ainda de acordo com Falcon, que entende a orientação das reformas pombalinas no Santo Ofício como eclética – concepção geral sobre as Luzes de Portugal adotada pelo autor, que já foi analisada no Capítulo 1 desta tese –, a Inquisição seria uma “peça formidável” para articular o projeto secularizador com compromissos e ideias tradicionais, além de fazer parte da campanha antijesuítica. Assim, conclui o autor que: Exorcizam-se, de uma só vez, os velhos e novos deletérios. Tratava-se de fazer do temido tribunal um instrumento secular, estatal, de defesa da ordem e da ideologia dominante contra os desafios e os perigos das novas ideias, heresias de um novo tipo, suscetíveis também de pôr em perigo o trono lusitano.284 A submissão dos tribunais inquisitoriais, que fez parte do projeto pombalino e de seu discurso de dirigista e reformista, visando fazer deles um instrumentum regni – conforme terminologia usada por Cabral de Moncada, apropriada da documentação epistolar de Verney –, constituiu parte importante de sua campanha antijesuítica e de eliminação de possíveis inimigos. O exame das fontes, tais como as ligadas ao comissário do Santo Ofício, o padre Jacinto José Coelho, aos padres Anastácio dos Santos e Boaventura Santiago e ao tabelião José Antônio da Silva Freire, indica que havia algum nível de circulação de críticas à religião, Inquisição e monarquia, remetente 281 MARCOCCI, Giuseppe e PAIVA, José Pedro. História da Inquisição portuguesa. Op. Cit. p. 349. Ibidem, p. 351-353. 283 FALCON, Francisco Calazans. A Época Pombalina. Op. Cit. p. 441-442. 284 Ibidem, p. 442. 282 301 a uma incipiente opinião pública lusitana que se formou entre meados do século XVIII e princípios do XIX. Paralelamente, ao que tudo indica o cruzamento das proposições contidas nos processos dos padres e do tabelião degredados para Angola com a literatura circulante na Europa, na qual se incluem figuras como Voltaire, o Cavaleiro de Oliveira e o Abade de Platel – para se ater somente a alguns autores e obras –, havia uma percepção de uma Inquisição aparelhada pelo projeto de Estado português levado a cabo pelo ministro de d. José I. Às críticas contra o “reto procedimento” da Inquisição, assim, somavam-se elementos que remetiam a processos constituintes do “ímpeto secularizador” pombalino, como o antijesuitismo, e a fatos como a execução de Gabriel Malagrida. Com algumas sensíveis e significativas diferenças, há de se ressaltar aqui algum nível de dessacralização do Santo Ofício, de maneira relativamente similar ao que Robert Darnton analisou no contexto da Revolução Francesa, a partir das boemias literárias. Para este autor, a deterioração da imagem da realeza, da aristocracia e outras instituições centrais para o Antigo Regime francês, esteve intimamente ligada à difusão de uma “baixa literatura”. Tal literatura, inserindo-se numa “era da conversa”, típica do contexto das Luzes e que teve as gazetas e os cafés como importantes centros de disseminação de informações, expôs os vícios de uma casta aristocrática cada vez mais ao escrutínio público, a ponto de possibilitar que os franceses pensassem em si mesmos como vítimas de um Estado e de uma nobreza decadentes e arbitrários. Assim, nas palavras do autor, ocorreu uma “erosão ideológica”, de “baixo para cima”, a partir dos subliteratos e de um público ávido pela produção que difundia e vulgarizava debates da Ilustração.285 Esse processo, ainda segundo Darnton, era percebido também pelas autoridades que o viam duplamente: na esfera da cultura letrada e na difusão de escritos, mas também nas movimentações nas ruas e nos espaços coletivos, em constante articulação e formando sociabilidades de onde as críticas contra elas eram formadas.286 Porém, a semelhança com Portugal e o mundo mediterrâneo, ou mesmo com a América portuguesa colonial não foi mais que relativa, nesse ponto. Isso porque Darnton, em alguma medida, superdimensiona o poder dos impressos nessa erosão ideológica. Se é controverso essa importância dos escritos no contexto francês, analisar por essa chave os espaços lusófonos é completamente inviável. 285 286 DARNTON, Robert. Boemia literária e revolução. Op. Cit. p. 13-47. ________________. Poesia e polícia. Op. Cit. 302 O a documentação analisada indica e ter havido no espaço lusófono um processo mais próximo com o que Roger Chartier sistematiza com o conceito de dessacralização, que precedeu a Revolução Francesa. A dessacralização, segundo o autor francês, define processos distintos de uma descristianização – tendo por premissa de que a própria cristianização tenha sido complexa, longa, descontínua e incompleta na Europa – em que se observou uma mudança cultural dos franceses em relação às autoridades. Um distanciamento progressivo das figuras do rei ou do clero também minou sua autoridade nos espaços públicos, difundindo-se uma relação menos reverente e mais crítica, mas não necessariamente “revolucionária” – poderia ser, em muitos casos, conservadora – contra figuras que tradicionalmente não tinham suas posições na hierarquia social questionadas.287 Assim, uma mudança cultural que toca o trato com as autoridades precedeu a influência dos escritos e influenciou até mesmo a relação das pessoas com a leitura, com ela tendendo a ser, também, menos reverente e mais livre. Reforço a impossibilidade de se aplicar os mesmos conceitos ou tomar simplesmente tais processos analisados por Darnton, no contexto das Luzes francesas, de maneira análoga ao que se sucedeu em Portugal. Por sua vez, como demonstra o trabalho de os de Luiz Carlos Villalta, em Portugal e na América portuguesa, entre meados do Setecentos e princípio do Oitocentos, houve, junto ao aumento da circulação de impressos e livros, apesar da censura, uma importante mudança nas práticas de leitura e da relação com elas que remete a processos culturais mais próximos da dessacralização, como sistematizada por Chartier. A oralidade, a circulação de traduções e leituras coletivas, realizadas em espaços informais que poderiam ser as casas de indivíduos como os religiosos e o tabelião aqui analisados, por exemplo, são tão ou mais importantes para se compreender a incipiente esfera pública portuguesa quanto os impressos.288 Também é fundamental se entender que as dificuldades de publicação, somadas com a forte vigilância e dificuldades de se produzir e circular gazetas em Portugal,289 que são aspectos bastante significativos a serem levados em conta. A própria perseguição inquisitorial, experiência que a França não teve na Idade Moderna, ao contrário dos reinos ibéricos, também aparece como aspecto relevante. Dessa forma, os processos inquisitoriais, referentes aos quatro degredados para Angola por questionarem publicamente o procedimento do Santo Ofício, na ocasião do 287 CHARTIER, Roger. As origens culturais da Revolução Francesa. Op. Cit. p.171-202. VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do livro no mundo luso-brasileiro sob as Luzes. Op. Cit. p. 171-324. 289 TENGARRINHA, José. História da imprensa periódica portuguesa. Lisboa: Caminho, 1989. p. 48. 288 303 julgamento e execução do jesuíta Gabriel Malagrida, oferecem informações, em primeiro lugar, sobre a existência de uma incipiente esfera pública em Portugal em meados do XVIII, esta, como foi dito, se estruturou em torno de práticas diversas de leitura e de debates. Em segundo lugar, eles sugerem que, no interior dessa esfera pública, verificava-se alguma permeabilidade a ideias e a escritos estrangeiros. Nela, desenvolveram-se ideias e debates em torno desses escritos, em diversos espaços, apesar da vigilância de órgãos como a Junta de Inconfidência e a Inquisição. A existência dessa modalidade de debates, ainda que de forma restrita, indica haver alguma tomada de posições, por portugueses, quanto a aspectos das narrativas anti-inquisitoriais de meados do Setecentos. Assim, diferentemente do que se observa – mas, também, paralelamente e em diálogo – com o campo de proposições e blasfêmias críticas às regras, costumes e moral católicas, bem como contra a Inquisição, analisadas por Stuart Schwartz e Yllan de Mattos, que apontam para uma resistência difusa e pouco consciente em relação à ordem político-religiosa estabelecida, esses processos tornamse indícios de que se formava uma dimensão distinta de disputas em torno do religioso. Ainda que numa dimensão localizada e discreta, mas articulada com um contexto maior de críticas às perseguições religiosas e às inquisições, havia ações e debates nos espaços coletivos, onde se observavam disputas, que foram, nesse sentido, um tanto menos espontâneas, sem, contudo, um grau substantivo de organização. Nos quatro processos, observa-se essa percepção de que os tribunais de fé foram manipulados pelo Marquês de Pombal. Trata-se de um ponto presente nas proposições dos degredados, quando defendiam a inocência do padre Malagrida, o que guarda alguma proximidade com um campo mais vasto de críticas à Inquisição, campo este anterior e independente das Luzes. Afinal, como se observou no título a respeito das proposições e das blasfêmias, ligar as atividades dos Inquisidores, ou mesmo as do clero e da própria Igreja, a interesses não espirituais, configurou-se numa tópica importante na Época Moderna. O que acontece, de maneira nova, nas Luzes, é que tais pontos, presentes nas proposições – aqui, acrescento as críticas acima analisadas na publicação de Francisco Xavier de Oliveira – aproximam-se essas tópicas, críticas ao clero e à Inquisição, de aspectos próprios do Iluminismo católico luso, tais como o regalismo e o antijesuitismo, reelaborando-os. Assim, essas proposições demonstram que a própria crítica ao establishment católico que, também, incluiu algumas demandas por uma maior tolerância religiosa, articulam-se com pontos das Luzes católicas e levam sua crítica religiosa para além do que era balizado pelo dirigismo cultural pombalino, 304 analisado no Capítulo 2. Cumpre ressaltar, novamente, que uma chave para se entender essas críticas para além do dirigismo cultural pombalino foram um efeito colateral do próprio racionalismo com o qual o pombalismo se articulou, em seu discurso reformista. Dito de outra maneira, o “ímpeto secularizador” do Reformismo Ilustrado, que afetou o funcionamento e a própria finalidade da Inquisição portuguesa, influenciou, mesmo que indiretamente, elementos centrais das proposições críticas a ela. Tomando de uma maneira mais geral, a secularização em curso influencia e dá novos contornos às críticas à Inquisição. É o que se observa, por exemplo, nos ataques feitos pelo Cavaleiro de Oliveira aos tribunais, em boa parte articulados a uma posição clara do autor em relação às políticas regalistas, para ele, um Catolicismo verdadeiro, dissociado do vicioso “papismo”, que era tirânico e tinha a Inquisição como seu instrumento de exercício ilegítimo de poder, com o qual se submetiam até mesmo os próprios reis. Assim, observa-se, nos processos dos religiosos degredados para Angola e do Cavaleiro de Oliveira, cruzamentos diversos entre elementos oriundos de uma cultura letrada das Luzes – o regalismo, antijesuitismo, tópicas como a liberdade de consciência e religiosa, leituras de livros e gazetas, entre outros – com outros, que remetem a vertentes populares, como as dos blasfemadores, de críticas difusas ao status quo católico da Idade Moderna, à percepção da divisão do religioso em esfera íntima e exterior e da Inquisição como instituição que serve a propósitos mundanos e terrenos, entre outros. Além disso, o fato de todos estarem presos pela Junta de Inconfidência, assim como alguns dos que foram chamados a depor contra os religiosos e o tabelião nos processos, também indica que a crítica ao status quo católico, no geral, e ao Santo Ofício, a maneira como este era percebido no processo secularizador como agente ativo na campanha antijesuítica, visível no último grande auto de fé que culminou na espetacular execução do padre Malagrida, foi vista, pelas autoridades, como um foco de sedição. O que se nota é uma percepção, dos agentes do poder instituído sobre as heterodoxias, em que não se separavam suas naturezas religiosa e a política, ainda que, de alguma maneira, a própria crítica à Inquisição, pautada na ideia da injustiça produzida pela deturpação de suas finalidades, tenha sido, de alguma maneira, secularizada. Deve-se acrescentar, ainda, que a menção a uma obra laudatória ao antijesuitismo pombalino, como referência de alguns dos argumentos das proposições, vai de encontro a qualquer concepção sobre tais críticas como meras traduções de tópicas dos círculos letrados além-pirenaicos. Por fim, essa articulação de crítica religiosa – com alguns elementos secularizados – com a percepção de desordem 305 política, fez parte do processo de criação de um substrato importante para se entender a ideia da “tríplice conspiração”: isto é, conspiração contra o trono, o altar e a aristocracia, urdida a partir dessas sociabilidades heterodoxas,290 fundamental para se entender a perseguição aos heterodoxos no último quartel do século XVIII. Este aspecto, que será retomado nesta tese, no próximo e último capítulo, fez-se presente, entre o período dos processos contra John Coustos e outros maçons na década de 1740 e a época da execução de Malagrida, desenvolvendo-se sob a baliza dos debates de uma Ilustração católica. 290 NEVES, Lúcia Bastos Pereira. Revolução: em busca de um conceito no império luso-brasileiro (17891822). In: FEREZ JUNIOR, João; JASMIN, Marcelo (orgs.). História dos conceitos: diálogos transatlânticos. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, Ed. Loyola, Iuperj, 2007. p. 131-132. 306 Capítulo 4 – Pela tolerância, contra o trono e contra o altar “Nada irrita os inquisidores tanto como um homem que raciocina” (Hipólito José da Costa Pereira Furtado de Mendonça. Narrativa de perseguição. p. 64). A tolerância religiosa aparece na documentação inquisitorial do último quarto do século XVIII como elemento importante das falas dos chamados libertinos. Nesse momento, a irracionalidade de se perseguir pessoas em nome de dogmas religiosos, por exemplo, torna-se uma tópica das mais comuns nas suas proposições, que entrelaçam elementos já analisados no Capítulo 3 desta tese. Há, porém, duas particularidades referentes a este contexto: em primeiro lugar, a percepção de crise, que marca o período do final do Setecentos, que aparece de vários modos nas proposições dos libertinos e também nas das autoridades régias e inquisitoriais, relacionando-se a leituras do presente e a expectativas do futuro desses agentes. Elas estavam diretamente ligadas a percepções de realidades posteriores à queda do Marquês de Pombal, às revoluções na Europa e fora dela, entre outros elementos; em segundo lugar, relacionavam-se a uma incipiente esfera pública, cujos contornos encontravam-se mais claramente definidos e onde se difundia uma leitura conjuntural de que os libertinos, com suas sociabilidades e sua crítica universal aos valores do Antigo Regime e dogmas da fé católica, estariam no centro de uma crise, difundindo-a, acirrando-a e ameaçando toda a ordem tradicional. A tolerância religiosa foi um elemento muito presente nas críticas que perpassam tais falas heterodoxas. Ela foi um elemento articulador de ataques diversos à monarquia, à Igreja e também a toda uma sociedade de Antigo Regime. As defesas de formas mais tolerantes do trato com a diferença religiosa foram exprimidas, comumente, tanto como desejo e expectativa de um mundo que superasse o atraso simbolizado pelo establishment, como também na frustração por ele ainda não ter sido ultrapassado. Assumiram, também, forte teor político, indo de encontro com valores tradicionais da sociedade monárquica e cristã-católica. 4.1 Quem era o libertino da Idade Moderna e como ele chegou ao Iluminismo? 307 No ano de 1804 foi publicado, em Cuenca, a segunda impressão de um sermão que visava instruir católicos para um convencimento racional dos chamados “libertinos” quanto a seus “erros” de fé. Ele foi escrito pelo frei Bruno de Zaragoza, da Ordo Fratrum Minorum ou Ordem dos Frades Menores, que, segundo a mesma publicação, já fora também visitador geral dos capuchinhos de Mallorca, provincial da mesma ordem em Aragão e qualificador do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição (Figura 5). No sermão, o regular deixa claro que seus objetivos ali são os de "trazer à reflexão aos que, depois de haver logrado a imponderável graça do santo batismo, deixando se apoderar de uma perniciosa libertinagem, se converteram heterodoxos, esquecendo as primeiras luzes do Cristianismo".1 Para realizar tal objetivo, o frade instruía que aquilo de verdadeiro que há sobre a religião deveria ser demonstrado da mesma maneira que a da ciência, de forma a propiciar ao libertino entender, pelas vias racionais, que o Cristianismo é uma doutrina que: (...) manda a sujeição à razão até reduzir o homem ao estado da inocência, da abnegação de si mesmo, à pobreza, à humildade, ao perdão dos inimigos, à tolerância alegre e conforme as adversidades e à submissão aos juízos inescrutáveis e disposições da Providência.2 Para chegarem a esse estado, segundo Bruno de Zaragoza, os libertinos deveriam ser convencidos do absurdo lógico das doutrinas que seguiam, de maneira a se envergonharem de as ter aceito em algum momento. O frade afirmava seguir o exemplo de alguns dos grandes pais da Igreja, como Santo Agostinho, de como se proceder com aqueles que se desviavam da verdade em matéria de fé. Mas quem, para o frei da ordem dos frades menores, eram os ditos libertinos? Para ele, tratava-se de homens ímpios, mas singularmente dotados de bom entendimento. Porém, esse bom entendimento era tumultuado por paixões, tais como a soberba, o orgulho, a impostura, a vaidade e a indiferença perante a verdade e as autoridades. Justamente por estes libertinos serem pessoas dotadas de Luzes, continua o frade, em algum momento poderão ser convencidos pela razão a se curvar à verdade cristã, desde que racionalmente 1 ZARAGOZA, Bruno, fr. (OMS). Instruccion católica y convencimento racional de los heterodoxos y libertinos, compuesta sobre um sermon panegírico, dogmático y moral del Apóstol San Pedro. Por el M. R. P. Fr. Bruno de Zaragoza, ex-provincial de capuchinhos de Aragon, ex-comisario general de las misiones de Cumaná, visitador general que fue de los capuchinhos de Mallorca, calificador del Santo Tribunal de La Inquisicion, y examinador sinodal del obispado de Albarracin, &. Segunda Impresion. Com licncia. Cuenca: por d. Fernando de la Madrid. Año 1804. Digitalizado por Complutense University Library of Madrid. Disponível em Europeana Collections https://www.europeana.eu/portal/pt/record/9200110/BibliographicResource_1000126614905.html?q=libe rtino. Acessado em mai./2018. p. 167. 2 Tradução minha. Ibidem. p. 174 308 demonstrada. No entanto, no estado em que tais heterodoxos estão, as “ideias novas” sempre aparecem de forma mais atraente que as antigas e eternas verdades da Revelação. Nas suas palavras, as ideias seguidas pelos libertinos não passam de "desordenada aglomeração de sistemas ímpios, infundados e livres, que hoje”, no caso, nos finais dos séculos XVIII e princípio do XIX, “turvam a boa ordem do estado e religião". Isso se dá, continua, porque os libertinos, insubmissos à autoridade revelada na qual se fundam a Igreja e a razão natural, movidos por paixões tocantes aos seus espíritos – como a ambição – e aos sentidos – como a luxúria – se obstinavam em agir enganados por seus sistemas errôneos. A partir disso, utilizam-se deles para fazer as mais graves críticas em matérias como religião e política. Esse tipo de "depravação" dos libertinos fazia com que eles aderissem às doutrinas que "fecham ao entendimento perceber verdades de maior vulto", fundadas na tradição, razão, lei natural e a Revelação. 3 Assim, os libertinos tratam os princípios universais e verdadeiros, como a própria noção de verdade e a religião, com indiferença, e nem viam o que faziam e pensavam como matéria grave ou como crime suficiente para condená-los. E a causa que levava os libertinos a esta atitude era muito clara para o frei: o libertino, concluiu, se encontra “apaixonado pelo brilho deste século”, reduzido a “tal alucinação que não pode perceber a profundidade das verdades mais sólidas”, cravadas, como se depreende do texto, na tradição.4 3 4 Ibidem, p. 154-155. Ibidem, p. 157-158. 309 Figura 5- ZARAGOZA, Bruno, fr. (OMS). Instruccion católica y convencimento racional de los heterodoxos y libertinos, compuesta sobre um sermon panegírico, dogmático y moral del Apóstol San Pedro. Capa da segunda impressão. Não se trata de uma argumentação nova, no contexto das Luzes ou anterior a ele, a respeito da necessidade de se convencer por meio de argumentos os obstinados nesse tipo de “erros de fé”, que são os heterodoxos. Entretanto, no sermão, Bruno de Zaragoza aponta para algo que via como inédito, em sua época: nas suas palavras, os libertinos eram uma “novidade” em matéria de perigo ao Catolicismo e à integridade de suas tradições, àquela altura. Para ele, o seu “miserável século” era “uma época triste [em] que de forma mais descoberta foram inflamadas e desenfreadas as paixões”. Estas, “com um espírito faccionário de novidade, para fazer valer as máximas sediciosas”, levavam as pessoas, “com pretextos de humanidade”, a “acabar com os homens, com as legítimas potestades e com a religião”. Bruno de Zaragoza via que, no seu século, “corre o estrago 310 contagioso da liberdade e soberba”, que têm levado os homens a se pensarem “capazes de emendar as leis de Deus, de ser seus conselheiros”.5 Concluía, dizendo que, de meio século até quando escrevia, cresceu e se formou um “insaciável apetite de novidade”, que tomava grande parte das pessoas no mundo ibérico, referindo-se, especialmente, à Espanha. Segundo ele, no seu contexto, “nada se aprecia se não é novo”. O século das Luzes é, na sua visão, um “século apaixonado e solícito por novidades” e, dessa maneira, trazia transformações aos costumes, à religião e ao Estado, representando um grande perigo que deveria ser combatido.6 Embora no sermão de Bruno de Zaragoza se encontrem apontamentos e percepções específicos de seu tempo, que definia como um “século de novidades” que trazem ideias e fomentam críticas ao que havia de mais tradicional, o religioso se valeu de definições a respeito dos libertinos que revisitam tópicas existentes desde o tempo de Calvino, às quais ele revisita. Segundo o frade, no seio da Cristandade, desde os tempos bíblicos, passando pela Antiguidade Tardia, por suas querelas teológicas e pela Reforma protestante, esse tipo de desvio da verdade existe. Mesmo assim o religioso insiste que, na época das Luzes, os sistemas que “corrompem os costumes dos incautos, os separam de Jesus Cristo”, que desacreditam as verdades católicas e conduzem mais pessoas aos vícios que levam à “cegueira e desobediência”, com efeitos perversos em toda a ordem social “natural”, conforme determinada pelas Escrituras; eles, então, eram mais agudos que em qualquer outra época.7 Havia ali o materialismo, o deísmo e outras “novidades do século”, que ele se propunha a discutir, de maneira a desconstruí-las, a partir dessas chaves de leitura, ao longo do sermão. Tais novidades, nas palavras de Bruno de Zaragoza, formavam a base do indiferentismo da atitude dos libertinos perante todas as verdades e autoridades universalmente reconhecidas e ameaçavam toda a integridade do urbe católico, na medida em que o bom entendimento desses heterodoxos e o “espírito do século” serviam de arcabouço e cenário para que suas doutrinas se disseminassem. O ponto colocado pelo regular vai ao encontro de algumas constatações feitas pela historiografia, tocante aos libertinos. Conforme foi dito supra, algumas de suas tópicas remontam ao século das Reformas. Jean-Pierre Cavaillé, em artigo sobre os conceitos de “libertino” e “libertinismo” na literatura escocesa no século XVII, demonstra haver uma sequência diacrônica no processo de construção desse arquétipo 5 Ibidem, p. 222. Ibidem, p. 225. 7 Ibidem, p. 184-187. 6 311 entre os séculos XVI e XVIII, na qual se sucedem, sem exclusões mútuas, a caracterização de um "libertino espiritual" – estigmatizado por Calvino no panfleto Contre a secte phantastique et furieuse des libertins qui se nomment spirituels (1545) –, o “libertino erudito”, na figura do "filósofo cético" ou “espírito forte”, e o "libertino de costumes" ou hedonista – no que toca uma grande liberdade em matéria moral. A partir desse contexto, nas polêmicas entre diversos pensadores e teólogos partidários ou refratários à Reforma protestante, os ditos termos assumem dupla acepção: em primeiro lugar, a de libertinos como uma seita dentre várias outras – ainda que se deva considerar que muitas das seitas nomeadas nas ditas polêmicas religiosas jamais tenham, de fato, existido –; em segundo, a de que eles seriam uma espécie de "espírito de desobediência" e apelo por liberdade, sobretudo quanto à liberdade sexual, tendo esta reflexos diretos na desobediência religiosa e política, criticada como "falsa liberdade" pelos teólogos, que, em princípio, atribuíam significados negativos e acusatórios ao “libertino” e “libertinismo”.8 Já Tulio Gregory, ao analisar a figura do “libertino erudito” do século XVII, observa o desenvolvimento do “libertino” como arquétipo e conceito com origens na Baixa Idade Média, nas obras de pensadores que releram e ressignificaram escritos literários e filosóficos greco-romanos da Antiguidade clássica. Segundo Gregory, essa releitura teve grande contribuição no sentido de “secularizar” discussões sobre tópicas como a tirania política, a origem das religiões, entre outras, tendo Maquiavel como um nome central. A despeito do desenvolvimento da conotação negativa do “libertino”, Gregory sintetiza que, já no início do Seiscentos, sobretudo nos círculos letrados católicos da Europa continental, “libertinismo” se definia a partir de cinco características centrais: a) uma erudição que recupera e faz uso da Antiguidade clássica, além das tradições do Humanismo renascentista, tocantes a reconciliar o Cristianismo e paganismo greco-romano; b) um destacado ceticismo, que rejeita o dogmático e que encontra no exercício crítico da razão sua própria função, que é natural da condição humana, sintetizado no ideal da libertas philosophandi – grosso modo, a liberdade de pensar –; c) o relativismo radical fortalecido pela experiência da diversidade que nega valores universais e reduz normas éticas e práticas religiosas às suas origens "históricas", no sentido de terem sido criadas pelo homem; d) um entendimento elitista a 8 CAVAILLÉ, Jean-Pierre. Libertine and Libertinism: polemic uses of the terms in sixteenth-and seventeenth-century English and Scotish literature. The Journal for Early Modern Cultural Studies, v. 12, n. 2, p. 12–36, 2012. p.13-17. 312 respeito da posse da cultura letrada, sabedoria e conhecimento pelos "espíritos fortes", homens livres e, portanto, não comunicável nem com o homem comum iletrado, nem com letrados escravizados pelos costumes, preconceitos e tradições; e) constante apelo à ideia de "natureza", onde todos os fenômenos se localizam e podem ser explicados, como o lugar propriamente dito da humanidade.9 Libertino e libertinismo, assim, englobavam, na Idade Moderna, significados que envolvem desobediência a autoridades – letradas, religiosas, teológicas e políticas –, às regras morais e ao próprio dogma. Trata-se de múltiplos apelos por liberdade, vistas como perigosas em conjunto, pelos seus críticos, e que também constituíam elemento de ataque a adversários em polêmicas. Tal ataque poderia constituir uma base ética sobre a qual se poderia viver em sociedade a despeito de verdades universais estabelecidas. Além disso, englobava sociabilidades específicas, nas quais “espíritos fortes” e esclarecidos faziam parte, deixando de lado o vulgo e também outras pessoas esclarecidas, mas contaminadas pelos séculos de submissão ao dogma. Daí, tomando por base o sermão analisado acima, acrescenta-se um último elemento na caracterização do libertino, que é sua capacidade de “sedução dos incautos”, não contraditória, essencialmente, com algum elitismo típico das suas sociabilidades – assunto a ser retomado à frente, por ser aspecto identificável na documentação inquisitorial. O termo “libertino”, na língua portuguesa, aparece na definição feita por um acusado e condenado por libertinagens e outros delitos pela Inquisição de Portugal, o dicionarista Antônio de Morais e Silva. No Diccionario da língua portuguesa, Silva define “libertino” como, em primeiro lugar, partindo de uma definição de Roma antiga, aquele que “sendo cativo se forrara”, e também “aquele que sacudiu o jugo da Revelação, e presume, que a razão só pode [se] guiar com certeza no que respeita a Deus, à vida futura”. Acrescenta que o termo também define “aquele que é licencioso na vida”, “neste sentido moderno”.10 A insubmissão à fé revelada e mesmo a irreverência com a fé, com a autoridade eclesiástica e com os dogmas da religião dão a tônica da conhecidíssima obra Cathéchisme Libertin à l’usage des filles de joie et des jeunes demoseilles qui se décident à embrasser cette profession, publicado pela primeira vez em 1792, sendo assinado, na sua segunda impressão, por Theroigne de Méricourt – hoje, considera-se que a obra teria uma autoria incerta. O próprio termo “catecismo”, GREGORY, Tullio. “Libertinisme érudit” in seventh-century France and Italy: the critique of ethics and religion. British Journal for the History of Philosophy, v. 6, n. 3, p. 323–350, 1998. p. 329. 10 SILVA, Antônio de Morais. Diccionario da lingua portuguesa. Op. Cit. http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/2/libertino. Acessado em mai./2018. p.221 9 313 tradicionalmente usado na doutrina católica como um conjunto de meios para se educar pessoas na fé e doutrina católicas ou para sua conversão, utilizado nesta obra, denota que a perpassa uma relação irreverente e insubmissa à autoridade religiosa. O Cathéchisme consiste numa série de questões e respostas sobre de como se deve comportar uma prostituta para exercer seu ofício, intercaladas com várias imagens de teor erótico (Figuras 6). Quanto à forma, o texto se organiza de maneira bem similar aos catecismos, comuns a partir do século XVI, no contexto das reformas católica e protestante. Os catecismos, no geral, eram textos sintéticos, organizados em perguntas e respostas pertinentes à religião, cuja finalidade era instruir na doutrina e preparar o fiel para a vida dentro de uma comunidade de fieis.11 Assim, em seu texto introdutório, a junção conteúdo e forma denota uma liberdade perante o dogma, a moral e a religião, que se materializa no argumento e na estética da publicação. Este era a Oração à Santa Maria Madalena, com a qual o texto orienta o leitor a ler, antes de passar para o conteúdo do restante da obra: ORAÇÃO À SANTA MADALENA, antes de ler o catecismo Grande Santa, Padroeira das Putas, fortalecei meu espírito e dai-me a força do entendimento para melhor compreender e absorver as razões e preceitos contidos nesse catecismo; fazei que a vosso exemplo eu me torne, dentro de pouco tempo, pela prática, uma Prostituta tão célebre em Paris quanto tu fostes na Judeia, e eu te prometo, como minha Padroeira e Protetora, dedicar-te meus primeiros golpes de sorte em sua honra e glória. Que assim seja12 (Tradução minha) 11 RODRIGUES, Rui Luís. Os processos de confessionalização e sua importância para a compreensão da história do Ocidente na primeira modernidade (1530-1650). Tempo, vol. 23, n. 1, p.1-21, jan-abr/2017. p.4-5. 12 Texto original: ORAISON/ A SAINTE MAGDELEINE/ avant lire le catéchisme/ Grande Sainte, Patronne des Putains,/ fortifiez mon esprit, et donnez-moi la/ force de l’entendement, pour bien com/prendre et retenir tout le reffinement des/ préceptes contenu dans ce Catéchisme:/ faites qu’à votre exemple, je devienne,/dans peu, par la pratique, une Garce/ aussi célèbre dans Paris que vous l’étiez/dans tout ela Judée, et je vous promets,/ comme à ma divine Patronne et Protec/trice, de donnes mes premier coups de/cul em votre honneur et gloire./Ainsi soit-il. THÉROIGNE DE MÉRICOURT, Anne-Josèphe (atribuído a). Cathéchisme Libertin à l’usage des filles de joie et des jeunes demoseilles qui se décident à embrasser cette profession. Sur la copie imprimée à Paris, aux dépens de la veuve gourdan, 1792. Digitalizes by Google. Coleção Americana. Disponível em Archive.org: < https://archive.org/details/catchismelibert00unkngoog>. Acessado em mai./2018. p. 11-12. 314 Figura 6 - Figura, seguida do início do texto do Catéchisme, logo após a Oraison à Sainte Madaleine. THÉROIGNE DE MÉRICOURT, Anne-Josèphe (atribuído a). Cathéchisme Libertin.... Op. Cit. p.13. Libertino, no último quarto do século XVIII até início do século XIX, definia um arquétipo que sintetizava a insubmissão ao dogma e à religião, mas também às autoridades e à moral hegemônicas. Juntamente com a recusa intelectual e espiritual ao status quo religioso e político, “libertino” também definia um corpo insubmisso à moralidade dos costumes. Esses pontos vão ao encontro dos estudos de Luiz Carlos Villalta sobre os libertinos luso-brasileiros no mesmo período, já que o autor aponta para três acepções, não excludentes entre si, do termo, seja nas suas práticas, seja visão dos críticos do “libertinismo”: a primeira, no sentido de depravado, sobretudo no campo da moral sexual, significado também existente e disseminado no senso comum posterior ao século XVIII; em segundo lugar, a de diletante mundano e incrédulo; e, por fim, a de filósofo cético. Muitas vezes, esses três significados encontravam-se interligados, estando a licenciosidade sexual associada à incredulidade e ao ceticismo. O libertino, por fim, possui alguma coloração política na medida em que sua crítica universal às 315 autoridades conflui no arquétipo do monarcômaco, crítico à monarquia absoluta e a seus sustentáculos tradicionais, como o clero e a aristocracia.13 A tolerância religiosa aparece na documentação inquisitorial do último quarto do século XVIII como elemento importante das falas dos chamados libertinos. Nesse momento, a irracionalidade de se perseguir pessoas em nome de dogmas religiosos, por exemplo, é cada vez mais revisitada e reelaborada, e funciona como uma espécie de articulador, nas proposições dos libertinos, de alguns dos elementos já analisados no Capítulo 3 desta tese – que são a percepção “dividida” entre uma religiosidade exterior e interior, a “resistência difusa” ao establishment católico e outras resistências mais diretas e conscientes. Há, ainda, a constante presença de leituras e apropriações da cultura letrada das Luzes, o que indica que os libertinos aturaram não somente como meros tradutores de formulações pensadas nos Além-Pirineus, ao contrário do que diz sobre os mesmos Luís Antônio de Oliveira Ramos.14 A isso deve se acrescentar um sem número de práticas de leitura e debates que, em função da censura e vigilância inquisitorial tinham espaços bem específicos para acontecerem, e que serão melhor detalhados à frente. Formava-se, dessa maneira, um importante substrato de crítica religiosa – mais ou menos radical –, que, mais e mais, foi sendo percebido pelas autoridades como corrosivo às estruturas do Antigo regime português e luso-brasileiro. Aqui, pode-se dizer que as críticas tocantes às disputas do campo religioso adquiriram colorações mais gerais, formadoras de sociabilidades específicas e que definiram chaves de percepções da realidade e de projetos e expectativas de futuro. O desejo por uma tolerância religiosa, assim, funcionou, para muitos, como elemento de articulação de leituras do passado e do presente, mas também para, de maneira mais ou menos factível, imaginar-se a viver em sociedade de maneira mais livre quanto às tradições, religião e estruturas políticas tradicionais. Na trajetória do conhecido libertino Manuel Félix de Negreiros, observam-se alguns dos pontos acima discutidos. Em maio de 1776, o reitor Manoel Pires de Castro se apresentou à Inquisição de Coimbra, a fim de denunciar proposições que teriam sido ditas por Negreiros. Elas lhe teriam sido passadas, segundo sua apresentação, pelo padre 13 VILLALTA, Luiz Carlos. Libertinagens e livros libertinos no mundo luso-brasileiro (1740-1802). In: MEGIANI, Ana Paula Torres; ALGRANTI, Leila Mezan (Orgs.). O Império por escrito: formas de transmissão da cultura letrada no mundo ibérico (séculos XVI-XVIII). São Paulo: Alameda/FAPESP/Cátedra Jaime Cortesão, 2009, p. 511-550. p. 511. 14 RAMOS, Luís A. de Oliveira. A irreligião filosófica na província vista do Santo Ofício nos fins do século XVIII: uma tentativa de exemplificação. Revista da Faculdade de Letras, 2ª série, volume 5, (p. 173-188). Porto, 1988. p. 181. 316 João Pedro de Lemos Montes. O denunciante disse que, pelas suas “obrigações de católico e pároco”, foi denunciar Negreiros por ter “proferido proposições heréticas e blasfemas”. Manoel Pires de Castro disse que Negreiros duvidava formalmente do mistério da transubstanciação – da hóstia no corpo e sangue de Cristo –, pois se indagava sobre “até onde podia chegar a religião católica crer que é aquilo que não é”, ou, noutras palavras, obrigador a crer que o que estava ausente era real e o que estava real era ausente. Também duvidava, segundo o reitor denunciante, do Inferno, pois dizia “é incrível que um pecado sendo momentâneo se castigue com uma pena eterna”. Também, conforme a denúncia, Negreiros comia carne durante a quaresma publicamente à presença de várias testemunhas. Mais que isso, Negreiros deixava a entender que a Igreja católica errou ao instituir os jejuns quaresmais, dizendo sobre isso que “só os ingleses tinham as verdadeiras luzes porquanto comiam carne e mandavam bacalhau” aos católicos portugueses. Questionava, ainda segundo a mesma denúncia, o poder de Jesus Cristo “que veio no mundo, porquanto” seu poder, sendo supostamente infinito, “convertera uma pequena porção de nações”. Concluindo a denúncia, o reitor Manoel Pires de Castro disse que Negreiros é “certo que estima e, muito, a doutrina diabólica [das] máximas de Voltaire e, com especialidade, o Dicionário Diabólico”, possivelmente se referindo ao Diccionnaire Philosophique (1764). Além disso, ele “em tudo parece conformar-se com o Materialismo”. Acrescentava, como já foi dito, ademais, que tais proposições foram denunciadas pelo padre João Pedro de Lemos Montes à Inquisição de Lisboa e que Manoel Félix de Negreiros vivia em casa do então Marquês de Marialva.15 Em cópia de uma correspondência do reitor Manoel Pires e Castro, passada à Inquisição por João Correa Xavier, constam algumas informações a respeito da trajetória de Manoel Félix de Negreiros. O notório libertino era filho de Miguel Pinto, formado em medicina e natural da Vila de Alfândega da Fé, região norte de Portugal e atual sub-região do Alto Trás-os-Montes. Teria nascido “do tempo em que o pai teve o partido da mesma Vila” e, “depois de passados alguns anos, [ambos] foram para a cidade do Porto”, onde Negreiros vivia à época das denúncias. Do Porto, dizia ainda que Manuel Félix de Negreiros, “só por ocasião da fábrica de azeite”, costumava ir à Vila Flor, também ao norte de Portugal, “aonde tem um casal” – ou seja, um conjunto de casas –, o qual “administra por morte do seu pai, que verdadeiramente era natural da 15 ANTT, Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. 130º CADERNO DO PROMOTOR, liv. 319. Fls. 5-5v. 317 mesma Vila Flor”. Conta ainda que na mesma cidade do Porto, Negreiros aprendeu a gramática e obteve quatro graus das ordens menores como eclesiástico. Assistiu a “todo o curso de filosofia e retórica e passou a Coimbra, em cuja Universidade se matriculou cinco anos”, na faculdade dos Sagrados Cânones. Na mesma faculdade, Negreiros “se instruiu nas Belas Letras, Línguas e História” e, por isso, à data do documento, janeiro de 1779, “é reconhecido por um homem sábio, e de grande talento”.16 À época, já constava uma apresentação, por escrito, com denúncias contra Manuel Félix de Negreiros à Inquisição de Coimbra, feita pelo padre João Pedro de Lemos Montes, que se apresentou em maio de 1779 ao tribunal de Lisboa. Lemos Montes, presbítero secular e bacharel formado nos Sagrados Cânones, era natural de Vila Flor e frequentava a Universidade de Coimbra e a casa do Marquês de Marialva à mesma época em que Negreiros o fazia. Na apresentação, disse que, em 1775, aos seus 28 anos, começou a ler livros proibidos, tais como os escritos de Voltaire e Rousseau, além de alguns manuscritos como o que identificou como “Filósofo Militar” – este, provavelmente, Le militaire philosophe, ou difficultés sur la religion proposées au père Malebranche, (1768), cujos autores são o Barão d’Holbach e Jacques-André Naigeon.17 Montes acrescentou que passou a “dizer várias heresias, que atacavam quase todos os dogmas da Nossa Santa Religião”, pois ele havia deixado “interver [sic, entrever] o seus sentimentos, que se inclinavam para” o que disse ser “um puro deísmo”. Com “um Manoel Félix de Negreiros”, a quem “só manifestava francamente a religião e consciência”, por algumas vezes, disse que, “por força dos argumentos deduzidos da matéria” tocante ao que lia, “caminhava para o ateísmo, hesitando na existência de Deus, pela confusão, que se lhe representava no mundo moral, condição oposta à 16 Ibidem, Fls. 6-6v e 7. Esta obra, sinteticamente, traz um apanhado de argumentos materialistas, ateístas e anticristãos constantes de publicações mais radicais, do ponto de vista religioso, da segunda metade do século XVIII. É interessante observar que, já no início, há uma menção ao Santo Ofício como motivador de uma reflexão contrária a todo o tipo de religião instituída: “A Inquisição & todas as violências que ela exerce para submeter os espíritos, sob o pretexto da religião & para privar o gênero humano de toda a liberdade, me deram em seguida as ideias mais desvantajosas dos padres e do sacerdócio, no geral”. Daí se conduz uma argumentação na qual se equiparam as perseguições dos cristãos pelos romanos, à dos reis católicos contra “hereges” e à dos protestantes contra outras confissões. Essa argumentaçao assentava-se no pressuposto segundo o qual as religiões instituídas somente servem à tirania. A legitimidade desse tipo de perseguição, em teoria desenvolvida para se manter a unidade do Estado, é duramente questionada. A própria razoabilidade das religiões é criticada com base num vocabulário bastante vincado nas ciências naturais. Vários aspetos, tais como a morte da alma assim que morre o corpo, ou a irracionalidade de se tomar alguma religião como universal, já que o pertencimento a alguma confissão religiosa depende, acima de tudo, do lugar onde se nasce, são ressaltados. NAIGEON, Jacques-André; d’HOLBACH, Paul Henri Thiry, Barão [1768]. Le militaire philosophe, ou difficultès sur la religion proposées au r. père. Malebranche. Par um ancien officier. Londres, Nouvelle Edition. Disponível em Gallica < https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k86225z/f1.image> . Acessado em jul./2018. p. 15 e 13 a 43. 17 318 sabedoria infinita, que se nos persuade do que ser supremo”.18 Concluía, na apresentação, dizendo que: Enfim, todos os cultos religiosos estabelecidos em o Universo, se lhe representavam todos para ele indiferentes, e obras da política dos homens.19 É muito clara a proximidade do conteúdo de sua proposição com argumentos do Le militaire philosophe, embora a relação entre a elaboração de uma e a leitura de outra precise ser problematizada. Antes da discussão nesse sentido, é importante ressaltar as proposições de Montes e suas outras menções a Negreiros. O presbítero secular, na sua apresentação, disse que duvidava do mistério da Santíssima Trindade, argumentando “que não poderia crer num Deus de três cabeças encastoado em pão”. Também declarou que se persuadiu contra a Encarnação, dizendo ser impossível “um Deus, de tamanho que não cabe no mundo, reduzir-se ao ventre de Maria”. Pela mesma razão, duvidada da Eucaristia. Afirmava, ainda, que todo e qualquer culto cristão é uma invenção humana e que “se pode dar o mesmo culto que os chineses e japoneses dão a Deus como cada um bem quiser”, questionando, assim, a universalidade da Revelação.20 A partir daí, Montes também questionou a Divina Providência, pois disse que, se ela existisse, haveria de existir uma uniformidade de culto. Afirmou ainda que cria que todas as coisas no mundo aconteciam por um mero mecanismo casual de evolução da matéria. Ainda, Montes duvidava da existência de Purgatório, do Inferno e dos castigos pós-vida, considerando-os contraditórios com a misericórdia de Deus.21 Por fim, João Pedro de Lemos Montes disse que duvidava da graça de divina, já que, se o homem não se salvasse sozinho, a culpa não seria sua, e sim de Deus. E em consequência dessas proposições teria feito muitas outras, das quais não mais se lembra.22 Contudo, dois elementos da apresentação e denúncia servem como uma espécie de atenuante. Em primeiro lugar, os livros e, juntamente com eles, sua proximidade a Manoel Félix de Negreiros. Lemos Montes disse que, depois desse tempo que viveu com esses erros, “em sossego, recebendo no São Matheus”, no ano de 1777, “a ordem de diácono e, logo na Santa Luzia, imediata, a do presbítero”, viveu por seis meses em Braga, e o recolhimento no seminário despertou em seu espírito “sentimentos de 18 ANTT, Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Processo do Padre João Pedro de Lemos Montes, proc. 6661. Fl. 2v. 19 Ibidem, p. 1v. 20 Ibidem, Fls. 12-12v. 21 Ibidem, Fl. 13. 22 Ibidem, Fl. 13v. 319 verdadeira piedade”, com o qual “principiou a formar os santos projetos de extrair-se a esta vida tão cheia de remorsos”. Assim, confessou-se, e declarou que seu confessor o recomendou que comparecesse em mesa para fazer sua confissão à Inquisição de Coimbra, no mesmo ano de 1778 ele pediu audiência, comparecendo em mesa para se apresentar e fazer as devidas denúncias. Porém, o padre, “vendo-se [depois de sua confissão] na Corte a favor da liberdade que dá a multidão, esqueceu os santos propósitos com que tinha saído de casa”(no caso, o de se apresentar à Inquisição), e continuou a ler livros proibidos, os quais lhe foram emprestados por Manoel Félix de Negreiros, com quem falava livremente sobre as ditas matérias. 23 Os livros, que identificou como “Sermão dos cinquenta filósofos” e “Exame importante da religião”, provavelmente eram Sermon des cinquante, de Voltaire, e Examen de la réligion, de César Chesnau du Mersais, respectivamente publicados em 1749 e 1745. O primeiro, sobretudo, merece atenção, por causa de algumas proximidades com os argumentos das proposições. No curto texto atribuído a Voltaire, há um diálogo no qual um personagem, religioso, reunido a “cinquenta pessoas instruídas, pias e razoáveis”, numa espécie de assembleia, desenvolve um sermão, no qual analisa, à luz da razão ilustrada, uma crítica às Escrituras, a diversos dogmas, a ações e a falas atribuídas a Deus, e a vários pontos de religião. Fica claro, no sermão, que os diversos crimes e violências contidos na Bíblia, ou mesmo nas ações de diversas autoridades, em nome dela ou da religião, são avaliados como sendo superstição, extravagância e grandes monstruosidades opostas à razão. Dessa forma, o Sermão acaba por defender uma espécie de religião universal, tolerante, universalista e calcada na razão, e não em convenções humanas, que definem cultos demasiado exteriorizados e empreendem perseguições a outros grupos religiosos.24 Mais detalhes ainda a respeito de Manuel Félix de Negreiros, sobretudo suas falas heterodoxas, vêm de uma outra apresentação, seguida de denúncia. Trata-se da apresentação dada por Francisco Antônio de Mesquita Monteiro, em 23 de novembro de 1779, por escrito, à Inquisição de Lisboa. O denunciante, como consta numa das margens do documento, era tenente dos regimentos do Porto e, à época da denúncia, fora a Lisboa a serviço para, depois, recolher-se novamente no Porto. Porém, sabendo que na Corte estava preso Manoel Félix de Negreiros, foi até a mesa do Santo Ofício 23 Ibidem, Fl. 2, 10 e 12. VOLTAIRE, François Marie Arouet. Dialogues satiriques & philosophiques: suivis du sermon des cinquante [1749]. Paris: E. Dentu Éditeur Libraire de la societé des gens de lettres, 1890. Disponível em: < https://archive.org/details/dialoguessatiri00voltgoog>. Acessado em jul./2018. p. 273-302. 24 320 levar a denúncia. O mesmo teria feito, segundo declara, outro homem identificado como Luiz Caetano de Campos,25 morador no Porto, que teria remetido sua denúncia à Inquisição de Coimbra.26 O tenente disse que, “passeando em uma tarde junto à noite” e “vendo passear gente que ia para a novena da Senhora do Carmo”, encontrou com o dito Manuel Félix de Negreiros, “em conversação” sobre a “história da França de Luís 14, de que sumamente gostava pela instrução”. A instrução notável de Negreiros, segundo o denunciante, o entreteve em diversos assuntos, nos quais conversaram até a noite, “em que fazia um muito bom luar e deixando a conversação até aquele ponto”. Prosseguindo, o denunciante disse a Negreiros “que estimaria saber a razão por que a Lua não se podia ver toda, assim como em outras noites”, ao que o libertino respondeu que “era obra da natureza, assim como tudo o mais que havia”. Negreiros, continuando a sua resposta, disse que “este conhecimento só tinham homens estudiosos e iluminados”. Francisco Antônio de Mesquita Monteiro, então, perguntou quem seriam esses homens iluminados, ao que Negreiros prontamente respondeu “que eram aqueles que obravam conforme a lei que cada um tinha no seu coração escrita” e também “seguindo os sentimentos a que ele se inclinasse, que eram os da liberdade do homem”. Depois de dizer isso, continuou o denunciante, Negreiros foi abordado por um sujeito a quem, conforme a denúncia, se referia como “francês”. Após se abraçarem, Negreiros disse ao denunciante que o referido homem era um dos homens aos quais ele chamou de “iluminados”. Depois disso, o denunciante disse que se despediu “para ir fazer oração” como era seu costume, para a mesma Senhora do Carmo, “onde ia todas as noites”, ao que Negreiros e o dito “francês” “se puseram a rir”, dizendo “que desse saudações à Maria”. Num outro encontro que teve, em uma casa próxima da igreja onde o denunciante disse ter feito suas orações de costume, Manoel Félix de Negreiros teria dito ao denunciante, depois de tê-lo pedido para se sentar, que o iria “desenganar” de sua “hipocrisia” e que “ouvisse ler aquele livro que tinha em mãos”, ao qual o denunciante não identificou, mas declarou ter prestado atenção à sua leitura. Disse que, após isso, Negreiros começou seu discurso, que “era como um sermão, em que se 25 O mesmo romancista português autor, em 1790, de Viagens de Altina, nas cidades mais cultas da Europa e nas principais povoações dos Balinos, povos desconhecidos de todo o mundo, e, em 1806, da polêmica tradução do espanhol da obra Filósofa por amor. Sobe os diversos contratempos que esta última obra teve com a censura portuguesa, há um detalhado trabalho a seu respeito publicado por Márcia Abreu. ABREU, Márcia. O controle à publicação de livros nos séculos XVIII e XIX: uma outra visão da censura. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais. Out.-dez/2007. (1-12), vol. 4, ano IV, nº 4. 26 ANTT, Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. 130º CADERNO DO PROMOTOR, Op. Cit. Fl. 79 [margem]. 321 dilatou pouco mais ou menos [uma] hora”, “lendo pelo mesmo livro”, no qual se dizia que “Jesus Cristo era um impostor”, além de tratar “a Santíssima Virgem por impura e outros ditos” de que não se lembrava.27 O denunciante Francisco Antônio de Mesquita Monteiro descreveu um segundo encontro com Negreiros, na mesma denúncia, acontecido dias depois, quando estava perto do quartel fazendo seus exercícios militares. Disse que Negreiros principiou “as mesmas blasfêmias que tinha dito na noite em que” estivera “lendo o livro” ao qual se referiu. O denunciado teria tentado ler um outro, sem sucesso devido à ocupação, no momento, do denunciante. Porém, um ou dois dias depois, segundo a mesma denúncia, Negreiros foi à casa do tenente “dando princípio às mesmas proposições”, ao que Monteiro “lhe disse que tivesse cautela com a sua língua, que certamente o haviam de prender pelo Tribunal do Santo Ofício”. A isso, Negreiros teria respondido que “não temia porque o mesmo” que proferia o fazia de forma oculta e dizia, ainda, “que se o chamassem [...] que fora a coisa meio mal feita admitir-se este Santo Tribunal, que podia haver que não queriam outra coisa mais do que prender os homens e chegá-los ao fogo só por lhe ficarem senhores dos seus bens”. Além disso, Negreiros teria tido que a Inquisição agia “não querendo deixar pensar os homens, mais do que tê-los no jugo da ignorância”, ao que o denunciante não mais o quis ouvir.28 A trajetória de Manoel Félix de Negreiros foi estudada e cobre praticamente todo o reinado de d. Maria I. Segundo Luís Antônio de Oliveira Ramos, trata-se de um homem formado pela Ilustração, que evoluiu no sentido das ideias republicanas, tornando-se um adepto ferrenho do que chamou La Grande Nation, o que lhe trouxe sucessivos encarceramentos. Por isso, no início do reinado mariano, foi penitenciado pela Inquisição por “ser um heterodoxo leitor dos filósofos, em período coincidente com a Revolução francesa distinguiu-se entre os mações e jacobinos portugueses que apoiavam as experiências parisianas”.29 Vários elementos similares aos encontrados na documentação sobre Manoel Félix de Negreiros podem ser vistos no importante processo de José Anastácio da Cunha, militar e, tempos depois, lente de Geometria da Universidade de Coimbra. Nascido em Lisboa em 1744, Cunha estudou junto à Congregação do Oratório, na Casa 27 Ibidem, Fl. 79 Ibidem, Fl. 79v. 29 RAMOS, Luís Antônio de Oliveira. Um marginal do século XVIII: o jacobino Manuel Negreiros In.: Centro de História da Universidade do Porto (org.). Estudos de história contemporânea portuguesa: homenagem ao professor Víctor de Sá. Porto: Universidade do Porto, 1991. p. 83-91. p. 83. 28 322 das Necessidades. Em 1762, no curso da Guerra dos Sete Anos (1753-1763) e em ocasião da invasão de Espanha e França a Portugal – de 1762, terminada no mesmo ano –, o futuro lente de Coimbra aceitou o posto de oficial artilheiro no Porto, sendo aquartelado em Valença do Minho. Atendendo à demanda do oficial britânico Simon Fraser, José Anastácio da Cunha escreveu alguns apontamentos importantes, em que analisava manuais de balística estrangeiros, apontando-lhe alguns erros. A boa recepção desses escritos valeu-lhe uma promoção ao cargo de tenente, recomendada pelo Conde de Schaumburg-Lippe, em 1764.30 O conflito militar mencionado anteriormente, é necessário sublinhar aqui, impactou significativamente a organização militar em Portugal. Dele decorreu uma reforma estrutural substantiva, levada a cabo pelo mencionado Conde de Lippe, general de origem alemã a serviço da Coroa britânica e patrocinada pelo Conde de Oeiras.31 Foram criadas auditorias de guerra e atribuiu-se um papel mais relevante às milícias e às ordenanças para a defesa terrestre do território, sobretudo o colonial. Tais ações estiveram de acordo com formulações teóricas que visavam ao fortalecimento do poder do Estado e das elites políticas, bem como à reformulação da força militar que se colocava como mais um meio de se operacionalizar um modelo de sociedade no qual todos – nobreza, clero e povo – submetiam-se a uma monarquia absoluta, distinta do absolutismo tradicional dos séculos anteriores. 32 A presença de José Anastácio da Cunha em Valença do Minho, em companhia de muitos estrangeiros, é decisiva para que se consiga entender sua trajetória nas malhas inquisitoriais. Antes disso, fora nomeado pelo próprio Sebastião José de Carvalho e Melo como lente de Geometria em Coimbra, no ano 1773, e posteriormente teve importantes publicações, tanto na poesia como na Matemática.33 A passagem do lente pelas malhas inquisitoriais deu-se no contexto de uma devassa maior ocorrida no final dos anos 1770, já após a queda do Marquês de Pombal. As matérias que foram levantadas em seu processo e no de vários outros que foram presos à mesma época e lugar remetem a situações acerca de sua passagem em Valença do Minho. Como observou João Pedro Ferro, ali Cunha encontrou-se com um regimento composto em grande parte por estrangeiros de diversas nacionalidades, como ingleses, franceses, italianos e alemães, boa parte deles protestante. Tratava-se de um 30 QUEIRÓ, João Filipe. José Anastácio da Cunha: a forgotten forerunner. The Mathematical Inteligencer. vol. 10, nº, p. 38-43, 1988. p.38-39. 31 MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal. Op. Cit. p.119-123. 32 WEHLING, Arno; WEHLING, Maria José. Exército, milícias e ordenanças na Corte Joanina: permanências e modificações. DaCultura, ano VIII, nº 14, p. 26-32, jun. 2008. p.27 33 QUEIRÓ, João Filipe. José Anastácio da Cunha: a forgotten forerunner. Op. Cit. 323 grupo composto de muitos oficiais mercenários que foram a terras lusitanas em busca de regalias que não conseguiram em seus países, aproveitando a oportunidade, já mencionada, que se abriu na sequência da reorganização do exército português. Ainda para o autor, esses estrangeiros “eram normalmente pouco disciplinados”, apesar de notáveis conhecedores de seu ofício, e “sua conduta como livres pensadores e protestantes escandalizava frequentemente o establishment religioso do país”.34 É o que se observa em muitos pontos e no perfil de muitos dos demais que tiveram destino parecido com o de Cunha. O processo se desenrolou de maneira rápida, tendo sido iniciado e terminado em 1778, entre junho e outubro. Foram, ao todo, doze denúncias contra José Anastácio da Cunha, duas apresentando-se livremente e outras, ao longo das averiguações. As primeiras informações vieram das declarações de José Madeira Monteiro, em janeiro do ano do processo. No processo, consta que esse denunciante, preso por culpas de libertinismo desde 7 de janeiro de 1778, apresentou algumas culpas contra o lente. Disse que Cunha manteve, durante os anos em que conviveu com ele em Valença do Minho, “muita amizade, trato e familiaridade com todos os oficiais do dito Regimento” da mencionada cidade, que eram “hereges protestantes, e que com eles e com os mais libertinos, comia carne em todos os dias proibidos”. Mais ainda, disse que o então tenente do Regimento “conservava em sua casa uma manceba, a quem não deixava ir à missa” – sobre a qual, mais à frente no processo, se acrescenta que seu nome era Margarida. Disse que José Anastácio “não tinha outra lição mais que livros proibidos, digo franceses e ingleses” e que “era tido na dita Praça por herege e um dos mais ímpios e depravados libertinos”. Acrescentou ainda que Cunha escarnecia das cerimônias católicas, detalhando o fato de ele ter participado, com o capitão Ricardo Muller, em ocasião da morte de um cachorro, de uma encenação de ritos fúnebres para o animal.35 Seguiram-se falas de outros presos pela Inquisição de Coimbra por culpas de libertinismo: José Leandro Miliani da Cruz36 e do cirurgião-mor Alexis Vachi, que aparece na documentação como Alexis Vacchi.37 34 FERRO, João Pedro. O processo de José Anastácio da Cunha na Inquisição de Coimbra. Introdução, transcrição e notas de João Pedro Ferro. Revista História. Ano IX, nº 100, p. 4-35. Fev./1987. p.5. 35 Ibidem, p. 13. 36 Foi considerado “herege, apóstata de Nossa Santa Fé Católica, e que incorreu em sentença de excomunhão maior, confiscação de todos os seus bens para o fisco e câmara real de Sua Majestade”, mas teve a pena atenuada por ter abjurado de erros e se confessado em mesa. Em fragmento de sua sentença, é mencionado sua descrença em castigos eternos e o convívio com libertinos por muitos anos de maneira a sustentar sua condenação. Foi sentenciado em participar de um auto-de-fé, abjuração em força e reclusão na Casa da Congregação da Missão do Sítio de Rilhafoles, além penas espirituais. O documento não tem 324 Com três testemunhas e mais cinco outras confirmações a respeito do comportamento heterodoxo de José Anastácio da Cunha em Valença, em 26 de junho de 1778 foi expedida sua ordem de prisão e, em 1º de julho do mesmo ano, o lente já estava preso. Em 9 de setembro de 1778, confirmaram-se as acusações feitas a ele e, em parecer da Mesa do Santo Ofício da Inquisição de Coimbra, afirmou-se que José Anastácio da Cunha era convicto dos crimes de heresia e apostasia, de se persuadir quanto ao deísmo, tolerantismo e indiferentismo, crendo que se salvaria somente pela observação da lei natural. Juntamente com outras dez pessoas condenadas em Valença, o lente foi condenado a sair em auto de fé, que foi realizado em 11 de outubro de 1778. Teve bens confiscados, e também foi condenado a três anos de reclusão na Casa das Necessidades da Congregação do Oratório e a penitências espirituais. Efetivamente, cumpriu dois anos dessa reclusão e foi perdoado, em 1781, dos quatro anos de degredo em Évora. Além disso, perdeu seu cargo de lente na Universidade de Coimbra. Ele veio a ocupar o cargo de professor e diretor de estudos na Casa Pia de Lisboa, a convite de Diogo Inácio Pina Manique, Intendente Geral de Polícia. Na Corte, ao que tudo indica, permaneceu até o fim de sua vida, em 1787.38 Importam aqui, além de sua confissão, alguns detalhes importantes das denúncias contra José Anastácio sobretudo aqueles que indicam a relação das linhas gerais, discutidas até aqui, sobre a caracterização do libertino e a defesa da tolerância religiosa. Em primeiro lugar, nas falas dos denunciantes e dos depoimentos colhidos pelo Santo Ofício, nota-se que se faz uma relação quase que direta entre o convívio de José Anastácio da Cunha com os “hereges” protestantes de Valença do Minh e sua irreverência em relação às cerimônias e preceitos da Igreja católica, além de suas leituras proibidas. Nas culpas contra ele que constam no processo de Henrique Leitão de Souza, então preso por libertinismo, isso fica claro. Ele disse que, havia “mais de um ano”, em que ele, indo à casa de Jose Leandro Miliani da Cruz, onde também estavam “quatro oficiais do mesmo Regimento Protestantes”, o mesmo José Leandro lhe mostrou “uma oração, que ele réu lhe pareceu ter alguns erros ímpios contra a Verdade da Religião Cristã”, os quais “ouviu depois também repetir alguns dos mesmos oficiais dada, mas, provavelmente, ocorreu em 1778, ano em que outros condenados do mesmo grupo de Valença tiveram sorte similar. ANTT, Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Fragmento da sentença do processo de José Leandro Miliani da Cruz, proc. 13646. 37 Não foi possível acessar este processo nesta pesquisa. ANTT, Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Coimbra. Processo de Aleixo Vachi, proc. 8078. 38 FERRO, João Pedro. O processo de José Anastácio da Cunha na Inquisição de Coimbra. Op. Cit. p. 78. 325 protestantes”. Ele teria achado a mesma oração em um dos livros de Voltaire, a oração Deo, Optimo, Maximo, traduzida por José Anastácio da Cunha, que circulava entre os soldados protestantes livremente.39 O réu a repetiu de cor, no processo.40 No mesmo processo, aparece em denúncia do próprio José Leandro, menção a uma tradução, que teria sido feita pelo lente, de poemas de Pope, nos quais se exaltam a liberdade e tolerância humanas e pode ser entendido, também, como exaltação à religião natural. Há constantes menções à circulação dessas traduções entre os demais membros do Regimento, sobretudo protestantes.41 Porém, a tradução mais conhecida feita por José Anastácio da Cunha é a de Le fanatisme ou Mahomet le profete, de Voltaire, tragédia em cinco atos, escrita em 1736 e encenada, pela primeira vez, em 1741. Existe uma versão, da mencionada tradução, de 1775 e outra publicada em 1795 na tipografia da Academia Real de Ciências, em Lisboa, sob o título de Mafoma, ou Fanatismo. Trata-se de uma história a respeito de Maomé, em tempos de sua conquista da Meca, e o personagem Zopir, então líder da cidade – que hoje faz parte da Arábia Saudita –, grande defensor da liberdade. A trama se desenvolve no conflito entre o arbítrio do profeta e a resistência do defensor da liberdade, até que a filha deste último prefere cometer o suicídio a aceitar o tirano profeta. Dessa maneira, Maomé e o fanatismo – a figura do primeiro personificando o segundo – são colocados na posição antagônica a Zopir da tragédia, ficando claro o potencial crítico da obra em relação às sociedades cristãs do Setecentos.42 Sobre Mafoma, Luiz Villalta diz que: (...) Voltaire, que em outro escrito louvou a religião como um freio necessário, na tragédia Le fanatisme ou Mahomet, le Prophète, de 1741, veio a denunciar que o despotismo poderia valer-se da religião. Com efeito, para Maomé, o abominável protagonista, a religião seria um freio indispensável para a coesão da sociedade e a sustentação do poder político, tendo ele sintetizado para Zopire, seu antagonista, sua proposta político-religiosa para a Arábia: “Sob um rei, sob um Deus, eu venho reuni-la [a pátria];/ E para torná-la ilustre, é preciso subjugá- 39 Ibidem, p.13. “Oh, Deus a quem tão mal o homem conhece/Oh Deus a quem todo Universo aclama/As palavras escuta derradeiras/Que a minha boca forma. Sem me enganar foi tua santa lei buscando/Pode o meu coração de boa estrada perder-se/Mas ti sempre está cheio/Sem me atemorizar diante dos seus olhos. /A Eternidade vejo e crer não posso/Que sejais um Deus que o ser me deu/Lançado tem sobre os meus dias/Agora, extintos eles, finalmente/Haja de atormentar-se eternamente”. BAIÃO, Antônio. Episódios dramáticos da Inquisição Portuguesa. Op. Cit. p. 98. 41 FERRO, João Pedro. O processo de José Anastácio da Cunha na Inquisição de Coimbra. Op. Cit. p. 16. 42 OLIVEIRA, Antônio José de [Voltaire, pseud.]. Nova tragédia intitulada Mafoma ou Fanatismo. Trad. De Le Fanatisme ou Mahomet le profete. Trad. Provável: José Anastácio da Cunha. Lisboa: Off. da Academia Real de Sciencias, 1785 (existe outra ed. de 1775). 1795. Disponível em Biblioteca Nacional de Portugal < http://purl.pt/16461> . Acessado em ago./2018. 40 326 la”. Zopire, em resposta, o acusa de ter por Deus o interesse, enquanto o Deus dele seria a “equidade”.43 Dessa maneira, por analogia, a obra de Voltaire, traduzida por José Anastácio da Cunha, poderia ser associada ao clero e demais autoridades religiosas de realidades europeias. Esse potencial crítico estava na relação feita na obra pelo uso da religião no âmbito político a fim de manter a sociedade obediente e coesa, revelando, assim, mecanismos de um uso tirânico da instituição religiosa. A falta de reverência do lente de Geometria a preceitos e cerimônias católicos, conforme as culpas encontradas contra ele nas falas de outros réus e denunciantes, também se cruza com sua amizade com pessoas de outros credos. Segundo José Antônio Ramos, artífice de fogo na companhia de bombeiros do regimento de Valença, José Anastácio da Cunha é um homem “cheio de um espírito libertino, mostrando fastio a todas as coisas sagradas e funções da Igreja”, numa constante inobservância dos “preceitos da lei de Deus”, paralela à amizade que demonstrava “passeando e conversando” com diversos membros do dito regimento, “todos protestantes”. Juntamente com isso, comia carne em dias proibidos, não frequentava a missa regularmente e dizia não acreditar no “Paraíso Terreal”, onde teriam sido criados Adão e Eva, entre outras proposições.44 Alexis Vacchi mencionou que Anastácio lhe disse para ir à missa, justificando-se “porque tenho espias para observarem se a ouço, ou não”, e, “se faltar a ela, receio que me acusem” ao Santo Ofício. 45 O mesmo José Antônio Ramos, entre outros, acrescentou às culpas do lente o fato de ele viver “publicamente amancebado” com uma mulher chamada Margarida,46 ao que o sargento do mesmo regimento José Maria Freire acrescentou que Cunha “bem claramente” fazia “gala de seu pecado”.47 Tais apontamentos se repetem, em grande parte, nas falas das demais testemunhas. Elas apontam que a acusação de libertinismo, em finais dos anos 1770, no caso de José Anastácio da Cunha, foi construída em cima de diversos pontos: a liberdade de leituras e circulação de textos proibidos, o ambiente de debates e tolerância – de ideias e religiosa – e a liberdade perante as diversas obrigações impostas pelo Catolicismo, em contexto de uma ortodoxia vigiada. Alguns desses aspectos aparecem 43 VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do livro no mundo luso-brasileiro sob as Luzes. Op. Cit. p. 96. FERRO, João Pedro. O processo de José Anastácio da Cunha na Inquisição de Coimbra. Op. Cit. p. 19. 45 Ibidem, p. 14. 46 Ibidem, p. 19-20. 47 Ibidem, p. 22. 44 327 na confissão do lente. Em audiência dada ao inquisidor Manoel Antônio Ribeiro, em julho de 1778, Cunha mencionou seu convívio e familiaridade com oficiais protestantes em Valença do Minho. Por virtude dela, “assentindo com erros contrários à fé”, comia carne em dias de preceito, lia livros defesos, entendia ser a justa tolerância em matéria de religião e entendia que quem errasse nesse ponto, sem malícia, se salvaria. Duvidou da justiça das leis eclesiásticas, negou a tradição e duvidou de vários outros pontos. Além disso, confessou a tradução do Mafoma, de Voltaire, de quem também se disse um leitor, “vendo nas suas obras o zelo com que ele queria estabelecer que todos os homens reconhecessem um Deus, se amassem mutuamente e vivessem todos como irmãos, sem se perseguirem”. Disse que se tornou partidário do tolerantismo, entendendo como impiedade e tirania o fato de se obrigar os homens a “cativar os seus entendimentos e discursos a algumas regras, leis e preceitos”.48 No processo de Jerônimo Francisco Lobo, de trajetória bem distinta em relação à de José Anastácio da Cunha, há elementos similares aos encontrados no processo do lente, a respeito da caracterização do libertino. Chamando atenção, também, o vínculo entre os núcleos de Valença do Minho e da Universidade de Coimbra. Segundo Luís Antônio de Oliveira Ramos, a primeira denúncia contra Lobo fora dada quando José Maria Teixeira, então estudante do quinto ano de Cânones na Universidade de Coimbra, havia sido preso pela Inquisição coimbrã em dezembro de 1777. Tido por “ateísta, ímpio e blasfemo”, foi condenado, sobretudo, por terem entendido seu engajamento em convencer outros estudantes de sua libertinagem.49 Antes de analisar o de Jerônimo Francisco Lobo, é importante trazer algumas informações referentes ao processo de um outro réu, datado de pouco mais de um ano depois da prisão de Lobo, o processo do bacharel João da Costa e Sousa. A Inquisição de Lisboa solicitou diversas culpas contra à Inquisição de Coimbra, sendo a maioria delas referente a estudantes da Universidade da mesma cidade. Tais estudantes, como Francisco José de Almeida, Diogo de Morais Calado, o próprio Jerônimo Francisco Lobo, entre outros, fizeram parte de outro núcleo de libertinos que caiu nas malhas inquisitoriais à mesma época, sobre o qual me deterei mais à frente, neste capítulo. Preso em dezembro de 1779, apresentou-se ao inquisidor fr. Vicente Ferrer em janeiro do ano seguinte, confessando culpas de deísta e seguidor da religião natural, pontos que comunicava com outros colegas, dentre os quais 48 BAIÃO, Antônio. Episódios dramáticos da Inquisição Portuguesa. Op. Cit. p. 108-109. RAMOS, Luís A. de Oliveira. Sobre os ilustrados da academia de Coimbra. In: ________. de Oliveira; RIBEIRO, Jorge Martins; POLÔNIA, Amélia (Eds.). Estudos em homenagem a João Francisco Marques. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2001. p. 312–326. p. 318. 49 328 destacou o próprio Jerônimo Francisco Lobo. Ele foi ouvido em várias sessões, sendo em algumas considerado diminuto na confissão, sobretudo em relação a possíveis denúncias de seus colegas. João da Costa e Sousa jamais sairia da prisão, tendo falecido no cárcere em 30 de março de 1780, com sinais, na descrição, que indicam um possível suicídio. Ainda assim, o réu continuou sendo julgado, até ser condenado a um auto-defé de 16 de setembro do ano seguinte, a confisco de bens e a sufrágios.50 Na apresentação de Jerônimo Francisco Lobo dada aos 15 de dezembro de 1779 – dias após a prisão de Joao da Costa –, há algumas informações importantes sobre a sociabilidade que construíram entre Valença, Lisboa e Coimbra, embora com muito menos detalhes que a confissão do próprio Jerônimo Lobo e o resumo da mesma no 130º Caderno do promotor – documentos que serão analisados aqui. Em forma de carta, Jerônimo da Silva Lobo se dirigiu aos inquisidores de Lisboa, fazendo referências à sua confissão, dada na forma de uma apresentação à Inquisição em Coimbra. A origem de seus erros é, geralmente, associada, ao longo da carta, aos tempos em que manteve amizade com João da Costa e Sousa, a quem conheceu nas aulas de gramática Latina,51e a José Maria Teixeira, a quem conheceu em Valença do Minho, “nas férias do ano de 1777”. Sobre esses dois amigos, declarou que ali “principiamos a comunicar os nossos erros: ele (José Maria Teixeira), os que havia [na] Cidade; eu os devia à comunicação de alguns moços de Valença”, onde disse ter ido a fim de se empregar na milícia.52 Nessa carta de confissão, Jerônimo Lobo elenca algumas de suas proposições e comportamentos heterodoxos, o que foi considerado suficiente pelos inquisidores, ao contrário do que diz respeito de seus mencionados cúmplices.53 Em relação a tais falas e ações consideradas libertinas, há muito mais detalhes em sua apresentação, anexada no mesmo processo. No Caderno do Promotor acima mencionado, há um resumo para auxiliar os inquisidores de Lisboa a avaliar o estudante, que era natural de Vidais, termo de Óbidos e que, à data, 1778, estava em Lisboa, após suas passagens por Valença e Coimbra, Consta que o carcereiro encontrou João da Costa e Sousa morto na sua cama, “afogado” com uma “liga da meia com três voltas e dois nós à volta do pescoço”. Disse ainda ter desapertado o nó e tentado reanimar o preso, em vão. ANTT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo do bacharel João da Costa e Sousa, proc. 3250. Fl. 72. 51 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Processo de Jerónimo Francisco Lobo. Tribunal do Santo Ofício, proc. 6111. Fl. 4. A mesma carta de confissão foi publicada por Luís Antônio de Oliveira Ramos, anexo documental de artigo. RAMOS, Luís Antônio. Soldados, fidalgos e estudantes voltairianos. Diacrítica, nº 15, 189-211, 2000. O anexo documental se encontra entre as páginas 201-211. 52 Ibidem, Fl. 4v. 53 Ibidem, Fl. 8v. 50 329 onde concluiu seus estudos. Trata-se de um grupo de 53 proposições, apresentadas de maneira resumida, que se encontram na íntegra nas culpas anexadas ao processo. 54 Na apresentação feita ao inquisidor Antônio Veríssimo de Larre em abril de 1778 e remetida ao tribunal lisboeta, em 11 de dezembro do mesmo ano, há partes muito similares à da sua carta de confissão, sobretudo no que toca às suas sociabilidades. Ele disse que grande parte da sua concordância nas matérias heterodoxas de religião se deveu ao temor de perder a amizade com João da Costa e Sousa e outros estudantes de Coimbra, concordando sempre de maneira externa com as proposições ali colocadas.55 No detalhamento de suas proposições, Jerônimo fez uma retrospectiva de sua trajetória, voltando ao ano de 1771, em que, no sítio da Junqueira, teve conversa com Manoel Rodrigues, professor de Retórica, à época, na cidade da Guarda. Disse que o mesmo lhe teria falado que Voltaire dizia que a confissão auricular era invenção de um Papa e que Deus não condenava ninguém ao Inferno, ao que Jerônimo Lobo “deu assenso interno”. Menciona, também, um colega chamado José Batista de Souza, com quem estudou no Colégio de Jesus da terceira Ordem da Penitência, que, em sua presença, ouvia e aplaudia tais proposições.56 Mas o momento crucial deu-se em 1776, na sua passagem por Valença do Minho, onde, como foi dito, foi tentar carreira militar e teve contato com José Maria Teixeira, com quem morou por um tempo. Disse que, em “uma caminhada nas muralhas da dita Praça” com Teixeira, ouviu dele que “não era verdadeira religião alguma e, para debilitar lhe a crença”, à qual “ele declarante tinha professado no batismo”, Teixeira teria usado diversos argumentos: que Moisés e Jesus Cristo foram impostores, que Maria Santíssima não havia concebido por obra do Espírito Santo, “mas por ter dito relações com (...) um alferes chamado Rafael”, entre outros pontos. Disse que, depois disso, “se persuadiu do Libertinismo”.57 Ali, em Valença, continuou, ao lado de José Maria Teixeira. Jerônimo Francisco Lobo viveu num ambiente onde identificou grande liberdade de se falar de forma heterodoxa em muitos pontos. Os envolvidos, todavia, estavam cientes do risco de corriam. Por exemplo, em ocasião que ele e Teixeira visitavam a casa de Manoel do Espírito Santo – preso pela Inquisição à época em que Lobo se apresentou –, disse que um dos vários soldados e estudantes, que com ele estavam a falar de diversos pontos sobre a religião, 54 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. 130º CADERNO DO PROMOTOR. Op.Cit. Fls. 67-69. 55 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa Processo de Jerónimo Francisco Lobo. Op. Cit. Fls. 5 e 10v-12. 56 Ibidem, Fls. 19-20. 57 Ibidem, Fls, 20-20v. 330 mandou-os se calar, ao ver um familiar do Santo Ofício passar por perto do local.58 Voltando a Lisboa, disse que contou tudo o que aprendera a João da Costa e Sousa e a outros vários estudantes, alguns dos quais caíram, posteriormente, nas malhas inquisitoriais. Nesse momento, disse Jerônimo, havia em si “tanta desgraça e cegueira, de uma alma enlodada no vício”, que, mesmo diante de seus amigos presos pela Inquisição de Coimbra, ao invés de se apresentar prontamente, planejou somente sair de Coimbra ou mesmo do Reino, o que não fez. No Domingo de Ramos de 1778, “reflexionando seriamente sobre si, sobre o homem interno, viu e pasmou em quanto havia sido rebelde à Igreja que o criou”; também “lhe ocorreu que ela, como piedosa mãe, o receberia outra vez”, e decidiu, assim, se apresentar.59 Daí em diante, depois de voltar a Lisboa, enunciou muitas outras proposições, que envolvem aspectos dos mais diversos, que vão do ateísmo à defesa da tolerância religiosa, passando por proposições heterodoxas baseadas na história sagrada e eclesiástica, leituras proibidas diversas e crítica sobre a política em Portugal. Jerônimo Francisco Lobo descreveu que havia, na Corte, em diversos espaços, um ambiente de liberdade no falar de pontos de religião com colegas e amigos. Há alguns momentos em que sobressaem algumas ideias constantes nas proposições e que remetem a algum ceticismo. A seu grupo, era comum, segundo a apresentação, a proposição de que “não havia Deus”, que disse ter ouvido de João da Costa e Sousa e de José Maria Teixeira. Jerônimo Lobo, segundo contou, ficou “inteiramente persuadido desse ponto, suposto que, algumas vezes, disse que não havia Deus diante dos sobreditos e mais algumas pessoas”, sem intenção de as persuadir, mas “para condescender com o espírito de erudição que queria mostrar”. Repetia-se, nessas ocasiões, conta, um verso em francês “Le crainte a fait les Dieux, le audace a fait les Rois”,60 que afirmou aos inquisidores ser do “Tratado sobre a opinião”, sem lembrar precisamente autor e obra. 61 Na margem, os inquisidores anotaram não saber ao certo qual seria a obra. Porém, é bastante possível que a frase seja a atribuída ao escritor Prosper Jolyot de Crébillon, ou Crébillon père, na peça Xerxes (1714). A relação entre a vontade de demonstrar acesso ao saber e erudição perante os amigos e colegas, continuou Jerônimo, acabou por levá-lo a defender que os animais lhe pareciam mais obra do acaso que criação divina e que “os brutos animais” não foram criados para servir ao homem. Entendia que a diferença entre o ser humano e 58 Ibidem, Fl. 20v. Ibidem, Fl. 22 60 A crença fez os deuses, a audácia fez os reis. Tradução minha. 61 Ibidem, Fl. 22v. 59 331 os irracionais seria somente uma “pouca sagacidade” e que, “talvez houvesse na Natureza, uma gravação desde o homem até os brutos”. Além de contar que comunicava frequentemente as proposições, sobretudo com os mencionados José Maria Teixeira e João da Costa e Sousa, disse que teria desenvolvido tais ideias a partir das leituras do Filósofo de Sans Souci (1749), obra de Frederico II, rei da Prússia, publicada por Voltaire, do Instituições políticas (1760), do Barão de Bielfeld, e do Sistema da Natureza (1770), do Barão D’Holbach. Ele afirmou que debatia sobre tais obras frequentemente com os demais estudantes e soldados da praça de Valença, já citados.62 Este mesmo ceticismo aparecia, também, em proposições, como a de dizer que os milagres de Cristo e dos “bem aventurados” eram mentirosos e que “não era conforme a razão Deus mandar (...) seu filho ao mundo para a salvação dos homens”. Tal proposição é mencionada juntamente com a de que a Virgem Maria teria concebido por ter relações com um alferes chamado Rafael, e não por obra do Espírito Santo.63 A partir desses pontos, Jerônimo da Silva Lobo, em sua confissão, narra que ele e seu grupo, sobretudo José Maria Teixeira e João da Costa e Sousa, desenvolveram uma relação de indiferença com os preceitos católicos e com a fidelidade que lhes era devida. Conta que, em Valença do Minho, costumavam se referir às pessoas que faziam orações e eram rigorosas com os preceitos católicos por “fanáticos”. Eles chegaram, em 1776, na mesma cidade, a planejar colocar tinta de escrever na pia de água benta da capela onde o pai de Jerônimo Lobo rezava.64 Também disse que não ia à missa e, mais que isso, conta de um dia, em 1777, em que entreteve, propositalmente, dois irmãos vizinhos seus com o objetivo de os fazer também faltarem à missa.65 Mas o desacato que Jerônimo mais destacou em sua confissão se refere a um ato em que disse ser um “fato que toda a sua vida aterrorizará”, que fez motivado pela crença de que a Santíssima Trindade era somente uma ficção humana. Disse que, movido por sua descrença, chegou a desacatar (...) o triângulo com que os Santos Padres indicam o princípio sem fim da mesma Trindade Santíssima; porquanto, sendo convidado por José Inácio da Silveira Cordeiro, Estudante do primeiro ano Jurídico, natural de Évora, para que escrevesse uma carta de dar composição, não se lembra a quem, entre outras parvoíces que na dita carta escreveu, nela pintou o referido triângulo, metendo-lhe no meio as partes genitais do homem com um letreiro = É a Trindade = 66 62 Ibidem, Fls. 23v-24. Ibidem, Fls. 27v-28. 64 Ibidem, Fl. 30. 65 Ibidem, Fl. 32. 66 Ibidem, Fl. 23. 63 332 Os desacatos e a descrença descrevem, nas palavras de Jerônimo Lobo, também um ambiente de discussões constantes sobre livros proibidos diversos. Narra que isso acontecia em situações cotidianas, como, por exemplo, em ocasião em que dizia, juntamente com José Maria Teixeira, que a Igreja não era infalível, enquanto “tem louvado [a] Voltaire e a Rousseau, o Rei da Prússia e Mirabeau, e outros ímpios autores do libertinismo”, acrescentando ainda que Teixeira estendeu os elogios a Martinho Lutero. Sobre este último autor, numa ocasião em que “o penteava um cabelereiro chamado Manoel José, assistente no Colégio de São Boaventura [disse] = que tomara que houvesse um Lutero em Portugal para lhe tirar do trabalho de ir à missa”.67 Também atribuiu à sua leitura e discussões sobre as Cartas Persas (1721), de Montesquieu, a proposição de que “o obrar mal não era culpável ao homem”, pois ele “não tinha liberdade de obrar”, uma vez que Deus prevê suas ações ad aeternum.68 Além dos vários autores até aqui mencionados, mais comuns entre as leituras proibidas relacionadas à cultura das Luzes – Voltaire, Rousseau, Bielfeld, Montesquieu e Frederico II – aparecem outras obras e autores que Jerônimo da Silva Lobo relaciona com suas proposições. Por exemplo, disse que teve para si que o Apocalipse de São João parecia ser obra de um filósofo “que forma quimeras”, e que “o fim do mundo por um incêndio universal era pensamento de Heráclito e outros filósofos da antiga Grécia”. Esse ponto teve para si, ao passo que outra proposição, que repetia aos colegas, segundo a apresentação, “por gracejo”, era a de há “liberdade para toda a fornicação”, baseado numa interpretação das cartas de São Paulo, que disse ter lido no livro “A história de Dom Bougre”.69 Este último livro, certamente era a obra atribuída ao advogado francês Gervaise de Latouche, intitulada L’Histoire de Dom Bougre, portier des Chartreaux, escrita em francês e publicada em Londres, em 1741 – informação que aparece no próprio documento citado. Trata-te de um romance libertino, desenvolvido em narrativa semelhante a memórias autobiográficas, em que se narra uma série de desventuras de natureza sexual do protagonista, Saturnin, em meio ao clero regular e dentro de um convento. Foi uma obra que, de acordo com estudo a seu respeito publicado por Charlote Galves e Márcia Abreu, contou com muitas edições desde sua primeira publicação, além de diversas outras em que o nome Dom Bougre era trocado por outros, como, por exemplo, Gouberdom. Em Portugal, as pesquisadoras encontraram menções 67 Ibidem, Fl. 31v. Ibidem, Fl. 24v. 69 Ibidem, Fl. 28. 68 333 desses títulos na documentação censória de finais do século XVIII, entrando e circulando de maneira clandestina, além de uma tradução anônima publicada no Brasil de 1842.70 O que se observa é que existiu, no círculo do qual Jerônimo Francisco Lobo fazia parte, um circuito dinâmico, ainda que restrito, de circulação de livros – vários deles proibidos – e de debates em torno deles. Em meio a esses debates e por meio das leituras inventivas que essas pessoas faziam no final do século XVIII, diversas proposições heterodoxas vinham à luz. Deve-se frisar que os livros empregados para a formulação das proposições, como demonstra Luiz Carlos Villalta, não eram necessariamente livros defesos ou tidos então como “libertinos”.71 Nesses debates e reflexões, continua Jerônimo Francisco Lobo, seu círculo defendia algumas proposições a favor da tolerância religiosa, muitas vezes desvelando possíveis leituras que a respeito do Catolicismo e da forma como ele era vivido em Portugal. Diziam, por exemplo, que os princípios do Cristianismo tinham sido os mesmos que os das demais religiões e que “era impossível”, conforme a razão, “que diante de tantos povos escolhesse Deus somente o judaico”.72Também disse que se persuadiu que toda religião revelada era invenção política dos homens e que Moisés e Jesus Cristo não teriam sido nada mais que “uns sábios legisladores”. Disse, ainda, em desdobramento da proposição anterior, que a lei de Maomé era boa pela simplicidade de seus dogmas, sem especificar de qual livro tirou esses pontos.73 Disso vieram algumas de suas críticas à Inquisição. Jerônimo Lobo declarou que teve para si que a Inquisição não era um tribunal reto, “mas que fazia grassar a ignorância”. Disse ainda que “era bem feito por fugir da Inquisição quando o Tribunal estivesse junto”, e também “soltar os presos que nele estivessem, por ser tirania mandar entregar ao fogo um herege pertinaz, parecendo ser melhor justiça dar-lhe tempo para a conversão”. Afirmou também que o Marquês de Pombal havia feito muito mal em não extinguir os tribunais do Santo Ofício. Conversando a respeito do reestabelecimento do tribunal de Goa numa loja no arco de Almedina, disse que esse fato “destruiria aquela cidade, aludindo que as prisões do Santo Ofício arruinariam o seu comércio”. Sobre esse ponto, teria conversado com um brasileiro que nomeou por “fulano de Morais” – alusão provável a GALVES, Charlote; ABREU, Márcia. A circulação clandestina de romances e o mistério do “anônimo brasileiro”. Remate de Males, 27(1), 109-125, jan./jun. 2007. 71 VILLALTA, Luiz Carlos. Montesquieu’s Persian Letters and Reading practices in the Luso-Brasilian World (1750-1802). In: PAQUETTE, Gabriel. Enlightened Reform in Southern Europe and its Atlantic Colonies, c. 750-1830. Cambridge: Ashgate e-book, 2009. p. 119-144. 72 Processo de Jerónimo Francisco Lobo. Op. Cit. Fls. 28 e 26v. 73 Ibidem, Fl. 25v-26. 70 334 Antônio de Morais e Silva, do qual falo mais à frente –, que lhe disse que “mais conversões faziam as medidas de arroz, que mandavam dar os nossos reis, do que as que haviam de fazer a Inquisição”.74 A essas críticas, somavam-se algumas reflexões que, aparentemente, se valiam de leituras sobre a História, sobretudo a da Igreja. Teria escutado na Praça de Valença que São Domingos, fundador da ordem dos dominicanos, estaria no Inferno por ter perseguido os albigenses, numa alusão ao início dos tribunais inquisitoriais. Juntamente a isso, mencionou conversas nas quais se diziam que as Cruzadas se deram por “política dos papas para afastarem os turcos da Itália”, questionando a autoridade pontifícia,75 além de dizer que o sacramento da penitência foi invenção papal,76 que a bula cruzada fora instituída da mesma forma somente para conseguir dinheiro77. Ele declarou que tinha aprovado “haverem os imperadores pagãos perseguido a Igreja”, no caso, os primeiros cristãos.78 O que se infere, aqui, é que, talvez, entre esses libertinos, o método proposto por Verney, analisado no Capítulo 2, em que um uso propedêutico da História em função do aprendizado da Filosofia e Teologia, vinculando-as ao empirismo, subvertia-se ao levar a diversas reflexões heterodoxas. Jerônimo Francisco Lobo sofreu somente penas espirituais, possivelmente devido ao fato de suas confissões terem sido voluntárias e das completas delações que fez contra seus companheiros heterodoxos que, como mencionado supra, tiveram destinos bem mais trágicos em suas passagens pela Inquisição – sobretudo o bacharel João da Costa e Sousa.79 Após sua passagem pela repressão inquisitorial, fica patente, também, não existir uma linearidade na trajetória dos libertinos. Assíduo frequentador dos vários circuitos de debates de pontos que contrariavam a ortodoxia e de leituras proibidas, e com tantas críticas à religião e Igreja em sua juventude, em 1805 o mesmo Jerônimo Francisco Lobo foi nomeado adjunto do intendente geral de polícia Lucas de Seabra da Silva, assumindo o cargo quando este último foi demitido, em 1810, permanecendo nele até sua morte, em 1811. Foi um notório agente da “setembrizada”, entre 10 e 13 de setembro de 1810, evento marcado por uma ferrenha perseguição a maçons, “afrancesados” e outros livres-pensadores. Ali, cerca de 50 pessoas foram presas, sem processo, e remetidas à Ilha Terceira, no arquipélago dos Açores. Alexandre 74 Ibidem, Fl. 31. Ibidem, Fl. 31v. 76 Ibidem, Fl. 28 77 Ibidem, Fl. 28v 78 Ibidem, Loc. Cit. 79 RAMOS, Luís A. de Oliveira. Sobre os ilustrados da academia de Coimbra. Op. Cit. p.323. 75 335 Mansur Barata mostra que foram dadas notícias ao príncipe regente d. João sobre as ações de Lobo no evento, para garantir “a segurança e a paz públicas”. 80 No Ensaio para servir à História da Intendência Geral de Polícia de Lisboa – não assinado, mas de provável autoria de José Liberato Freire de Carvalho, editor do jornal –, publicado em O Campeão Portuguez, em 1820, a “Setembrizada” é descrita como evento “que fará época nos anais do despotismo”; Jerônimo Francisco Lobo é chamado “lobo carniceiro” e descrito como “ardiloso perseguidor de portugueses e participante de intrigas, sacrificando amigos e aliados em função de ascensão social”, entre diversas outras pechas nada lisonjeiras.81 Para Stuart Schwartz, Negreiros, José Anastácio da Cunha e Jerônimo Francisco Lobo e suas atitudes perante as autoridades representavam o espírito de dissidência, visto em Portugal e nos vários rincões de suas colônias. Ele seria o resultado de uma perda de respeito pela religião, que era, a rigor, produto indireto e involuntário das políticas centralizadoras do Marquês de Pombal, que enfraqueceram o ultramontanismo e tornaram a Igreja um braço dócil do Estado.82 Já Samuel J. Miller, em obra clássica a respeito do Iluminismo católico português, entendeu que o embate diplomático entre Portugal, sob o pombalismo e sob as políticas regalistas posteriores, e a Santa Sé de Roma, desviou os dois lados daquilo que representava a verdadeira ameaça ao Catolicismo, que era, na sua visão, os veementes ataques dos philosophes às religiões, no geral.83 Por sua vez, João Pedro Ferro relaciona a perseguição a esses libertinos a uma reação da “Viradeira” após a queda do Marquês de Pombal, em 1777.84 Entendo, porém, que esses três aspectos precisam ser pensados em conjunto, a fim de se evitar uma análise demasiado reducionista. Não é possível separar os libertinos do último terço do século XVIII, espalhados por Portugal e em alguns espaços luso-brasileiros, do processo de secularização ocorrido a partir da segunda metade do Setecentos e que tocou instituições como a Inquisição, a censura, a educação formal e as posições do clero. A respeito da primeira, 80 BARATA, Alexandre Mansur. Sociabilidade Ilustrada & Independência no Brasil. Op. Cit. p. 153154. A respeito do contexto da setembrizada, ações de Jerônimo Francisco Lobo nela e uma análise de caso de um dos presos sem processo por ele, ver; D’ALOCHETE, Nuno Daupias. La terreur blanche a Lisbonne (1808-1810): Jacques Ratton et la “Setembrizada”. Annales historiques de la Révolution française, 37e Anné, nº 181, p. 299-331, juillet-septembre 1965. 81 O Campeão Portuguez ou O amigo do Rei e do Povo. Jornal político publicado mensalmente para advogar a causa, e interesses de Portugal. Nº XXV. – Vol. III, 16 de julho, 1820. Londres: Impresso por L. Thompson, Great St. Melens. p. 84-93. 82 SCHWARTZ, Stuart. Cada um na sua lei. Op. Cit. p. 353-355. 83 MILLER, Samuel J. Portugal and Rome c. 1748-1830. Op. Cit. 84 FERRO, João Pedro. O processo de José Anastácio da Cunha na Inquisição de Coimbra. Op. Cit. p.8. 336 é importante ter-se em conta que ela perdeu, progressivamente, o status que possuía até o reinado de d. João V, a partir do momento em que o Marquês de Pombal passou a submetê-la, cada vez mais, à Coroa. O Santo Ofício perdeu parte de seu poder policial com a criação da Intendência Geral de Polícia, em 1768,85e também tocante à censura, quando se criou a Real Mesa Censória, em 1768, limitando-se a ação inquisitorial nesse ponto somente quando leituras e livros proibidos relacionavam-se a heresias.86 Também, no sentido de se reabilitar a Inquisição, submetendo-a mais à autoridade régia, foram colocados em posições chave da hierarquia inquisitorial várias pessoas de total confiança de Sebastião José de Carvalho e Melo, já na década de 1750. 87 Mas dois outros fatores impactaram mais fortemente na Inquisição portuguesa, secularizada sob os auspícios do regalismo pombalino. Em primeiro lugar, ocorreu o fim da distinção entre cristãos-velhos e cristãos-novos, classificada como “sediciosa e supersticiosa”, e produto da “terribilidade jesuítica” pelo Regimento de 1774.88 O fim dessa diferença, tão marcante ao longo da história dos procedimentos inquisitoriais ibéricos, impactou substantivamente pelo menos duas frentes principais referentes à posição dos tribunais de fé em Portugal e colônias, a saber: o enorme enraizamento dos estatutos de pureza de sangue nas sociedades portuguesa e coloniais, nas quais a Inquisição teve papel central como organismo de validação e verificação,89 e a própria perda de sentido de muitos dos procedimentos inquisitoriais, fortemente identificados ao longo da história dos tribunais com a vigilância do judaísmo, o que Francisco Bethencourt chamou de “regime de monocultura”.90 Em segundo lugar, deu-se a própria promulgação do Regimento de 1774, que além de ratificar as várias mudanças procedimentais, em diversos pontos coevos aos debates sobre justiça e crime da cultura das Luzes,91 eliminou algumas 85 MAXWELL, Keneth. Marquês de Pombal. Op. Cit. p. 99. Ibidem, p. 100. 87 MARCOCCI, Giuseppe; PAIVA, José Pedro. História da Inquisição portuguesa. Op. Cit. p. 334. 88 SIQUEIRA, Sônia (org.). Os regimentos da Inquisição. Op. Cit. p. 970-971. 89 Sobre o fortalecimento institucional da Inquisição portuguesa com seu enraizamento, ver. MARCOCCI, Giuseppe; PAIVA, José Pedro. História da Inquisição portuguesa. Op. Cit. p. 243 e seguintes. 90 BETHENCOURT, Francisco. A Inquisição. In: Yvette Kace Centeno (coord.), Portugal: mitos revisitados, Lisboa: Edições Salamandra, 1993. p. 99-138. p. 104. As estatísticas sobre o funcionamento da Inquisição de Portugal até 1750 dão respaldo ao uso desse termo pelo historiador. Robert Rowland observa que tipologias de delito relacionadas ao judaísmo representam 83% dos processos do tribunal de Coimbra, 84% dos de Évora – entre 1553 e 1629 – e 69% dos de Lisboa – entre 1536 e 1750. ROWLAND, Robert. Cristãos novos, marranos e judeus no espelho da Inquisição. Topoi. V. 11. N. 20, p. 172-188, jan.-jun. 2010. p 176. 91 No que diz respeito ao ideal de fé moderada, contrária à piedade barroca, alguns pontos, como o fim da possessão demoníaca como categoria válida para delitos de bruxaria, fizeram-se ver no Regimento de 1774. Sobre o mesmo tema, é importante também acrescentar que, a partir do mencionado regimento, tal delito somente poderia ser punido por prisão e açoite se comprovado o uso da crença na bruxaria de 86 337 práticas que lhe garantiam enorme poder simbólico, como os grandes autos de fé e o segredo processual.92 Por sua vez, outros autores, como Roger Chartier, relacionam a questão das querelas religiosas internas ao Catolicismo a um processo maior de dessacralização do mundo, marcante no XVIII – retomo este ponto ao longo do capítulo. Todos esses aspectos precisam ser levados em conta ao se analisar a profusão das sociabilidades dos libertinos, no mundo luso-brasileiro, no final do Setecentos. Tais sociabilidades e as proposições e ações heterodoxas evidenciam uma disputa pelo religioso, balizada por substratos culturais e também por aparatos filosófico-teológicos que se desenvolveram internamente às dinâmicas desse processo secularizador do Iluminismo católico português. Assim como alguns dos blasfemadores e outros cometedores de delitos de fala, analisados no capítulo anterior, esses libertinos disputavam o religioso para além das fronteiras especificadas pelo dirigismo cultural, que marcou parte do reformismo ali proposto. No entanto, os libertinos caracterizaram-se por agir nesse sentido por uma via mais próxima à do Cavaleiro de Oliveira, de John Coustos ou dos religiosos degredados para Angola, também analisados no capítulo anterior, pois suas ações tomam uma incipiente esfera pública, tornando-a um pouco mais robusta, e alteram significativamente as relações e representações com valores e instituições do Antigo regime português. Uma das maneiras pelas quais isso se conduz é pela avaliação tanto contextual como histórica de um mundo posterior às reformas do Marquês de Pombal, e neste ponto tenho uma leitura distinta da de João Pedro Ferro. As fontes sugerem que a maneira a conseguir vantagem de alguém – nos demais casos, onde se verificam credulidade em feitiços e práticas afins, ela seria tratada somente por instrução ou internação no Hospital da Misericórdia. É importante também se observar menções indiretas a Cesare Beccaria nos títulos de condenação à tortura, além das condenações ao fanatismo e obscurantismo, atribuídos a diversos estilos inquisitoriais – o segredo processual, penas públicas, crédito à testemunha única (permitido, a partir daí, somente aos delitos de solicitação no confessionário, dentre outros). ROCHA, Igor Tadeu Camilo. O Regimento Inquisitorial de 1774: modernização e dirigismo cultural nos tribunais de fé no reformismo pombalino. Cadernos de Pesquisa do Cdhis, Uberlândia, MG, v.30, nº2, p.198-219, jul./dez.2017. 92 Os grandes autos de fé, o segredo processual, penas como o degredo e o confisco de bens, para Bartolomé Benassar, explicam muito melhor o poderio e a estabilidade dos tribunais inquisitoriais durante toda a Idade Moderna, em comparação com o papel, em si, das penas de morte ou das torturas. Para ele, formaram, no seu conjunto, uma “pedagogia do medo” bastante eficiente, que reproduziu e enraizou, no campo simbólico, grande temor e reverência a esses tribunais. BENASSAR, Bartolomé. L’Inquisition espagnole. Op. Cit. p.105-141. A relação entre a progressiva supressão desses procedimentos, em Portugal, e uma dessacralização do Santo Ofício português ao longo da segunda metade do Setecentos, é um tema que explorei no segundo capítulo da minha dissertação de mestrado. ROCHA, Igor Tadeu Camilo. Libertinos, tolerância religiosa e inquisição sob o Reformismo ilustrado luso-brasileiro: formulações, difusão e representações (1756-1807). [Dissertação-mestrado em História]. Belo Horizonte: Programa de pós-graduação em História UFMG/Universidade Federal de Minas Gerais, 2015. p.64-134. 338 impressão de uma reação conservadora ou de “faltar algo” no reformismo anterior é um traço importante das visões de mundo desses libertinos e constitui uma parte de sua disputa pelo religioso. Mais ainda, confere certa coloração política às suas ações e ao modo como eram percebidas pelas autoridades. Esses pontos serão desenvolvidos nos próximos tópicos. 4.2 “E lá disputavam com muita liberdade sobre pontos de religião”: sociabilidades libertinas no mundo luso-brasileiro Os libertinos luso-brasileiros do final do Setecentos eram marcados pela liberdade de falar em matérias sensíveis, tais como as relacionadas aos dogmas e à doutrina católicos, e por suas sociabilidades. Seus núcleos de sociabilidade se multiplicaram, sobretudo, a partir da década de 1770. É possível relacionar sua difusão com algumas das políticas do contexto do reformismo, tocantes às diversas instituições. Um dos locais mais profícuos para se investigar tais relações é a Universidade de Coimbra, cuja reforma em 1772, ocorrida no âmbito da Ilustração católica portuguesa, tornou-se um marco importante. Essa importância diz respeito tanto ao projeto de reforma – isto é, ao campo institucional em si mesmo – e ao das mentalidades, constante na agenda reformista do pombalismo. É um exemplo um núcleo de pessoas que foram acusadas de libertinagem em fins dos anos 1770. Esse núcleo foi revelado por denúncia de José Maria da Fonseca, estudante do terceiro ano de leis da Universidade de Coimbra, ao se apresentar em mesa para confessar culpas em agosto de 1779. Ele começou seu relato com as seguintes palavras: "Primeiramente, exporei a que pertence à minha parte e, depois, o que me lembrar de outras pessoas” (grifos meus). José Maria da Fonseca disse, na denúncia, que: A origem da minha desgraça esteve no 1º ano da Universidade: então é que meus ouvidos se acostumaram a familiarizar com questões e disputas, que não obstante o especioso véu da Filosofia com que se cobrem, a experiência me mostra o quanto são às vezes perigosas. Ao princípio, gostava eu sumamente de as tratar com o único fim de rebater as razões que se produzissem em contrário à minha Religião; mas logo depois, eu senti-me pouco a pouco ir entrando numa tibieza sobre aquelas mesmas coisas que pretendia defender e, ultimamente, cheguei a duvidar: a lição de uma parte do 'Rosso' [Rousseau] me ministrou novos motivos. Porém não foram tais que me precipitassem na obstinação. A Misericórdia de Deus não permitiu que eu desse mais um passo adiante para a incredulidade: o miserável estado de dúvida 339 foi o que me atormentou por todo aquele tempo. Neste estado é que a minha alma, ansiosa por saber a Verdade, não cessava de meditar todos os instantes que tinha livres, até que, vindo me às mãos umas cartas de uma mãe para um filho em francês, cujo autor não sei, o socorro das suas doutíssimas razões, vi prostradas as dos ímpios, e cheguei cabalmente a certificar-me da sua falsidade e soberba. Esta foi a origem, progresso e fim dos meus erros. Mas como eles não pararam em mim, só porque com outros sujeitos, algumas vezes os comuniquei; por isso, esses mesmos agora pretendo declarar e, como em cada um deles, acho diversas circunstâncias que os façam mais ou menos cúmplices de cada um por mais clareza, falarei individualmente.93 Disputas de religião, com liberdade de argumentos, leitura de Rousseau e debates com outros estudantes aparecem na denúncia e apresentação do estudante, que atribui a esse tipo de sociabilidade, no qual viveu a partir de seu primeiro ano em Coimbra, o estado em que se encontrou de dúvidas em relação à fé católica. Ele prosseguiu seu relato dando nomes e atribuindo-lhes comportamentos e proposições diversas, que apresentam indícios importantes da sociabilidade dos acusados de libertinagem. Fonseca denunciou outro estudante chamado Diogo José de Morais Calado, formado em leis àquela altura, sendo este, declarava: “um daqueles com quem eu creio que”, por algumas vezes, “falei em pontos de Religião: não me pode lembrar as matérias, nem o número certo das ocasiões, o certo é que as matérias seriam pertencentes ao Deísmo”. Ainda denunciou o irmão de Diogo de Morais Calado, Lourenço Justiniano: com quem “menos comunicação teve ainda comigo e, à exceção de se achar ele presente quando eu andava lendo o Rosso [sic] e o de ouvir algumas questões sobre as suas razões, ainda alguma coisa poderia dizer, que não me lembra”. Também denunciou outro estudante, Francisco José se Almeida, do 3º ano de Matemática. Segundo o denunciante: ele “foi que, ao princípio e, ainda depois, se alargou comigo mais ocasiões sobre esta matéria; mas para o fim agora já grande parte do ano, eu o vi diferente em opinião, porque, indo eu visitá-lo uma noite, o achei sumamente triste e pensativo”. Ao ser perguntado sobre: “a causa, ele me respondeu certificando-me do que eu muito presumia; então lhe fiz eu grandes instâncias para colher se seriam disfarces fingidos, mas, por fim, acertei em ser realidade e ter-lhe deveras Deus tocado o seu coração”. Antônio Caetano, Nuno de Freitas e Vicente Júlio foram mais denunciados, que segundo Fonseca “assistiram também muitas vezes e presenciaram às ditas conversas com diligência”. O último, Vicente Júlio, segundo o 93 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. 130º CADERNO DO PROMOTOR. Op.Cit. Fl. 137 340 denunciante, “às vezes lia em alguns livros proibidos [e] mostrava a todos os instantes contrariedades consigo mesmo e, inconstantíssimo nos seus pensamentos, negava hoje o que amanhã havia de defender”. Disse que “o mesmo Francisco José de Almeida afirmo[u] ouvir-lhe dizer sinceramente que, de tantos argumentos que encontrara contra a nossa religião, nenhum só o satisfizera”.94 Em trecho final de sua primeira apresentação, retomando alguns dos nomes acima citados, uns como verdadeiros adeptos dos sistemas que considerava heréticos e libertinos, outros, que apenas acompanhavam as ditas disputas. E quanto a si, José Maria da Fonseca diz: Enquanto a mim, nunca me poupei a estes miseráveis divertimentos e, até dizendo, com segurança, o que apenas me era duvidoso, só desejava agradar aos ouvintes: muitas vezes, a consciência me advertia e, então, eu ficava por um pouco pensativo e triste; mas logo um capricho louco, um vão respeito, sufocava a minha razão. Esta foi a guerra em que sempre andei depois; que a verdade eterna não foi a minha diretora: mas, graças lhe sejam dadas, ela torna outra vez a tomar posse do meu coração: a paz do Senhor vem outra vez habilitado. Este Deus prometeu perdoar àqueles que se arrependem: a mim pesa-me de todo o tempo que perdi força dele: a minha confissão, ele, que vê desde a eternidade o meu interior, conhece que é sincera, conhece que não tem por objeto enganar e conhece que, enquanto a sua graça me assistir, não será o meu coração mais presa da incredulidade e que nunca cessará de repetir as devidas ações de graças pelo seu livramento.95 Tal núcleo de acusados de libertinagem é o mesmo que aparece no processo contra o abade Luiz Mourão. Em processo datado de 1779, são elencadas algumas culpas que lhe foram atribuídas, constantes noutros processos, referentes a estudantes denunciados na apresentação de José Maria da Fonseca, na Inquisição de Coimbra. Mourão, o abade, era, assim como Fonseca, estudante do terceiro ano de leis na Universidade de Coimbra, mas, no documento, aparece que ele também era formado em teologia em Toulouse, França. Nesse documento, aparecem culpas contra Mourão que constam nos processos contra vários outros estudantes, alguns já mencionados acima: Francisco José de Almeida, estudante do terceiro ano de Matemática; Diogo José de Morais Calado, bacharel em leis; Antônio Caetano de Freitas, estudante do segundo ano jurídico; e Vicente Júlio Fernandes, estudante do primeiro ano do mesmo curso jurídico; além de ser citado um número considerável de estudantes, sem que sejam mencionados seus respectivos processos, tais como Francisco de Melo Franco, Manoel Joaquim Henriques de Paiva, Antônio de Morais e Silva, dentre outros. Nessas culpas, consta que 94 95 Ibidem, Fls. 137-143. Ibidem, Fl.137. 341 tal núcleo em torno do abade Mourão, em Coimbra e na França, tinha o costume de comer carne em dias de preceito sem qualquer constrangimento, assim como disputar “argumentos de hereges” – termo que aparece no documento – com muita liberdade, criticando inclusive os procedimentos do Santo Ofício “por sua severidade”. Os estilos da Inquisição, segundo as culpas contra Mourão que estiveram no processo de Diogo de Morais Calado, teriam sido mais fortemente criticados quando Mourão soube das apresentações de seus colegas, despertando-lhe preocupação. A isso, ele acrescentou que tanto ele como seu pai e toda a sua família teriam partido para a França por medo dos procedimentos inquisitoriais. Declarou que de lá vieram “chamados por insinuação do Marquês de Pombal”, e que seu pai “receava [não] ser provido como pretendia em algum benefício da Patriarcal” por ter “nota de judeu”.96 Também consta que os estudantes denunciados liam e discutiam avidamente o Emílio (1762), de Rousseau, além de obras do Marquês D’Argens e de Montesquieu, dentre outros livros defesos.97 Eles manifestarem dúvidas quanto a diversas matérias a respeito da fé católica – embora na denúncia se reforce que não exprimissem “sentimentos contrários a ela” –, somadas a críticas à Inquisição e a seus procedimentos.98 O núcleo do abade Mourão era o mesmo do notório processo do gramático e dicionarista Antônio de Morais e Silva, denunciado pela primeira vez em 1779, por herético, maçom, libertino e apóstata. Morais Silva apresentou-se posteriormente ao Santo Ofício, em 1785 e, depois, sofreu mais um processo, que durou de 1806 a 1810. Ele fora denunciado pelo estudante Francisco Cândido Chaves, que disse ao inquisidor Manoel Antônio Ribeiro que conheceu Morais e Silva numa república de estudantes, brasileiros e portugueses, localizada na Travessa de Sub-Ripas, em Coimbra. O futuro dicionarista, que à época era estudante do 5º ano de leis, e vários outros estudantes – dentre os quais, reforço, vários dos denunciados no processo do abade Mourão, como Francisco de Melo Franco e diversos outros, a serem analisados mais à frente – comiam livremente carne nos dias de preceito, liam e debatiam obras de Voltaire e Rousseau, referindo-se a este último por “profundíssimo filósofo”. Consta que era comum veremse Morais e Silva e os demais estudantes discutirem sobre proposições, tais como que a alma morreria quando se morre o corpo, que diversos pontos das Escrituras existiam tão somente para controlar socialmente os povos, sendo nada mais que “fábulas” e outras 96 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Processo de Luís Mourão, proc. 5636. Fl. 3v. Ibidem, Fls. 1 e 5-6v. 98 Ibidem, Fls. 3 e 5-5v. 97 342 passagens bíblicas com fatos pecaminosos. Além disso, criticavam a venda de indulgências, o clero e a autoridade do Papa, a virgindade de Maria Santíssima, entre diversas outras proposições. Da mesma forma que aparece no processo do abade Mourão, havia críticas contra os tribunais do Santo Ofício. Morais e Silva, em uma de suas apresentações, declarou, por exemplo, que teria dito que a razão da existência dos tribunais de fé era meramente política, em função de manter os súditos do Reino com apenas uma religião. Disse ainda que se persuadira de que a Inquisição era contrária às Escrituras, pois nelas não se orientava que a conversão ao Catolicismo poderia dar-se pela coerção violenta. Em função disso, Morais e Silva acreditava, segundo declarou em Mesa, que entendia que cada um deveria seguir a religião que melhor conviesse a seu entendimento. Ao fim do primeiro processo, antevendo que poderia ser preso, Antônio de Morais e Silva fugiu para a Inglaterra.99 No segundo, ao se apresentar à Inquisição de Lisboa, devido à sua defesa da tolerância religiosa e ataques contra a Inquisição, tomado por maçom, tolerantista, deísta e outras culpas, foi condenado a abjurar de seus heréticos erros em forma, instrução na fé católica, penitências espirituais, pagamento de custas, em sentença dada em mesa em 1785.100 Outro núcleo no qual se encontram elementos similares, de estudantes de Coimbra acusados de libertinagem, encontra-se no documento referente à confissão do estudante Inácio José Aprígio da Fonseca. Este, natural de Pernambuco, então com dezenove anos e estudante do terceiro ano jurídico na dita universidade, fora acusado de libertinagem juntamente com outro brasileiro, José Bonifácio de Andrada, estudante do terceiro ano de letras e natural de São Paulo, e mais dois portugueses: Antônio de Carvalho, estudante do segundo ano de medicina e natural da Ilha da Madeira, e José Álvaro Coelho Branco de Souza Bento, também estudante do terceiro ano de letras e natural de Peniche. Na confissão de Aprígio da Fonseca, ele detalha que viu e participou de várias conversas, sobretudo envolvendo José Bonifácio de Andrada e Antônio de Carvalho, além de “ter praticado algumas libertinagens”, conversando-se livremente em pontos de religião. O confitente dizia que, “por lhes agradar, mostrava aprovar, se bem que nunca” persuadir, “do que eles diziam”, referindo-se a dizerem-se contrários ao “1º mistério da Santíssima Trindade”, que diziam ser “falso, pois repugnava à razão e à noção de Divindade”. Também declarou que os estudantes negavam a imortalidade da 99 BAIÃO, Antônio. Episódios dramáticos da Inquisição Portuguesa. Volume II. Op. Cit. p. 102-126; BARATA, Alexandre Mansur. Sociabilidade Ilustrada & Independência no Brasil. Op. Cit. p. 60-63. 100 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Processo de Antônio de Morais, proc. 2015. 343 alma, além de criticarem “o monaquismo, metendo-o a ridículo”, dizendo “ser danoso à sociedade e contrário aos fins da criação”. Acrescenta que negavam a divindade de Jesus Cristo, pois diziam que “era impossível a união de duas naturezas”, humana e divina, “n’uma só pessoa”. Em consequência disso, continua Aprígio da Fonseca, negavam-se a ouvir missa em dias de preceito, refutavam a virgindade de Maria Santíssima e furtavam-se, ainda, a confessar seus pecados. Iam mais longe, segundo a confissão e denúncia, declarando que não havia pecados.101 Em carta assinada pelo notário do Santo Ofício Clemente José da Cunha, datada de 28 de janeiro de 1780, apresentam-se detalhes da confissão de João da Costa e Sousa, na qual há elementos contra Antônio Soares de Mendonça e Antônio Manuel Félix, estudantes de Coimbra. Este último, saliente-se, foi citado por José Maria da Fonseca, denunciante de vários estudantes da Universidade de Coimbra por libertinagem. Ele disse que se encontrou com José Manoel Félix em suas férias em Lisboa, a pedido de Francisco José de Almeida, o qual lhe teria enviado quatro cartas pedindo que encontrasse com Félix na Corte. Nas cartas, pedia-lhe para que, a Felix, “dissesse de sua parte, que, [se] algumas vezes, em moral, ou religião, tivessem conversado, ele entendesse que era só como filósofo”: ou seja, ele registrou que as proposições que tinham em suas conversas não passavam de discussões filosóficas, que não implicariam a aceitação interna por parte dos estudantes. Fonseca disse que, ao procurá-lo e ter-lhe dito o que Francisco José de Almeida pediu, Félix respondeu “que sabia bem os seus pensamentos” e, nas conversas posteriores entre os dois, o denunciante disse que sempre fugiu “de averiguar seus equívocos e suas questões, mudando logo para outras coisas a conversa, o mais depressa que podia”.102 Voltando à carta, nela foi repassada à Inquisição de Lisboa a acusação de deísmo contra Antônio Soares de Mendonça e Antônio Manuel Félix, pela confissão mencionada supra, do estudante que se encontrava nos cárceres inquisitoriais, preso por culpas de heresia.103 Cabe destaque, ainda, um documento de 1779, no qual se elencam algumas culpas do estudante Manuel Galvão, brasileiro natural da Bahia e formado em Filosofia na Universidade de Coimbra. Muitos dos nomes que aparecem no documento também se encontram nos anteriormente analisados. Por exemplo, no documento, aparece uma 101 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Confissão de Inácio José Aprígio da Fonseca, proc. 13556. 102 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. 130º CADERNO DO PROMOTOR. Op.Cit. Fl. 137v-138. 103 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Correspondência de Antônio Manuel Félix, proc. 13801. 344 fala do já mencionado Diogo de Morais Calado sobre Antônio de Morais e Silva. O primeiro se encontrava preso, por heresia, nos cárceres inquisitoriais e apresentou-se em mesa. Disse que Morais e Silva, antes de sua ida à Inglaterra por receio de ser preso pelo Santo Ofício, dissera-lhe que outro motivo que o levara a sair de Portugal era o de não correr o risco de ser obrigado a denunciar o colega de universidade Joaquim José da Silva, que “queria fazer Medicina nesta Universidade, e o estudava para esse fim nela Matemática em terceiro ano”, e era também “natural da América”.104 Disse ainda que fora companheiro de Morais e Silva em Coimbra, “assistiram no Terreiro da Esperança, junto à Couraça dos Apóstolos, e que foi com outros condiscípulos” nomeado para irem fazer descobertas na América “ou como Matemático ou como Filósofo”. Com ele, foram: um aluno da Universidade, formado em Medicina, ao qual se referia como “Mello” (tudo indica tratar-se de Francisco de Melo Franco) e Manuel Galvão, entre outros.105 Na fala de Francisco José de Almeida, também preso por heresia, a essa altura, Manuel Galvão era descrito como “loquaz” leitor do Sistema da Natureza, ou Système de la nature ou des loix du monde physique & du monde moral (1770), publicado pelo Barão D’Holbach, em francês, sob o pseudônimo de Mirabeau. Na mesma fala, o apresentado diz que Galvão tivera com os demais estudantes, entre os quais nomeia novamente Francisco de Melo Franco, além de outros, tais como Lourenço Justiniano e Joaquim Cavalcante, “comunicação” sobre “sobre pontos de religião”. Nessa discussão, com Melo Franco e Galvão, Almeida “disputava sobre o Materialismo”. Também contara que Morais e Silva teria comunicado a todo o núcleo de estudantes que se ausentaria do Reino por receio de ser preso pelo Santo Ofício.106 Além do mais, deu detalhes da amizade de Galvão com João Laureano, Diogo José de Morais Calado e Lourenço Justiniano – presos pela Inquisição de Coimbra –,que frequentavam, em quase todas as noites, a casa do dito Galvão, então já formado em Filosofia. Em tais encontros, comiam carne em dias de preceito e disputavam em matérias de religião. Galvão, por exemplo, defendera que a alma “não era somente mortal, mas material”, em complemento a falas de colegas contra a imortalidade da alma. Manuel Galvão, ainda segundo a denúncia, dissera que tais asserções que defendia era de homens “de grande juízo”.107 104 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Correspondência de Antônio Manuel Félix, proc. 13801. Processo de Manuel Galvão, proc. 13367. Fl.1 105 Ibidem, Fl. 1v. 106 Ibidem Fls. 4v-6. 107 Ibidem, Fls. 6-6v. 345 Há denúncias contra estudantes da Universidade de Coimbra ainda no início do século XIX, relacionadas à libertinagem. É o caso da que foi feita contra o estudante Cipriano da Costa, que tinha 20 anos de idade à data em que foi denunciado. O sacristão da capela de Nossa Senhora da Graça, em Lisboa, compareceu diante do inquisidor Francisco Freire de Melo, em agosto de 1803, para dizer que o estudante “lê os livros de Voltaire e de outros hereges, o que sabia por ele mesmo lhe ter dito, e dá mostras de acreditar nas falsas doutrinas deles”. Porém, o estudante “não quisera declarar-se com ele, denunciante, com medo de ser denunciado”, conclui.108 Os documentos analisados anteriormente mostram que, entre estudantes da Universidade de Coimbra entre a década de 1770 e princípio do século XIX, existiram núcleos de leitores de obras do Barão D’Holbach, de Voltaire e de Rousseau. Tais estudantes discutiam sobre a materialidade da alma, a natureza divina ou humana de Cristo, criticavam a Inquisição e defendiam a tolerância religiosa. Quanto a este último ponto, usavam argumentos que remetiam à cultura das Luzes e à tradição católica. –. Aqui, mostra-se haver, de maneira bem documentada, sociabilidades um tanto amplas e complexas entre acusados de libertinagem, na universidade coimbrã. Ao se deparar com essas verdadeiras redes de estudantes tomadas por libertinos, envolvendo brasileiros e portugueses, pode-se ter o ímpeto de associá-la às reformas pelas quais a mesma universidade passou em 1772, dentro de um conjunto maior e anterior de reformas referentes ao pombalismo. Afinal, entendendo-se o conjunto de alterações nos estatutos e nos métodos de ensino, e todo um conjunto de mudanças que afinaram a Universidade de Coimbra com um projeto modernizador e secularizador pombalino, coevo a desenvolvimentos bem marcantes do Iluminismo católico em Portugal, seria possível pensar-se que a multiplicação de libertinos, cuja crítica ao status quo católico ultrapassava em muito as balizas do dirigismo cultural pombalino, fosse, então, uma espécie de efeito colateral. De fato, as reformas que atingiram a Universidade de Coimbra fizeram parte de um conjunto maior de mudanças, que, segundo Keneth Maxwell, visavam secularizar a educação em Portugal, trazendo-a fortemente para o controle da Coroa.109 Antônio Leite observa que esse processo remonta à expulsão dos jesuítas, em 1759, e à posterior extinção das escolas ligadas aos inacianos. Estes últimos, inicialmente, foram 108 ANTT.Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Denúncia contra Cipriano da Costa, proc. 13539. 109 MAXWEL, Kenneth. Marquês de Pombal. Op. Cit. p. 104. 346 substituídos pelos oratorianos, mas também tiveram seus colégios suprimidos entre 1768 e 1769, acusados de inconfidência pelo fato de a ordem ser refratária às “doutrinas jansenistas, regalistas e antipapais que o Marquês pretendia impor”. Esse conflito culminou com quatro oratorianos, “de mais evidência”, sendo desterrados de Lisboa, entre os quais o padre Teodoro de Almeida.110 Cobrir o espaço na educação deixado pela proibição das ordens em ensinar se tornou uma prioridade. Houve, num primeiro momento, uma reforma visando contornar esse problema e, num segundo, outra, que envolveu a Real Mesa Censória, criada em 1768, a Universidade de Coimbra e os estudos menores. Segundo Francisco Falcon, a Igreja católica, sobretudo setores mais ligados à Sé romana e contrários às tendências regalistas do pombalismo, “tinha em suas mãos a educação em todos os níveis, da família ao nível das representações e orientação e a cultura”,111 mas teve, no curso do reformismo, sua posição posta em xeque. Pensando as reformas de Coimbra dentro de um processo secularizador mais amplo, Maria Eduarda Cruzeiro sintetiza: A reforma (da Universidade de Coimbra, de 1772) não pode deixar de ser vista como uma peça, capital aliás, de um conjunto de medidas pedagógicas, fazendo parte, por sua vez, de uma ação global que, marcada por uma forma particular de reinterpretação das orientações iluministas então correntes na Europa, procurava mudar a face da realidade nacional, dentro dos limites que o regime monárquico absoluto impunha, utilizando coerentemente os meios que este proporcionava e favorecia e, fechando o círculo, buscando ainda produzir, do mesmo passo, a sua consolidação.112 Dessa maneira, indica a autora, sob o pombalismo, existiu uma articulação entre as reformas do ensino – no geral, e da Universidade de Coimbra, em particular –e um "projeto iluminista de secularização", que atingia a todas as instâncias da sociedade, criando uma "competência privilegiada do Estado" quanto à educação, em detrimento do clero e das ordens religiosas, sobretudo os inacianos.113 É fundamental lembrar que tal projeto não passava por uma supressão do religioso, mas por sua reformulação segundo uma linguagem iluminista católica, regalista e conformada com um Catolicismo “racionalizado”, segundo valores das Luzes e bem calcado na defesa do Absolutismo, da religião, de uma ordem estamental de sociedade, ainda que modernizados. Outro ponto a se levar em conta é que Coimbra continuou sob o jugo 110 LEITE, Antônio. Pombal e o Ensino secundário. Brotéria: cultura e informação. No bicentenário do Marquês de Pombal, (I). Lisboa. Vol. 114. Nº 5-6, Maio-Junho, p. 590-606. 1982. p. 598-599. 111 FALCON, Francisco Calazans. A Época pombalina. Op. Cit. p. 423-424. 112 CRUZEIRO, Maria Eduarda. A Reforma Pombalina na História da Universidade. Análise Social, [s. l.], v. 24, n. XXIV-100, p. 165/210, 1988. p. 173. 113 Ibidem, p. 174. 347 eclesiástico, embora não o inaciano, associado ao atraso e objeto de duras críticas por parte das publicações que deram sustentação histórica e teórica à Reforma de 1772.114 Quanto aos aspectos das reformas na Universidade, Maria Beatriz Nizza da Silva explica que se objetivou, sobretudo, aumentar o número de médicos, matemáticos e naturalistas. “Eram estas três Faculdades que concentraram as maiores inovações na Universidade reformada”, respectivamente, Medicina, Matemática e Filosofia – esta, englobando ciências naturais. Continua a autora dizendo que, no tocante à Medicina, considerou-se que muitos dos males do seu ensino na Universidade tinham resultado da tradicional separação entre Medicina e Cirurgia, divisão que deixava as elucubrações teóricas para os médicos e a parte prática, para os cirurgiões. A respeito da Matemática, entendia-se que, além de habituar o entendimento a “pensar sólida e metodicamente em quaisquer outras matérias”, ajudava no desenvolvimento de outras “artes úteis ao Estado”, como “a cartografia, operações práticas da campanha da Marinha, a Arquitetura naval, civil e militar; as máquinas, artifícios e aparelhos que ajudam a fraqueza do homem”. Por fim, referindo-se à Filosofia, a reforma pombalina alterou profundamente a própria concepção dela, considerando a Filosofia Natural tão ou mais importante que a tradicional Filosofia Racional e Moral. Demonstra-se essa valorização da Filosofia Natural com várias iniciativas: a criação do Gabinete de História Natural, que recolhia produtos dos reinos vegetal, animal e mineral, que constituíram um grande acervo de animais, plantas e minerais na Universidade de Coimbra; o Jardim Botânico, “para a cultura das plantas úteis às Artes em geral e em particular à Medicina”; o Gabinete de Máquinas, “para se fazerem as experiências de Física”; e, por último, o Laboratório Químico, para “as preparações destinadas, sobretudo, aos estudos da Medicina”.115 Maria Eduarda Cruzeiro entende que tal primazia das ciências naturais e exatas, tidas como foco principal das reformas, valia-se do entendimento segundo o qual elas seriam fundamentais para se superar um atraso percebido em Portugal e suas colônias, em relação às demais nações da Europa Essa orientação valia-se da “concepção confiante sobre o papel das ciências”, no Iluminismo: “as exatas e naturais, as da observação e da experiência, sobretudo, ainda que não exclusivamente –, na felicidade dos povos e engrandecimento das nações”.116 De toda maneira, essas ciências 114 Por exemplo, o Compêndio, publicado pela Junta de Providência Literária, em 1771, ou o Verdadeiro Método, de Verney, ambos analisados no Capítulo 2 desta tese. 115 SILVA, Maria Beatriz Nizza da. A Cultura Luso-Brasileira: Da reforma da Universidade à independência do Brasil. Lisboa: Editorial Estampa, 1999. p.17-18. 116 CRUZEIRO, Maria Eduarda. A Reforma Pombalina na História da Universidade. Op. Cit. p. 188. 348 desenvolver-se-iam submetidas “a servir às razões do poder”, vindo a encontrar seu “controle, externo e interno, na existência de Deus ou no serviço do rei”, como estabeleciam os Estatutos e demais documentos da referida reforma, bastante comprometidos com o dirigismo cultural pombalino.117 Sob o reinado de d. Maria I, que abrange maior parte das fontes analisadas acima, comumente chamado de “Viradeira” – termo que indica ter havido, após a queda do Marquês de Pombal, uma virada conservadora e um consequente “retorno” de Portugal a um estado anterior a d. José I –, não houve, em termos teóricos e práticos, grandes rupturas com o pombalismo, embora ele tenha constituído uma reação contra ele. Como explica Luiz Carlos Villalta, o governo mariano pautou-se, em linhas gerais, pela continuidade de princípios e nomes, pela inovação e pela reparação, em relação ao anterior. No tocante à Universidade de Coimbra, houve um retorno de conservadores à sua administração, não implicando, todavia, o impedimento da continuidade das reformas iniciadas nas décadas anteriores. De fato, “a gestão mariana e a regência joanina”, entre 1772, informalmente, formalizada em 1799 e encerrada em 1816, com o falecimento da rainha “na Universidade, nem asfixiaram o espírito reformista, nem selaram supostas vitórias definitivas dos refratários ao cientificismo e à modernização do Reino”. Isso não implicou, todavia, “livrá-la do controle e das violências que sufocavam a disseminação de ideias e de contestação” mais radical à ordem.118 Maria Eduarda Cruzeiro admite que, paralelamente à secularização e à modernização da Universidade, houve a permanência e a continuidade tanto de ritualismos do Antigo Regime, como da vigilância inquisitorial e dos órgãos de censura no sentido de se limitar essa mesma modernização ao serviço da Coroa e Igreja – esta última submetida à própria Coroa. Entende também que isso não impediu, por exemplo, a consolidação de substantivas reformas tocantes ao curso de Leis e ao próprio pensamento jurídico português, afinadas com debates das Luzes, de maneira relativamente contínua entre o pombalismo e o reinado mariano.119 Isto posto, não é de se estranhar que, numa documentação coeva aos processos, esteja presente uma preocupação a respeito da liberdade, tanto de debates e de leituras, quanto de trato com moral e com a religião, por parte dos alunos da Universidade reformada. É isso o que se nota, por exemplo, no início do reinado de d. Maria I, 117 Ibidem, p. 189. VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do livro no mundo luso-brasileiro sob as Luzes. Op. Cit. p. 142 e 147. 119 CRUZEIRO, Maria Eduarda. A Reforma Pombalina na História da Universidade. Op. Cit. p. 202-206 e p.209. 118 349 quando d. Francisco de Lemos, reitor da Universidade de Coimbra, enviou a Relação do Estado da Universidade de Coimbra de 1772 a 1777. Nessa Relação, veem-se elogios relacionados às reformas no ensino bastante afinados com o vocabulário da Ilustração católica portuguesa: por exemplo, observam-se claramente, de um lado, elogios aos métodos, ao ensino de ciências e aos saberes “úteis à república”, entre outros pontos, e, de outro, sutis elogios à política regalista pombalina e críticas a seus detratores, além do tom antijesuítico. Porém, o documento contém um tópico dedicado ao “que pertence aos Costumes e doutrina dos estudantes”. Lemos começa dizendo que as “Universidades são escolas não só de Letras, mas também de Virtudes. Por isso não se deve haver nelas menos cuidado em ilustrar o Espírito dos Estudantes” pelas ciências, mas também “formar seus Corações com a prática das Virtudes”. Sem essas duas pedras angulares, a formação científica e a de boas virtudes, “é claro que seria arruinar a Educação Nacional”, que “deve merecer a primeira atenção e vigilância dos Soberanos”, pois esta educação é “princípio e origem da felicidade Pública” dos Estados. 120 Tais virtudes, continuando a Relação, foram muito mal cultivadas durante a primazia jesuítica na Universidade,121 tendo seu curso corrigido após a reforma de 1772. Todavia, mesmo depois disso, Lemos afirma que problemas permaneceram existindo. Segundo o reitor, a Relação não podia “deixar de refletir sobre a grande dificuldade que há de guardar-se uma disciplina exata”, a respeito tanto dos costumes e moral, quanto de aspectos doutrinários dos estudantes da universidade coimbrã. Tudo porque, continua, “sabe-se muito bem, que os estudantes não vivem em Colégios”, isto é, internatos, “mas estão dispersos pela cidade em casas particulares, que alugam”. E, por isso, “não se podem haver cautelas humanas, que segurem inteiro depósito dos costumes da Mocidade”. E depois de sugerir, para contornar tal problema, a instalação dos ditos “colégios”, acrescenta que, naquilo “que pertence à Doutrina, consta-me também que são acusados os estudantes da Nova Reforma”, isto é, de entrada posterior a 1772, “de pensarem livremente em pontos de Religião”. Essa constatação acontece devido “às declamações vagas que têm feito nos Púlpitos alguns Pregadores incautos e pouco advertidos”, espalhando sobre esse ponto o que d. Francisco de Lemos chamou de “falsos rumores”, sobre esses novos estudantes, por uma parte do clero que se opunha “à torrente de todas as novidades, que segundo dizem se espalham e se ensinam na Universidade” de 120 LEMOS, Francisco de, d. Relação geral do estado da Universidade (1777). Coimbra: por ordem da Universidade de Coimbra. II Centenário da Reforma Pombalina, 1980. p. 198. 121 Ibidem, p.198-204. 350 Coimbra.122 Em suma, o reitor fazia uma sutil defesa dos estudantes que eram mal reputados pelo baixo clero, com suas falas conservadoras e opostas às “novidades do século”, falas segundo as quais a Universidade ocupava o lugar de centro irradiador que pervertia os jovens. Algumas informações contidas na Relação convergem com alguns aspectos presentes na documentação inquisitorial, no que diz respeito aos estudantes acusados de libertinagem, a partir da década de 1770. Primeiramente, certa difusão da ideia de que, na Universidade, aos estudantes ensinavam-se “novidades”, ou seja, ideias heterodoxas. Luís Antônio de Oliveira Ramos, ao analisar o mesmo documento, trata-o como um indício significativo de uma reação antipombalina, após a queda de Sebastião José de Carvalho e Melo, por parte de setores reacionários da clerezia, afinados com ideias ultramontanas, contrárias ao regalismo e favoráveis ao papado.123 Retomo este ponto mais à frente. Além disso, os estudantes hospedavam-se em casas que alugavam em Coimbra e tinham lugares para se reunir, o que era entendido como um problema sério de vigilância da disciplina – moral e doutrinal. Esse quadro assemelha-se bastante ao cenário descrito na documentação do Santo Ofício referente aos estudantes. Além disso, observando que os processos de estudantes coimbrãos envolvem, na sua maioria, alunos de leis e de ciências naturais, e, ainda, considerando-se as próprias sociabilidades e trajetórias documentadas pela Inquisição de Portugal, é possível se inferir que a crítica religiosa que faziam esteve afinada com o pensamento das Luzes e com uma efervescência cultural e intelectual que marcava uma Universidade em processo de secularização. Essa efervecência, também, se fazia ver noutros ambientes de sociabilidade nos quais os estudantes frequentavam e se encontravam, e algumas vezes saiam da própria Universidade e dos seus entornos. Antes de desenvolver mais amplamente esse ponto, é fundamental destacar que as sociabilidades dos libertinos se faziam ver e despertavam atenção das autoridades régias e inquisitoriais em vários outros lugares. Diante disso, é necessário explorar alguns elementos distintos na cultura das Luzes, que se fazem ver nos estudantes libertinos de Coimbra e que possuem algumas particularidades, quando observados noutros lugares de sociabilidade. Um primeiro grupo que salta aos olhos são os acusados de libertinagem que estavam em conventos e eram eclesiásticos, seculares e regulares. Os comportamentos heterodoxos dos acusados de libertinagem pertencentes ao clero ou de formação 122 123 Ibidem, p. 210-211. RAMOS, Luís A. de Oliveira. Sobre os ilustrados da academia de Coimbra. Op. Cit. p. 315. 351 eclesiástica possuem similaridades com os diversos analisados entre os estudantes da Universidade de Coimbra – muitos até coincidem entre um meio e outro –, com algumas particularidades que devem, aqui, ser marcadas. No processo movido contra o frei Henrique de Jesus Maria – sacerdote que, à época do seu processo por libertinagem, proposições e solicitação, morava no Convento de Santo Antônio da Convalescença, em Lisboa, em Benfica –, nota-se liberdade, tanto nas proposições como na leitura de livros defesos, além de indícios de sociabilidades típicas dos chamados libertinos. Em 27 de julho de 1792, o frei Henrique de Jesus Maria teve uma denúncia, passada à mesa do Santo Ofício de Lisboa, pelo comissário João Monteiro Contrim. A denúncia deu início a um processo que durou até outubro do ano seguinte. Ele foi denunciado por “falar libertinamente e com grande escândalo, em pontos de nossa Santa Religião”, pelo padre mestre frei José do Amor Divino, que disse que, uma certa vez, o frei falava com tamanha liberdade sobre religião, tendo “um seu condiscípulo lhe” dito: “= tu es pior que Voltaire!”.124O frei era descrito como leitor contumaz de livros proibidos, dentre os quais se incluíam os de philosophes das Luzes francesas e de teóricos do regalismo. Além disso, ele era defensor da liberdade de consciência e da tolerância religiosa, crítico da Inquisição, tendo enorme disposição para confrontos, com outros religiosos, sobretudo, em termos de argumentos sobre a fé católica. A respeito das leituras proibidas, o frei Jesus Maria fora denunciado por ser leitor de Voltaire e, ao final do processo, quando se apresentou para confissão em mesa, acrescentou à lição do pensador francês, autores que remetem ao regalismo, a saber: Justinus Febronius, Frederico II, da Prússia (com Cartas) e o pouco conhecido pensador alemão Johann Friedrich Zöllner.125 O primeiro, como mencionado no Capítulo 2, é o nome com o qual o escolar de Lovain Nicolaus von Honthein assinou sua principal obra, De Statu Ecclesiae et legitima potestate Romani Pontificis liber singularis (1763), com a qual se tornou um dos principais teóricos do regalismo em meados do século XVIII. A respeito da obra mencionada de Frederico II intitular-se Cartas, é provável que estivesse se referindo à Oeuvres de philosophe de Sans Souci, publicadas em três volumes entre 1749 e 1750 – Sanssouci era o nome do palácio de verão que Frederico havia construído nos arredores de Berlim, entre 1745 e 1747. Essa obra é composta por um conjunto de poemas – entre os quais figura o Le Palladion, conhecido pelo tom 124 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Processo de Henrique de Jesus Maria, proc. 6239. Fls. 3-3v. 125 Ibidem, Fls. 44v-45. 352 satírico com o qual se refere a figuras do período e à religião cristã – fez parte de um conjunto maior de publicações que constavam na pastoral do então bispo de Coimbra, d. Miguel da Nunciação, de 8 de novembro de 1768, na qual se indicavam aos diocesanos diversos autores que deveriam ser evitados, na sua maioria, franceses. Essa pastoral, todavia, motivou a prisão do referido religioso por ordem do Conde de Oeiras, por tê-la considerado como uma usurpação das atribuições que seriam da Real Mesa Censória.126 Quanto ao último autor, Zollner, tratava-se do reformador educacional, clérigo luterano e francomaçom que, apesar de ter vasta obra, ficou mais conhecido por uma nota, que consta em artigo seu publicado em 1783, no qual argumentou contra a instituição do casamento civil. Na referida nota, colocava a pergunta: Was ist Aufklärung?, ou “O que é o Esclarecimento?”. Tal pergunta foi respondida por Immanuel Kant no próprio Berlinische Monatsschrift, mesmo periódico no qual Zollner havia publicado seu artigo sobre o casamento civil e tornou-se notável no pensamento das Luzes. Além disso, Zollner, motivado por grande interesse na educação formal de adultos, entre 1782 e 1804, publicou uma vasta coleção de pequenos artigos sobre tópicos variados, objetivando levar discussões sobre “ciências naturais e sociais para uma audiência mais ampla”.127 Sobre as proposições, o frei Henrique de Jesus Maria foi acusado de declarar sentir-se “mal da criação dos Tribunais do Santo Ofício, porque era obrigar ao homem a seguir uma Religião”, o que iria contra a razão. Tal oposição entre a criação da Inquisição e a razão baseava-se no pressuposto segundo o qual “o homem nasce livre e dotado de razão e, como esta é boa, já que é dada por Deus, dela podia o homem usar para escolher aquela Religião que melhor se parecesse” e que, “para isto, devia experimentar ora uma ora outra”.128 No testemunho do frei José de São Romão, religioso da Ordem de Santo Antônio dos Capuchos do Convento do Campo de Santana, consta que Jesus Maria se portaria com grande liberdade ao falar em pontos de religião, costumando dizer que, para se ter conhecimento se a religião era verdadeira ou não, ditava a razão para que experimentasse outras, a fim de as comparar com a lei 126 JOHNSON, Martinho, d. (O.S.B.). Dois bispos do século XVIII: D. Miguel da Anunciação, bispo de Coimbra e D. Frei Manuel da Ressurreição. Revista História -USP. V.51, nº10 (107-125), 1975. p.113 e 109. 127 Johann Friedrich Zöllner (1753-1804). The Dictionary of Eighteenth Century German Philosophers, 3 vols., edited by Manfred Kuehn and Heiner Klemme (London/New York: Continuum, 2010).] Disponível em: < http://users.manchester.edu/FacStaff/SSNaragon/Kant/bio/FullBio/ZollnerJF.html> . Acessado em Ago./2018. 128 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Processo de Henrique de Jesus Maria. Op.Cit. Fl. 4. 353 católica e seguir qual fosse melhor. Quando repreendido, atribuía suas proposições a seu gênio forte e ríspido, atenuando, assim, seu erro.129 A questão sobre os livros proibidos volta noutros testemunhos, como o do lente de teologia frei José do Amor Divino, que cita o religioso denunciado, novamente, como leitor de Voltaire. Entretanto, diz que ele teria um número ainda maior de obras defesas, não se lembrando quais seriam os seus autores e títulos.130 O frei Bernardo de Santa Bárbara, por sua vez, disse ter vivido com o frei denunciado por três anos, sem tê-lo visto confessar-se. Afirmou que o via rezar “a missa com velocidade de oito a nove minutos”, bem como se opor à religião católica naquilo que, segundo Henrique de Jesus Maria, “excedia à nossa razão e que não havia razão natural que as provasse, mas assim a Igreja tinha determinado”.131 Em todas os testemunhos, aparece como importante elemento o “escândalo”, ou, no caso, a publicidade com a qual o frade falava de tais matérias com outros religiosos. E na averiguação da credibilidade das testemunhas contra ele, para o que foram ouvidas, como era de praxe, outras testemunhas, o frei Simão da Conceição disse que elas eram todas de “boa vida e bons costumes”. Elas defendiam, porém, “que as doutrinas antigas são rançosas e que sempre as modernas prevalecem”, ponto que aparece em falas atribuídas ao próprio Jesus Maria.132 Por fim, o próprio frei Henrique de Jesus Maria compareceu para se confessar aos 9 de julho de 1793. Declarou ter tido “opiniões que favorecem a impiedade”, como, por exemplo, crer na “Predestinação absoluta” – doutrina pertencente ao Calvinismo e com fundamentação teológica na própria obra de João Calvino –, negar o poder temporal do papa e ler livros proibidos. Entre estes, ele citou: “As correspondências do 2º Rey de Prússia, algumas obras de Zoller” – que ao que tudo indica seria Zollner, como dito supra – “e as obras de Justino Febrônio”. Jesus Maria, ademais, confessou que, “fora da confissão teve conversações ilícitas com uma pessoa do sexo feminino”, solicitando-a para “pecados desonestos” e, por conseguinte, agindo de maneira contrária ao voto de castidade dos eclesiásticos, mas não cometendo a solicitação, crime de alçada inquisitorial.133 No sumário do processo, “vista a pouca prova, que resulta das testemunhas do sumário junto, contra o delato Fr. Henrique de Jesus Maria”, e por entender que o acusado de libertino “proferia” as proposições “em 129 Ibidem, Fls. 16-18. Ibidem, Fls. 9-9v. 131 Ibidem, Fls. 22-23. 132 Ibidem, Fls. 31-31v. 133 Ibidem, Fls. 44v-45. 130 354 forma de argumento e, por assim entender, que por contradizendo-lhe, logo cedia e conhecia a razão como as testemunhas depõem”, os inquisidores entenderam que “fica a justiça satisfeita, sendo o delato asperamente repreendido e [obrigado a] assinar termo de emenda” de seus erros.134 O processo do frei Henrique de Jesus Maria, tomado por libertino que, além das proposições e leituras de obras defesas, mostrava comportamentos que indicavam irreverência com a religião e com o clero, tais como recusar-se a pregar sobre as chagas de são Francisco, alegando que “não queria descer do púlpito e ouvir de alguém que pregou mentiras”135, ou fazer piadas com religiosos quando faziam procissão, dizendo que a ela acorriam apenas com “panos de honestidade”136. Além disso, o processo contém algumas informações importantes à discussão aqui proposta sobre as sociabilidades características dos libertinos. Há indicativos de que conventos e outros lugares ligados ao clero regular – cujos membros, em grande parte, tinham formação de nível superior em Teologia, obtida em seminários diocesanos, conventos e em universidades, entre estas, frequentemente a Universidade de Coimbra – havia, por exemplo, circulação e leitura de livros proibidos. Nas proposições, contudo, não se nota uma mera tradução das leituras. No caso de Jesus Maria, por exemplo, a única relação mais óbvia entre as proposições e leituras estaria nas críticas ao poder temporal do Papa, ponto central do febronismo. É importante lembrar que com as reformas pombalinas da Universidade, no Curso de Cânones, adotou-se o compêndio Instituições Eclesiásticas, de Justino Febrônio, claramente regalista e afinado com a linha oficial do pombalismo.137 A obra, que foi condenada pelo Papa Clemente XIII e permaneceu no Index até, pelo menos, 1766, dava trabalho aos mestres – que, nas aulas, se viam obrigados a suprimir as explicações de alguns de seus parágrafos –, o Reitor Principal Mendonça, em 1780, ordenou sua substituição por Instituições de Jurisprudência Eclesiástica, de Paulus Josephus Riegger. Com isso, o regalismo pombalino cedeu lugar a um regalismo eclético, sem qualquer marca jansenista.138 Por sua vez, faltam detalhes que possam permitir, por exemplo, ligar suas críticas à Inquisição e sua defesa da tolerância e da liberdade religiosas com algum dos demais autores mencionados, ou o 134 Ibidem, Fl. 49. Ibidem, Fl. 4. 136 Ibidem, Fl. 44. 137 RODRIGUES, Manuel Augusto. Tendências regalistas e episcopalistas nas bibliotecas de Coimbra do século XVIII. Revista de história das ideias. Vol. 10, p. 319-326, (1988). p. 319-320. 138 PEREIRA, José Esteves. O pensamento político em Portugal no século XVIII: Antônio Ribeiro dos Santos. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 2005. p. 24. 135 355 mesmo com algum nível de descrença mostrado nas proposições do grada e sua postura irreverente com o religioso. Além disso, a ênfase que as testemunhas dão ao “escândalo” com o qual Jesus Maria se portava nos seus argumentos e a indicação de que alguns dos padres que testemunharam diziam, costumeiramente, que as doutrinas antigas eram “rançosas” e as novas prevaleciam sempre, podem ser tomadas traços de um ambiente onde existiam, também, espaços para uma crítica religiosa mais radical, dialogando mais ou menos com o que se dava em certas publicações das Luzes. Trata-se de pontos um tanto similares aos que foram observados entre os estudantes da Universidade de Coimbra. Indicativo de quadro semelhante se observa também no além-mar. Por exemplo, o comissário do Santo Ofício, frei José Barreto Coutinho, recebeu denúncias do viceprefeito dos religiosos capuchinhos italianos, o frei Félix Maria de Cremona, contra outros religiosos do convento do Carmo, no Rio de Janeiro, em agosto de 1778, conforme consta no Caderno do Promotor. O primeiro denunciado, o dr. Tomé Joaquim Gonzaga, "faltava pouco para ser herege" e andava com livros proibidos, dizendo que "tinha faculdade para tê-los e lê-los". O denunciante também afirma ter sido informado pelo frei Francisco de Santa Tereza que João Ferreira Luvas, familiar do Santo Ofício, era casado com uma mulata. O frei Félix Maria de Cremona apresentou ainda mais denúncias. Disse ter ouvido dizer de Francisco da Costa Cordeiro que o padre José da Mota, do hábito de São Pedro, o tenente Francisco Roberto, irmão do cônego e cura da Sé, negavam a existência do Inferno e de seus tormentos, dizendo que lá apenas havia a privação da visão de Deus. Denunciou também que o alferes Vicente Vaz Ferreira Serigueiro disse que o dr. Tomé da Silva Gonzaga, citado na denúncia anterior, defende "com argumentos" que não há Inferno e outras proposições.139 Ainda no Rio de Janeiro, em São Cristóvão, outra denúncia sobre libertinagem envolveu religiosos. No início de janeiro de 1780, o padre Manoel Ferreira de Oliveira Porto, presbítero secular formado pela Universidade de Coimbra, natural do Rio de Janeiro, e morador na freguesia de Nossa Senhora da Candelária, foi denunciado por proposições heréticas. Manoel de Jesus, da freguesia de São Tiago, mestre sapateiro, administrador regente e enfermeiro do Real Hospital dos Lázaros, disse que o dito presbítero foi ouvido a "dizer e provar e teimar" sobre "que não havia Inferno, nem fogo que atormentasse e que não havia os mais tormentos [de] que nós temos por fé: que tudo isto era uma mentira", pois, segundo 139 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. 130º CADERNO DO PROMOTOR. Op.Cit. Fls. 24-25. 356 o denunciado, "que o que diz a Sagrada Escritura e os livros, os pregadores e o que se pinta em pinturas era só para nos atemorizar, mas que não havia tais coisas", e "que o Inferno só consistia em não ver Deus". O denunciante, que se disse, diante das proposições, “escandalizado e, tentando contradizer o padre, alumiado pela luz da fé", retrucou-lhe: "que não fosse patife como os havia havido [sic] até agora e que este século estava muito claro [e,] portanto a arte libertina tinha apurado tudo". Acrescentou ainda que o conflito deles a respeito do Inferno tem sido falso, "assim como houveram (sic) muitas epístolas falsas na primitiva Igreja fazendo distinções destes tempos". Ao ser repreendido pelo denunciante e por sua mulher, ainda na discussão sobre o Inferno, o padre teria questionado "quem [...] tinha ido ao Inferno para nos dizer o que lá se passa [?]". O padre teria dito, ainda segundo a denúncia, diante de testemunhas, que o Sumo Pontífice era um bispo como os mais e que São Pedro não teve mais poder que os demais sínodos, e provava isto mostrando trechos dos Evangelhos. Nessas ocasiões, falava ainda seguindo a mesma argumentação, que o rei era governador somente na cidade que mora e que era apenas um fidalgo como os mais. Não há indicativos de andamentos da denúncia.140 O presbítero Manuel Ferreira de Oliveira Porto foi denunciado, uma segunda vez, pelo padre Antônio Barbosa Leão, sobre a proposição mencionada referente à autoridade do pontífice.141 Na apresentação do frei João Constantino de Matos, há também a menção a diversos religiosos, em sua maioria regulares, que viviam segundo “sistemas” irreligiosos. Ele se apresentou em 13 de janeiro de 1807 diante do inquisidor Luiz Rabelo de Albergaria, tendo à época 30 anos de idade. Matos, religioso da terceira ordem de São Francisco, disse que, oito anos antes da apresentação, ele vivia em Lisboa, no colégio de São Pedro, em função dos seus estudos – estudava, então, Teologia dogmática. Antes disso, adquiriu uma “íntima amizade” com outro religioso, o frei Tibúrcio José da Rocha, da mesma ordem que Matos, no colégio do Espírito Santo, em Évora, tendo-o encontrado no dito colégio de São Pedro. Com Tibúrcio, Matos declarou conversar sobre vários pontos a respeito da religião, e seu amigo o tentou persuadir diversas vezes que “a Nossa Santa Religião não é verdadeira”. Matos disse que, não tendo ele “instrução suficiente para conhecer os sofismas e argumentos” de seu amigo, convenceu-se da falsidade do Catolicismo, do qual se apartou. Disse que viveu dessa maneira durante cerca de dois anos, tempo em que progrediu em cargos 140 141 Ibidem, Fl. 286. Ibidem, Fl. 287. 357 eclesiásticos menores e apenas começou a principiar em “aborrecer a vida desgraçada em que andava” após esquecer de celebrar o que seria sua primeira missa. Conservou-se nessa descrença até estar próximo de receber a ordem de presbítero, o que o motivou a apresentar-se e confessar-se ao Santo Ofício. Depois disso, passou a denunciar vários outros religiosos do seu convívio, que viviam na mesma descrença, por um espaço de cerca de oito anos: o frei Eleutério da Rocha, irmão do Tibúrcio e também da mesma ordem; o mestre frei Antônio Pacheco, segundo Matos “seculariado” [sic. Secularizado, no caso] à época da apresentação; outro frade da mesma ordem de São Francisco, frei João Pacheco, que era morador no Convento de Jesus, na cidade de Lisboa, que já havia falecido à época da apresentação; e outro chamado Francisco Homem, que era natural do Porto, segundo a apresentação, e que, além de ter conversado com ele sobre pontos de religião, teria lhe entregue “papéis ímpios e lhe disse que não acreditava em coisa alguma de Nossa Santa Religião”. Todos eles, segundo o apresentado, praticavam exteriormente os preceitos católicos, mas, internamente, não acreditavam em seus mistérios, preceitos e dogmas. O frei João Constantino de Matos foi sentenciado com um auto-de-fé privado, abjuração em forma, absolvido da excomunhão que incorria, penitências espirituais e pagamento de custas.142 No mês seguinte, a Inquisição de Lisboa enviou um documento à de Coimbra a fim de averiguar possíveis culpas dos frades Eleutério José da Rocha e de seu irmão, o frei Tibúrcio José da Rocha, denunciados na apresentação de João Constantino Matos.143 Não foi possível acessar o processo de Eleutério José da Rocha, indisponível no site do Arquivo da Torre do Tombo. Mas há uma minuta da apresentação de seu irmão, datada de 6 de janeiro de 1807, feita ao inquisidor Manoel Estanislau Fragoso. Ele disse que, “educado na Religião Católica Romana” até os dezesseis anos, entrou na Ordem Terceira de São Francisco no Colégio do Espírito Santo, de sua ordem, em Évora. Lá, “satisfizera o ano do noviciado, mas também outro no qual estudara grego e Geometria”. Aos dezoito anos, passara ao Colégio de São Pedro, da Universidade de Coimbra, “a fim de estudar neste os três anos de Filosofia racional e moral, conforme o plano de sua ordem”. Disse que manteve, “no fundo de seu coração e mesmo nos seus pensamentos até o dito tempo, a pureza da doutrina católica”, até o segundo ano “da 142 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Processo de João Constantino Matos, proc. 7120. 143 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Pedido de informação feito pelo secreto do Santo Ofício de Lisboa à Inquisição de Coimbra, sobre o frei Tibúrcio José da Rocha e do frei Eleutério, proc. 13490. 358 mesma Filosofia”, e quis dilatar os conhecimentos desta com o estudo da História natural”. Por isso, pediu para “receber lições desta na aula acadêmica da Universidade”, junto com outros religiosos.144 Nas aulas de História natural, que assistia ao lado de seu irmão, Tibúrcio José da Rocha diz que ambos: (...) se viam necessitados de conviver com os seus condiscípulos seculares, na entrada e na saída da mesma aula, que havia diversas conversações, nas quais, por desgraça da parte dos seculares versavam quase sempre sobre libertinagem dos costumes e censura acre dos Preceitos da Religião e da Igreja, que requerem e mandam procedimentos morais, atacando a mesma autoridade da Igreja sobre os seus Mandamentos pelo que respeita a proibição do uso de comer carne em dias de preceito e de confessar anualmente, ao da continência [pois] eles [os estudantes seculares] só queriam e persuadiam compreender o adultério e não a fornicação simples, e todo o mais exercício de prazeres libidinosos, e outros muito absurdos, que pela inteiridade do tempo lhe não lembram.145 Nesse cenário, que ele declarou ver com horror a princípio, foi progressivamente se familiarizando com todos os pontos debatidos com os colegas seculares e, segundo suas palavras, “foi diminuindo insensivelmente o seu horror”. A partir disso e motivado, depois, como consta na apresentação, pela leitura de “Bergier”,146 começou a debater sobre pontos de religião com João Constantino Matos e seu irmão, donde partiram muitas de suas críticas religiosas. Disse que, depois de tantos debates, os três “vacilavam sobre a verdade ou falsidade” de muitos preceitos católicos, “persuadindose mutuamente sobre a força da razão natural que obstava a crença” sobre vários mistérios, entre os quais destacou o celibato. Mas ainda, afirmavam “que não era compreensível a existência de um Deus em três pessoas realmente distintas”, que seria falso também “o Mistério da encarnação da segunda pessoa da Trindade”, que “o celibato parecia opor-se ao preceito de Direito natural” e mesmo à constituição e organização do homem, e que tal regra só é observável por homens doentes ou velhos”.147 Não consta na documentação andamento ou sentença do processo. Outro religioso da Ordem de São Francisco aparece em denúncia feita em 25 de janeiro de 1790, contra o frei Francisco de Santa Cecília, pelo beneficiado Mateus 144 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa Minuta da apresentação e confissão do frei Tibúrcio José da Rocha, proc. 16435. Fls. 2v-3. 145 Ibidem, Fls. 3v-4. 146 Que se refere a Nicolas Sylvestre Bergier, padre e teólogo francês, consagrado ao combate da incredulidade, autor de vasta obra, dentre elas Déisme réfuté par lui-même. C.f. VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do livro no mundo luso-brasileiro sob as Luzes. Op. Cit. p. 442. 147 Novamente, Nicolas Sylvertre Bergier, mencionado na nota anterior. ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa Minuta da apresentação e confissão do frei Tibúrcio José da Rocha, Op. Cit, Fls. 4v-5 359 Coelho da Rocha. O denunciante diz que Faustina Leonarda, mulher de Joaquim Francisco, e sua família relataram que, por algumas conversas e proposições defendidas, o frei Francisco de Santa Cecília foi tomado por herege e libertino. O frade teria dito "que o homem não tinha diferença dos brutos, senão em ser racional e superior a eles, porquanto a Alma morria com o mesmo homem”. Teria dito também, justificando a primeira proposição, que “até agora não constava que alguém visse, como dizem, subir a Alma do corpo". Teria dito também que "suposto nos ensinem [que] há Céu, Inferno e Purgatório, ainda ninguém nos tinha trazido essa notícia certa", e também "que parecia abuso venerar os Santos, ou as suas Imagens dos Altares, porque postas as ditas no fogo, tanto se reduzem a cinzas, como outro qualquer pau". Por fim, teria dito que "parecia supérfluo rezar contas” ou “Rosários, [sendo] bastante somente rezar uma Ave Maria".148 Também frei da Ordem de São Francisco era Francisco de São Joaquim, morador no convento de São José de Ribamar, em Portugal. Ele foi denunciado por Mariana Joaquina, casada com o oficial de carpinteiro Manoel José, disse que o frade lhe teria dito que o ajuntamento de homem com mulher alheia não era proibido, pois Deus criou o homem para a mulher. Teria dito ainda que dirigira espiritualmente uma mulher de "tanta virtude que a toda hora falava com Deus e tinha recebido do Senhor poder para dispensar na sua Lei e seita"; e "dizia a alguém que havia salvar infalivelmente se (...) tratava desonestamente com essa mulher, por vontade de Deus, [por] três anos". Além disso, o frei teria dito à denunciante que castigava tal mulher se ela "tivesse divertimentos com outros homens" e falava sobre essa virtude de se falar com Deus a qualquer mulher. Uma dessas suas mulheres teria engravidado dentro dos cárceres do Santo Ofício e, depois da criança nascer e ser criada pelos inquisidores, ela foi degredada para Évora. Dizia ainda que as mulheres que tivessem trato ilícito com ele não precisariam contar a seus confessores e que também fazia isso por vontade divina.149 Todos esses processos e denúncias referentes a eclesiásticos, mencionados anteriormente, exigem algumas considerações. A primeira diz respeito aos locais de formação dos clérigos, como, por exemplo, João Constantino Matos e os irmãos Eleutério e Tibúrcio José da Rocha. Em tais locais, como os colégios mencionados, 148 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. 130º CADERNO DO PROMOTOR. Op.Cit. Fl. 473. 149 Ibidem, Fl, 135. 360 também havia uma certa circulação de livros proibidos, de modo similar ao sucedido na Universidade de Coimbra. Isso se nota, igualmente, no processo de Henrique de Jesus Maria. Nesses locais, desenvolviam-se sociabilidades típicas de libertinos, pelas quais as pessoas disputavam com alguma liberdade em matérias de religião. Ademais, havia apenas uma fronteira tênue entre essas sociabilidades relacionadas a eclesiásticos e as dos estudantes analisados anteriormente. O próprio destaque que o clero possuía, a essa altura, a despeito do processo de secularização em curso, também o colocava em posição de estar em meio a redes que envolvem seculares, de trajetórias, ocupações e letramentos os mais distintos, aos quais eram atribuídos comportamentos chamados libertinos. Não menos importante é o fato de que também não se estabelece uma relação direta entre leituras e proposições aqui, tal como se observou nos estudantes coimbrãos. Enquanto a estes últimos não se pode atribuir uma tradução das ideias dos filósofos franceses de pontos críticos ao Catolicismo, nos religiosos se observa de uma maneira muito rica a relação de suas disputas com interpretações heterodoxas de teólogos ou das próprias Escrituras. Isso se faz ver no conteúdo de suas críticas à religião em geral. Por vezes, eles recorrem a argumentos que exaltam, de forma mais ou menos direta, a tolerância e/ou liberdade religiosas, bem como a críticas à Inquisição a partir de perspectivas variadas, que vão desde a confluência de suas proposições com críticas à intolerância institucionalizada, nas quais se cruzam um substrato popular de tolerância religiosa com matrizes mais eruditas, próprias das Luzes,150 ou falas, como no caso do abade Mourão, que se atrelam relativamente a uma memória particular e familiar que sustentam uma perda de temor quanto a Inquisição. Observa-se, por exemplo, nas falas atribuídas ao frei Henrique de Jesus Maria, proposições que o denunciado associa a leitura de teóricos regalistas, ao passo que os três frades da Ordem de São Francisco, na confissão de Tibúrcio José da Rocha, fazem a mesma relação com disputas de 150 Aqui, retomo, de maneira breve, alguns pontos que já foram apresentados ao longo desta tese. O primeiro, em concordância como o trabalho de Stuart B. Schwartz, refere-se ao século XVIII no mundo ibérico atlântico, momento em que observam cruzamentos entre debates tributários das Luzes e matrizes populares de tolerância religiosa. Isso se verifica nas proposições documentadas pelas Inquisições. Um segundo, é a considerável possibilidade de que as leituras proibidas, admitidas pelos libertinos nas suas confissões, dadas aos inquisidores, fossem uma maneira de atenuar possíveis culpas e penas que lhes fossem aplicadas, de forma a “colar-se” as proposições às ditas leituras. É um ponto já analisado por Anita W. Novinsky e Luiz Carlos Villalta. Este último autor traz um terceiro ponto importante que é uma leitura inventiva por parte dos mesmos libertinos, que sustentariam suas proposições a partir de entrecruzamentos dos mais complexos entre elementos diversos, que passam por leituras proibidas, mas se valem de substratos culturais distintos e anteriores às Luzes ou mesmo de leituras consideradas ortodoxas, no Setecentos. SCHWARTZ, Stuart. Cada um na sua lei. Op. Cit. p. 315-384; NOVINSKY, Anita Waingort. Estudantes brasileiros “afrancesados” na Universidade de Coimbra. Op. Cit.; VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do livro no mundo luso-brasileiro sob as Luzes. Op. Cit.p.432-457. 361 argumentos motivadas pela leitura de Nicolas Sylvestre Bergier. Este, teólogo, é sublinho novamente, publicou obras de teor veementes contrário, por exemplo, ao deísmo e ao materialismo, além de criticar duramente alguns dos philosophes.151 Entre os acusados de libertinagem no final do século XVIII, encontram-se também muitos indivíduos e grupos de pessoas que, ao contrário dos estudantes coimbrãos e religiosos seculares e regulares, não estiveram – ou é possível presumir que não estiveram – tão próximos de uma cultura letrada. É o caso dos acusados que se ocupavam na marinhagem na ocasião dos seus processos. Em grande parte das denúncias, processos e acusações aqui analisados, o que se nota é que juntamente com as proposições e falas heterodoxas, o “viver de forma libertina”, que era associado a eles, também permeia a narrativa desses documentos. Outro elemento a se notar é a presença dos trânsitos entre países e culturas, à semelhança do que foi analisado no Capítulo 3. Esses aspectos aparecem, por exemplo, na denúncia de Bernardo da Costa Carvalho, piloto dos navios da Companhia Geral do Grão Pará e Maranhão e familiar do Santo Ofício, contra Sebastião da Cunha Sotto Maior, governador de Guiné Bissau e outros adjuntos, entre os quais nomeou o capitão de infantaria, “chamado por antonomásia Capitão Mazagão”, e mais dez pessoas. Segundo o denunciante, o governador e demais denunciados se reuniam “por várias tardes na horta do dito governador e, embriagados de vinho e aguardente, imitavam a cerimônia da missa”. Em “uma ocasião entraram na igreja, no Domingo de Ramos, com copos nas cabeças e ramos nas mãos e botando água benta por algum jarro, que ali se achou, com pouco respeito ao dito local, fazendo irrisão da mesma ação”. 152 Na denúncia, de janeiro de 151 Existe uma tradução de uma obra do autor para o português. Consta, por exemplo, título entre a lista de livros que tiveram licenças autorizadas pela Mesa Censória em 1796, remetidos para Pernambuco, como listado por Gilda Maria Whitaker Verri. A obra em questão é O deísmo refutado por si mesmo ou exame dos princípios da incredulidade ... mr. Bergier, traduzido por José Antônio da Silva, impressa em Lisboa, na Régia Officina Typografica em 1787. Segundo Fernando Augusto Machado, em estudo a respeito da circulação do autor em Portugal na segunda metade do Setecentos – reconhecido como principal teólogo do século, uma espécie de sucessor de Bossuet –, Bergier tentou nessa obra uma refutação do Émile, de Rousseau. Uma recepção positiva dele e as várias traduções, tanto de obras inteiras como de textos curtos, em língua portuguesa, se explicam, segundo o autor, em grande parte pela tentativa de se combater a penetração de ideias do pensador genebrino em terras lusas. MACHADO, Fernando Augusto. Um herético em país de frades, ou como Rousseau invadiu Portugal. Diacrítica – Braga, v. 26, n. 2, p. 324352, 2012. p. 343-344; VERRI, Gilda Maria Whitaker. Tintas sobre papel: livros em Pernambuco no século XVIII.1769-1807. Catálogo. Recife: Editora Universitária UFPE-Secretaria de Educação e Cultura de Pernambuco, 2006. p. 79. 152 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. 130º CADERNO DO PROMOTOR. Op.Cit. Fl.114. 362 1775, Bernardo da Costa Carvalho ainda indicou diversos membros da mesma companhia como possíveis testemunhas. Sobre funcionário da mesma Companha de Comércio do Grão Pará, aparece outra denúncia, dada no próprio Grão Pará, a um comissário da Inquisição e repassada a Lisboa. Trata-se da apresentação de Manoel José da Silva, que começa sua fala afirmando que deveria ter entregue a apresentação antes, mas foi transferido de Lisboa, do Arsenal da Ribeira das Naus, para o Pará, para fazer os navios para a companhia de comércio de lá. Disse que, durante uma discussão com o padre Antônio da Silveira Belo, natural da já extinta praça de Mazagão e que tinha o costume de frequentar o arsenal para conversar com os trabalhadores de lá, o religioso tocou no assunto sobre o "desamparo e pobreza" da praça mencionada, o que motivou o apresentado a dizer que o rei fizera bem em extingui-la. Em resposta, o padre teria argumentado que aquilo seria de grande prejuízo espiritual para os habitantes "mouros, alegando que, por ocasião da entrega da Praça, deixariam de salvar-se", ao que Manoel José da Silva respondeu que "os mouros se podiam salvar-se". Desenvolveu-se, com isso, uma longa discussão com o padre sobre a validade do batismo, questionando se "o padre havia recebido alguma carta do Inferno", depois de o clérigo dizer que todos os não batizados iriam para lá. Segundo o apresentado, em vingança, o padre o denunciou ao prelado diocesano, que era o cônego Luiz Pereira de Souza, que era também comissário do Santo Ofício. E refletindo sobre suas palavras, concluiu, procurou ele mesmo ao comissário e apresentou suas proposições.153 Já em Lisboa, na denúncia contra Manoel Joaquim, feita em 1780 em data não especificada, que era capitão de navio e morador na casa de Francisco Alves, fanqueiro – ou seja, um vendedor de tecidos –, na rua dos Fanqueiros, Lisboa, há algumas proposições em defesa de uma maior tolerância religiosa. Elas teriam sido feitas pelo denunciado diante de Ana Joaquina Rosa e foram denunciadas pelo frei Inácio de Jesus Maria. Segundo a denúncia, Manoel Joaquim teria dito que "não podíamos julgar se os hereges se salvavam ou [se] perdiam e, se se perdessem, que seria necessário maior Inferno; e como haviam de caber tantos no Inferno, e que eles também louvam a Deus". Ele teria completado, dizendo que "também as aves do céu o louvam" e que um herege, em alguma das suas viagens, lhe teria dito "que já tinha ouvido Missa por que sua Missa era seca e a nossa molhada", mais outras coisas que o denunciante não se lembrava. 153 Ibidem, Fl. 156. 363 Mas, segundo a denúncia, teria dito que "abraçava a nossa Religião" católica e que Deus era de infinita misericórdia.154 Pontos similares são encontrados na denúncia contra Antônio Quaresma. No título da denúncia, consta "presunção de judaísmo", mas no corpo dela há diversos delitos e proposições denunciadas pelo frei Domingos Motta, dada no Rio de Janeiro em junho de 1780. Nela, o religioso carmelita calçado, morador no Hospício da sua ordem, no Rio de Janeiro, diz que o denunciado, capitão de navios – chamados Nossa Senhora de Penha de França, Boa Hora e mais um, que diz ter naufragado – é denunciado por ter comportamentos impróprios com sua tripulação nos navios, como ter sido visto urinando em um urinol e jogado seu conteúdo no barril de água que dava aos passageiros. Também, "em certa viagem pusera um pouco de doce por cima da alcorosa imundícia que se achava em um vaso, para dar do dito doce disfarçado a um passageiro, e assim se executara, levando o enganado uma colher à boca". Juntamente com essas troças de natureza escatológica, o capitão de navios denunciado fazia proposições em favor da tolerância e contra a Inquisição. Teria dito, segundo a denúncia, na mesma viagem em que o denunciante vira tais atos, "que o Tribunal do Santo Ofício não era reto, porque não castigava (...) os pequenos, e que ele”, denunciado, “sabia de vários que tinham crimes, e destes não tomava conhecimento". Teria proferido, também, que "neste Reino, os nossos pais nos obrigavam a seguir a Religião cristã, e [que] não era como em outros Países, que deixavam a cada um seguir a Religião que lhe parecia”. Ele defendeu ainda “que devia ser livre a cada um, depois de ter bastante conhecimento das coisas", escolher a religião que melhor entendesse. Depois, o frei carmelita declarou que o denunciado é natural de Lisboa e listou algumas testemunhas, descrevendo o denunciado como homem grosseiro, dado a falar sempre mal dos sacerdotes.155 Noutra denúncia, também registrada no mesmo Caderno do Promotor, dada em Ribeira Nova, Portugal, mencionam-se navios e viagens como ambientes e ocasiões em que falas e discussões sobre pontos de religião aconteciam com notável liberdade. Na denúncia contra José Tavira, feita por Inácio de Sousa e Meneses, o denunciante, embarcando em direção a Belém, em um navio em que todos conversavam entre si, ouviu que o dono da embarcação, chamado Pedro, que trabalha na fundição, estava muito doente. Quem teria dito isso era o denunciado. O denunciante, então, disse que o dito Pedro deveria receber a confissão, ao que recebera a resposta de José Tavira "que 154 155 Ibidem, Fl. 300. Ibidem, Fl. 314. 364 não se confessava a um homem como ele” e ,“dizendo também, que não rezava, e porque isso era desconfiar da misericórdia de Deus'". Inácio de Sousa e Menezes teria tido para Tavira que não dissesse semelhantes coisas, pois poderiam fazer-lhe mal, ao que o denunciado respondeu que "aquilo era graça".156 Na apresentação de Gonçalo Garcia, dada em abril de 1799, em Lisboa, o constante trânsito entre lugares diversos foi pano de fundo para uma confissão de libertinagem, por parte de outro marinheiro. Natural da Paraíba, o marinheiro das forças armadas portuguesa e inglesa, de quarenta anos de idade, apresentou-se diante do inquisidor Manoel Estanislau Fragoso. Depois de ser admoestado, disse que, haveria dez a doze anos, “para ganhar sua vida”, se alistou na marinha da Inglaterra “em praça de marinheiro”. A partir dali, “no giro do comércio que tem feito por todo o mundo no referido tempo”, afastou-se dos preceitos católicos, comendo carne em dias de preceito, não se confessando e apenas ouvindo missa quando as embarcações demoravam-se em algum porto de país católico romano. Fora essas culpas, Gonçalo Garcia confessou ter praticado “outra mais grave”, que consistia em “inumeráveis atos sodomíticos completos com pessoas do mesmo sexo”, tendo, inclusive, tentado “pôr em execução o mesmo depravado apetite com diversos animais”.157 O homem, analfabeto,158 declarou que, mesmo no tempo em que vivia tal “miserável vida”, conservou em seu ânimo a religião católica e, por isso, se apresentou. Esse ponto, somado com o fato de ter vivido tanto tempo em meio a homens de outras religiões, serviu como justificativa para que o frei José da Conceição de Monte Alverne emitisse parecer favorável ao marinheiro ser absolvido da excomunhão em que incorria e lhe recomendasse penas espirituais.159 Trajetória similar a de Gonçalo Garcia se observa na apresentação de outro marinheiro, da mesma naturalidade e que também passou pelas terras inglesas. Trata-se da apresentação de Geraldo Garcia, marinheiro, nascido em Paraíba, bispado de Pernambuco, e morador em Lisboa. A apresentação foi feita aos 30 de julho de 1785. Nela, o marinheiro disse que, em ocasiões em que embarcou nas docas da Inglaterra, em navios ingleses, e vindo falar com eles em pontos de religião e a respeito do Catolicismo, "entrara a vacilar, vendo que eles falavam contra o viver dos preceitos da Igreja Católica, contra os santos e outras semelhantes práticas”, as quais, “todas, foram 156 Ibidem, Fl. 371. ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Apresentação de Gonçalo Garcia, proc. 13638. Fls. 1 e 2-5v. 158 Ibidem, Fl.4. 159 Ibidem, Fl.7. 157 365 a causa de ele apresentado se ir esquecendo de nossa santa Religião pouco a pouco”, de maneira “que, haverá quatro ou cinco anos, que não se confessa, mas que algumas vezes ouvia Missa”. O marinheiro acrescentou, em conclusão, que “ainda que lhe parecia ser a Lei dos Protestantes boa, como tudo, muitas vezes, lhe lembrava a dita Religião como sua própria". Disse que, havia cerca de quatro anos, sido desenganado, após sofrer um acidente em que quebrou a perna, quando, então, contou essa sua história para um padre, em Rilhafoles.160 Ainda tendo como ambiente e ocasião as viagens náuticas, aparece na documentação a descrição de possíveis contatos com a maçonaria, somado a outros aspectos levantados supra, como questionamentos sobre a religião a partir da observação e contato com culturas distintas. Na apresentação do padre José Aires de Casal, dada em 27 de outubro de 1780, em Lisboa, ao inquisidor Alexandre Janssen Müller, o religioso fez algumas denúncias. Disse que, viajando do porto da mesma cidade para o da Bahia, cinco anos antes da apresentação, no mesmo navio, havia um homem chamado Antônio Bernardo ou Bernardes, natural das Minas e morador na Bahia. Este, segundo o denunciante, "dissera (...) na dita viagem que a Alma do homem não podia perder-se, porque, sendo espiritual e uma parte do mesmo Deus, devia salvarse”. Segundo o padre, o denunciado teria dito isso várias vezes, não em resposta a quem o contradissesse ou o provocasse. Também afirmou, na denúncia, ter ouvido mais proposições, das quais não se lembrava pela distância no tempo e por não poder especificá-las debaixo do juramento, mas se lembra de ouvir Antônio Bernardo ou Bernardes dizer "que não era certo ter sido o dilúvio universal, porque ninguém sabia se ele tinha chegado à América". O padre acrescentou que, na mesma viagem, lhe deram uma escrivaninha, no navio, e que demorou a denunciar por não haver Inquisição na Bahia. Também disse que, fazia um ano e meio, aproximadamente, da apresentação, indo em uma embarcação de Calicute à Goa, já na Índia, ouvira dizer que Tomaz José de Queiróz, "que ia na mesma embarcação, as prerrogativas e utilidades que tinham os que entravam na sociedade dos Pedreiros livres" e completou dizendo: "que se ele referido entrasse também entraria”. Dias depois, Queiroz lhe dera “uma patente para a tresladar, com a qual se mostraria ser Pedreiro Livre (...)". O padre José Aires de Casal declarou ter ficado com essa patente por muito tempo, até ser advertido "que poderia não ser coisa boa a dita sociedade". Também disse ter recebido um catecismo, em um 160 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. 130º CADERNO DO PROMOTOR. Op.Cit. Fl. 404. 366 quarto de papel, pertencente à sociedade dos pedreiros livres, do último denunciado. Nela, segundo o religioso, havia "em si coisa alguma de doutrina e tão somente coisas de duas dúzias de perguntas e respostas, tocantes à ação de entrar naquela Sociedade, e seus respectivos sinais". O apresentado disse também tê-lo rasgado, tal como o fez com a patente. Disse também que, vendo e ouvindo, na Ásia as "verdades morais” e as "penitências" que os "Infiéis ali praticavam, e que estas lhe eram ditadas pelo uso da razão e direito natural”, ocorria ao padre que “(....) parecer-lhe que eles não ficariam condenados pela falta da verdadeira crença, visto viverem bem conforme aos ditames da sua consciência e não terem notícia do que era melhor”, mas “igualmente se lembrava de que não poderiam salvar-se por lhes faltar a água do Batismo".161 Assim como na marinhagem e nos meios náuticos, houve muitas acusações de libertinagem entre militares. Elementos como a liberdade em falar de pontos de religião, trânsito entre culturas e religiões distintas, e leituras proibidas são, também, ressaltados nas descrições de alguns de seus comportamentos. É o que aparece na denúncia contra Mâncio da Fonseca, dada em fevereiro de 1780, por falta de crença. Mâncio da Fonseca, natural da vila de Tomar, era soldado da praça de Mazagão e, à época em que foi denunciado, morava em sua terra natal. No documento não assinado, enviado à Inquisição de Lisboa e denunciando o soldado, dizia-se que Mâncio, "seduzido pela luz da razão e alheio da verdade católica, e falto de fé", defendia proposições, tais como: “que Deus não é onipotente e nem pode reduzir a nada a matéria do mundo”; que não há Céu e nem Inferno; que as Almas vivem eternamente com o corpo na sepultura e que a encarnação do Verbo Divino fora uma traição. Também, segundo o papel, somava-se a isto o fato de que "afirmava sempre (...) apesar da grande autoridade da Santa Inquisição com quem desejaria disputar estas questões, que ele a convenceria, pela forma da Terra, pelo Ar e pela palavra". O papel com a denúncia foi entregue pelo oficial José Nunes, de Serra da Beira, aos inquisidores, que também denunciou que Mâncio não ouvia missa fazia muito tempo.162 Na apresentação do partidista da academia militar Antônio José Monteiro, dada aos 7 de outubro de 1778, ele confessou que, estando no Rio de Janeiro, em casa do religioso Manoel Barbosa, disse que chamaria o coronel de seu regimento para absolvê-lo, quando estivesse no leito de morte. Também confessou que, na botica de José Batista Figueiredo, situada no canto do senhor do Bonfim, disse que haveria de 161 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. 130º CADERNO DO PROMOTOR. Op.Cit. Fl. 403. 162 Ibidem, Fl. 174. 367 evitar confissão com padres, porque eles utilizam dos sacramentos para satisfazer suas paixões.163 Já na denúncia de José Adorlo “Bráu” – possivelmente alguma corruptela de um nome estrangeiro –, denuncia-se Alberto “Albak” – mesmo caso –, militar agregado ao regimento da praça de São Sebastião, na vila de Setúbal. O denunciante disse que, numa conversa sobre o seu próprio pai, que também servira ao exército, teria dito ao denunciado que ele nascera protestante e morrera católico. A isso, Albak teria dito que o pai do denunciante "obrara mal em mudar de lei, pois em todas havia salvação". Teria dito, ainda, na mesma conversa, que “no Concílio Tridentino, faltaram somente dois votos para se negar que havia Espírito Santo”.164 Outra denúncia referente ao Rio de Janeiro, dada em 1778, mostra ambientes onde se falava livremente em pontos de religião e nos quais havia presença de militares. Aos 11 de outubro do mencionado ano, Joaquim Gonçalves da Costa, presbítero secular do hábito de São Pedro, deu denúncia ao comissário da Inquisição Felix José de Aquino, contra Paulo João Guedes e contra Francisco de Paulo. Paulo José Guedes, alferes do primeiro terço auxiliar do Rio de Janeiro, segundo o denunciante, teria dito várias proposições em conversa com o religioso. Segundo a denúncia, Guedes, chegando na casa onde estava hospedado o denunciante, perguntou por ele, já que não o conhecia. A partir daí, continuou o eclesiástico, o alferes disse que "os ingleses seguiam sua seita, e que várias nações viviam em diversas seitas, porém, que todas passavam a vida". E perguntou ao partidista engenheiro do mesmo regimento que ele, que o acompanhava à ocasião, chamado Antônio José, se ele queria seguir "a seita de Lutero ou de Calvino", ao que ele respondeu que “sim”. Quanto a Francisco de Paulo, em ocasião em que o denunciante lhe explicava os efeitos da excomunhão maior, o denunciado, que era furriel do mesmo regimento no Rio de Janeiro, dissera que "excomunhão era coisa inventada para causar medo" e, advertido pelo denunciante de que poderia ser denunciado à Inquisição por dizer isso, respondeu que "queria ser transportado para Lisboa". Quando o denunciante disse que seria transportado para ser punido, ele respondeu que, "para ser punido", o denunciante deveria denunciar que ele "queria seguir a seita dos ingleses". O denunciante disse que, em ambos os casos, não denunciara antes – a primeira denúncia se refere a algo que, segundo ele, acontecera oito meses antes da denúncia – por “fazer 163 164 Ibidem, Fl. 12. Ibidem, Fl.40. 368 escrúpulo” em saber se eles falavam determinadas proposições por graça e, também, por saber depois que incorria em delito por não denunciar tal matéria à Inquisição.165 Tais sociabilidades e circulação de livros proibidos e ideias heterodoxas aparecem no processo contra o tenente Hermógenes Pantoja, figura conhecida pelo seu envolvimento na Inconfidência Baiana, de 1798166 – documento que será retomado mais à frente, nesta tese. Na denúncia remetida ao comissário José Nunes Cabral em 20 de dezembro de 1797, o frei Manuel do Sacramento solicitou providências contra o dito tenente e outros militares de seu regimento por proposições heréticas e suspeitas de heresia que, nas palavras do frei, “se encaminham a destruir a revelação Divina”. Dizendo que Hermógenes Pantoja seria “o doge ou Chefe dos Libertinos de toda a Cidade” da Bahia, teria defendido livremente “não haver céu, santos, Inferno” e, também, “negava a divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo, a pureza de Nossa Senhora e imortalidade da alma, dizendo que ela acaba com o corpo”. Mais ainda, “ensinava aos soldados do seu Regimento que a simples fornicação não era pecado, mandando-os fornicar e comunicando-lhes a todos (sic) (...) sentimentos acima expostos”. Conta que suas doutrinas circularam de tal forma que um conhecido seu contou sobre ter visto mulheres que teriam assado um leitão, enquanto escarneciam das chagas e membros de Cristo, convidando para isso “usualmente entre os amigos libertinos desta cidade” da Bahia, forma com a qual haviam de “convidarem e adquirir número grande de sequazes”. Falava também que tais libertinos proibiam seus filhos de confessarem e deu notícia de uma pessoa que, “ainda menino, negava a pureza de Nossa Senhora”. 167 Na devassa ordenada após a inconfidência da Bahia, ficou patente que, no regimento de Pantoja, formou-se um núcleo onde circulavam obras de Voltaire e muitos outros autores, traduzidas em grande parte, além de manuscritos diversos,168 tendo o tenente a posse, por exemplo, do Dicionário Filosófico do pensador francês.169 165 Ibidem, Fl. 41. TAVARES, Luís Henrique Dias. Da sedição de 1798 à Revolta de 1824: estudos sobre a Sedição de 12 de agosto de 1798, o soldado Luís Gonzaga das Virgens, os escravos de1798, Francisco Agostinho Gomes, Cipriano Barata e Levante dos Periquitos. Salvador/São Paulo: EDUFBA/UNESP, 2003. p. 24-54 em especial 38 em diante; VILLALTA, Luiz Carlos. O Brasil e a crise do Antigo Regime português (1788-1822). Rio de Janeiro: FGV Editora, 2016. p. 63-85. 167 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Denúncia contra o tenente Hirmógenes e outros, proc. 13.541. Fl. 2 e 3-3v. 168 IGLESIAS MAGALHÃES, Pablo. O tradutor dos abomináveis princípios: José Pedro de Azevedo Sousa da Câmara e a circulação dos escritos de Voltaire em Portugal e no Brasil (1790-1834). História (São Paulo, vol. 35, p. 1-39, 2016. 169 Em importante trabalho sobe a Sedição de 1798, Kátia Mattoso identificou 12 das 26 obras encontradas na biblioteca do tenente Hermógenes Pantoja. Como foi dito, uma delas foi o Dictionaire Philosophique, primeiro tomo, de Voltaire. Porém, trata-se de uma biblioteca com títulos bastante 166 369 Pedro Manuel Bernes, adido do serviço militar do rei de França, apresentou-se em março de 1795 à Inquisição, dizendo que havia se separado da Igreja devido ao “espírito de libertinagem em que vivia” e que defendia pontos como a incoerência de um deus justo castigar eternamente suas criaturas, além de disputar sobre esse ponto pelo prazer de enfurecer os eclesiásticos. Ele acrescentou que, sem estudos, não teve acesso à leitura de nenhum “heresiarca” para sustentar seus desvios, situação em que, conclui-se, ele se difere de Pantoja. No caso, disse “que isto não era mais do que um produto das conversações, que na sua mocidade tinha com gente moça naturalmente, amantes todos da liberdade da Religião”.170 O soldado Valério Antônio Barreto, por sua vez, entre fevereiro e março de 1780, teve várias testemunhas contra ele ouvidas pelo Santo Ofício. Unanimemente, elas ligaram sua vida “libertina e com desprezo à religião” à sua íntima amizade com um comerciante inglês e protestante, chamado Carlos Alder. Foi dito que o soldado comia carne em dias proibidos e, em tom de zombaria, indo sempre que não estava no exercício de sua função, em Funchal, na Ilha da Madeira, à casa do dito inglês, onde também costumava dormir. As testemunhas destacaram que nunca o viram fazer “ações de católico”, como confessar-se ou ouvir missa. No testemunho de Salvador Muniz de Figueiredo Calheiros, além dessas mesmas informações, consta que, certa vez, ele presenciara o soldado “em uma manhã”, estando “o dito réu ainda na cama, no forte onde estava preso” o mencionado comerciante inglês, “cantando cantigas de uma comédia”. Então, a testemunha lhe perguntara “se eram aquelas cantigas seu sinal da cruz e as orações que devia fazer ao levantar”, ao que o soldado lhe respondera que “tudo era o mesmo”.171 Existem denúncias de libertinagem contra funcionários da administração régia, em Portugal e no Brasil, assim como de “libertinos” que exerciam diversos tipos de variados, entre os quais autores da Ilustração. Destes, é possível destacar a Instituitiones Metaphysicae, do ilustrado italiano Antonio Genovese, publicada em 1768, ou ainda as Letters peruviennes, de Françoise Grafigny, que retrata a sociedade francesa da primeira metade do Setecentos em estilo similar ao das Cartas Persas, de Montesquieu. Mas a biblioteca não se restringe a autores ilustrados. Possuía, por exemplo, As aventuras de Telêmaco, de Fanelon; obras do autor latino Ovídio; a Prosódia de Bento Pereira, do jesuíta seiscentista português padre Bento Pereira. MATTOSO, Katia Queirós. Presença francesa no Movimento Democrático Baiano de 1798. Salvador: Itapuã, 1969, p. 28-33. A respeito das práticas de leitura identificáveis na Inconfidência baiana, nos quais se relacionam estudos sobre a biblioteca de Hermógenes Pantoja e outros envolvidos na mesma sedição, como Cipriano Barata: HIRSH, Irene. Traduções na América portuguesa: as bibliotecas dos revolucionários brasileiros. Tradterm, 17, (p. 31-43), 2010; VILLALTA, Luiz Carlos. A revolução cruza o Atlântico: aproveitando-se da frouxa vigilância, franceses fizeram circular ideais libertários no fértil terreno da sociedade baiana. Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, p. 16-20, 15 jul. 2015. 170 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Processo de Pedro Manuel Bernes, proc. 9744. 171 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Processo de Valério Antônio Barreto, proc.12.513. Fls. 5 e 5 A. 370 profissões liberais, que exigiam algum nível de letramento. Um exemplo é a denúncia feita pelo padre Antônio José Cavalcante contra o bacharel Francisco Luiz de Mariz Sarmento, que era secretário do governo da capitania do Ceará, datada de 1802 e repassada ao Santo Ofício em janeiro de 1803. Na denúncia, o religioso se refere a Mariz Sarmento como “miserável e desgraçado homem, que, por libertino e sectário das doutrinas condenadas e proibidas pela Igreja”, já teria sido condenado e penitenciado pela Inquisição, em Lisboa – documento este que não foi encontrado ao longo da pesquisa para esta tese. São destacados seu desrespeito contra dogmas e disciplinas da Igreja e também o seu “universal escândalo”, que fazem com que todos no seu entorno fiquem “duvidosos da sua fé, persuadidos de sua libertinagem”.172 A partir daí, o religioso lista cinco comportamentos libertinos do bacharel, que vão de proposições a blasfêmias, passando por diversos pontos de seu comportamento público: não assistia a missas e consentia que sua esposa fizesse o mesmo; dava demonstrações públicas e mesmo movia perseguições a pessoas que se mostrassem mais religiosas, acompanhado de beneficiar, a partir de sua função pública, os menos religiosos; lia livros proibidos, tais como Philosophie du bon sens (1768), do Marquês D’Argens e L'Antiquité dévoilée par ses usages (1766), de Boulanger, obras que Mariz Sarmento teria adquirido na livraria do então ouvidor da comarca da Paraíba Manoel Leocádio Rademaquer; cometera, “depois da confissão e comunhão, o gravíssimo pecado da molície com um índio párvulo”, na casa do padre seu confessor; e, por fim, blasfemara em frente à igreja, na vila de Aracati, ao comparar uma pomba que representava a terceira pessoa da Trindade com seu cavalo (disse que se aquela pomba fosse o Espírito Santo, seu cavalo roça-pombo também o era).173 Também no então norte (hoje, nordeste) brasileiro no início do século XIX, mais precisamente no ano de 1806, o vigário da vila de São José, capitania do Rio Grande do Norte, denunciou o capitão mor e governador Lopo Joaquim de Almeida Henriques. Segundo a denúncia, o governador referia-se publicamente à bula cruzada como “peta”, fazia ridículo das indulgências da Igreja e tinha diversos cúmplices entre funcionários da Coroa e militares da mesma capitania.174 Ainda no Brasil, na Vila Rica de Ouro Preto, nas Minas Gerais, em setembro de 1782, Tomás Gomes de Sá fez uma denúncia contra Mario da Silva Porto, escrivão de 172 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Denúncias contra Francisco Luís de Mariz Sarmento, proc.13977. Fl. 2. 173 Ibidem. 2v-3. 174 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Denúncia do padre João Dias Pereira no Brasil., mç. 61, n.º 8. 371 órfãos, por proposições. Porto teria dito por algumas vezes que Cristo fora um homem penitente, que não havia lei melhor que a dos libertinos e, lendo um livro intitulado "Monte Líbero", disse que não cria nessas doutrinas, pois cada qual dizia o que lhe parecia melhor, além de ter "pouca vocação de católico" no ouvir missa, especialmente com o sacramento da Eucaristia.175 Ainda nas Minas Gerais, na vila de Pitangui, em 21 de outubro de 1782, Pedro José Joaquim Soares fez denúncia contra Manoel Ferreira, doutor, por proposições, ao dizer que não havia Purgatório e que ele somente era invenção dos padres para terem missas. O denunciado também teria dito que, se não tivesse filhos, se mudaria, não sabia para que terra, onde pudesse viver mais livre em matéria religiosa. O denunciante diz que o irmão do denunciado, o padre Antônio Ferreira da Silva, teria dito que temia que seu irmão caísse em alguma heresia, "já que o conhecia inclinado a certas seitas de hereges".176 O tabelião Antônio Bernardo da Rocha se apresentou em fevereiro de 1779 ao Santo Ofício, em Lisboa, referindo-se a proposições que teria proferido na Vila do Lagarto, no Sergipe. Disse que teria lido um livro francês, quando esteve em Portugal, e que ele “continha heresias”, por ele narradas a “pessoas rústicas”. Em carta, detalhou que se tratava do Sistema da Natureza, do Barão D’Holbach.177 Há elementos similares na denúncia dada em 1778 por Francisco Hilário Bitencourt contra João Ricardo Galhardo, juiz de fora de Vila das Velas de São Jorge, nos Açores, Portugal, por viver de forma libertina e falta de crença. Segundo acusação, Bitencourt o vira "abusar da bula da Santa Cruzada, negando absolutamente que dela tiram os fiéis que por ela se dispõe", dizendo publicamente que a “missa não vale nem para os vivos e nem para os mortos, mas apenas para os celebrantes, pelas esmolas temporais que recebem”. Teria dito, ainda, que o Jubileu do ano santo fora uma “arenga do Papa”, "e com este nada conhecia senão fazer que as mulheres andassem à mostra pela Vila". Tão pouco era o valor que dava à data, que não teria consentido que pessoa alguma de sua casa fosse ao exercício da procissão do Jubileu. O juiz manifestava, também, duvidar da jurisdição da Igreja de Roma, chegando a dizer, ao padre pregador Frei Manoel de São João e ao padre vigário João Manoel da Silveira, que Henrique VIII da Inglaterra fizera bem em se levantar contra o Pontífice, "porque semelhantes homens em nada lhe eram sujeitos". Na acusação, ainda consta que ele “tem desatendido às 175 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. 130º CADERNO DO PROMOTOR. Op.Cit. Fl. 383. 176 Ibidem, Fl. 392. 177 Ibidem, Fl. 29-30v. 372 imagens dos santos, em ocasião vendo a imagem da Virgem Maria com a invocação da piedade, a chamou de tartaruga", além de o acusar também de fazer uma sinagoga em sua casa e descrever uma série de práticas de suspeição de judaísmo.178 Em Lisboa, em 1789, foi denunciado Jose Marcelino Jorge de Figueiredo Sarmento, alcaide mor de Bragança, por Rosa Caetana de Meireles. Ela o acusou de proferir as proposições seguintes: ouviu-o dizer que "os ingleses não tinham obediência ao sumo Pontífice, pois se firmavam em dizer que o delegado não podia delegar neste país”, e ainda “dando indícios de lhe achar a eles razão". Além disso, o denunciado, vendo pinturas do Senhor dos Passos, disse que eram uns caramujos; também o ouvira dizer que somente eram proibidos, na Lei de Cristo, atos carnais feitos com mulher casada, e, quanto aos feitos com mulher "livre", a Igreja proibiu por decência e outros fins, mas não era preceito divino; mais ainda, que alguns santos que eram venerados estariam nos infernos; que ele era conhecido por mau cristão, principalmente devido a não respeitar os jejuns, dizendo "que ele era juiz de sua consciência", e "que fosse o Pontífice jejuar, que ele mandava comer de peixe aos mais e jejuar a ele, que se regalava em boa carne”, e por isso “que jejuasse o Papa, que a vida deste não era menos interessante do que a sua".179 Entre 1796 e 1797, a Inquisição de Lisboa mandou que se averiguasse algumas denúncias contra o juiz de fora da vila da Cachoeira, comarca da Bahia, Joaquim de Amorim e Castro, além do advogado da mesma comarca Luís Tavares dos Santos. Nas denúncias feitas pelo reverendo Gonçalo Manoel de São Boaventura, o juiz de fora era acusado de praticar sodomia com um escravo seu e com outra escrava de nome Maria Feijão, além de comer carne em dias proibidos com grande escândalo. Já ao advogado foi atribuída a culpa de impedir que sua mulher praticasse os preceitos da quaresma.180 No auto de justiça contra o médico José Antônio do Couto, documento que trata de uma série de averiguações de culpas de libertinagens entre 1799 e 1802, há alguns pontos que remetem aos comportamentos libertinos que têm sido analisados até aqui. O médico, morador de Lisboa na rua da Saúde, era casado com uma inglesa – não nomeada no documento. A denunciante, d. Ângela Micaela de Souza, disse que o médico teria falado, em sua presença, “que duvidava da presença real de Jesus Cristo no Santíssimo Sacramento e que não sabia se Deus era branco, preto ou vermelho”. 178 Ibidem, Fl. 121-121 A. Ibidem, Fl. 434. 180 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Processo de Joaquim de Amorim e Castro e de Luís Tavares dos Santos. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 7035. Fls. 2 e 3. 179 373 Também, continuando a denúncia, tinha o costume de se referir aos padres, frades e ao papa como impostores, e escarnecia das cerimônias da missa.181 Teria, diante de outra testemunha citada, rido ao ouvir que “a mãe de Deus era a melhor entre todas as mulheres” e comia carne em dias de preceito, coisa que declarava fazer somente em casa a fim de evitar escândalo. Numa discussão com a denunciante, na qual ela o repreendia pelas proposições e falta aos preceitos obrigatórios do Catolicismo, assim como o médico “estar em sua casa louvando [...] muito as obras que [se] representam em teatro, profanas”, e ela lhe dizendo que aquilo “não se achava na Escritura” e “nem Jesus Cristo o tinha deixado recomendado” aquilo que o médico lia para “ensino das gentes”, José Antônio do Couto teria dito que “Jesus Cristo era um asno”.182 A documentação aqui analisada leva a conclusões que remetem a uma série de estudos, feitos por historiadoras e historiadores diversos a respeito da História do livro e da leitura em Portugal e Brasil colonial, durante a Idade Moderna. 183 Em linhas gerais, as conclusões desses estudos podem ser sintetizadas em três pontos: em primeiro lugar, a de que havia, tanto em Portugal como no Brasil colônia a circulação de textos proibidos e não proibidos, impressos ou manuscritos, em português ou em língua estrangeira, mormente em língua francesa, apesar da censura; em segundo lugar, havia a discussão e o debate intenso travado em torno desses textos, havendo da parte do leitor uma marcada inventividade, seja no sentido de desobedecer às proibições, ou de ter relativa autonomia em relação aos textos, que se via quando os leitores os ultrapassavam, retirando deles apenas o que era conveniente, ou mesmo subvertendo seu caráter ortodoxo ou sua leitura ortodoxa ditada pela tradição, como no caso da Bíblia ou publicações refratárias a tendências modernas; em terceiro lugar, e talvez mais importante aqui, tais estudos mostram haver diversas sociabilidades desenvolvidas nos espaços mais diversificados, que acabavam por alcançar sujeitos cuja presença não seria 181 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Auto de justiça contra o doutor José Antônio do Couto, proc. 18018. FL.1 182 Ibidem, Fls. 2v-3. 183 ABREU, Márcia. Trajetórias do romance: circulação, leitura e escrita nos séculos XVIII e XIX. 1. ed. Campinas / São Paulo: Mercado de Letras / FAPESP, 2008. v. 1; ALGRANTI, Leila Mezan. Livros de Devoção, Atos de Censura - ensaios de história do livro e da leitura na América Portuguesa. São Paulo: Hucitec, 2004; _____________. Escritura Feminina no Brasil Colonial: os arquivos eclesiásticos e a relação das mulheres com a escrita. Revista Brasileira de Pesquisa Histórica, Curitiba, v. 20, p. 05-12, 2001. KANTOR, Iris. As academias brasílicas e a transmissão do conhecimento no Brasil colônia. Revista da Biblioteca Mário de Andrade, v. 63, p. 99-114, 2007; _______. A Academia Brasílica dos Renascidos e o projeto de escrever a História Universal da América portuguesa (1759). Revista de História das Ideias (Coimbra), Coimbra, v. 24, p. 51-84, 2003; VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do livro no mundo luso-brasileiro sob as Luzes. Op. Cit. 374 de se esperar nesses embates de ideias, tais como mulheres, trabalhadores manuais e, no caso de clérigos, leigos. Assim, os vários acusados de libertinagem apresentam alguns pontos em comum que precisam ser ressaltados aqui. O principal deles refere-se à característica mais fortemente associada ao libertino do final do século XVIII, isto é, assuas sociabilidades, e não exatamente ser adepto de algum sistema ou doutrina, ou necessariamente ser um letrado. No caso, essas sociabilidades, entendidas como espaços e ambientes, proliferaram-se nesse período no mundo luso-brasileiro, onde se discutiam livremente e de forma crítica pontos de religião. Quanto à possível relação entre, de um lado, tais proposições e comportamentos e, de outro aquilo que liam, não se pode afirmar que comportamentos e proposições derivassem necessariamente da leitura dos philosophes ou de outros autores “heréticos”. Quanto a isso, o que os caracteriza melhor são a liberdade na interpretação e a formulação de ideias a partir do que leem, além da verbalização disso nos mais variados espaços de sociabilidade. Afinal, em casos como o do frei Tibúrcio José da Rocha, seu irmão Eleutério José da Rocha e João Constantino Matos, os embates dos quais saíram suas proposições foram atribuídos à leitura da obra de um teólogo católico. No caso de outro religioso, Henrique de Jesus Maria, as proposições se associaram, nas suas falas e confissão, à leitura de autores regalistas. Assim, sublinho, mais que a leitura em si, o ambiente propício a debates e disputas em matérias de religião teve uma relação mais visível com as proposições e comportamentos libertinos. Além disso, tal como foi analisado no Capítulo 3, sobretudo em relação aos acusados de libertinagem que trabalhavam na marinhagem e em cargos militares, a circulação em locais de culturas e religiões distintas e o convívio com estrangeiros indicam que a experiência e vivências com diversidade se mantiveram como pontos importantes naquilo que toca a argumentos presentes nas proposições favoráveis à liberdade e à tolerância religiosas. E a presença de pessoas de pouco letramento no rol dos acusados de libertinagem faz com que esses libertinos de finais do Setecentos se afastem, em alguma medida do arquétipo construído ao longo da Idade Moderna sobre ele, ou seja, como aqueles que possuem acesso privilegiado ao conhecimento e saber, sujeitos destacados do vulgo e libertos das peias do establishment da cultura letrada, eivada dos vícios do Antigo Regime. Compôs-se, dessa maneira, um ethos libertino do final do século XVIII, que definia práticas e sociabilidades específicas, reconhecida pelas autoridades e por várias pessoas dos mais variados estratos sociais. O que se percebe, em suma, é que o libertino é mais definido pela 375 atitude, o “estilo de vida libertino”, caracterizado pelo viver e falar livre e com relativa publicidade, a despeito das estruturas de vigilância, sobretudo a Inquisição e Intendência Geral de Polícia. Em síntese, os libertinos, não atuando como reles tradutores passivos de uma cultura letrada das Luzes – sobretudo francesas –, elaboraram proposições nas quais há uma nítida articulação de elementos tradicionais de defesa da tolerância religiosa e críticas ao Catolicismo, como a descrença em castigos eternos e críticas à Inquisição, com aspectos que constam como características de uma “era da conversa”,184 que marcou as sociabilidades típicas do Iluminismo. Nela, os domínios das informações circulantes, de maneira cruzada e sobreposta em diversas mídias – oralidade, mídia impressa, canções, livros e outros – tornavam-se menos herméticos e fomentavam ambientes de debate. A tolerância religiosa, expressa de maneira explícita e direta – como na adesão a ideias tolerantistas, na defesa de que cada um se salva em sua própria lei, na exaltação de países onde se pode viver cada qual na sua religião, livremente, entre outros – e não direta – nas críticas à Inquisição, ao sentido dos preceitos cristãos e católicos, às funções dos eclesiásticos, papa, bulas e outros pontos –, presente nas várias proposições analisadas neste subtítulo, possui uma importância central nas falas desses libertinos, de origens e trajetórias diversas. Isso porque tais proposições se dão dentro de um contexto no qual o Catolicismo e sua unidade são fundamentais ao status quo a ser mantido. Nelas, dá-se uma disputa pelo religioso vincada na crítica direta a essa unidade, a seus dogmas e à sua centralidade no tecido social. Isso mostra que, a partir de diversos núcleos de livres-pensadores – uma das acepções do termo libertino –, as demandas por uma relação mais branda com a religião predominante – a católica – e tolerante, tanto com desvios dela ou com outras confissões, faziam-se ouvir no último quarto do Setecentos. Nos próximos títulos, serão explorados documentos a respeito das outras duas acepções do termo, na Idade Moderna: o libertino como licencioso em matéria moral, sobretudo relacionado ao sexto preceito do Decálogo, e o libertino como monarcômaco, crítico à monarquia absoluta, mas cuja crítica política atinge também a outras autoridades. 184 SOARES, Luiz Carlos. A Albion revisitada no século XVIII. Op. Cit. p. 199; DARNTON, Robert. Uma precoce sociedade da informação: As notícias e a mídia em Paris no século XVIII. Varia Historia, Belo Horizonte, nº 25, p. 9-51, Jul/2001. p. 18-21. 376 4.3 A “Natureza”, o dogma e a moral cristã-católica: libertinos contra o sexto mandamento Aqueles definidos como libertinos tinham um comportamento marcado, segundo palavras do notório libertino Antônio de Morais e Silva, por “sacudir o jugo da razão” e, nas palavras do frei Bruno de Zaragoza, pela “paixão pela novidade”. Como foi abordado anteriormente, o processo secularizador ganhou força a partir do reformismo pombalino, com as reformas na censura e na Inquisição, levando a uma circulação maior de impressos e de pessoas em diversos pontos da Europa e do império luso. Nesse contexto, no mundo luso-brasileiro, multiplicaram-se os ambientes de sociabilidade nos quais se observaram, de maneira mais livre, os usos da razão para uma crítica universal, menos reverente às autoridades religiosa e política. A exaltação da liberdade para se criticar matérias diversas, independentemente da autoridade que representassem sob quaisquer pontos de vista, muitas vezes tocava na crítica à moral cristã. Com isso, apareceu com mais evidência o licencioso sexual, um tipo de uma das três acepções de libertino do final do Setecentos. Possivelmente, esse significado é o que permanece de maneira mais significativa nos dicionários contemporâneos.185 Nas falas e sociabilidades libertinas, a crítica universal, que existia aliada e permeada pelas defesas da liberdade e da tolerância, incidiam, de forma quase que natural, em questionamentos a respeito do pecado. Essas críticas foram, muitas vezes, reorganizadas e reelaboradas pelos pensadores das Luzes a partir de tradições e críticas anteriores. E, no caso dos libertinos, isso também se fez ver com grande frequência. Grande parte dos questionamentos a respeito da moral sexual, nas falas dos libertinos, vale-se de críticas feitas às definições que a tinham por alvo, advindas do Concílio de Trento. Jean-Louis Flandrin, analisando a formação e as transformações do que chamou de uma moral sexual do Ocidente cristão, teve a época do referido concílio como referência. Ele, porém, abordou o tema num recorte temporal mais amplo. Em sua análise, chegou a três conclusões importantes a respeito do tema. Primeiramente, ele concluiu que existiam, “na ideologia dominante” europeia ocidental da Idade Moderna, “dois arquétipos de conduta sexual”, quais sejam, o que devia ter a procriação por finalidade e, com reservas, era aceito pela Igreja, e seu oposto, considerado culpável 185 No dicionário Priberam, maior dicionário online de língua portuguesa da contemporaneidade, aparecem em destaque, como palavras relacionadas ao termo “libertinagem”, os termos “devassidão”, “salacidade”, “licenciosidade”, ‘desenfreamento” e “desregramento”, além de “devassidão”. Dicionário Priberam. Disponível em: < https://www.priberam.pt/dlpo/libertinagem> . Acessado em ago./2018. 377 pela Sé romana e enaltecido pela literatura profana. Segundo esse arquétipo, a procriação não era o fim da relação sexual. A segunda conclusão de Flandrin é a de que houve uma certa confusão, ao longo do período, em relação a esses dois arquétipos e que isso foi constante objeto de escândalo e de preocupação dos teólogos e mesmo de moralistas não eclesiásticos e outros homens de letras. Por fim, segundo o autor, boa parte desse debate deu-se em torno do conceito teológico de “pecado contra a natureza” – contra naturans –, que amalgama uma variedade considerável de pecados, mais ou menos toleráveis, ainda que condenados.186 Em torno desses problemas, desenvolveu-se a ideia de se “domesticar” a pessoa pela via da célula familiar, inibindo comportamentos como o concubinato, bigamia e sodomia. Deu-se também a reafirmação de códigos respeitantes à hierarquia eclesiástica, à disciplina do clero e à homogeneização das pastorais.187 É importante associar tais tentativas de disciplinarização aos processos de confessionalização, que marcaram as monarquias europeias, como foi falado no Capítulo 1. Dentro desse contexto, formou-se uma considerável literatura moralista, que associava a licenciosidade a uma corrupção mais ampla dos costumes, fosse nas monarquias católicas, fosse nas protestantes. Nas palavras de Henrique Carneiro, a “corrupção dos costumes foi o tema chave, a viga mestra do discurso moralizante da época moderna”, constituindo-se como uma reação “às rupturas profundas de ordem cultural” que marcaram o período entre os séculos XVI e XVII. Assim, os textos moralistas, que articulavam uma visão apocalíptica do pior dos mundos, em termos morais, com uma visão nostálgica de um mundo ordenado, formaram um importante filão literário, em meio às publicações de leigos e de eclesiásticos. A partir do século XVII, tais textos se valeram fortemente de apropriações do discurso médico e de releituras de nomes da medicina clássica, tal como Galeno, no sentido de uma patologização do prazer sexual e de associá-lo a desvios mais agudos em toda a ordem social.188A difusão desse tipo de ideário moral na Idade Moderna portuguesa pode ser bem exemplificado na circulação do Guia dos Pecadores (1553), do frei Luiz de Granada, teólogo e confessor dominicano espanhol e radicado em Portugal por ter sido perseguido por místico, pela Inquisição da Espanha. A luxúria, tratada como doença 186 FLANDRIN, Jean-Louis. O sexo e o Ocidente: evolução das atitudes e dos comportamentos. Trad. Jean Progin. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1988. 187 Ibidem, p. 119-135; VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados. Op. Cit. p.8-12. 188 CARNEIRO, Henrique. Amor, sexo e moral médico-clerical na Época Moderna. Revista HistóriaUSP. 132, p. 29-42, 1995. p. 32-33. 378 física, moral e social, era duramente combatida no texto, que objetivava instruir o bom cristão na arte de vencer os vícios. Henrique Carneiro observou argumentos idênticos, praticamente plagiados do dominicano pelo padre Angelo Sequeira, em texto publicado em 1754 a respeito do mesmo tema.189Célia Maia Borges mapeou sua grande circulação em toda a Ibéria, entre os séculos XVI e XVII.190 Muitas das proposições que constam no rol de críticas dos libertinos incidiam, também, na questão moral, sobretudo na sexual, uma vez que a transgressão da mesma era vista em conjunto com as demais, tocantes à ordem político-social e a religiosa. Essas críticas se deram de formas bastante diversas. Nas várias críticas à moral sexual cristã escritas no contexto da Ilustração, sobretudo nos livros libertinos – mas não somente neles –, é importante se notar que os argumentos frequentemente são desenvolvidos a partir de uma ideia chave, importante, a de “natureza”. Na pena de alguns ilustrados, a natureza era tomada por aquilo que existe em comum entre todas as pessoas, sendo, essencialmente, um conceito universalista. Por isso, ela se opõe à ideia de costume, que seria, ao contrário, aquilo que diferencia e separa as pessoas e as coletividades definidas e construídas culturalmente. A razão, também universalista, seria a forma de se buscar, criteriosamente, o conhecimento dessa natureza nos seus mais diversos aspectos. Assim, cabia aos ilustrados, capazes de alcançar a natureza por meio da razão, interpretar suas leis e propriedades e organizá-las de modo que seus princípios pudessem ser apresentados e entendidos por todas as pessoas. A natureza, entendida dessa maneira, era colocada num patamar superior às autoridades do dogma ou dos costumes, uma vez que ela era universal e racionalmente compreendida e formulada. Nesse quadro, a consequência lógica do uso da ideia de natureza era a dedução, a partir de uma axiologia advinda da compreensão da natureza, dos diversos normativos morais, políticos e éticos para se viver em sociedade. Por isso, nos tratados sobre diversos temas escritos por iluministas, é comum encontrarmos termos como “religião natural”, “moral natural”, “economia natural”, entre outros, contrapostos a outros, como “religião revelada”, ou a sistemas morais, éticos e filosóficos instituídos pela tradição ou costume.191 189 Ibidem, p. 36. BORGES, Célia Maia. A circulação e leitura das obras de Frei Luís de Granada nos séculos XVI e XVII na Península Ibérica. Itinerantes. Revista de Historia y Religión. v. 1 (enero/deciembre), p. 77-99, 2011. p. 78 e seguintes. 191 BLANCO MARTINEZ, Rogelio. La Ilustración em Europa y em España. Op. Cit. p. 73-75. 190 379 Na obra considerada uma das mais emblemáticas dos livros chamados libertinos, A Filosofia na alcova, ou, Os preceptores imorais (1795), do Marquês de Sade, essa relação entre crítica moral e reflexões sobre a natureza fica patente. A obra, composta de sete diálogos e apresentada como uma peça de teatro, narra a história da jovem Eugénie. A protagonista, ao longo das cenas, compostas por longas reflexões filosóficas intercaladas por narrativas sobre relações sexuais, é ensinada por outros personagens a abandonar quaisquer virtudes, que são reduzidas a meras criações humanas e tidas como “contrárias à natureza”, a saber: a piedade, virtude, castidade e outras. Todas as lições no sentido da educação da jovem para o abandono da virtude são dadas, sobretudo, pelas personagens da madame de Saint-Ange, que recebe os demais personagens na alcova – onde se passa praticamente toda a história –, do seu irmão e amante Cavaleiro de Mirvel e, sobretudo, por Dolmancé, que se ocupa da maior parte das digressões filosóficas sobre a natureza do homem, da religião, dos costumes e da sociedade – daí o título da obra. A “natureza”, ao longo da obra, é definida de maneira muito clara, sobretudo nas falas do “cínico Dolmancé”,192 como eterna, imutável e implacável, organizada num sistema eterno de criação e destruição. Assim, a propensão a buscar o prazer seria um imperativo natural, similar nos homens e nos animais, inclinados a buscá-lo sem qualquer barreira que não a força do seu objeto de prazer a impedi-la. Dito de outra forma, ainda que o prazer do indivíduo provocasse a dor e a morte do outro, ele estaria agindo de acordo com aquilo para que fora determinado pela natureza.193 As virtudes, instituídas pela religião e costumes, apenas afastavam as pessoas dos verdadeiros desígnios da natureza, enfraquecendo-as e escravizando-as, institucionalizando tiranias, que controlavam corpos e mentes a partir de propósitos completamente contrários à razão.194 Dessa forma, uma moral sexual, conforme a razão e de acordo com o que determinava a natureza, pela narrativa de Sade, não teria quaisquer limites. Todo e qualquer ato ou comportamento, ainda que prejudicasse a integridade própria ou alheia, estaria de acordo com a ordem natural, que determina, como explica o próprio Dolmancé, que o ato mais virtuoso possível de qualquer indivíduo seria inferior aos 192 SADE, Marquês de. A Filosofia na alcova, ou, Os preceptores imorais [1795]. Trad. Contador Borges. São Paulo: ed Iluminuras, 1999, 4ª reimp, 2012 (coleção Pérolas Furiosas). p. 5. 193 Ibidem, p. 30 e seguintes. 194 Ibidem, p. 44-45. 380 mínimos segundos que outro pudesse ter de prazer.195 É possível, todavia, interpretar-se ao menos uma passagem como uma contradição em relação à forma como o argumento da obra foi arquitetado: numa fala de Saint-Ange à Eugénie, a dona da alcova instrui a jovem a manter, fora dali, uma máscara de castidade e virtude, curvando-se ao seu entorno social, ainda contaminado pelos “vícios” da tradição, da religião e dos costumes.196 Há dois pontos, porém, nessa forma de se entender tal aspecto da obra, que são bem coerentes com o arquétipo do libertino e com esse tipo de literatura, que serão retomados mais à frente. O uso da natureza, como parâmetro para a construção de uma moral sexual crítica à cristã, encontra-se, também, na obra Teresa Filósofa ou memórias (1748), comumente atribuída ao Marquês D’Argens, embora de uma maneira absolutamente distinta da obra de Sade. O romance, narrado em primeira pessoa, conta a trajetória da personagem Teresa, entre sua infância e o momento em que cede ao desejo de manter relações sexuais com o Conde, personagem para o qual, aparentemente, as memórias são narradas. As diferentes passagens da obra denotam duas relações, aparentemente antagônicas, entre a moral sexual e a natureza: primeiramente, os impulsos sexuais são vistos como incontroláveis pela vontade humana, e a tentativa de sublimá-los, em nome de regras sociais ou princípios morais, seria antinatural e causaria efeitos danosos; em segundo lugar, porém, o aprendizado a respeito dessa naturalidade dos desejos era parte da construção da autonomia do indivíduo, com o que a personagem torna-se “filósofa” por meio do conhecimento da natureza, de si mesma e das reflexões desenvolvidas a 195 Um exemplo disso está numa situação, no Terceiro Diálogo, que envolve Eugénie, madame de SaintAnge e Dolmancé. Nesse trecho, Dolmancé se dirige à Eugénie: “Ora, a virtude não passa de uma quimera cujo culto consiste em imolações perpétuas, em inúmeras revoltas contra as inspirações do temperamento. Serão naturais tais movimentos? Aconselhará a natureza o que a ultraja? Eugénie, não te deixes enganar por essas mulheres que ouves chamar virtuosas. Se queres, elas não servem às mesmas paixões que nós, mas possuem outras quase sempre bem mais desprezíveis: a ambição, o orgulho, os interesses particulares, e frequentemente uma frieza de temperamento que nada lhes aconselha. Devemos alguma coisa a semelhantes seres? Não seguem apenas as impressões do amor próprio? Será então melhor, mais sensato e apropriado, sacrificar-se antes ao egoísmo do que às paixões? Para mim, creio que um vale bem o outro. Mas quem só ouve esta última voz provavelmente tem muito mais razão, já que ela é apenas o órgão da natureza, enquanto o outro o é da tolice e do preconceito. Eugénie, uma única gota de porra ejaculada por este membro é mais preciosa do que os atos mais sublimes de uma virtude que desprezo.” Ibidem, p. 26. 196 Nesse trecho, do Terceiro Diálogo, madame de Saint-Ange discorre a Eugénie a respeito da não naturalidade do dever, imposto às mulheres, sobretudo, de se manterem castas devido a imposições da sociedade e de suas famílias. “Não escolhe lugares, tempo ou pessoas: todas as horas, todos os lugares, todos os homens devem servir às tuas volúpias. A continência é uma virtude impossível, cuja natureza, violada em seus direitos, imediatamente nos pune com mil desgraças. Enquanto as leis continuarem sendo o que são, devemos usar certos véus; a opinião obriga-nos a isso. Mas compensemo-nos, em silêncio, dessa cruel castidade que somos forçadas a manter em público.” Ibidem, p.33. Dolmancé, no último diálogo, diz aos demais personagens também que, fora da alcova, ele era tido por virtuoso, apesar de ele, no seu interior, apresentar-se como “o mais celerado de todos os homens”. Ibidem, p. 77. 381 partir desse conhecimento. Porém, segundo análise de Natania Meeker, o espaço da narrativa do livro também se torna um espaço de solução desse aparente paradoxo, na medida em que intercala “provas” materiais do poder inexorável da natureza, no sentido de impelir o indivíduo ao desejo carnal. Ao mestmo tempo, também mostra o percurso do uso da razão, o conhecimento e a reflexão na busca de um entendimento que indica relativa autonomia possível diante deles.197 Um exemplo dos males que causa a tentativa de conter os impulsos sexuais, em nome da virtude e da religião, aparece na primeira parte da narrativa. Teresa, descobrindo sua sexualidade na infância e pré-adolescência, é surpreendida por sua mãe, aos onze anos, masturbando-se. Depois disso, é colocada em um convento onde é ensinada a resistir aos impulsos naturais. Devido a seus esforços para sublimar seus desejos carnais, Teresa adoece e quase morre, aos vinte e três anos.198A ingenuidade em relação ao erotismo também aparece como um pano de fundo dos abusos sofridos pela personagem Eradice, cometidos por seu preceptor, o padre Dirrag, que a fazia crer que o ato sexual que fazia seria uma espécie de purificação.199 E num dos diálogos do Abade T. e da Senhora C., personagens centrais na obra no sentido de instruírem Teresa, o primeiro fala sobre a necessidade de dar vazão aos desejos, necessidade tão natural quanto qualquer outra.200 Na instrução dada pelos dois mencionados personagens à Teresa, fica claro haver uma diferença substancial em relação à obra de Sade, mencionada anteriormente: defendem-se limites na vazão dos desejos, em razão da ideia de “bem comum”. A busca do prazer, de acordo com as leis naturais, deveria estar MEEKER, Natania. “I resist it no longer”: Enlightened Philosophy and Feminine Compulsion in Thérèse philosophe. Eighteenth-Century Studies, v. 39, nº 3 – New Feminist Work in Epistemology and Aesthetics, p. 363-376 (Spring, 2006). 198 D’ARGENS, Marquês, Jean Baptiste Boyer. Teresa Filósofa. [1748]. Trad. Carlota Gomes. Porto Alegre, RS: L&PM, 2015. (Coleção L&PM Pocket). p. 33-43. 199 Ibidem, p. 46-55. 200 A passagem em questão tem o título “Prática do Abade T., cujo uso ele aconselha aos homens sensatos”. Ele principia o diálogo com a senhora C. dizendo: “não valho nada quando não executo a tarefa que mais fortemente afeta a minha imaginação”, no caso, referindo-se aos atos sexuais. Por isso, contou que: quando vivia em Paris, ocupando-se “quase unicamente da leitura e das ciências mais abstratas, logo que sentia o aguilhão da carne me atormentar, tinha uma menininha, como quem tem um penico para mijar, com quem, duas ou três vezes, eu fazia o trabalho pesado”. Depois disso, “com o espírito tranquilo, as ideias nítidas, recomeçava a trabalhar”. Dessa forma, conclui o argumento, qualquer homem que tivesse “um pouco de temperamento” deveria “utilizar desse remédio, tão necessário à saúde do corpo quanto da mente”. Caso contrário, o mesmo homem poderia se afastar de seus deveres e procurar dar vazão à sua sexualidade de maneira descontrolada, causando danos a outras pessoas próximas. Na fala seguinte, o abade T. desenvolve um argumento similar para mulheres: entende que elas possuem a mesma pulsão sexual que os homens, mas as regras sociais as impediam de usar o “remédio” de maneira similar ao que eles faziam. Portanto, aconselhava que apenas tomassem cuidado quanto à ruptura do seu hímen, pensando no escândalo social e na própria desonra, uma vez que não conseguiriam, posteriormente, um casamento. Ibidem, p. 82-85. 197 382 limitada pelo limite definido pela necessidade de não causar mal a si ou à sociedade. Trata-se, em síntese, de um limite estabelecido conforme a razão, diferentemente dos criados e instituídos pelo costume e tradição.201 Esse tipo de construção moral, crítica à moral cristã e vincada na ideia iluminista de natureza, aparece noutras publicações, que não os romances libertinos. Aparece na pena de philosophes que, a rigor, também recebiam a alcunha de libertinos, frequentemente, das autoridades portuguesas. Isso fica claro, por exemplo, no verbete “Onan, Onanisme”, de Voltaire, em seu Dicctionaire Philosophique. O onanismo, para Voltaire, era “um efeito desordenado do amor próprio”, sendo apresentado como uma patologia. Valendo-se da publicação sobre o tema do médico suíço Samuel AugusteTissot, o filósofo francês descreve algumas doenças causadas pelo mencionado vício e remédios necessários para curá-lo. Mas, nesse ponto, dirige sua crítica a uma das causas desse mal, segundo ele, que são os “temerários votos de castidade”, que os cleros regular e secular são obrigados a respeitar.202 Abrindo mão do matrimônio e do dom natural de procriar, conclui Voltaire, muitos jovens, de ambos os sexos, reclusos em conventos, acabam por ser dominados por doenças causadas por este vício, cuja causa era a recusa antinatural do sexo. A própria obra com a qual Voltaire dialogou, L’Onanisme: dissertation sur la maladie (1760), de Tissot, é indicativo importante dessa concepção de moral sexual. A obra, apresentada academicamente, segundo a descrição de Voltaire, seguia o método experimental e teria sido baseada na observação e no estudo feito pelo médico, em Lausanne, de vários casos de jovens masculinos masturbadores. Daí, construiu o argumento de que o desperdício de sêmen em grandes quantidades estaria relacionado a vários tipos de doenças debilitantes, como gota, reumatismo, perturbações no apetite, na visão e sistema nervoso, entre outros.203 Thomas W. Laqueur e autores como Tissot e Voltaire dialogavam com o pressuposto da medicina iluminista segundo o qual o corpo sofre quando a ordem natural é violada. As práticas sociais, como o desregramento sexual ou seu extremo oposto, o celibato, eram É a reflexão que aparece nos títulos “Exames das religiões pelas luzes naturais”, “Origem das religiões” e “Origem da honra”. Segundo esse argumento, honra, castidade, ou as diversas regras morais, criadas pelo homem e reforçadas pela religião, não são conforme a natureza, mas mecanismos de manutenção e perpetuação do poder pelas autoridades. Ibidem, p. 96-103. 202 VOLTAIRE, François Marie Arouet. Ouvres completes de M. de Voltaire. Diccionaire Philosophique, tome 61. A Basle: chez J. J. Thourneisen, Imprimeur-Librarie. 1792. p. 112-116. 203 TISSOT, Samuel Auguste. L’Onanisme. Dissertation sur les maladies produites par la masturbation. Par M. Tissot, docteur em Médicine, de la Société Royale de Londres, de l’Académie Médico-Physique de Basse & de la Société Économique de Berne. A Lausanne: chez Marc Chapuis, et Compagnie, 1760. 3ème edition. 201 383 o que agia mais sistematicamente para a ruptura desse ordenamento. Dessa maneira, ainda que a condenação moral a determinadas práticas sexuais não fosse, explicitamente, o objetivo dessas publicações, havia o sentido de se preservar o que estaria naturalmente determinado, de maneira que a saúde do indivíduo e a vida social pudessem fluir plenamente.204 O que pensadores do século XVIII viam, dessa maneira, era um processo de secularização que atingia também um terreno comumente associado ao religioso, que era a moral, inclusive a sexual. Essa mudança, todavia, não significou uma ruptura com o religioso, mas, novamente, uma disputa desenvolvida em torno dele a partir de um outro campo específico. Os autores analisados aqui, exceto o Marques de Sade e Tissot – este último, muito em função da linguagem médica e científica que adotou na obra e nos objetivos ali delimitados –, fundaram suas análises em concepções de natureza e, a partir destas últimas, desenvolveram reflexões sobre os impulsos carnais de figuras bíblicas ou sobre regras que a tradição vinculou à Revelação e às Escrituras. A partir disso, sustentavam a defesa de uma moral sexual que refutava regras que eram contrárias à razão, ainda que não fosse desregrada. O uso da razão os levava a condenar o celibato e um ideal de triunfo do espírito sobre a carne, de castidade. Uma obra que sintetiza perfeitamente essa linha de pensamento, com as diversas particularidades do Iluminismo católico luso, foi a Medicina Theológica, publicada em 1794 e atribuída erroneamente por muitos autores a Francisco de Melo. Rosana Agostinho Nunes, em estudo recente a respeito das ideias do médico mineiro Francisco de Melo Franco – que será analisado mais à frente – demonstra que apesar de ele jamais ter admitido a publicação da Medicina Teológica e nem de outros anônimos atribuídos a ele, como o Reino da Estupidez – que será analisado mais à frente nesta tese –, 205 mas que existe alguma coerência entre as sociabilidades intelectuais de Melo Franco, o conteúdo das obras e o próprio percurso de publicação delas, dentro de um contexto de censura. Não existe entre as obras anônimas e as autorais de Melo Franco argumentos que se contradigam ou defesas de ideias opostas. Em todas elas, “se sobressai a valorização das ciências da natureza, mediante o uso de um pensamento racional, pautado na experiência e na observação e, logo, não submisso 204 LAQUEUR, Thomas W. Solitary sex: a cultural History of Masturbation. New York: Zone Books, 2003. p. 40-42. 205 Outros anônimos, que não foram utilizados na pesquisa que deu origem a esta tese, são atribuídos a Francisco de Melo Franco. São eles Resposta ao Filósofo Solitário e Segunda Resposta ao Filósofo Solitário, ambas de 1787. 384 às autoridades”. A autora, porém, sustenta e prova que o verdadeiro autor de Medicina Theologica é Caetano Alberto Dragazzi, ao invés de Mello Franco, como estabeleceu a tradição oitocentista.206 Assim, enquanto o Reino da Estupidez ironizava o retorno da deusa (Estupidez) e a desvalorização das “sublimes ciências da Natura”, a Medicina Teológica destacava a necessidade dos confessores conhecerem as ciências físicas e as enfermidades da natureza humana para realizarem sua função. (...) O mesmo se visualiza nas obras autorais. Em 1790, o Tratado de Educação Fysica afirmava que “a Medicina nunca deo passos pela mão de vans especulações: a sua base he a observação e a experiência.”207 Embora trabalhos recentes tenham jogado alguma luz sobre a figura de Caetano Alberto Dragazzi, sua trajetória ainda é um tanto quanto nebulosa. Rossana Nunes demonstrou que ele foi, de fato, autor da Medicina Teológica, mas, além disso teve outros problemas com a Intendência Geral de Polícia. Dragazzi foi preso em outubro de 1791, ou seja, três anos antes da publicação da Medicina Teológica, sendo solto somente na véspera do Natal do mesmo ano sob a condição de deixar o Reino – algo que não cumpriu – pela posse de uma obra proibida. Tratava-se de Estado presente de Portugal e pretérito do Ministério passado, provável tradução da obra anônima Letters from Portugal on the Late and Present State of that Kingdom, impresso em Londres, em 1777, e atribuído a John Blanket (1740-1801), que mesmo com um tom elogioso ao Marquês de Pombal, descreve um panorama bastante sombrio do reino do qual Pombal fora ministro. Na obra, composta por 17 cartas, destacavam-se críticas à Inquisição, problemas econômicos, falhas diversas dos reis, clero e nobreza, bem como a descrição de uma população excessivamente supersticiosa e submissa à Igreja. Pombal, na narrativa, teria sido nada mais que um momento mais iluminado, porém efêmero, dos portugueses.208 Já Cláudio Denipoti revela uma importante ligação de Dragazzi com o então cônsul dos Estados Unidos em Portugal, dentre outras redes de sociabilidade tidas por suspeitas de serem agitadores, revolucionários, “pedreiros-livres”, entre outros.209 Voltando à obra de Dragazzi, é importante dizer que a circulação da Medicina Teológica não esteve isenta de problemas com a censura. A obra saiu à venda em 20 de 206 NUNES, Rosana Agostinho. Nas sombras da libertinagem: Francisco de Mello Franco (1757-1822). Entre luzes e censura no mundo luso-brasileiro. Dissertação (Mestrado em História). Rio de Janeiro: Instituto de Ciências Humanas e Filosofia – Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2011, p. 187 e 261. 207 NUNES, Rosana Agostinho. Nas sombras da libertinagem. Op. Cit. p. 76-77. 208 __________. Discursos “ímpios e sediciosos” em Portugal no final do século XVIII. Topoi (Rio J de Janeiro), vol.20, n.40, p.40-63, 2019. p. 48-49. 209 DENIPOTI, Cláudio. O embaixador; o livreiro e o policial circulação de livros proibidos e medo revolucionário em Portugal na virada do século XVIII para o XIX. Varia História, Belo Horizonte, v. 30, n. 52, p. 129-150, 2014. 385 novembro de 1794, como livro anônimo. Meses antes, fora enviada à Real Mesa da Comissão Geral, buscando sua aprovação. Foi mandada imprimir em 29 de maio de 1794, destacando-se que deveria voltar para ser conferida.210 Posta à venda, causou enorme escândalo. Inocêncio Francisco da Silva destaca que, em pouco tempo, ela foi proibida e ordenou-se seu confisco, o que lhe aumentou o valor. O alarde causado pela Medicina Theologica motivou investigação conduzida pelo intendente geral de polícia Diogo Inácio de Pina Manique para se encontrar seu verdadeiro autor.211 A própria Real Mesa de Comissão Geral sofreu consequências, sendo dissolvida e extinta, retomandose o sistema tripartite de censura, formado pelo Desembargo do Paço, Inquisição e Ordinário.212 Considerando-se os propósitos desta tese, cumpre destacar alguns pontos a respeito da Medicina Theologica. De fundo, o que se observa é uma secularização da própria moral cristã, especialmente a relacionada à sexualidade, que aparece na obra dialogando com outras do pensamento iluminista e em conformidade com um Iluminismo católico. Deve-se sublinhar que o ponto central da obra é elaborar uma espécie de concepção secularizada do pecado e, em consequência disso, do próprio confessor e do sacramento da confissão. Nos quatro primeiros capítulos, a obra aproxima a figura do confessor da do médico. Em seguida, a própria concepção de pecado é reelaborada num sentido semelhante. Refletindo sobre a causa dos pecados e como os enfrentar, Dragazzi coloca a confissão auricular como elemento central dessa tarefa. Este sacramento “foi o que logo se ofereceu como um entre todos o mais proporcional e eficaz”, pois “descobrindo-se nela as chagas todas do coração humano, facilmente podem ser conhecidas e podem ser inteiramente curadas pelos médicos, que as observam e examinam em segredo”. Acrescenta que “estes médicos são os senhores confessores e diretores”, pois toda a teologia, durante séculos, os considerava como 210 NUNES, Rosana Agostinho. Nas sombras da libertinagem. Op. Cit. p. 49. Inocêncio Francisco da Silva detalha a busca de Diogo Inácio de Pina Manique pelo verdadeiro autor da Medicina Theológica, em verbete sobre o livro no seu Dicionário biográfico. Ele transcreveu, no mesmo verbete, um ofício do mesmo intendente geral de polícia ao ministro Marquês de Ponde de Lima. É importante frisar que o autor não menciona o nome de Francisco de Melo Franco como autor. SILVA, Innocencio Francisco da. Medicina Theologica ou Supplica Humilde ... In: __________. Diccionario Bibliographico Portuguez. Op. Cit. Disponível no site BrasilianaUSP < https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/5423>. Acessado em set. 2018.p.175-179. Ver também: VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do livro no mundo luso-brasileiro sob as Luzes. Op. Cit. p. 154. 212 A respeito do impacto da publicação de Medicina Theologica e das publicações de Francisco de Melo Franco, no final do século XVIII: NUNES, Rosana Agostinho. Nas sombras da libertinagem. Op. Cit. p. 70-108. 211 386 tais.213 Assim, um confessor somente poderia ser bom nessa tarefa se fosse um bom médico. Diz Dragazzi que “os dois traços da medicina são a razão e a experiência” e, assim, os confessores também devem “exercitar o seu ministério com esses dois braços”. Eles deveriam tratar o pecado não somente baseados na interpretação das leis divinas, mas também avaliando todas as circunstâncias que influem nele. Ele entende que “muitos pecados humanos têm sua origem não digo só nas enfermidades da natureza em geral, mas ainda em doenças particulares do corpo”.214 Particularmente, os confessores, segundo a Medicina Theologica, deveriam saber a neurologia. Ainda que deixe claro que os confessores não precisassem de um conhecimento dos mais aprofundados neste ramo da ciência médica, uma iniciação básica nele se fazia necessária, pois “saber que os nervos são uns cordões que tomam sua origem no cérebro e da medula espinhal” e “que se distribuem por todas as partes do corpo” seria fundamental para se entender “que fenômenos poderão apresentar as paixões humanas”.215 Tal conhecimento é imprescindível para se conhecer – e se tratar – elementos que independem do livre arbítrio e que levam o homem ao pecado, comparando essa pulsão natural aos vícios com reações, como cócegas e outros.216 Essa construção implica, de maneira muito direta, uma concepção acerca de corpo, que é fundamental para se entender a forma como ela argumenta a respeito dos pecados contra o sexto preceito. Dragazzi entende corpo e alma como interdependentes, não vendo o primeiro submetido ao segundo. Diz que a crença de que a pureza da alma depende de domar-se o corpo conduz a um entendimento que reduz este último à condição de “escravo rebelde” da alma, “merecedor somente de ser dilacerado com tormentos, por concorrer algumas vezes para a execução do pecado”. Essa concepção, continua, “tão longe está de poder servir de fundamento para que, com a verdade, se chamem os confessores de médicos do espírito”, caracterizando-os mais como “destruidores da humanidade”, diante da impossibilidade de se operar uma inteira separação corpo e alma e, por consequência, curar-se apenas uma delas.217 Dragazzi constrói sua argumentação a respeito dos pecados de natureza sexual na Medicina Teológica, obra que, também, nas suas partes posteriores, se ocupa dos vícios da cólera e da bebedice. Todos eles seriam não meros produtos da fraqueza 213 FRANCO, Francisco de Mello [atribuído a]. Medicina Teológica. São Paulo: Editora Giordano, 1994. Coleção Memória. p. 4. 214 Ibidem, p. 23. 215 Ibidem, p. 31. 216 Ibidem, p. 33. 217 Ibidem, p. 12. 387 humana em cair em erros e da sua pertinácia em permanecer neles, mas produtos de forças naturais, que deveriam ser entendidas e observadas, para serem, depois, administradas pelos confessores. Deve-se ressaltar que aquela ideia de fragilidade humana, como se analisou no Capítulo 3, era o cerne das definições dos desvios de fé, conforme as concepções de pecado e de heresia encontradas no direito canônico e nos manuais inquisitoriais. Segundo Dragazzi, os eclesiásticos que ignoraram a atuação das forças naturais no sentido de levar ao pecado, fazendo, por isso, o contrário do que orienta a Igreja: esta, segundo o autor, quer “que os senhores confessores conheçam os homens física e moralmente” e, com isso, “evitem aqueles erros do fanatismo e superstição” nos quais “caíram tantos escritores que ignoraram os modos com que a natureza obra”, contrariando, dessa maneira, a necessidade do uso da razão e da observação metodicamente conduzidas para o combate de todos os erros.218 Os vícios associados à sexualidade humana, seguindo essa linha argumentativa dos primeiros capítulos, são apresentados como produtos da sensibilidade dos neurônios humanos. São, conforme a Medicina Theologica, resultado da propensão natural do homem em reagir a estímulos externos, buscando aquilo que lhe propicia boas sensações, e afastando-se do que lhe causar as más.219 Essa relação das pessoas com aquilo o que lhes causa fixação ou repulsa proporciona uma série de males físicos – convulsões, catalepsia, tétano, tísica e mesmo a morte – ou espirituais – a melancolia, nostalgia, entre outros – de maneira que Dragazzi define o amor – divino ou humano – como sempre uma patologia.220 Um segundo grau dessa patologia, continua, é a que Dragazzi define sob o conceito de “erotomania” ou “loucura amorosa”. Este estado seria “quando os amantes se encontram” e “se tratam com respeito singular” que os levam a entregar-se “a extravagâncias fantásticas, imitando enfim ao valente d. Quixote nas loucuras que lhe sugeria seu amor à sua amada Dulcinéia”. Existe, segundo ele, uma erotomania pacífica, que “produz nos enfermos tristeza e o retiro” e outra, “que produz efeitos mais vivos, onde os enfermos perdem o apetite de comer e dormir, sustentam uma inquietação oculta que os devora”. Sob essa inquietação, os efeitos físicos e espirituais levam os amantes a cair “em um delírio frenético, a que sucedem o furor e a raiva que os conduzem a precipícios funestos”.221 218 Ibidem, p. 31. Ibidem, p. 35-36. 220 Ibidem, p. 39. 221 Ibidem, p. 54-55. 219 388 O confessor, segundo Dragazzi, deveria perceber, pelos sinais descritos na Medicina Theologica e pelas culpas confessadas pelos penitentes, seus desvios relacionados à erotomania. Mais que isso, o mesmo confessor deveria estar ciente que “assim as donzelas e rapazes que hão chegado à puberdade, as freiras e religiosos, os eclesiásticos e todas as mais pessoas que como eles têm uso livre das ações” são comumente atacados por esta patologia.222 Ou seja, a propensão humana à erotomania seria natural, e a compreensão desse fato, por parte dos confessores, seria imprescindível para que ela fosse administrada de maneira a não causar sofrimentos na pessoa que se confessa. A partir disso, conforme o estado do penitente, o confessor deve indicar os remédios apropriados. O melhor remédio, segundo Dragazzi, seria o matrimônio, e não o estado do celibato. O confessor deveria indicar-lhes a procura do matrimônio mais adequado a seu estado e ministrar-lhes remédios moderados, de forma que não percam severamente seu desejo carnal, necessário à sua vida de casado e para ter filhos. Por sua vez, quem estivesse sob votos de celibato poderia tomar remédios mais severos, de forma a aliviar os sofrimentos causados pelo desejo ao corpo e à alma. Leva em conta, assim, o impedimento de quem vive em voto de castidade de realizar tais desejos, que lhe são naturais, para orientar os confessores a prover a essas pessoas o alívio espiritual da confissão, aparada pelos saberes médicos.223 A erotomania, de toda forma, poderia atingir mesmo aqueles que já tivessem em estado de matrimônio. Para Dragazzi, a satiríase – nos homens – e a ninfomania – entre as mulheres – deveria ser evitada a todo custo. Juntamente com a “permissão de se buscar no uso do matrimônio o remédio para a concupiscência”, vêm “mil enfermidades quando dele abusam”. Ele defende, assim, “um uso moderado do matrimônio”, que é, “sem dúvidas saudável, não somente para a alma, como para o corpo”.224 Nesse ponto, nota-se um diálogo importante do autor com Samuel Auguste-Tissot, um entre vários médicos renomados do século XVIII – como Boehaarve, Haller, Le Camus e Ribeiro Sanches – que são mencionados na obra. Tal como Tissot, Dragazzi associa o desequilíbrio na circulação dos fluidos corporais, causado pelos excessos sexuais, à fraqueza física e diversas doenças, que vão de sintomas como náuseas e contrações musculares, até a problemas no coração e no cérebro. Assim, o confessor, percebendo esse comportamento dos nubentes ou de qualquer outro penitente – celibatário, no 222 Ibidem, p. 56. Ibidem, p.57-59. 224 Ibidem, p. 70-71. 223 389 sentido de solteiro, ou sob voto de castidade –, ministraria remédios conforme o estado do penitente – sobretudo no que toca à sua possibilidade ou não de casar-se um dia. Tudo isso teria por fim moderar seus desejos, restaurando o equilíbrio ideal dos fluidos corporais e evitando-se os diversos males descritos ao longo da obra.225 Da mesma forma que faz Tissot, Dragazzi atribui algumas das causas da erotomania a algumas “curiosidades perigosas”, tais como “a lição de livros amatórios, painéis lascivos”, o consumo de bebidas e de “comidas especializadas como pimenta, gengibre” e outras.226 O que se observa é que os argumentos da Medicina Theologica são construídos em conformidade com aspectos do Iluminismo católico. A “súplica aos confessores”, no sentido de executarem seu papel de “médicos das almas”. percorre uma argumentação que passa pela valorização da observação, da experiência e é sempre pautada pelo conceito de “natureza”. À semelhança de Teresa Filósofa ou outros tratados e romances do período, entende-se que a natureza produz efeitos impossíveis de serem sublimados. Se o ser humano está à mercê desses efeitos, o conhecimento deles indica possíveis caminhos para uma relativa autonomia diante deles. A tentativa de fazê-lo desaparecer, simplesmente, é equiparada à superstição quando baseada no dogmatismo, mais que na experiência ou no uso da razão. O mesmo se diria ao colocar os desejos carnais como controláveis apenas pela vontade humana, e seus desvios e excessos associados à fraqueza ou “tentação diabólica”. Assim, quando o confessor ignora o conhecimento médico e insiste nos tradicionais castigos e nas ideias de celibato ou de continência, amparado somente no princípio do livre arbítrio e a despeito do entendimento da natureza humana, tende a fazer um papel contrário ao de médico das almas, causando mais danos que benefícios ao penitente e à doutrina. Isso se fundamenta, ao longo da obra, em constantes usos da História eclesiástica, de argumentos de teólogos e da leitura das Escrituras, estabelecendo-se diálogos com pensadores clássicos e contemporâneos, filiados às Luzes. Assim, Dragazzi, ao invés de esvaziar completamente o sentido religioso da confissão, busca moldá-la em acordo com um ideal racionalizado e moderado segundo a razão iluminista. Faz o mesmo em relação aos princípios morais católicos. Medicina Theologica, em sua primeira parte, em síntese, é uma tentativa de articulação da moral sexual cristã católica com a iluminista. Tal articulação busca uma autonomia e uma moderação fortemente ancoradas na ideia de natureza, ideia que une 225 226 Ibidem, p. 72-89. Ibidem, p. 61. 390 autores tão diversos, tais como Tissot e o Marquês de Sade, que concordam nesse ponto, apesar das enormes diferenças que há em suas obras quanto às implicações desse entendimento de natureza. E há, por fim, na obra de Dragazzi, uma reflexão sempre vincada na realidade prática portuguesa, fundada na diferenciação de estado dos penitentes, para os quais se recomendam diversos remédios. Pode-se entender, na obra, uma crítica velada ao celibato clerical, uma vez que ele é colocado abaixo do ideal do matrimônio, tido como solução à erotomania. Nota-se, aí, algum nível de aproximação de proposições heterodoxas, analisadas no Capítilo 3 e também neste capítulo, e que aparecem ao longo de toda a Idade Moderna,227 que fazem a mesma asserção. Porém, a diferenciação dos remédios, por exemplo, indica uma percepção do lugar social e do bem comum como determinantes para se pensar sobre remédios morais e sobre a busca da autonomia quanto aos desejos carnais, de maneira similar ao que aparece, novamente, em Teresa Filósofa. Segundo Stuart B. Schwartz, houve, na Idade Moderna, uma proximidade, em termos de percepção do religioso, entre as dúvidas heterodoxas a respeito do sexto preceito do decálogo – se a fornicação simples era pecado ou não e sobre a virgindade de Maria, na concepção e/ou após o nascimento de Cristo, entre outras – e um clamor por religiosidades mais tolerantes e livres.228 Essa compreensão lança uma luz para se entender um rico campo de proposições dos acusados de libertinagem no fim do XVIII. Soma-se a isso o estado “dividido” — conforme categoria pensada por Anita W. Novinsky229 e discutida no Capítulo 3 —, importante para se entender que a crítica à moral cristã pauta-se em reflexões que intercalam, de um lado, matrizes populares de dúvidas, tidas como heréticas e, ainda, um tolerantismo popular e, de outro, debates letrados, que remetem a uma cultura das Luzes. Com isso, conclui-se que essa crítica moral faz parte do mesmo campo de disputas pelo religioso em que viceja a defesa de uma maior tolerância em termos de religião. A defesa de que a fornicação simples não era um pecado foi uma das proposições mais comuns, como se observou nos documentos analisados, referentes ao tenente Hermógenes Pantoja e a alguns estudantes do núcleo de Coimbra, entre outros. Como demonstra Ronaldo Vainfas, houve na Idade Moderna – especialmente no Brasil 227 VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados Op. Cit. p. 49-68 e 93-106. SCHWARTZ, Stuart. Cada um na sua lei. Op. Cit. p. 231-241 e 50-57. 229 NOVINSKY, Anita W. Cristãos-novos na Bahia. Op. Cit. p. 141-162; _________. Estudantes brasileiros “afrancesados” na Universidade de Coimbra. A perseguição de Antônio de Morais e Silva. Op. Cit. 228 391 colonial, enfoque central de sua pesquisa – um universo rico de contestações ou verdadeiras inversões do sexto preceito do decálogo. Isso se deu pela difusão de proposições nas quais se defendia que o sexo praticado com mulher não virgem e não casada não seria pecaminoso, além de outras que iam além, defendendo que quaisquer desvios nesse ponto poderiam ser perdoados pela infinita misericórdia divina.230 No Regimento de 1774, no § 8, título VIII, havia uma disposição sobre a obstinação na defesa dessa proposição. Quando a “pessoa que afirmar que a fornicação simples não é pecado” for “rústica”, deverá ser “condenada a ouvir sua sentença no auto que lhe destinamos, onde fará abjuração de leve suspeita de fé” e fará penitências espirituais. Porém, “sendo pessoa de qualidade, fará abjuração na Mesa” inquisitorial.231 O que se percebe aqui, conforme analisado no Capítulo 3, é os inquisidores diferenciam a “blasfêmia herética”, com risco de heresia e muitas vezes entendida como produto da rusticidade de quem a profere, das blasfêmias proferidas por pessoas “de qualidade”, possivelmente letradas e de uma educação, em termos doutrinais, presumidamente mais refinada. Nesses casos, incorre-se no risco mais agudo, segundo entendimento dos inquisidores, da proposição estar articulada com um nível mais sofisticado de elaboração de algum erro. O caso dos libertinos, frequentemente, pertence a esse segundo grupo de percepções sobre a defesa da da fornicação simples não ser um pecado. Dessa maneira, a defesa da fornicação simples está relacionada, nas denúncias e acusações de libertinismo, a um “viver libertino” mais amplo, no qual se relacionam as sociabilidades, a crítica universal e o falar livremente sobre pontos de religião. É o caso da denúncia de José Borralho contra Antônio de Almeida Nabarco, cirurgião, cristãonovo – classificado desta forma, mesmo depois do fim da distinção entre cristãos velhos e cristãos novos –, por blasfêmia e proposição herética e judaísmo, dada em dezembro de 1780, na freguesia de Aiuruoca, em Minas Gerais. O denunciado teria dito que a fornicação simples não era pecado e que não há obrigação de guardar os dias de jejum. Ao ser repreendido por não respeitar os jejuns obrigatórios, dizia: "Deus não entra em minha barriga". Questionado por afirmar que a fornicação simples não era pecado, teria falado ao denunciante que ele era um "cavalo, que não sabia gramática" e dizia que o trecho da Bíblia que é interpretado como uma interdição à fornicação nada mais era que 230 VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados. Op. Cit. 56-57. SIQUEIRA, Sônia Aparecida. A disciplina da vida colonial: os Regimentos da Inquisição. Op. Cit. p. 944. 231 392 um impedimento ao adultério.232 Também em 1780 e com pontos similares, em setembro, foi feita denúncia contra Francisco Reis Dantas, por João Pereira de Quadros, na freguesia das Mercês, em Portugal. O denunciado teria dito que não era pecado a fornicação simples, ou seja, "entre mulher [e] homem livre não era pecado, assim como antigamente se praticava, e que por pondera[r] em concilio este ponto, se determinara ser pecado". Completava dizendo "[qu]e, posto que venerava as decisões do concílio, contudo, conhecia que não era aquele ato que fazia mal no mundo".233 Na denúncia feita por Perpétua Dias em Abranches, em Portugal, em março de 1782, contra Francisco Ferreira, este teria proferido que não era pecado qualquer homem ter cópula com mulheres e que só o era tendo-a com animais.234 Elementos similares se encontram na diligência para a averiguação de culpas contra José Antônio da Silva, estudante do terceiro ano de Medicina em Coimbra, após quatro denúncias contra ele dadas em 1778. Todos os denunciantes contam que José Antônio manifestava “ódio e raiva dos clérigos e frades”, e também “não falava com um irmão que tinha, só por motivo de ser frade”, comia carne em dias de preceito e não se ajoelhava durante a missa, exceto discretamente para evitar escândalo, além de ridicularizar devoções dos outros. Criticava a Inquisição, dizendo que era “asneira”, pois “portugueses e espanhóis” obravam mal ao mantê-la, ao contrário de “França, Inglaterra e outros Reinos, em que não havia Santo Ofício” e, por isso, “eram mais florentes e que ali se vivia com liberdade de consciência e seguia cada um a religião que queria”.235 Acrescenta-se nas denúncias que José Antônio da Silva, antes de voltar para a casa de sua mãe, no Rio de Janeiro, após saber da prisão do lente José Anastácio da Cunha,236 teria instruído sobre suas doutrinas a um amigo seu, nomeado por Manoel Ferreira, corista da Sé de Lisboa. Ele, conforme a denúncia, instruiu o corista de que “as molícies”, ou a masturbação praticada sozinho ou com outro homem, “não eram pecado, e mostrava o moço persuadido desta doutrina”.237 Falava ainda que o sexto preceito do decálogo se referia somente à fornicação.238 232 ANTT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. 130º CADERNO DO PROMOTOR. Op.Cit. Fl. 293. 233 Ibidem, Fl. 308. 234 Ibidem, Fl. 373. 235 ANTT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de José António da Silva, proc. 13365. Fl. 4. 236 Ibidem, Fl. 4v. 237 Ibidem, Fl, 4 238 Ibidem, Fl. 10v. 393 Na denúncia de Domingos José de Barros contra José Francisco Baião, dada aos 4 de abril de 1785, no arraial da capela de Nossa Senhora dos Carijós, Minais Gerais, consta que o denunciante, “compelido dos seus confessores denunciava um capitãomor”, de nome supracitado. Disse que Baião convidou “ele, denunciante, para um pecado da molície”, e o denunciado “defendendo-se com a cristã e justa repulsa de que não cometia tão enorme culpa, que podia conduzir ao Inferno”, o denunciado retrucara “que nem aquela torpeza, nem a fornicação simples eram pecados” e que “nem havia Inferno, depois que Cristo bem-aventurado veio ao mundo”. Disse, ainda, que tais proposições eram ouvidas de outras pessoas, do mesmo arraial.239 O mesmo denunciante fez uma denúncia anterior contra o mesmo capitão-mor João Francisco Baião, sobre a mesma matéria e no mesmo ano, com a diferença de que, ao justificar que nem a molície e nem a fornicação simples levavam ao Inferno, dizia que ninguém mais era condenado por ele e que a Igreja encobria tal verdade.240 No estudo feito por Luiz Carlos Villalta a respeito do processo dos irmãos José Joaquim Vieira Couto e José Vieira do Couto, juntamente com Maria Madalena Salvada, cotejando informações dos processos com pontos do romance Teresa Filósofa,241 fica patente uma sociabilidade constituída segundo os arquétipos do libertinismo como entendido no final do século XVIII e em princípios do século XIX. Nos processos dos irmãos supracitados, a crítica religiosa e moral e, ademais, a defesa da tolerância aparecem de maneira destacada e como componentes de uma perspectiva crítica ao status quo. O doutor José Vieira do Couto foi denunciado em 1773, pelo médico Luiz José de Figueiredo, morador, à época, no Arraial do Tejuco, nas Minas Gerais. O doutor teria dito várias proposições, entre as quais de que não haveria Inferno, que não passava de “patranha portuguesa”, além do que “se jactava, ao contar a uma concubina sua de que se estiveram em Holanda”, poderia se confessar à parede, e que a “Holanda era terra boa”, já que “lá cada um vive na lei que queria e nada se estranhava”. A Inquisição ordenou que fosse repreendido asperamente, o que não ocorreu, pois não o encontraram.242 O destino de José Joaquim Vieira Couto foi mais 239 ANTT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa.130º CADERNO DO PROMOTOR. Op.Cit. Fl. 433. 240 Ibidem, Fl, 430. 241 VILLALTA, Luiz Carlos. Leituras Libertinas. Revista do Arquivo Público Mineiro. Ano 48, v. 1. Jan/Dez. 2012. Belo Horizonte. p. 78-97. 242 ANTT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa Processo de Doutor José Vieira Couto, proc. 12957. 394 duro, ao ter caído nas malhas inquisitoriais duas vezes, envolvido com a francomaçonaria, tendo vindo a falecer nos cárceres inquisitoriais em 1811.243 Maria Madalena Salvada, por sua vez, apresentou-se duas vezes ao Santo Ofício. Na primeira, em janeiro de 1804, perto da primeira prisão de Joaquim José Vieira Couto – em 1803, tendo saído brevemente em 1807 –, disse que, ainda casada com o piloto Carlos José dos Prazeres, saiu de sua casa para “praticar ações libidinosas” com Vieira Couto. Lá, consta na apresentação. Maria Salvada teria tido contato com ritos maçônicos, além de ler, juntamente a Vieira Couto, romances franceses, os quais não especificou. Na primeira audiência com os inquisidores, contou que “duvidava do defeito do sexto preceito”, pois “Deus não se incomodava com ações libidinosas”, acrescentando também ter ouvido e proferido que Deus não se envergonhava com a visão do corpo humano,244proposição esta muito parecida com uma frase do mestre Dolmancé, numa das cenas da Filosofia na Alcova, na qual convence a jovem Eugénie a ficar nua junto a si e aos outros preceptores.245 Na segunda apresentação, feita após carta denúncia do promotor Bernardo Barbudo Figueroa Seixas, reafirmam-se as proposições retro e apresentam-se algumas outras culpas, tais como desacatos a símbolos sagrados e leitura de livros proibidos. O promotor, por sua vez, denunciou que Maria Salvada teria conseguido receber José Joaquim Vieira Couto em sua cela, por meio de suborno dos guardas. Ela teria dito que os “ministros do Santo Ofício eram quatro babosos que faziam do direito, torto, e do torto, direito”, além de ter afirmado o comum mote maçônico de que “não haveria pecados, além de não dar socorro a quem 243 Sobre José Joaquim Vieira Couto, sua perseguição e prisão pela Inquisição e Intendência geral de polícia: BARATA, Alexandre Mansur. Maçonaria, Sociabilidade Ilustrada & Independência do Brasil. Op. Cit. p. 50, 56, 84-85 e 100-102. 244 ANTT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa.Apresentação de Maria Madalena Salvada, proc. 9275. 245 Com a diferença de que Dolmancé não menciona o nome “Deus”, mas a natureza. No caso, ele desenvolve o argumento de que o pudor seria inútil em uma sociedade livre e republicana, que deveria organizar-se de acordo com o que a natureza determina. No monólogo Franceses, mais um esforço se quereis ser republicanos, o personagem diz que: “o pudor, esse movimento pusilânime, contraditório aos afetos impuros”, não faz sentido, pois se “estivesse nas intenções da natureza que o homem fosse pudico seguramente, ela não o teria feito nascer nu”. Da mesma forma, diz que muitos povos “menos degradados que a França”, pelos costumes da civilização e moral cristãs, “andam nus e não sentem vergonha disso”. Observa-se, na sua fala, uma associação do pudor à figura feminina, já que diz que: “não duvidemos do fato de que o costume de se vestir teve por única base a inclemência do ar e a vaidade das mulheres”. Sobre estas, aliás, frisa que “entendiam que perderiam logo todos os efeitos do desejo se os precipitassem”, e então “imaginaram que a natureza” as “teria assegurado todos os meios de agradar”, disfarçando sua nudez com adornos. Depois disso, elogia a nudez, sobretudo a masculina, numa longa exaltação das civilizações greco-romanas. Em sua argumentação, o pudor, em geral, e, especificamente, em relação à nudez, não seria apropriado para a república, uma vez que conduz a diferenciação e afetação, e não a uma valoração da figura humana, imprescindível aos valores republicanos. SADE, Marquês de. A Filosofia na alcova, ou, Os preceptores imorais. Op. Cit. p. 106-112. 395 precisa, quando se pode o fazer”.246 Se quanto à primeira apresentação, Maria Madalena Salvada fora absolvida ad cautellam, e recebera como penalidades receber instrução espiritual e abjurar de seus pontos, na segunda, ela foi considerada diminutiva – em outros termos, teria confessado menos do que os inquisidores esperavam que confessasse, ocultando culpas suas ou de outrem – e foi reconduzida ao cárcere. Outra tópica, constante na fala dos acusados de libertinismo, era tocante à virgindade de Maria Santíssima. Este ponto foi estudado por Luiz Mott, que mostrou haver uma relativa constância dessa matéria em proposições no Brasil colonial, entre os séculos XVI e XIX, constatação também demonstrável para Portugal no mesmo período.247 No caso dos libertinos, da mesma maneira que ocorria com os questionamentos em relação à fornicação simples, havia uma articulação entre a proposição referente à impureza de Maria Santíssima e a crítica religiosa que faziam. Nessa articulação, os libertinos cruzavam a proposição sobre Nossa Senhora, de matriz popular, com o uso de reflexões tipicamente iluministas, valendo-se de aspectos como a liberdade de fala, o uso da razão e as críticas amparadas no saber científico. É o que se observa na denúncia contra o estudante Nicolau Tolentino Sales, morador no bairro da Alfama, em Lisboa, dada ao comissário Veríssimo Manoel de Azevedo Serra e passada, por este, ao inquisidor João Justiniano Farinha, que mandou fazer averiguações sobre o caso. Na averiguação – feita em 1796, mesmo ano da denúncia –, foram ouvidos o mestre de ofício de salteiro Francisco Henriques e o latoeiro José Pedro de Abreu. Tais depoentes descreveram o jovem como um “libertino, costumado a proferir e seguir proposições heréticas, temerárias e escandalosas”. Declararam que ele era habituado a frequentar várias festividades de diferentes paróquias a fim de entrar em disputas sobre argumentos teológicos com os sermonistas. Disseram que, na quinta-feira santa do mesmo ano, em conversa na loja do mestre de ofício de salteiro mencionado, conversaram os dois denunciantes e Tolentino Sales. Este último teria dito que fora assistir a um sermão no dia anterior e, ouvindo o pregador falar contra os libertinos, ele lhe teria respondido que, entre eles, “havia muitos e espertos” e que os libertinos “combatiam com mais força” três pontos, melhor dizendo, negavam “a existência da Eucaristia, a imortalidade e a virgindade de Maria Santíssima”. Disse que os libertinos fundamentavam esses pontos segundo as regras da Geometria. Quando os dois 246 ANTT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Carta do Promotor Bernardo Figueiroa Barbudo Seixas sobre a ré Maria Madalena Salvada, proc. 16463. ANTT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de Maria Madalena Salvada. Tribunal do Santo Ofício, proc. 9276. 247 MOTT, Luiz. Maria, virgem ou não? Op. Cit. 396 denunciantes lhe retrucaram, dizendo aquilo ser produto de ignorância, Nicolau Sales teria respondido que esse tipo de proposição “não nascia da ignorância, mas sim de serem muito sábios”, pois, “se não o fossem, não falariam nesses pontos”. E ao ser advertido de que poderia ser denunciado ao Santo Ofício, teria dito “que lhe não importava isso e que já não havia excomunhões”.248 Noutra denúncia, dada pelo comissário da Inquisição João Coelho Soares contra várias pessoas, em Lisboa, em 1779, a negação da virgindade de Maria também vem associada com a descrição de um tipo de sociabilidade libertina. A denúncia foi feita a partir de uma apresentação dada por Nicolau Gonçalves, instrumentista que estava fazia seis anos no lugar de Elvas. Ele teria dito, segundo o comissário, que, em conversa com um alemão, que identificou como João "Bragaxe", e um outro sujeito chamado Henrique, cujo sobrenome afirmou ter esquecido e que era de nação francesa, os denunciados teriam dito que passaram, ao longo dos anos recentes. por diversos reinos, e viram pessoas professando diversas religiões e, ao verem que elas viviam normalmente sob leis diversas, teriam levantado dúvidas sobre qual era a verdadeira. Também teriam dito que duvidavam do sacramento da Penitência, que, segundo eles, não passava de uma instituição da Igreja, não de Cristo. Nicolau Gonçalves foi descrito como um homem dado aos vícios da bebedeira e luxúria, mas, fazia três anos, segundo o denunciante, que por reflexão sobre seus atos e procurando se confessar, teria mudado seu comportamento. Ele denunciou ao comissário, por fim, outro instrumentista, identificado como Henrique Nunes. Disse que este último, diante de um outro instrumentista de nação francesa, teria dito que Maria Santíssima não deveria ser adorada, mas sim venerada, dado que “o Testamento determinava se adorar somente a um deus”. Além disso, afirmara que os jejuns católicos não foram inventados pelo Cristo e, sim, pela Igreja. Acrescenta ainda alguns "sócios" desses instrumentistas, como um sapateiro identificado como “José, de nação inglesa”, que dizia que “Maria Santíssima era igual às outras mulheres e que fora prostituída”, referindo-se a “ela como ‘puta’”.249 Na carta denúncia de dona Maria Barbosa du Bocage, contra o contador José Diogo, datada de outubro de 1812, há também essa relação de libertinismo com a negação da virgindade de Maria. A denunciante confessou, em carta, cerca de doze anos 248 ANTT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de Nicolau Tolentino Sales, proc. 13436. 249 ANTT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. 130º CADERNO DO PROMOTOR. Op.Cit. Fl. 60. 397 antes, tivera “relações com José Diogo, contador de Argote” e morador em Lisboa. Nesse tempo, ela disse que dele ouvira proposições que abominava, supondo que ele “as dizia de pouco juízo e talvez com alguma má intenção”, tais como “que a Virgindade de Maria Santíssima, depois do parto, se não podia capacitar”.250 O que se entende aqui, por fim, é que o viver libertinamente era relacionado ao viver de maneira fora do que determina a moral sexual cristã, mas também somado a outras críticas religiosas, inclusive a essa moral. Essas críticas não se restringem ao século das Luzes, nem sequer aos libertinos. Sua novidade reside na forma como eles as articulavam com noções tipicamente iluministas, tais como a de “natureza”, apelando ao próprio uso da razão, à observação e ao empirismo – geralmente, na forma de uma crítica livre e inventiva das Escrituras e da própria doutrina católica –, de sorte a embasar algumas das proposições. No caso das falas dos libertinos, tanto brasileiros como portugueses, é visível uma articulação típica desses pontos, mencionados acima, com reflexões e dúvidas sobre o próprio Catolicismo, marcantes no Iluminismo católico. Nessa articulação, a linha entre uma crítica erudita – como a da Medicina Theológica – e as falas de pessoas comuns, dos mais diversos níveis de instrução, é relativamente tênue. Portanto, no âmbito da moral vigiada pela ortodoxia católica e, por conseguinte, pela Inquisição e pelos demais órgãos de censura, dava-se uma disputa pelo religioso. Em tal disputa, na maioria das vezes, há, de forma sutil e indireta, uma demanda por se atenuarem as restrições postas pelo dogma e pela aproximação entre a moral estabelecida e as percepções mais brandas sobre a natureza e necessidades humanas. Aqui, a defesa da tolerância, direta e indiretamente, cruzava-se com a demanda por uma moral católica, regulada e humanizada pelo uso da razão. 4.4 Os libertinos, os fanáticos e os intolerantes num “reino de estupidez” No começo deste último capítulo, analisei o sermão do frei Bruno de Zaragoza a respeito dos libertinos. Nele, havia um diagnóstico sobre o contexto no qual esse tipo delituoso de alçada inquisitorial, identificada com um arquétipo específico típico da Idade Moderna e que recebeu uma roupagem e organização distintas nas Luzes, sendo mais frequentemente presente na massa documental dos tribunais de fé. O “voluptuoso 250 ANTT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Carta de denúncia de d. Maria de Barbosa du Bocage contra José Diogo, proc. 14684. 398 século” XVIII e seu “espírito de novidade”, de acordo com o frei, seduziam pessoas pelo intelecto e pelos sentidos, desviando-lhes da fé. A compreensão disso, para Zaragoza, era fundamental para se defender a religião do libertinismo que assolava seu tempo. Essa preocupação do frei Bruno de Zaragoza remete a um “regime de historicidade” específico, compartilhado pelos libertinos e por seus censores. O conceito “regime de historicidade”, tributária da obra de François Hartog, visa contribuir para se apreender o tempo e momentos de crise do tempo. Esses momentos são entendidos como aqueles em que “as articulações entre passado, presente e futuro deixam de parecer óbvias”, envolvendo, por isso, a busca de novos arcabouços de compreensão.251 Nas falas dos libertinos e nas preocupações de seus censores, conflitos entre a tradição, os costumes e as novidades colocam-se muito dramaticamente. Nelas, a questão da tolerância religiosa é uma espécie de fio condutor, sendo concebida como “novidade” perigosa ao status quo ou, inversamente, como imperativo de modernidade e civilização. A difusão dos núcleos de acusados de práticas libertinas por Portugal e Brasil indicava que um mundo sem Inquisição e com liberdades morais, políticas, religiosas e de pensamento, já era, para muitos, mais que um sonho distante, mas algo, até determinado ponto, iminente. Percebia-se, todavia, alguma distância entre seu presente e esse mundo possível de tolerância, ou mesmo retrocessos a um passado identificado como um obscurantismo sempre à espreita. Pelo viés do “risco das novidades do século”, observa-se um tom bem mais sombrio e alarmista na também já analisada denúncia contra o tenente Hermógenes Pantoja, dada na Bahia em 1797. Dirigindo-se ao vigário José Nunes Cabral, o frei Manuel do Sacramento, após detalhar as diversas proposições contra o “doge ou chefe dos libertinos”, envolvido, posteriormente, na Inconfidência Baiana, justificou sua denúncia por se ver “obrigado a tomar razão do temperamento demasiadamente escrupuloso que tem”, diante de todas as proposições que ouviu, “com tudo os rumores públicos” que o deixavam “assaz perplexo”. Depois de detalhar algumas falas heterodoxas, disse que aquilo serviria para evidenciar “o estado miserável em que se acha esta cidade” da Bahia, do qual “se podem recear consequências funestas”, e “isto se a nossa Fidelíssima Suserana não remediar” tal estado de miséria, “com tempo traga 251 HARTOG, François. Regimes de Historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013. p.28-29. 399 mal [e] tão grande ameaça ao mesmo tempo a destruição já da Religião, já do Governo como da República”.252 Uma relação entre libertinismo e “francesias”, “ameaças à república” e à religião advindas das “novidades do tempo”, parece ter sido tópica recorrente na Bahia, na virada do século XVIII para o XIX. É o que mostra o processo contra Rodrigo Sodré Pereira, acusado de libertino, cujas averiguações de delitos ficaram inconclusas devido à morte do acusado, antes da audição de testemunhas. Em novembro de 1792, o padre Manoel Alberto denunciou Sodré Pereira, ao comissário da Inquisição lisboeta Manoel Anselmo de Almeida Sande, por viver “escandalosamente e com muita libertinagem”. O denunciante disse que ele injuriava imagens de santos, dizia que a alma morre junto com o corpo “da forma dos irracionais”, negava a existência do Inferno, entre outros pontos. Sodré Pereira, segundo a denúncia, vivia em trato ilícito com uma cunhada sua – que era viúva – e instruía um sobrinho seu “pelo cego caminho da perdição”, ensinando-lhe que não se deve confessar. Sobre este ponto, teria publicado – aparentemente, com algum papel escrito – abaixo da janela da casa de um letrado na rua do Tijolo – na atual cidade de Salvador – “que não se deve confessar pecados a um sacerdote que come como eles”. Declarou ainda que o acusado “fazia gala de fazer ver suas vergonhosas partes em público” e descreveu, ainda, encontros dele com outros libertinos da cidade, no engenho de sua cunhada e concubina. Nesses encontros, houve lugar para proposições e desdém com imagens sagradas e sacramentos católicos. Num deles, regado a bastante vinho, Sodré Pereira “se pôs nu em pêlo diante da família”, na casa do dito engenho na fazenda em Cachoeira, também na Bahia, bebendo diante dos vários “sócios” do seu círculo de libertinos, disputando com liberdade em matérias de religião. Em conclusão, o padre Manoel Alberto disse que Sodré Pereira, “judeu por parte de mãe”, “não pensa mais que enganos e ladroeiras” e diz que, “pelo que tem ouvido e presenciado”, o que disse “não é nada em comparação das suas libertinagens”. Por isso, concluiu o padre que se persuadia “que, se à proporção da sua maquiavelice e talento” para obrar o mal “tivera estudos, teríamos mais um heresiarca”. Constou, ainda, que Rodrigo Sodré Pereira iria para a Corte nos primeiros navios que ali chegassem àquela data, autorizado pelo governador d. Fernando de Portugal e Castro.253 252 ANTT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Denúncia contra o tenente Hirmógenes e outros. Op. Cit. Fl. 4. 253 ANTT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de Rodrigo Sodré Pereira, proc. 1810. Fls. 2-4. 400 O heresiarca era, conforme os regimentos e manuais inquisitoriais, o patamar mais perigoso possível de herege, pelos danos que causaria à religião e à república, devido às suas formulações angariarem sectários. Assim, o religioso deixava implícito que o comportamento de Rodrigo Sodré Pereira, por sua ousadia e artifícios, seria muito mais danoso a todos se tivesse refinamento maior, dado pelo letramento. Essa mesma associação aparece de maneira mais direta no processo contra Cipriano José Barata e Marcelino Antônio de Souza, possivelmente em função da Conjuração da Bahia, ocorrida no ano do processo – 1798. Os dois foram denunciados pelo padre José da Fonseca Neves, capelão do engenho de Paulo Argolo por serem “formalmente heréticos”, dizendo proposições como que, “fora o Ente supremo, tudo mais é fantasma”, manifestando descrença no Inferno e no Purgatório. Diziam também que alma morre com o corpo, “que os ministros da Igreja são uns impostores que destroem a sociedade humana”, repetindo o mesmo sobre os monarcas, dentre outros pontos. Além disso, diziam, segundo denúncia, que “estão prontos para morrer pelos erros que seguem, que dizem hão de se retratar se forem presos pelo Santo Ofício, permanecendo depois nas suas antigas crenças”.254 Cipriano Barata, segundo Marco Morel, se transformaria, posteriormente ao recorte temporal desta tese, em “um dos primeiros e principais líderes políticos de âmbito nacional no Brasil”. Ele exerceria liderança “não pelo seu poder burocrático, militar ou econômico, nem pelo peso da tradição ou pela crença religiosa”, mas “pela palavra pública impressa e falada”, cuja trajetória política e de vida perpassa toda uma crise do sistema colonial.255 O citado historiador possui alguns estudos de fôlego que tocam a trajetória de Barata, importantes na historiografia.256 254 ANTT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Sumário contra Cipriano José Barata de Almeida e Marcelino Antônio de Sousa, proc. 13865. Fl. 2. 255 MOREL, Marco. Os escritos de Cipriano Barata. Observatório da Imprensa. 09/06/2009. Disponível em: < http://observatoriodaimprensa.com.br/armazem-literario/os-escritos-de-cipriano-barata/>. Acessado em set./2018. 256 Existem, por exemplo, trabalhos sobre Cipriano Barata como periodista, sobretudo referentes ao Sentinella da Liberdade (1823, 1831-1834), nos quais se destaca a construção de uma linguagem e retórica políticas importantes ao processo de Independência do Brasil. Nesse âmbito, destacam-se os trabalhos de Marco Morel, sobre o assunto. Também não se pode deixar de mencionar textos que se dedicaram à atuação de Cipriano Barata nas Cortes de Lisboa (1820-1823), versando sobre diversos temas, como sua retórica cívico-humanista e valores republicanos constantes em seus discursos e publicações, como demonstra Renato Lopes Leite. Não especificamente sobre Cipriano Barata, mas tendo ele e sua atuação como parte de uma investigação sobre os discursos políticos e seu papel na construção de identidades nacionais no contexto da independência e pós-independência do Brasil, neste país e em Portugal, cabe menção aqui ao trabalho recente de Alexandre Bellini Tasca. Sobretudo porque nessa análise de discursos e formação de identidades, o autor envolve diversos temas, tais como a posição de Cipriano Barata quanto a temas como a escravidão e a inserção do liberalismo nos discursos e valores político do período. MOREL, Marco. Cipriano Barata na Sentinela da Liberdade. Salvador: Academia 401 Ao que interessa aqui, é importante ressaltar algumas informações que aparecem no parecer de João Lobato de Almeida, comissário da Inquisição. Ele faz associações entre libertinismo e ameaças maiores ao status quo católico, de modo similar às encontradas nos documentos anteriormente analisados. Depois de ouvir as testemunhas, o comissário começa o parecer dizendo que nunca tivera diligência de que fosse incumbido que lhe “determinasse mais perturbação” que a relativa a Cipriano e Marcelino. Isso por perceber o quanto aquela diligência lhe mostrava que “a nossa Santa Fé vai amortecendo com muita particularidade na mocidade presente” e “que, por falta de disciplina, se vão engolfando na libertinagem e francesia”. Isso ocorria naqueles tempos por falta de respeito às autoridades, completa. Mencionou episódios em que havia evidentes sinais de comunicação entre as testemunhas inquiridas – em claro desrespeito ao juramento de prestar segredo no que fosse tratado pelo Santo Ofício – e a conivência do governador d. Fernando de Portugal e Castro com um ambiente de grande desrespeito à Coroa, à religião e à Inquisição.257 Seu diagnóstico disso era bem claro e severo, ao dizer que se “se Vossa Majestade não puser as forças necessárias a fim de dissipar estes erros e arrancar-lhe as suas Raízes pelo futuro”, em pouco tempo “não só se verá a nossa Santa Fé sepultada e, se não que, [a]té o mesmo Soberano pouco Respeitado”.258 Este mesmo sumário já foi estudado por Luiz Villalta, que identificou, nesse diagnóstico, uma perfeita síntese do comissário do Santo Ofício sobre a dessacralização do trono, altar e demais instituições que compunham o complexo quadro político-religioso luso-brasileiro no ocaso do Antigo Regime, descrevendo e analisando, de alguma forma, seu processo de crise.259 O que se observa nessas passagens dos documentos sobre três casos referentes a libertinos da Bahia, é que, entre oficiais da Inquisição, havia uma percepção de crise – aqui, concordando com a análise de Villalta. Cotejando suas falas com a leitura feita pelo frei Bruno de Zaragoza, a chave de que esses eclesiásticos lançam mão para entender essa crise, relacionando-a à de Letras da Bahia; Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, 2001; LEITE, Renato Lopes. O republicanismo na independência do Brasil: a retórica cívico-humanista do jornalista Cipriano Barata. Espacio, Tiempo y Forma, Serie V, Historia Contemporánea, t. 22, p. 67-78, 2010; TASCA, Alexandre Bellini. Enredamentos: o constituir nacional entre Portugal e Brasil nas Cortes de Lisboa (1820-1822). [Dissertação-mestrado em História]. Belo Horizonte: Programa de pós-graduação em História UFMG/Universidade Federal de Minas Gerais, 2016. 257 ANTT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Sumário contra Cipriano José Barata de Almeida e Marcelino Antônio de Sousa. Op. Cit. Fl. 12v. 258 Ibidem, FL. 13. 259 VILLALTA, Luiz Carlos. As imagens e o controle da difusão de idéias em Portugal no ocaso do Antigo Regime. IICT| bH L| b l o g u e d e H i s t ó r i a L u s ó f o n a | A n o V I | M a r ç o 2 0 1 1. p. 33-80. Disponível em: < http://www2.iict.pt/?idc=102&idi=16996>. Acessado em set./2018. p. 7375 402 expansão das sociabilidades libertinas por todo canto dos domínios do rei de Portugal, é, justamente, a da “novidade”. Ela sintetiza um campo vasto de críticas comumente atribuídas aos libertinos, tais como a defesa da tolerância religiosa, a crítica aos dogmas e aos sacramentos – e a recusa a eles – juntamente a uma insubmissão às tradições e às autoridades, civis e eclesiásticas. Essas “novidades” podem ser organizadas em algumas tópicas comuns encontradas na documentação referente aos libertinos. Uma constante nas falas dos libertinos é a de que tanto a intolerância institucionalizada na Inquisição quanto os excessos de religiosidade nos espaços coletivos já não teriam lugar àquela altura dos tempos, significando atraso ou fanatismo. Essas duas marcas da cultura lusa, segundo eles, eram anacrônicas naquele “século iluminado”. Um exemplo disso está no já analisado processo do estudante de Medicina em Coimbra, o brasileiro José Antônio da Silva. Juntamente com seus ataques ao clero regular e a defesa da tolerância religiosa, Silva faz uma crítica política ao reinado mariano articulando esses dois pontos. No processo, consta que o estudante proferira que era “asneira” a jurisdição do Santo Ofício àquela sua época – 1778, início do reinado mariano e momento posterior à queda do Marquês de Pombal –, e os reinos que não a tinham eram “mais florescentes”. Na mesma ocasião, conforme a denúncia, estando ele à “porta da aula de Medicina”, falava-se “que a Rainha nossa senhora”, d. Maria I, “dera licença para se ordenar os clérigos que os bispos quisessem”. Então, o estudante “disse (...) a um minorista, que também ali estava”, que “estudava a História Natural”, que isso era “o mesmo que dar-se licença para haver outros tantos materiais” – “materiais”, aqui, no sentido de inúteis, supérfluos260 – “e que, [se] ela cuidasse de aliviar o Povo de tributos e estabelecer uma sólida paz no Reino, faria melhor”. Porém, segundo ele, a rainha apenas “cuidava que houvesse frades e clérigos, com o que entendia que estava o Reino seguro, quieto, pacífico, bem governado”.261 Juntamente a isso, criticava a insistência dos eclesiásticos em pregar às pessoas sobre os tormentos do Inferno. Para ele, não poderia haver fogo ou tormentos no Inferno “porque embaixo da terra não havia lenha”; e essa forma de descrevê-lo, para o estudante, servia apenas “para aterrar os rústicos”. Por isso, teria dito que, “quando proximamente andaram nesta cidade” de Lisboa “pregando os Missionários, que os não podia ouvir por serem uns Em Bluteau, “material” significa “grosseiro, sem sutileza, sem agudeza, sem descrição”. Aplicado à medicina, “material” é como “chamam os médicos, quando no corpo enfermo há corrupção de humores, ou muita matéria dele, que cozer, ou evacuar por suor”. BLUTEAU, Raphael. Vocabulario Portuguez & Latino. Op. Cit. p. 364. 261 ANTT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de José António da Silva. Op. Cit. Fl. 5. 260 403 materiais e pelas gritarias que faziam e que falavam senão em Infernos e mais Infernos”.262 Assim, junto ao excesso de religiosidade, para fazer medo e controlar pessoas menos letradas, os eclesiásticos não contribuíam para o bem governar da república, e a rainha errava em os multiplicar. Errava, ainda, por não extinguir a Inquisição, do que se depreende que tanto os tribunais de fé como a forma de se professar a religião, baseada na crença nos castigos eternos, não traziam mais qualquer tipo de aspecto positivo a ninguém. Há pontos similares no sumário contra o boticário José Luís Mendes, no Rio de Janeiro, documento analisado e transcrito por David Higgs. Nele, observa-se haver conexão entre a crítica religiosa, pautada na ideia de que excessos e exteriorismos religiosos eram signos de atraso, e a política. Nessa perspectiva, a crítica engloba visões de mundo um tanto insubmissas às autoridades. Em carta denúncia de 4 de dezembro de 1794, dada pelo sapateiro Manoel de Jesus contra Mendes, sobrinho de sua esposa, este e mais algumas pessoas são acusados de proferirem “proposições heréticas e escandalosas, como duvidar da verdade das Escrituras Sagradas, tratando-as como bagatela”. Eles, ademais, duvidavam dos santos, da superioridade do Papa, dizendo que seu poder não é dado por Cristo, desdenhando também das indulgências, falando “que antes querem ser irmãos do diabo que das irmandades”, entre outras proposições. O denunciante disse que demorou três anos para denunciá-los ao Santo Ofício, em partes devido ao parentesco. Descreveu longamente a botica de José Luís Mendes, na rua Direita, no Rio de Janeiro, como “casa de adjuntos libertinos e heréticos”, onde várias pessoas disputam sobre várias matérias heterodoxas na forma de uma “luciferina assembleia”, na qual diz ter presenciado algumas discussões constantemente sem delas fazer parte.263 O denunciante disse que José Luís Mendes, sabendo que Manuel de Jesus possuía livros de devoção, como o do padre Manoel Bernardes 264 e outros, começou a 262 Ibidem, Fl. 12v. HIGGS, David. O Santo Ofício da Inquisição de Lisboa e a “luciferina assembleia” do Rio de Janeiro na década de 1790. Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Ano 162, n. 412, p. 239-384, jul./set. 2001. p. 255-256. 264 A obra mais conhecida do padre Manuel Bernardes, Os últimos fins dos homens, salvação e condenação eterna, foi publicada em 1728. É uma obra dividida em duas partes, sendo a primeira sobre a “singular providência de Deus” e “salvação da alma”, e a segunda, acerca “das causas gerais da perdição das almas ou estradas comuns do reino da morte eterna”. Na primeira, mais especulativa, são abordados problemas como a contradição entre a vontade divina de salvar todo o gênero humano e o reduzido número de eleitos, em comparação com os condenados no Juízo Final. Na segunda, de caráter mais prático, o autor se ocupa de razões mais factíveis para que as almas caiam na perdição, tais como o mau proceder de magistrados civis e eclesiásticos, os maus pregadores e pais, que não instruem ou instruem mal aqueles sob sua tutela na lei de Deus, entre outros pontos. Uma análise completa da obra pode ser vista em artigo de Maria Lucília Gonçalves Pires. PIRES, Maria Lucília Gonçalves. Os “últimos fins” na 263 404 tratá-lo por “fanático”, dizendo que “não usasse deste livro, nem de obras deste autor” e outras similares, “reprovando todos os livros que tratam do espiritual e do horror que devemos ter ao pecado”. Ele tratava por “petas e fanatismo também pontos como a crença no Inferno, juízo particular e universal, eternidade e reforma da vida e costumes”. Zombava das bulas do Papa e dava indícios de haver circulação de escritos de Voltaire, pelo Rio de Janeiro, em meados dos anos 1790. Mendes, segundo a denúncia, tratava eclesiásticos, sobretudo regulares, pelo nome de “impostores” e “homens de petas”, além de chamar de maneira pejorativa a desobriga quaresmal de “recibo”.265 Havia outros cúmplices nas “assembleias”. Entre eles, estavam Antônio Joaquim de Santa Ana, “homem pardo, mas estudantaço”, o mestre de retórica grega Luís Gonçalves, Manuel Ferreira, professor régio, José Jacinto de Sá e seu irmão João Lourenço e outros, como José Martiniano. Este último, além das proposições, “louvara os pedreiros livres de França, que eram a melhor gente que havia, e que eram bons homens”.266 Algumas proposições do boticário José Luís Mendes remetem a ideias regalistas. Por exemplo, na parte da denúncia em que consta que o boticário tratara sobre a ocasião em que os franceses tomaram Avignon, ele teria dito: “coitadinho do Papa, já lhe tiraram aquela maminha”. Nessa ocasião, todos os denunciados começaram a discutir, sempre dizendo argumentos como que “os papas e cúria têm sido a causa das heresias por muitas simonias (...) por repartirem terras e domínios aos reis”, e que “nada lhes pertence do temporal e governo do mundo”. Outro denunciado, o boticário Antônio Bandeira de Gouvêa, teria dito que, “enquanto os papas foram só papas, a fé era recebida”, mas, depois que tiveram Estados, “as nações entraram a sair da Igreja e que os luteranos, parecia[-lhe], tiveram razão para o fazer”. Afirmara, ainda, que os pontífices não possuíam mais autoridade que os bispos.267 Denunciou ainda que José Luís Mendes teria dito que ia vender o hábito da Ordem Terceira do Carmo, dizendo que não servia para nada, além de fazer diversos insultos a eclesiásticos, que tratava sempre por “vadios” e outros termos. Contou, também, que era comum ouvir da “luciferina assembleia”, em sua botica, que “a Sagrada Teologia era uma peta [isto é, mentira], que ninguém sabia o que havia lá”, cultura ibérica (XV-XVIII). Revista da Faculdade de Letras – Línguas e Literaturas. p. 173-186. Anexo VIII. Porto, 1997. 265 HIGGS, David. O Santo Ofício da Inquisição de Lisboa e a “luciferina assembleia” do Rio de Janeiro na década de 1790. Op. Cit. p. 257-260. 266 Ibidem, p. 261. 267 Ibidem, p. 261-264. 405 dizendo que os franceses fizeram bem de a tirarem das escolas. Os delatados escarnecem, segundo a denúncia, de maneira repetida, “de toda a pessoa de oração, penitente e beata, mas com a especialidade”, sempre a respeito das esmolas e do fato dos sacerdotes não trabalharem. A isso, o denunciante atribuiu a leitura de Voltaire e “de outros libertinos”. Acrescentou que, em ocasião em que comentou com José Luís Mendes “que, antes se dava mais rosários que agora”, o boticário respondeu que isso acontecia porque “os homens já iam abrindo os olhos”.268 Na “luciferina assembleia” do Rio de Janeiro e nas falas atribuídas ao estudante José Antônio da Silva, as devoções, crenças (como a sobre o Inferno), o estado eclesiástico e a própria relação íntima entre poderes temporal e religioso aparecem como contrárias ao progresso dos tempos, sendo uma permanência que deveria desaparecer. Mais ainda, todos esses aspectos serviam para se manter os povos na ignorância, “enganar os rústicos” e contribuir negativamente ao progresso. Esses pontos também aparecem de maneira mais difusa na denúncia de João Pedro Gomes contra várias pessoas no Maranhão, aos 2 de janeiro de 1779, por acusações variadas, como libertinagem, proposições, heresia e “espalhar livros danados”. João Pedro Gomes relatou, em ordem de diligências abertas pelo Santo Ofício, vários comportamentos heterodoxos. Segundo João Henriques, oficial de ourives, Aires Carneiro Homem, sargento mor dos auxiliares no Maranhão e natural de Portugal, “tem falado publicamente que os Evangelhos podiam estar pervertidos e que muitas [das] imagens [que] estariam nos altares adoradas por santos e as almas estariam no Inferno”, já que foram canonizadas por homens e estes podiam errar. Disse ainda que Aires Carneiro afirmou publicamente que, quando “o Pontífice queria dinheiro, mandava umas poucas letras a El Rey senhor d. João V escritas em um papel”, no qual dizia “que concedia muitas indulgências e que, logo, o Rei benigno lhe mandava esmolas avultadas”. O sargento-mor afirmava também que os padres não serviam de nada à república, por não trabalharem e “não fazia escrúpulo em lhe[s] dar pancadas, pois dessas excomunhões não fazia caso”, e que “melhor viveu dois anos com os ingleses, não tendo lá padres”. Aires Carneiro tratou alguns santos, cuja origem era a Companhia de Jesus, por “mágicos”, segundo a denúncia. Ainda conforme a mesma, estando Aires Carneiro com o prior do Carmo, o frei José Caetano de Almeida e Graça, quando este rezava o ofício divino, perguntou-lhe o que fazia. O frei respondeu-lhe 268 Ibidem, p. 263-267. 406 sobre a oração que rezava e que ela fazia parte das lições da Sagrada Escritura, nos salmos de Davi. A isso, Aires Carneiro teria questionado sobre quem teria dito e provado ao religioso que aquela oração teria mesmo sido escrita por Davi. O religioso, por sua vez, teria respondido que “tinha por certo e infalível” que sim, “pois a Igreja assim o ensinava”. Aires Carneiro, então, teria retrucado, “dizendo, ora padre, deixe-se disso, não seja fanático, nem Davi disse isso que Vossa Paternidade está pronunciando, porque muitos séculos que têm passado” e “já não há sombras do que Davi disse, nem a Igreja manda em Vossa Paternidade”. O sargento-mor, então, de forma enfática, teria concluído dizendo que haveria de se “obedecer, e respeitar, em primeiro lugar a Deus, em segundo o Rei e, no seu lugar, ao Marquês de Pombal”. O Prior, por fim, não sabia dizer se o sargento-mor disse tais proposições por graça, apesar de declarar o ter repreendido e ter ficado escandalizado.269 Além de Aires Carneiro Homem, foram acusados outras quatro pessoas: Joaquim Antônio de Lone, por libertino, comer carne em dias de preceito e fazer mofa disso, publicamente; Vicente Ferreira Guedes, “homem pardo que advoga”, por questionar a jurisdição papal, dizendo que o Papa e os bispos eram iguais, dando a entender que atrelou tal proposição à leitura da Tentativa Teológica (1765), do padre Antônio Pereira de Figueiredo; o governador-geral Joaquim de Mello e Povoas, por fazer pouco de fitas que mandava benzer na capela de Nossa Senhora da Madre de Deus, mandando colocá-las nos pescoços de seus cavalos, além de, “com escândalo de todo o povo”, introduzir “danças pela quaresma”; por fim, Marçal Inácio Monteiro, que “não só usava de livros proibidos” como Voltaire, O Príncipe, de Maquiavel, além de obras de Paolo Sarpi, mas também “os faz públicos a uns e os tem mandado vir para outros”.270 Na ordem para diligência, assinada pelo Arcebispo da Lacedemônia e pelo inquisidor Antônio Veríssimo de Larre, passada em mesa em março de 1778, consta uma série de preocupações quanto a possíveis estragos que os denunciados poderiam causar. Sendo presente na Mesa do Santo Oficio, que muitas pessoas deste Reino e Conquistas, posto que Católicas Romanas, nascidas no grêmio da Igreja, educadas e nutridas com os verdadeiros sentimentos da mais sã doutrina, guiando-se pela própria liberdade e pela que lhe tem inspirado, e talvez defendendo, com absoluta temeridade e animosa ousadia, alguns erros opostos ao verdadeiro Dogma que professaram, com cujos feitos não só, tem sensível e lastimosamente, desordenado e 269 ANTT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. 130º CADERNO DO PROMOTOR. Op.Cit. Fl. 19. 270 Ibidem, 19, 19v e 19 A. 407 denegrido as suas consciências, profanando com sacrílego insulto a Sagrada Lei de Jesus Cristo, nosso Redentor, e a constante e firme Tradição da Igreja, que protestaram venerar e seguir, mas gravemente ofendido todo o Corpo dos mesmos Fieis, tanto pelo escândalo a que provocam aos sábios e Livros, como pelo precipício a que expõem os incautos e ignorantes: E desejando Nós, como próprio do nosso Ministério de correr a um tão pernicioso sistema, fazendo severamente castigar aos Réus de tão abominável delito e vigiar cuidadosamente sobre ele, para que se dissipe e sufoque a pestífera cizânia que o produzia e sustenta, e se acautele, que reproduzido contamine aos sinceros, e os precipite no maior de todos os abismos.271 No último quartel do século XVIII, à necessidade de se sufocar as novidades, para evitar as sedições e agitação social que viriam na medida que os “sinceros” na fé se contaminassem pelas novidades do tempo – as libertinagens –, contrapunha-se um campo complexo de críticas a instituições, tais como o clero, a Inquisição e a própria religião. Essas críticas se valiam de uma forma inédita de se organizar e reler problemas religiosos que eram objeto de proposições heterodoxas lusas em toda a Idade Moderna, referentes a questionamentos de preceitos, de dogmas, de sacramentos e da autoridade do papa. Nessas críticas, a organização e a releitura dessas questões antigas deram-se sob práticas e sociabilidades próprias das Luzes. O que chama a atenção, aqui, é que há uma percepção e leitura do tempo histórico que perpassa suas ações. No caso de Aires Carneiro Homem, por exemplo, fica claro que, juntamente a um questionamento sobre a veracidade das Escrituras, baseado na distância temporal, há uma ideia de incompatibilidade entre, de um lado, a religião vivida em Portugal e no Brasil até então e, de outro lado, os novos tempos. Esta incompatibilidade, por sua vez, implicava uma dupla percepção: primeiramente, de um processo de mudanças e, segundo lugar, de que tal processo era recente na história portuguesa. As imagens de um d. João V “beato” – tópica que aparece em publicações diversas, como, por exemplo, as de Voltaire, problema focalizado nos capítulos 1 e 2 –, e de uma Igreja corrupta, que se enriquecia através dele por meio de bulas, articulavam-se a proposições em que se veem tópicas regalistas, críticas a tal relação do poder temporal com o do Pontífice e a outros tipos de relação do poder eclesiástico e régio. Nesse conjunto de elementos, enfim, identifica-se aquela articulação entre as Luzes e um substrato cultural anterior. A figura do Marquês de Pombal, para quem deveria prestar obediência eventualmente no lugar do rei, nas suas falas, é um elemento essencial nessa articulação. 271 Ibidem, Fl. 21. 408 O Marquês de Pombal e as reformas identificadas à sua figura são importantes na análise dessa leitura do tempo presente nas falas dos libertinos. Um exemplo, já analisado, são as proposições de Jerônimo Francisco Lobo. Ele, como se mostrou, mencionava que, nas falas de seu círculo, aparecia a crítica de que a grande falha de Sebastião José de Carvalho e Melo foi a de não extinguir os tribunais do Santo Ofício, por eles fazerem “grassar a ignorância”. A isso, acrescentava outros pontos, como de que era justo fugir dos cárceres dos tribunais de fé, “parecendo ser melhor justiça” dar ao herege “tempo de conversão”. Mencionou, ainda, a tópica de que a Inquisição arruinava o comércio de onde instalava – em conversa sobre o restabelecimento dos tribunais em Goa –, sustentando que “mais conversões faziam as medidas que arroz, que mandavam dar os nossos reis, do que as que haviam de fazer a Inquisição” – em conversa que teve, aparentemente, com Antônio de Morais e Silva.272 Essa contraposição a um retrocesso conservador do presente com um passado ilustrado como chave de ler a realidade é marca de um importante escrito português do final do Setecentos: trata-se do poema Reino da Estupidez, de Francisco de Melo Franco. O autor é o mesmo mencionado em vários dos processos de libertinos analisados até aqui, como os do abade Mourão, Manoel Galvão, Jerônimo Francisco Lobo e alguns outros. Nascido em Paracatu, Minas Gerais, em 1757, formou-se em medicina em Coimbra – à mesma época, como se pode inferir, desse numeroso núcleo de libertinos – e tornou-se, posteriormente, médico honorário da câmara do rei d. João VI, sócio da Academia Real das Ciências de Lisboa, além de ter publicado várias obras – e ter tido outras cuja autoria lhe foi atribuída. Antes de ir para Portugal, para terminar os preparatórios para os estudos em Coimbra e depois entrar na Universidade, foi estudante do Seminário de São Joaquim, no Rio de Janeiro. Em 1817, por ordem do rei foi chamado a acompanhar a arquiduquesa d. Maria Leopoldina. Porém, no Brasil, teve diversos problemas, chegando a ver vedada a sua entrada no paço – segundo Inocêncio Francisco da Silva, devido à sua simpatia por ideias liberais, malvistas à época da Revolução Pernambucana –, além de ter perdido, segundo o mesmo autor, todos os seus bens. Veio a falecer em Ubatuba, no ano de 1823.273 A tese de que Francisco de Melo Franco perdera seus bens, no entanto, é contestada por Luiz Carlos Villalta ao analisar, 272 ANTT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Sumário contra Jerônimo Francisco Lobo. Op. Cit. Fl. 31. 273 SILVA, Innocencio Francisco da. Francisco de Mello Franco. In: _________. Diccionario Biliographico Portuguez. Estudos de Innocencio Francisco da Silva aplicáveis a Portugal e ao Brasil. Lisboa: na Imprensa Nacional, 1859. 2ª ed. 1924. Tomo II. Disponível em Biblioteca Digital do Senado Federal – Brasil < http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/242995 >. Acessado em ago. 2018. p. 10-11. 409 por exemplo, documentação que indica a compra de sua extensa biblioteca pelo Império, no Primeiro Reinado.274 A respeito de sua passagem na Inquisição de Coimbra, é sabido que ele foi condenado, apesar de seu processo estar, aparentemente, perdido. Alberto Dines o listou entre os participantes do auto de fé acontecido em 26 de agosto de 1781, condenado por herege, naturalista, dogmático e por negar o sacramento do matrimônio. Junto com ele, estavam mais oito estudantes, anteriormente mencionados nesta tese: Antônio Caetano de Freitas, Antônio Pereira de Souza Caldas, Antônio da Silva Lisboa, Diogo José de Morais Calado, Francisco José de Almeida, Lourenço Justiniano de Morais Calado, Nuno de Freitas e Vicente Júlio Fernandes, por delitos variados, tais como tolerantismo, deísmo, crer na “lei natural”, entre outros.275 Melo Franco foi condenado à confiscação de bens, ao uso do sambenito e a passar quatro anos na prisão de Rilhafoles, dos quais ele cumpriu um. Em 1782, voltou a Coimbra graças a visto régio assinado por d. Maria I, formando-se em 1786.276 Voltando ao poema em questão, trata-se de um escrito anônimo atribuído a Francisco de Melo Franco, intitulado O Reino da Estupidez (1785). Nele fica muito clara a leitura de que um mundo pós-pombalino era visto, por alguns desses libertinos, como uma era de retrocessos ao obscurantismo anterior ao reformismo. O poema foi feito na forma de uma narrativa heroico-cômica dividida em quatro cantos, cuja história conta o triunfo da deusa Estupidez, que fora antes destronada das “polidas nações europeias”, pelo avanço das ciências e das Luzes, como aparece no Canto I, mas que planeja retomar seu domínio sobre Portugal, começando justamente pela Universidade de Coimbra. A universidade do Mondego é ridicularizada ao longo da narrativa, bem como seus estudantes, lentes e, sobretudo, seu reitor, o Principal Mendonça.277 A Inveja, a Raiva, o Fanatismo, a Hipocrisia e a Superstição, personificadas, formavam o séquito 274 VILLALTA, Luiz Carlos. O Brasil e a crise do Antigo Regime português. Op. Cit. p. 195. DINES, Alberto. A Inquisição como farsa. In: FRANCO, Francisco de Mello [atribuído a]. Medicina Teológica. São Paulo: Editora Giordano, 1994. Coleção Memória. p. XX-XXII. 276 Ibidem, p. XXXIII. 277 No caso, José Francisco Miguel Antônio de Mendonça (1725-1808), que foi o quinto Patriarca de Lisboa a partir de 1786, e substituiu no cargo de reitor da Universidade de Coimbra a d. Francisco de Lemos de Faria Pereira Coutinho, que voltaria anos mais tarde (de 1799 a 1821). Tornou-se cardeal pouco tempo depois, em 1808. Sua estadia como reitor da Universidade foi entre 25 de outubro de 1779 e 2 de dezembro de 1785, sendo empossado somente em 30 de abril de 1780. Foi depois substituído no cargo por d. Francisco Rafael de Castro (1786-1799). MENDONÇA, José Francisco Miguel António de (17261808). The Cardinals of the Holy Roman Church. Disponível em: < https://webdept.fiu.edu/~mirandas/bios1788.htm>. Acessado em out./ 2018; Reitores da Universidade de Coimbra. Universidade de Coimbra; Disponível em: https://www.uc.pt/sobrenos/historia/reitores_xvii_xix. Acessado em mai./2019. 275 410 da Estupidez, auxiliando-a na retomada de sua glória. Esta obra é bastante estudada pela historiografia,278 e, dentro dos propósitos desta tese, centro-me na análise em alguns momentos, sobretudo relacionados a duas personagens, o Fanatismo e a Superstição. A primeira aparece, inicialmente, lamentando suas perdas na Europa daqueles tempos, diante do avanço da razão. Então o Fanatismo, que tomara Um ar sisudo e marcha compassada, Vendo reinar somente a Humanidade, De tristeza e rancor se despedaça; Suas máximas duras assoalha, Já entre o povo ou entre a sábia gente. (...) Minerva, que o ardil não desconhece, Nos ânimos infunde novas luzes; Luzes, que dissipando a fosca névoa Com que a reta razão manchada fica, Com próprias cores a Verdade pinta. Da gálica nação, ligeira e douta, Mil pragas vomitando, fogem todas. Iradas ainda mais ligeiras buscam A britânica gente; ataques novos Em conselho ali põem; ferve de novo Nos bravos corações, rancor funesto. Fulminam tudo, a toda a parte correm.279 Nessa parte do Canto I, o Fanatismo lamenta que a reta razão e os ânimos dos novos tempos o afastaram dos corações dos povos “da gálica nação, ligeira e douta”, isto é, da França, e da “britânica gente”. Porém, após os lamentos, é o próprio Fanatismo que sugere ao séquito da Estupidez que se avance naquele “País de toda a Europa o mais ditoso” para seus fins, que era Portugal.280 O mesmo Fanatismo tem um papel importante no Canto III, na sedução do reitor. Nesta parte, o Principal Mendonça havia preparado uma grande solenidade para se receber a Estupidez com toda a honra e, então, fala aos lentes e doutores da Universidade. Muito ilustres e sábios acadêmicos! Por direito divino e por humano, Creio que deve ser restituída À grande Estupidez a dignidade Que nesta Academia gozou sempre. 278 Um estudo mais completo a respeito do Reino da Estupidez e sua relação com o Período Mariano, no Reformismo Ilustrado português, pode ser lido em: VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do livro no mundo luso-brasileiro sob as Luzes. Op. Cit. p. 157-163. 279 FRANCO, Francisco de Melo. Reino da Estupidez (1785). São Paulo: Editora Giordano, 1995. Coleção Memória 21. p. 53-54. 280 Ibidem, p. 57. 411 Bem sabeis quão sagrados os direitos Da antiguidade são; por eles somos, Ao lugar que ocupamos, elevados. Oculta vos não é a violência Com que foi desta posse debulhada. Vós, testemunhas sois dos sentimentos Com que a vimos partir tão desprezada: Porém sempre, apesar do seu desterro Constante, tributei dentro em meu peito Homenagens devidas à que fora Na minha infância carinhosa Mestra E na velhice, singular Patrona.281 A isso se segue, depois de uma longa fala em que o Principal deprecia a ciência por ser produtora de heresias e blasfêmias, dentre outros pontos, o reitor sofre somente uma contraposição dada pelo personagem Tirceu – lente de matemática, no poema, o que pode ser uma alusão ao geômetra José Anastácio da Cunha ou ao então lente de prima em matemática José Monteiro da Rocha. Tirceu faz uma exaltação ao Marquês de Pombal e às ciências, sendo este um ponto importante que ressalta, também, a atuação do Fanatismo na narrativa do poema. Não é a glória vã de distinguir-me. Quem me obriga a encontrar a tantos votos Que, por serem conformes, talvez sejam Ao parecer de muitos, verdadeiros. A glória do meu rei, o amor da pátria, São dois fortes motivos que me impelem A dizer francamente quanto penso. Trazei, sábios ilustres, à memória, Aquele tempo em que contentes vistes Entrar nesta cidade triunfante O grande, invicto, o imortal [Sebastião José de] Carvalho [e Mello], Às vezes de seu rei representando; Daquele sábio rei, cujo retrato Inda agora me anima e me dá forças Para que, em seu favor, em sua glória, Derramando o meu sangue, exale a vida. Vistes ao grão marquês, qual sol brilhante De escura noite, dissipando as trevas, A frouxa Estupidez lançar ao longe; E erigir à ciência novo trono Em sábios estatutos estribado.282 Logo depois do impasse instaurado por essa única interpelação feita contra o reitor ao receber a Estupidez na Universidade, o Fanatismo, após tomar a forma “d’um pequeno rapaz”, “cujos ombros adornam duas asas”, então, atua de maneira decisiva ao 281 282 Ibidem, p. 75. Ibidem, p. 78-79. 412 forjar uma visão na qual o aconselha a ordenar aos estudantes, lentes e doutores que saíssem na tarde seguinte, para que se pudesse fazer as honras à Estupidez, o que o reitor executou.283 A Superstição também parece caracterizada com elementos que remetem, claramente, a uma religiosidade não regulada e excessivamente exteriorizada, compondo o séquito da deusa Estupidez, no Canto II, quando se instalam em Lisboa. Logo a Superstição em pé se põe, Mas fazendo primeiro mil momices: O chão prostrada por três vezes beija, Outras tantas, rosnando certas coisas, Faz sobre o coração quinhentas cruzes. Debaixo da camisa também tira Uma grande almofada que constava De muitas orações, muitas relíquias, Contra mal feitiços, contra a peste, E muitas contra a tentação da carne. Beija e rebeija o venerando Breve E, com os olhos para o céu erguidos, Com o mesmo se benze imensas vezes. Deste modo disposta, principia A dar conta fiel do que passara:284 Na sua fala, a Superstição ressalta seu desejo por retornar a Portugal, enfatiza não reconhecer mais, com a mesma precisão, aquele país no qual se sentira tão à vontade em épocas anteriores. Havia, ali, em relação à credulidade das pessoas, uma diferença entre o presente e o passado, iluminado pelo Marquês. Isso aparece na conclusão da fala, na qual, depois de uma longa descrição de uma sociedade excessivamente beata, repleta de frades, freiras e conventos, a Superstição diz que: Lisboa já não é, torno a dizer-vos, A mesma que há dez anos se mostrava. É tudo devoção, tudo são terços, Romarias, novenas, vias-sacras. Aqui é nossa terra, aqui veremos A nossa cara Irmã cobrar Seu reino.285 No poema, fica claro haver uma leitura possível do período pombalino – ali, um passado próximo – como tempo de prosperidade, que deveria ser guardado na memória. Esta memória envolvia uma leitura do presente, em que se identificavam obstáculos aos avanços de outrora, isto é, um verdadeiro retrocesso, um retorno ao atraso.286 Trata-se, claramente, de uma chave de leitura sobre o tempo de que os libertinos se valiam para 283 Ibidem, p. 82-83. Ibidem, p. 63-64. 285 Ibidem, p. 66-67. 286 ANTUNES, Álvaro de Araujo. Espelho de cem faces: o universo relacional de um advogado setecentista. São Paulo: Anablume/PPGH-UFMG, 2004. p. 142. 284 413 uma leitura crítica das instituições portuguesas do final do século XVIII. Tal chave de leitura era organizada num eixo que envolvia o “atraso”, observado na época presente, em contraposição aos avanços de um passado relativamente próximo. Uma religiosidade desregulada e a atuação dos clérigos – sobretudo relacionada à sua não inutilidade à república, por não trabalharem, e a uma perniciosidade, por espalharem fanatismos e obscurantismo – são tópicas que, a partir da observação do presente, reforçam, nas proposições, a ideia de época de retrocessos e de permanência de aspectos indesejáveis, que deveriam ter sido superados naqueles tempos de Luzes. Nessa chave crítica, na construção de tal visão do tempo, a Inquisição tem um destaque. A sua existência é questionada de maneira bastante aguda pelos libertinos. Cada vez mais, os tribunais de fé são vistos como excrecências de épocas de obscurantismo, que não mais deveriam existir, sob pena de se perpetuar um atraso percebido no presente. No entanto, é necessário fazer algumas breves ressalvas. A começar que não há indicações que havia alguma visão idealizada do pombalismo difundida entre os chamados libertinos. Pelo contrário, as leituras sobre Pombal e seu tempo como ministro divergiam entre eles. Além disso, a forma como o retrocesso é narrado no Reino da Estupidez, por mais que toque em temas pertencentes a realidades que ultrapassam a Universidade de Coimbra, indica uma percepção que surgiu a partir dela e que, salvo algumas similaridades com outras narrativas encontradas em processos e outros documentos, não parece ter tido uma difusão tão grande. É possível encontrar elementos que remetem à chave crítica analisada supra em denúncias como a feita contra Inácio José Pereira do Lago Marinho de Abreu, escrivão de abertura da alfândega, na cidade do Porto, feita por José Caetano Moreira, em janeiro de 1782. Nela, diz-se que o denunciado não crê em milagres, porque "são coisas da Natureza, e que a ele (...) parecia que não havia Céu, nem Inferno, e que não havia mais que este mundo, e o bem ou mal que cada um passava nesta vida". O mesmo escrivão foi denunciado também por Antônio Lourenço de Almeida. Este disse que, em setembro do ano anterior, Inácio de Abreu "(...) na Sexta feira de Passos próxima passada, perguntando o Denunciante ao Denunciado se queria ir visitar os Passos do Senhor”, respondeu ele, indagando: “que tenho eu que ir ver um homem que foi amarrado pelos Judeus, Castigado e morto por eles, por dizer que era Filho de Deus não sendo”? Acrescentou que o denunciado disse que, depois o “enterraram, e não ressuscitou como ele dizia, e esses que escreveram que ele ressuscitara, escreveram o que lhes pareceu”. Com isso, o denunciado insinuava que a ressurreição de Cristo era uma invenção 414 humana. Conforme a denúncia, "falando com o denunciado sobre a fuga do filho de Deus para o Egito”, este lhe dissera: “pois, se ele era Deus, para que se escondeu e fugiu, esse filho da puta, para o Egito?" Mencionou que o denunciado não ouvia missa nem guardava mais obrigações da Igreja, comendo carne em dias de preceito e nos dias da Quaresma, e costumava dizer que "não há Deus e, que se há Deus, quem é seu Pai quem o gerou?" Complementava, denunciando que Inácio de Abreu também teria respondido a esta sua indagação, dizendo que "esse homem velho a quem chamam Deus, que só a terra o poderia gerar". Ainda acusou Inácio de Abreu, dizendo que "ele não põe tudo isto [no caso, suas piadas e zombarias contra Deus] patente”, agindo dessa maneira “porque, em Portugal, costumam prender e castigar aos que falam estas coisas”. Acrescentava “que não havia Lei como a dos Ingleses” e que, “se ele estivesse em outra parte”, onde houvesse tolerância religiosa e liberdade de opinião, “falaria e diria o que entende". Zombava, ainda, de frades, da Bula Cruzada e da jurisdição papal. Dizia, ademais, segundo a denúncia, que "rezar era vício e que não se acostumasse a isso: e que melhor era ocupar em outra coisa o tempo que gastava em rezar”. Por fim, sustentava que “os Mouros eram tão bons como os cristãos em matéria de Religião: porque toda a Religião é boa” e “a escolha dela está na vontade livre do homem".287 Na denúncia contra Nuno Baracho, criado de D. Josefa de Montarroios, dada por Manoel dos Santos, em Alenquer, em janeiro de 1782, constam proposições segundo as quais a adoração aos santos era “história” e que ela deveria ser dada somente ao Santíssimo Sacramento da Eucaristia. O denunciado dizia, ainda, que “isto de Inquisição era uma mordaça para a gente não falar e dizer o que entende”, e “que a Lei de Deus era livre e que não eram preciso penas e castigos para a seguir, como em França e outros países [em] que seguia cada um o que melhor lhe parecia”.288 Segundo denúncia do dr. José Luiz da Costa, ouvidor da vila de Abrantes e que também fora juiz de fora da vila de Alenquer, essa mordaça que significava a Inquisição não impediu que José Luiz de Magalhães e Menezes dissesse, na presença de várias pessoas, que não havia Inferno, logo depois de um édito publicado pela Inquisição, na quaresma daquele ano de 1779.289 Em julho de 1779, em Lisboa, Júlio César Perogeli, preso nas galés, prestou denúncia contra outro preso chamado Lúcio José da Silva Bona, por "falar 287 ANTT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa.130º CADERNO DO PROMOTOR. Op.Cit. Fl. 339-348. 288 Ibidem, Fl. 430. 289 Ibidem, FL. 10. 415 atrevidamente do Santo Ofício". Na denúncia, o delator diz que o dito preso pretende entrar com uma queixa contra a Inquisição, por meio de seu procurador José Rodrigues. Ele, costumeiramente, falava contra os procedimentos do tribunal, dizendo que os inquisidores agiam com dolo e malícia nos seus procedimentos, e que muitos inocentes se encontravam presos, acrescentando que, à ocasião do falecimento do rei d. José I, saíram dos cárceres inquisitoriais muitos presos, todos inocentes. Ao final, o denunciante pediu providências para se evitar o escândalo "que o referido sujeito causa, com suas falsas queixas, pois é muito necessária para que, em alguns ignorantes da verdade, não haja alguma crença com as persuasões do dito, que é capaz de perverter até as pedras”.290 Em Camacha, também em Portugal, em 1780, o padre José de Freitas Espínola foi denunciado por pelo vigário Antônio Pestana. Ele teria colocado em dúvida os procedimentos do Santo Ofício, proferindo algumas murmurações, num dia em que se estavam lendo as sentenças de várias pessoas que foram penitenciadas pelos tribunais de fé. Ao ser questionado sobre elas pelo vigário, o denunciado respondeu-lhe: "para [...] vossa mercê dizer [que] aquele [é] um tribunal dos diabos porque procede sem a parte ser ouvida. Além disso, disse que a Inquisição teve por princípio "um homem com uma bula fingida, que depois foi aprovada”. O denunciante ouvira as proposições ao discutir com o padre denunciado.291 Essas denúncias, processos e falas dos libertinos, em seu conjunto, denotam um movimento que caracteriza o regime de historicidade dos libertinos. Nesse regime, no entendimento dos libertinos, a Inquisição, no último quarto do século XVIII, caminha para o nível do “intolerável”,292 valendo-me aqui da categoria sistematizada por Paul Ricoeur, apresentada no Capítulo 1. Os acusados de libertinagem, mais e mais, exprimem uma visão sobre aos tribunais de fé ancorada numa leitura que advoga sua incompatibilidade ao presente, com os valores sociais, civis e imperativos éticos daqueles “novos tempos”. Essa visão é definida de maneira dupla, por uma afirmação e por uma negação: na afirmação, defende-se a naturalidade da tolerância e da liberdade religiosas e, na negação, exprime-se uma abjeção aos procedimentos e, de resto, à própria existência do Santo Ofício. A pena e a trajetória do acusado e condenado por 290 Ibidem, Fl. 102. Ibidem, Fl. 289. 292 RICOEUR, Paul. Tolerância, intolerância, intolerável. Op. Cit. p. 174. 291 416 maçom Hipólito José da Costa sintetizam bem essa posição. Elas servem de exemplo para de representá-la. Pode-se tomar como ponto de partida para o enfoque da trajetória e pena de Hipólito a análise de Thaís Buvalovas. Ela investigou a trajetória do fundador e editor do Correio Braziliense ou Armazém Literário (1808-1822). Segundo Buvalovas, uma parte substantiva do aprofundamento de Hipólito em termos de posições políticas, sociais e religiosas, em boa parte amparadas num vocabulário político de cariz liberal, teve origem em sua passagem por Filadélfia, Boston e Nova Iorque, entre 1799 e 1801, por ordem de d. Rodrigo de Souza Coutinho a fim de coletar informações sobre mineração, agricultura e cultivo do inseto da cochonilha nas antigas colônias britânicas da América do Norte. A autora coloca em dúvida sua passagem pelo México, plano original de viagem estipulado pelo ministro do Príncipe Regente. Hipólito José da Costa Pereira Furtado de Mendonça nasceu na Colônia do Sacramento, na fronteira meridional da América portuguesa com a espanhola, em 1774, em um contexto marcado por disputas fronteiriças entre lusos e castelhanos. Isso levou a família de Hipólito da Costa a diversos deslocamentos, como o que resultou em breve exílio em Buenos Aires. Muito em torno dessa origem repleta de alguns percalços, a autora faz uma breve análise biográfica sobre o início da trajetória do periodista. De maneira crítica, ela o toma como membro de uma elite local ou elite colonial, sacudida pela constante instabilidade de condições materiais e de trânsitos diversos.293 Hipólito da Costa formou-se em Leis, Filosofia e Matemática em 1798, em Coimbra, num contexto em que se deu um importante desenvolvimento dos estudos das ciências naturais na universidade. Para Ângela Domingues, Coimbra, nesse contexto, foi um elemento central dentro de amplo investimento da Coroa em uma renovação cultural e científica portuguesa. Tal renovação envolvia o fomento de academias de ciências e de outros núcleos de formação, dos ensinos de Astronomia, Química, Matemática e História Natural. Passava também por um trânsito de professores estrangeiros em Portugal, bem como pelo fornecimento de meios técnicos para se realizarem viagens para realização de estudos e missões na África, América e Ásia, formando-se quadros para a administração e diplomacia portuguesas que, também, eram homens de ciência. Estes, por sua vez, formavam complexas “redes de informação” que permitiram “ao Estado português setecentista conhecer de forma mais aprofundada e 293 BUVALOVAS, Thais. Hipólito da Costa na Filadélfia (1798-1800). São Paulo: Hucitec, 2011. p.29- 60. 417 precisa os seus domínios”.294As chamadas “viagens filosóficas”, nas quais alguns naturalistas e estudantes formados em diversas ciências percorriam diversos territórios em busca conhecimentos das mais diversas áreas, consistiam em incursões de estudantes e homens de ciências de diversas áreas do conhecimento a diversos territórios, a fim de buscarem conhecimento sobre recursos naturais e, por conseguinte, explorar suas potencialidades econômicas. Elas colocavam em diálogo uma considerável diversidade de saberes e produção científica europeias do final do Setecentos e início do Oitocentos, e se davam sob o viés de uma busca de uma “felicidade”, no sentido iluminista do termo, entendida pela realização material visando ao bem comum, através do conhecimento útil ao comércio e artes, e à busca de meios considerados mais eficientes de exploração colonial.295 Viagens, como as de Hipólito da Costa aos Estados Unidos, segundo Diogo Ramada Curto, fizeram parte de uma “cultura diplomática portuguesa” no final do XVIII. À época, deu-se a reorganização de um modo de agir presente desde a Restauração e que associava o cosmopolitismo com a etiqueta cortesã, valorizando, em grande medida, a habilidade de observação de aspectos diversos de outros países. A isso, somou-se a inserção desses homens de ciências em redes de sociabilidade letrada e científica e em circuitos de circulação de livros, por toda a Europa e, em parte, fora dela. Acrescenta-se, ainda, o próprio entendimento de tais processos como parte da busca por modernização.296 A viagem de Hipólito da Costa para os Estados Unidos, dessa forma, pode ser entendida como uma parte da inserção do “brasileiro” nesse meio de homens de ciências, típico do final do XVIII e perfeitamente alinhado ao processo de busca por modernização portuguesa desenvolvido desde, pelo menos, a época pombalina. Retomando a tese central de Thaís Buvalovas, de que essa parte de sua trajetória significou muito para o futuro editor do Correio Braziliense, em termos de formação de posições – como o anti-escravismo e o anti-absolutismo – e de contato com valores liberais de matriz britânica,297 entendo que tal passagem também contribuiu muito na formação de alguns de seus pontos de vista, mais precisamente no que diz respeito à 294 DOMINGUES, Ângela. Para um melhor conhecimento dos domínios coloniais. Op. Cit. p. 20. Um estudo mais detido sobre o tema: BOSCHI, Caio César. “Um hábil naturalista”, Joaquim Veloso de Miranda. Op. Cit. 296 CURTO, Diogo Ramada. D. Rodrigo e a Casa Literária do Arco do Cego.pdf. In: ________. (Ed.). Cultura Escrita: séculos XV a XVIII. 1a ed. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa/ Imprensa de Ciências Sociais, 2007. p. 239–280. p. 249-251; _____________. Mercado e agentes do livro no século XVIII. In: _________. Cultura Escrita: séculos XV a XVIII. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa/ Imprensa de Ciências Sociais, 2005. p. 199–238. 297 BUVALOVAS, Thais. Hipólito da Costa na Filadélfia (1798-1800). Op.Cit. 295 418 defesa intransigente da tolerância religiosa, marcante em publicações que aqui serão analisadas. O Diário da minha viagem à Filadélfia, publicado pela primeira vez pela Academia Brasileira de Letras em 1955,298 traz anotações pessoais que cobrem parcialmente a passagem de Hipólito da Costa pelos Estados Unidos, em Filadélfia – então, capital do país, Boston e Nova Iorque, entre 1799 e 1801. São memórias, como dito, na forma de diário, que cobrem parcialmente a passagem de Hipólito da Costa por tais cidades entre dezembro de 1798, início da viagem, até dezembro de 1799. Logo no primeiro mês, Hipólito da Costa faz menção à maçonaria. Era o dia 10 de novembro de 1798, dia em que o futuro periodista ainda estava em viagem, que lhe provocou constantes enjoos e outros incômodos, como brigas entre a tripulação.299 Descrevendo o cotidiano da viagem náutica, ele fala da “tripulação da corveta”, constituída “de um capitão, um piloto, que é também contramestre, tem título ou tratamento de Mate, 7 marinheiros e 1 preto, cozinheiro”. Sobre este último, escreve: “segundo me disse o piloto, é maçom, o que eu inferi”.300 Seu contato com a maçonaria, como consta em seu processo inquisitorial, começou justamente nos Estados Unidos, ponto que voltarei posteriormente a analisar. Aqui, quero chamar a atenção para a centralidade do elemento religioso, na passagem do ilustrado brasileiro pela América do Norte. Por exemplo, em 23 de dezembro de 1798, diz Hipólito da Costa que, após escrever cartas para a Corte, foi à missa e elogiou a “decência e moderação da igreja”, onde identificou ornatos que remetiam à Companhia de Jesus.301 Chama muita atenção a avidez de Hipólito da Costa em observar e mesmo participar de cultos religiosos de diversas Igrejas, mesmo cerimônias não cristãs, ainda que em muitos momentos deixe claro seu cumprimento de preceitos católicos. Dois dias depois, no Natal, ele disse ter ido à igreja católica e ouvido o sermão do pároco, pela manhã, e, depois, à noite, a uma 298 COSTA, Hipólito da. Diário da minha viagem para Filadélfia (1798-1799). Rio de Janeiro: Publicações da Academia Brasileira de Letras, 1955. Para esta tese, foi utilizada outra versão, citada nas próximas notas. 299 Do dia 25/11/1798: “O muito balançar do navio quebrou uma pipa de vinho branco, o que se conheceu, era meia-noite, porque a água da bomba cheirava e sabia inteiramente a vinho. Foi o piloto examinar, e, encontrando a pipa, aproveitaram ainda um barril, porém, os marinheiros todos, e mesmo o piloto, furtaram e beberam tanto que, quando eram 4 horas da manhã, não havia nenhum capaz de pegar no leme, nem fazer algum serviço; às 8 da manhã brigaram uns com outros – e foi notável encontrar eu, dois, atrás da lancha, esmurrando-se um ao outro, com a cara e olhos sumamente ensanguentados, e ao tempo que um deu sobre o outro um formidável murro sobre o olho, este lhe lançou uma grande golfada de vômito sobre a cara. O navio faz tanta água hoje que trabalham ambas as bombas”. COSTA, Hipólito José da. Diário da minha viagem para Filadélfia (1798-1799). Brasília: Edições Senado Federal, 2004. Vol.33. Edição do Kindle. Posição 627-629. 300 Ibidem, posição 560. 301 Ibidem, posição 804. 419 igreja metodista. Entre outras coisas, apontou para a forma como elas arrecadam recursos com os quais fazem a "sustentação das igrejas e eclesiásticos de todas as religiões, e mesmo dos católicos", que consistia em se vender assentos para famílias inteiras nas igrejas, que pagariam por eles uma taxa por ano. O fato de haver assentos para todos os presentes também lhe chamou a atenção.302 Aos 14 de fevereiro de 1799, descreve com brevidade sua ia a um meeting de “anabatistas, vulgarmente chamados batistas”, comparando a Igreja em questão com a católica. Sobre a batista, disse que “esta igreja não tem altar”, e “o púlpito está onde nas igrejas católicas está o altar”. Sobre o culto, explica que consiste num homem que lia a Escritura numa cadeira, fazendo explicações.303 Ao fim de julho de 1799, relata seu contato com a “seita dos celibatários”, o que fez somente em “honra dos americanos”, sendo ela uma das mais antigas da Pensilvânia, segundo conta. Ele a descreve como uma seita onde “há espécies de conventos para homens e mulheres, onde vivem e se sustentam do trabalho de suas mãos e algumas terras que têm”. Segundo sua descrição, o celibato não é um mandamento da religião, mas os muitos impedimentos para o matrimônio resultam na maioria dos sectários serem solteiros.304 No movimentado dia 9 de março, dia em que visitou o magistrado Mr. F. Smith – citado, no processo contra Hipólito da Costa por Maçonaria, como quem o apresentou à sociedade305 –, visitou uma sinagoga, sobre o que faz o seguinte relato: 9 (de fevereiro de 1799). Hoje, estive na sinagoga dos judeus: eram 10 horas e por isso estava o ofício Divino acabado. A casa era quadrada, com bancos ao redor; em uma das paredes havia uma espécie de armário que, sendo aberto, vi que tinha dentro uns como candeeiros de prata, e o armário estava por dentro forrado de seda, e tinha cortinados ricos, cortinas vermelhas e forro branco, e galões d’ouro; o armário por fora era muito pouco ou nada decorado; na sumidade tinha um escudo d’armas feito em talha de madeira doirada e pintada, que tinha em cima uma espécie de coroa, e no escuto, que era azul, letras d’ouro em hebraico; diante havia uma pequena lâmpada; no meio da casa estava uma mesa alta forrada de vermelho, com duas cadeiras, de modo que quem se sentava nelas ficava justamente virado para o tal armário; (...) O único homem que ali encontrei me pareceu um sacerdote, por que foi abrir tal armário e procurar não sei o que, e tornou a fechar. Ele me disse que podia tornar sábado, às 9 horas da manhã, ou 6ª feira à noite.306 302 Ibidem, posição 799-809. Ibidem, posição 1047. 304 Ibidem, posição 2005. 305 Ibidem, posição 1127-1133; ANTT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de Hipólito José da Costa, proc. 17981. Fl. 140. 306 Ibidem, posição 1133. 303 420 Ele voltou à sinagoga no dia 16 do mesmo mês, fazendo uma descrição bem mais longa que a supracitada, entrando em pormenores do culto e dos frequentadores. Chamou-lhe atenção toda cerimônia, desde os ritualismos do rabino – a quem ele se referiu por “padre” – até o fato de que “os meninos soubessem ler hebraico”.307 Nas idas de Hipólito da Costa a diversas e igrejas e a uma sinagoga, durante sua passagem pelos Estados Unidos, não é possível observar uma propensão à tolerância religiosa. Não somente por isso, no caso. O espírito de curiosidade e de observação do estrangeiro, presente nas viagens filosóficas da segunda metade do XVIII, ao menos nesse aspecto, explica melhor tal procedimento. Porém, noutros detalhes, sua simpatia a uma sociedade onde há tolerância entre religiões faz-se bem mais visível. No seu diário, sobre o dia 12 de março de 1799, Hipólito da Costa diz que foilhe feita uma observação a respeito da tolerância civil e religiosa que existia nos Estados Unidos da América, sem mencionar quem a fez. Diz que “a revolução da América data de Carlos II de Inglaterra”, “porque os puritanos fugiram para a Nova Inglaterra, os quakers que se refugiavam em Pensilvânia e os católicos que se estabeleceram em Maryland (...) todos estes (...) impelidos pelas opressões que receberam no tempo” do dito rei “sempre tiveram uma tendência para a liberdade e para estabelecer a tolerância religiosa, pela falta da qual eles tinham sofrido muitos vexames.”308 Porém, aos 25 do mesmo mês, relata com certa estranheza o episódio em que um pastor luterano pede-lhe para não se divertir jogando florete, por ser a primeira oitava da Páscoa: Hipólito da Costa faz uma observação sobre haver uma tolerância do Estado – podem conviver todas as religiões –, mas uma intolerância no trato de uma com a outra, referente a um pastor querer obrigá-lo a observar um preceito da fé que ele não professa, como também no desrespeito de pessoas com os cultos das outras religiões.309 Juntamente com a tolerância, são constantes os elogios de Hipólito da Costa à pouca pompa dos cultos, como na descrição da missa, que foi já analisada acima. No dia seguinte à sua segunda ida à sinagoga, por exemplo, menciona o fato de que, no Domingo de Ramos, não houve procissão, e as “bênçãos de ramos” consistiram “de murta e louro”, “e os ramos se dividiram pelo povo, depois da missa, que parecia ávido de os querer alcançar”.310 E seu elogio à austeridade dos estadunidenses se estende à sociedade, no geral. Em 15 de julho, por exemplo, elogia o fato de, em Nova Iorque, 307 Ibidem, posição 1167-1194. Ibidem, posição 1157-1162. 309 Ibidem, posição 1224. 310 Ibidem, posição 1194. 308 421 não se darem dotes, “o que contribui muito para a igualdade de fortuna”, ao que complementa com a observação de que a “limpeza sem riqueza, nos vestidos das mulheres, é o mais nobre ornato” naquela sociedade.311 No geral, a tolerância religiosa e a austeridade nos cultos religiosos e no comportamento das pessoas parecem ser, em síntese, nas impressões de Hipólito da Costa, constituintes do que ele expressa ao dizer que o “sossego é o caráter geral da Nação”, com o que sintetiza suas observações e faz elogios sobre a América do Norte.312 Cotejando essas informações do Diário de Hipólito da Costa com a da documentação até aqui analisada, o que se vê é a proximidade entre um ideal de tolerância e a austeridade na prática da religião – no sentido de menos distinções e afetação no espaço coletivo –, sendo ambos os elementos vistos como aspectos positivos daquela sociedade. Ambos, ademais, complementando-se, fariam parte de uma sociedade pacífica e próspera. Trata-se de pontos que aparecem nas posteriores defesas que o ilustrado brasileiro fez da tolerância religiosa e, também, nos seus veementes ataques à Inquisição. Como é sabido, Hipólito José da Costa ficou preso nos cárceres da Inquisição por aproximadamente três anos. No ofício de 28 de janeiro de 1803, consta a ordem feita pelo deputado Manuel Estanislau Fragoso, do Conselho Geral do Santo Ofício, solicitando que ele fosse transferido da Intendência Geral de Polícia, que o prendeu para averiguação sobre envolvimento na francomaçonaria, para os cárceres da Inquisição.313 O documento é repleto de lacunas e não consta uma sentença por falta de um acórdão do Tribunal de Lisboa, havendo nele informações constantes às várias sessões de interrogatório, acontecidas entre 1802 e 1804. Por exemplo, Hipólito da Costa confessa que entrou na francomaçonaria em Filadélfia, como já foi mencionado, além de haver um breve detalhamento dos papeis que lhe foram apreendidos. Na documentação, aparece que a razão de ter sido preso foi a de ter negócios com a Grande Loja de Londres, em função de fazer parte da Grande Oriente Lusitano, indo para tanto a Londres sem um passaporte. Os inquisidores ainda o pressionaram, mostrando documentos que estariam entre seus papeis apreendidos, para que apontasse o envolvimento de outros portugueses na “sociedade dos pedreiros livres”.314 311 Ibidem, posição 1915. Ibidem, posição 969. 313 ANTT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de Hipólito José da Costa. Fl. 2-3. 314 Ibidem, Fl. 158-159. 312 422 Sobre seu envolvimento com maçonaria, confirmou que a conheceu na mencionada viagem, embora diga no processo que ela aconteceu em 1797. Seu primeiro contato, descreveu, deu-se em ocasião de um funeral de um membro da sociedade. Daí, passou a ter curiosidade sobre a maçonaria, em vista dos aventais, ritos e códigos observados durante parte da cerimônia. Hipólito da Costa disse que perguntou a um padre irlandês, que ali residia, se havia, na francomaçonaria, alguma prática contrária ao que ensinava a Igreja católica, pois havia lido os editais do Santo Ofício da Inquisição para denunciar seus sequazes. O padre lhe respondeu dizendo que não havia nada na maçonaria contrário ao Catolicismo, e a bula condenatória a ela promulgada pelo Clemente XII lhe parecia “antiquada”, porque “não compreendia a sua disposição, se não [n]os países em que se achava estabelecido o Tribunal do Santo Ofício”. Daí, disse que se tranquilizou e procurou um senador dos Estados Unidos, com quem se encontrou na ocasião, que era “pedreiro livre”, que o conduziu ao “grão mestre da lodge, chamado Smith”, na “loja número 59, na Filadélfia”, que era juiz de um tribunal, que cuidou para que ele entrasse na “seita”.315 Na segunda audiência, chegou a dizer, ao ser interrogado pela Inquisição, que sabia das proibições baixadas pelos papas, mas desconhecia as proibições de alçada civil e que não havia jurisdição das autoridades portuguesas sobre essa matéria, dessa maneira.316 Sobre os papeis aprendidos consigo, Hipólito da Costa disse que foram “dois tombinhos em doze escritos na língua francesa sobre maçonaria, dois papeis com a cópia de uma constituição maçônica tirada por letra de um amigo francês”, identificado apenas por “Hauther”, além de um resumo dos graus maçônicos, de suas palavras e de papéis avulsos.317 Uma descrição em primeira pessoa do processo, seguida de violento ataque à Inquisição de Portugal, está nas páginas da Narrativa de perseguição, originalmente publicada em língua inglesa em 1811, tributária da, já discutida no Capítulo 3, tradição de narrativas críticas contra os tribunais de fé que se espalharam pela Europa ao longo da Idade Moderna. Os anos em que permaneceu preso são descritos por Hipólito da Costa, que ressalta diversos aspectos do procedimento inquisitorial, suas várias e cansativas sessões, o sofrimento do cárcere – no que se inclui a insistência do autor em ressaltar seus vários problemas de saúde, agravados pela prisão –, bem como o mau procedimento dos inquisidores. Após isso, faz uma reflexão mais longa para justificar 315 Ibidem, Fl. 140. Ibidem, Fl. 154. 317 Ibidem, Fl. 158. 316 423 sua fuga de Portugal após sair do cárcere, reforçando suas pesadas críticas à Inquisição e a incompatibilidade desta última com os valores civilizacionais. Sobre o procedimento da Inquisição, há passagens importantes, que descrevem seus agentes das piores maneiras possíveis. Manuel Estanislau Fragoso, com quem prestou depoimentos nos vários interrogatórios, é descrito como alguém que se mostrava como um homem gentil, mas que, na verdade, se movia pela pura hipocrisia. Numa longa nota de rodapé, Fragoso é descrito por Hipólito da Costa como um homem cuja “imoderação aparente era tão preternatural como artificiosa, de maneira que o conheci logo que o havia o mais refinado hipócrita”. Ele era “um inquisidor de mui limitados conhecimentos, mas de sutil penetração e de muito maior dissimulação”. Era, segundo o autor, “bem aceito pelo Inquisidor Geral, o que necessariamente lhe pressupõe uma má alma”. Hipólito, ainda, insinua que a amizade dele com homens poderosos se dava em função de ascender socialmente.318 Outro inquisidor que recebe uma nada lisonjeira descrição do editor do Correio Braziliense é o cardeal Cosme da Cunha, que segundo ele “era um velhaco”, que criara um regimento moderado, o de 1774, “para aplacar o Marquês de Pombal, que meditava o fim desta hidra”, que era a Inquisição.319 Toda essa hipocrisia o vitimara durante os anos em que permanecera no cárcere, mesmo tendo se confessado já na primeira sessão. Ele diz que os inquisidores procederam dessa forma para que denunciasse outros portugueses, considerando-o diminutivo por não o fazer.320 Declara que “nada irrita os inquisidores tanto como um homem que raciocina”, ao defender que vários dos argumentos que os inquisidores usaram contra si não se sustentavam, ou se baseavam em falsos conhecimentos, do que se defendia por meio do uso da razão.321 A Inquisição, segundo ele, vitima toda a sociedade portuguesa, sobretudo em seu tempo, no qual se acreditava que ela agia de maneira mais moderada que nas épocas anteriores. Para ele, o abrandamento dos procedimentos era um engodo. Por exemplo, a não impressão da lista de penitenciados impediu que se somassem e tivessem conhecimento do número de vítimas da Inquisição. Além disso, os inquisidores usavam diversas artimanhas para burlar o fim do segredo processual. Por fim, os inquisidores apenas não mandam queimar mais as pessoas por necessidade, não mais conseguindo mobilizar a justiça secular para isso, 318 COSTA, Hipólito José da. Narrativa da perseguição. Brasília, DF: Fundação Assis Chateaubriand, 2001. p. 42. 319 Ibidem, p. 118-119. 320 Ibidem, p. 59. 321 Ibidem, p. 62. 424 mas matam pessoas nos cárceres, no mau tratamento, nas prisões perpétuas, entre outras formas tão cruéis quanto o cadafalso.322 Dessa maneira, para Hipólito da Costa, a forma de aplicação da justiça inquisitorial é, por ela mesma, injusta, arbitrária e feita somente para reproduzir injustiças e manter a sede de vingança e poder dos inquisidores. Ela é, também, a maior responsável pela religião ser desacreditada, não o sendo os filósofos, maçons e livres pensadores, tal como os inquisidores defendiam. O próprio Cristianismo é, segundo Hipólito da Costa, essencialmente vilipendiado pelo uso da força para manter a fidelidade dos súditos. Assim, diz que “as crueldades da Inquisição não são o resultado da má alma deste ou daquele inquisidor, mas vício intrínseco e inerente à corporação”.323 Sintetiza esse ponto dizendo que: A instituição da Inquisição, a crueldade com que os inquisidores perseguem os que supõem serem de opiniões diferentes das suas, faz pasmar; não são nada para eles os tormentos e a morte do seu inimigo, queimam-no vivo, infamam-lhe a memória, perseguem os filhos, e toda a posteridade desses infelizes, privam-nos das heranças de seus pais, infamam e desonram os parentes, e finalmente no dia em que fazem o auto da fé, ao mesmo tempo que os miseráveis estão exalando o espírito no meio das chamas, os inquisidores estão das suas janelas regalando os olhos com este espetáculo e banqueteando-se com os seus convidados à custa dos bens das miseráveis vítimas, e tal é o costume da Inquisição.324 O argumento anti-Inquisição traz em si uma defesa da tolerância religiosa como natural, útil ao Estado e à fé. O comércio e os exércitos, por exemplo, são ambientes onde pessoas de fé diferentes convivem e realizam ações úteis, o que o argumento dos inquisidores de que “o trato com diferentes religiões já torna o católico suspeito de fé “e, ao mesmo tempo, também serve, por analogia, como argumento para não se condenar a maçonaria pelo mesmo motivo.325 Em algumas páginas do Correio Braziliense, vê-se a defesa de algumas dessas ideias. Na resenha e crítica da obra de Jean Pons de Nimes, Réflexions philosophiques sur la tolérance religieuse, sur le libre exercice de tous le cultes, e sur l’Inquisition (1808), Hipólito da Costa critica alguns apontamentos do autor contra o Catolicismo, embora concorde em grande parte com a moderação dele e com a tolerância religiosa para a conservação do Estado. Hipólito da Costa concorda com a premissa do autor, segundo a qual a tranquilidade pública só é 322 Ibidem, p. 120-122. Ibidem p. 102-106. 324 Ibidem, p. 90. 325 Ibidem, p. 65-68. 323 425 possível quando se consegue tolerância em matéria de religião.326 Boas leis civis, nessa linha de argumentação, só seriam positivas nessa matéria caso não se ocupassem da resolução de querelas teológicas e da busca de verdades, mas da função de resolver questões morais e políticas atinentes à felicidade dos povos. Ainda que venha a ser desejável haver uma única religião no Estado, isso seria impossível, e se o mesmo tentasse reduzir seus súditos a uma só fé, não faria fiéis, mas hipócritas que fingiriam segui-la.327 Alguns pontos de discordância aparecem quando o autor francês aponta o Catolicismo, especialmente o ibérico, como naturalmente intolerante. Hipólito busca, por exemplo, na literatura e teologia portuguesas do século XVI, um contraponto a essa premissa do autor, deixando claro que, no seu ponto de vista, a intolerância, mais que produto de uma religião em específico, resulta da perversão da religião pelos vícios de autoridades civis e eclesiásticas.328 Hipólito da Costa ainda tem uma crítica ao autor francês a respeito da Inquisição. Para o editor, Jean Pons de Nimes falha por não destacar a ação da autoridade civil, e somente a dos eclesiásticos, nos capítulos contra a Inquisição. Ainda assim, critica os tribunais do Santo Ofício, porque a ação do clero deveria reduzir-se à aplicação dos sacramentos e, da autoridade civil, em matéria de religião e opiniões, a manter a tolerância necessária à paz pública. Os tribunais de fé, assim, perturbam esse ideal. Isso porque não garantem a liberdade e tolerância religiosas – pelo contrário, agem contra a moral cristã, tentando impô-la através da força –, e representam uma ação da autoridade civil contrária à paz pública, pois os magistrados seculares e o ministério da Igreja agem fora de seus domínios.329 No artigo intitulado O Investigador Portuguez contra os frades, Hipólito da Costa responde a um artigo anônimo do periódico O Investigador Portuguez, em que é feita uma defesa do fim do clero regular. Nela, existem algumas críticas contra si, no que toca a uma possível contradição entre o editor do Correio Braziliense, por não defender este mesmo ponto, mas defender a extinção do Santo Ofício. Ele argumenta longamente sobre a utilidade do clero regular para o Catolicismo ao longo da História e que o eventual mal que ele venha a obrar mereceria alguma emenda, e não a extinção. A Inquisição era diferente, ao que sintetiza dizendo que: A Inquisição deve extinguir-se; os frades devem reformar-se. Tal é a nossa opinião; porque estas instituições são diferentes, e portanto o 326 Correio Braziliense ou Armazém Literário. Janeiro de 1811. Vol. VI. Londres: Impresso por W. Lewis, Paternoster-row. p.331. 327 Ibidem, p. 334. 328 Ibidem, p.471-473. 329 Ibidem, p. 475. 426 que se diz a respeito de uma, não é aplicável ao que se julga da outra. A Inquisição é oposta aos princípios do Cristianismo; os frades seguem a perfeição Evangélica. A Inquisição pretende sustentar a religião de Jesus Cristo pelo fogo e ferro; os frades pela prédica e persuasão. A Inquisição exercita um poder imenso sobre a vida, liberdade, e bens dos cidadãos: os frades não têm jurisdição sobre ninguém. O respeito que se presta à Inquisição é extorquido pelo temor de seus rigorosos castigos: o respeito que os povos têm aos frades é voluntário e fundado na opinião que se tem da bondade de suas instituições. A Inquisição sustenta-se dos tributos, que o povo é forçado a pagar, e dos bens daqueles, que a mesma Inquisição condena: os frades vivem das ofertas espontâneas, que lhes fazem. 330 Evidencia-se, assim, na pena de Hipólito da Costa, um ponto de vista que é compartilhado em grande medida pelos libertinos do final do século XVIII, o de que a Inquisição já não deveria fazer parte de seu mundo. Sua existência então seria signo de um atraso e o fato de ainda existir, em si, constituiria um problema. Além disso, a tolerância religiosa afirmava-se como uma necessidade para a conservação e modernização da sociedade, embora ela estivesse ainda muito distante de ser conseguida. Considerando a disputa em torno do campo religioso, a tolerância religiosa, por mais nítida que estivesse a essa altura, entre finais do XVIII e início do XIX, como imperativo para uma realidade que se desejava moderna, situava-se entre um indefinido porvir e um passado, identificado com o reformismo pombalino, que se deu de maneira incompleta. Tratava-se de uma nostalgia crítica, referenciada num presente repleto de signos de obscurantismo, com a figura do Marquês de Pombal, no que tocava a tolerância religiosa. Além disso, há um ponto inquietante na impressão que Hipólito da Costa deixa na conclusão de sua Narrativa de Perseguição: o eclesiástico, aqui tomado como a figura das forças do obscurantismo, “é um camaleão”, conseguindo se manter “viscoso, com sua cobiça e se vingar de seus inimigos”, mesmo quando lhe é subtraído o poder. Assim, com o mínimo poder de influenciar a realidade, a intolerância, obscurantismo e as trevas da Inquisição poderiam voltar, sendo falso que os tempos de Luzes do agora lhes impedirão de tolher a liberdade de pensar e crer novamente.331 Dessa maneira, concluo, havia na época uma visão segundo a qual a tolerância religiosa vivia sob a tensão entre permanências de um obscurantismo do passado e as expectativas de um porvir, que poderia ser melhor ou, pelo contrário, até pior que o “agora”. Desse modo, a Correio Braziliense ou Armazém Literário. Janeiro – Junho 1815. Vol. XIV. Londres: Impresso por W. Lewis, Na Officina do Correio Braziliense, St. John’s Square, Clerkenwell. 331 COSTA, Hipólito José da. Narrativa da perseguição. Op. Cit. 127-128. 330 427 liberdade e a própria tolerância eram entendidas como objetos de constante e ininterrupto combate. Tal combate, por sua vez, dava-se em nome de princípios éticos universais e premissas evangélicas de um Cristianismo extirpado dos vícios do arbítrio, que o igualavam à tirania. Ao mesmo tempo, tal combate ressoava ideais das Luzes. Com isso, conjugavam-se um Cristianismo bafejado pelas Luzes e o pensamento ilustrado em geral. 428 Considerações finais O tema central desta tese – a tolerância religiosa – tem sempre despertado interesse nos mais diversos contextos históricos. Sua discussão parece ser inesgotável. Tomando aqui um raciocínio que foi desenvolvido nas últimas páginas desta tese, no qual Hipólito José da Costa dizia, na sua Narrativa de perseguição, que o “espírito inquisitorial” permanece vivo ainda em épocas em que instituições como a Inquisição não mais existam, tolerância e intolerância parecem ser parte de uma dialética própria das relações humanas. Por essa chave, entende-se que nenhum avanço rumo a uma maior tolerância no agora em relação ao passado – entendendo a própria tolerância como valor central das sociedades democráticas modernas – será absoluto ou irreversível. O seu par oposto, a intolerância, estará sempre latente, pronto para avançar e reassumir o destaque que teve anteriormente. Por conseguinte, entender tal dialética entre tolerância e intolerância aponta para esta última como algo que também jamais será absoluto ou definitivo. Assim como tudo na história, o obscurantismo e todos os valores contrários à liberdade humana são superáveis, ainda que isso leve muito tempo. Em termos religiosos, tocando no tema da tolerância e intolerância, observo aqui a complexidade de um atributo que muitos pesquisadores ao longo da história atribuíram ao pensamento iluminista, que é o otimismo. A documentação indica que não se trata de algum tipo de leitura que indica um porvir melhor que o agora em termos absolutos ou numa perspectiva metafísica. As promessas da modernidade de avanços no sentido de uma maior tolerância são sempre, também, produto de ação e agência humanas. Nunca são dados, são conquistas, que devem constantemente ser reafirmadas. Refletir sobre esse tema historicamente, analisando-se como que pessoas de outros contextos lidaram com questões que parecem ser, sempre, tão atuais para quaisquer sociedades, foi possível entender como que pessoas da Idade Moderna, dos estratos sociais mais variados, pensavam um futuro sempre mais tolerante e libertário que o presente em que viveram. É justamente esse ponto que melhor nos fornece os arcabouços necessários para compreendermos problemas próprios de nossas realidades, enfrentando-os. Afinal, o grande legado do pensamento das Luzes é a ideia de que somente a ação e o engajamento do uso da razão no espaço público é capaz de consolidar os valores modernos e a tolerância nas relações humanas, combatendo o fanatismo, o irracionalismo e todas as ideias e estruturas antimodernas. 429 No contexto brasileiro atual, vemos vários elementos constituintes do que historicamente se define por intolerância que assumiram forma de um projeto político. Mais que isso, a antimodernidade tornou-se projeto de poder, ocupou a esfera pública e ganhou consciências. Trata-se de um conjunto de valores e racionalidades organizados politicamente que são um tanto semelhantes aos que foram combatidos e denunciados por diversos pensadores iluministas, coevos ao recorte da pesquisa. A materialização mais visível disso, hoje, se vê ocupando a presidência da república. O obscurantismo, no momento em que finalizo a escrita desta tese, parece onipresente, aparecendo, por exemplo, no culto demonstrado por diversos militantes e autoridades públicas às ideias conspiratórias de um Olavo de Carvalho, ex-astrólogo e autoexilado nos Estados Unidos. Ele também pode ser visto nos ataques às universidades, seja por meio dos cortes de verbas, seja com redes absurdas de mentiras intencionadas a caluniar suas instituições, professores e estudantes. O obscurantismo pode ser visto também nos ataques feitos contra as ciências em si, por meio dos mais vulgares negacionismos históricos, que do ponto de vista hermenêutico e epistemológico são idênticos às irresponsáveis negações da crise climática ou de campanhas anti-vacinação. Há uma ignorância que grassa na sociedade e na política brasileira, e que compõe um conjunto de discursos permeado por um visceral fundamentalismo religioso, acompanhado por grande violência narrativa, que não raras vezes ultrapassa o próprio campo discursivo. Enfim, assim como no poema atribuído a Francisco de Mello Franco, O Reino da Estupidez – analisado no Capítulo 4 desta tese – , parece que a própria deusa Estupidez colocou a faixa presidencial no seu menos inteligente sequaz, e o restante de seu séquito – formado por Inveja, Raiva, Fanatismo, Hipocrisia e a Superstição – se espalhou nos diversos âmbitos da sociedade brasileira, dando sinais estridentes de sua onipresença de hora em hora nos noticiários políticos e nas redes sociais. Assim como na contemporaneidade, homens e mulheres da Modernidade vislumbravam, de forma mais ou menos clara, um mundo onde fosse possível ter liberdades quanto a seus corpos, espíritos e mentes. Mais ainda, idealizavam uma realidade em que pudessem expressar tais liberdades na vida em comum, em sociedade, e não houvesse a necessidade de se existir de maneira dividida entre o espaço particular e o coletivo como forma se proteger. De fato, não alcançamos de forma plena esse mundo ideal. Em grande parte, porque entre a tolerância que temos no presente e um 430 ideal de maior tolerância num futuro, há sempre muitas refrações, vistas desde as mais tímidas resistências a se tolerar o diferente, até nos reacionarismos mais virulentos, que buscam sentido num passado inventado para uma retórica bélica cujo princípio, meio e fim são o de suprimir a própria existência do outro. Esta tese teve por objetivo principal investigar a difusão das ideias sobre a tolerância e liberdade religiosas no mundo luso-brasileiro – com destaque a Portugal, mas sem perder de vista algumas dinâmicas do espaço colonial brasileiro – no período das Luzes, entre o final da primeira metade do século XVIII até o as duas primeiras décadas do XIX. A hipótese central defendida aqui é a de que, em meio a múltiplos embates e formulações em torno de um ideal de tolerância religiosa, formado no pensamento iluminista e com raízes anteriores no mundo luso-brasileiro, paralelamente a um processo de secularização, desenvolveram-se, de um lado, uma vertente mais radical da defesa da tolerância religiosa e, de outro, uma vertente ancorada numa perspectiva moderada e “modernizada” de Catolicismo. Estas, de forma complementar, desenvolveram-se em meio a processos complexos, fluidos e diacrônicos, e neles evidenciaram-se disputas em torno de um campo religioso, alterando-o e reestruturando-o, com importantes repercussões nas realidades políticas e culturais, percebidas em todos os estratos da sociedade. O que se viu ao longo da análise aqui desenvolvida é que tolerância religiosa, no contexto da Idade Moderna, se não foi defendida por parte expressiva da cultura letrada – já que chegou mesmo a ser combatida por considerável parte dela – integrou os debates sobre as liberdades de consciência e de religião, desenvolvidos na incipiente esfera pública que ali se formava. Acrescenta-se que, fora dessa cultura letrada, esses debates se desenvolveram para além das balizas colocadas pelas autoridades e tomaram rumos diversos entre agentes dos mais variados, articulando o que havia de mais recente na cultura letrada das Luzes com aspectos tradicionais da mentalidade e religiosidade ibéricas. A tolerância religiosa teve um espaço importante dentro de um amplo processo de disputas em torno do religioso que marcaram o processo secularizador em Portugal e também nos espaços coloniais, onde se criou uma matriz de tolerantismo bastante particular dentro do Iluminismo católico. Esta conjugava leituras de mundo, do tempo histórico e de realidades diversas do mundo lusófono. Analisar como que homens e mulheres da Idade Moderna enfrentaram os fanatismos e obscurantismos de sua época, portanto, também tem muito a nos dizer sobre nós mesmos, enquanto sociedade. Fazer isso consiste num exercício de se 431 observar uma realidade distante a fim de vislumbrar possíveis chaves de compreensão sobre problemas bastante vivos na contemporaneidade, que se se renovam e se atualizam constantemente. Embora a tolerância religiosa apareça em documentação anterior, grande parte da historiografia busca respostas para origem de tópicas e argumentos que tenham originado e sustentem seu sentido contemporâneo na Idade Moderna. A época das Reformas e do Renascimento, marcada por conflitos como as guerras de religião, além da reativação dos tribunais do Santo Ofício, trouxeram o problema do convívio com outras religiões, no Ocidente, de maneira um tanto inédita. Os processos de confessionalização, a necessidade de acordos mínimos entre Igrejas de maneira a se contornar as guerras, a ampliação de visões de mundo com a conquista das Américas, as descobertas científicas e outros pontos abalaram as formas de se ver a realidade até então. A defesa da tolerância religiosa, nesse contexto, foi elaborada e reelaborada desde as suas matrizes populares até vasta literatura, que envolve de textos literários às polêmicas religiosas, além de tratados filosóficos e obras de prosa de ficção. Ela tornouse, assim, um problema religioso e político, filosófico e cultural, que envolvia diversos âmbitos, que permeavam identidades ontológicas de sociedades inteiras e projetos de vida em comum. Durante a Idade Moderna, a dissolução progressiva do ideal de organização de Estado baseado na fórmula “um rei, uma fé, uma lei”, dá-se quando ocorre a separação entre as justificações políticas e as justificações teológicas da intolerância, distinção dentro da qual se intercalam várias realidades, nos planos institucionais, no das mentalidades, das tradições culturais, e muitos outros. Em boa parte da história do Ocidente cristão, no plano político-institucional, sobretudo, em que houve um entrecruzamento da unção eclesiástica e da necessidade da sanção política, observam-se dois fenômenos que dão à noção de tolerância seu sinal negativo de abstenção. Nele, observa-se a perda gradual, pelo poder político, da unção eclesiástica e sua dessacralização, seguida da perda da sanção do braço secular pela instituição eclesiástica, ou seja, seu poder de coerção física. A partir daí, ao longo da Modernidade e sobretudo no contexto das Luzes, constrói-se o “tipo-ideal” de organização social contemporânea, do qual procede a noção de tolerância pautada na ideia de uma abstenção de se exigir e interditar o diferente, princípio que é político e sem a unção do religioso. Esse processo a foi marca central dos vários processos de secularização 432 ocorridos em diversas partes do mundo ocidental. Dessa secularização derivaram-se modos de se pensar as sociedades não necessariamente laicos, mas pautados por uma razão que cada vez mais prescindia da tradicional fórmula que unia o corpo político ao corpo religioso. Durante a Idade Moderna forma-se, também, grande parte do substrato dos ideais acerca de uma necessidade, do ponto de vista moral e ético, de abstenção do Estado em interditar assuntos de natureza religiosa ou de opinião, bem como as várias correntes de pensamento, comportamentos, entre outros. Assim, paralelamente à ideia de tolerância pelo negativo, idealizam-se noções de que deveria haver espaços livres de expressão de crença e de pensamento, aspectos da realidade humana que não seriam da alçada de controle da autoridade civil e nem, necessariamente, representariam riscos para ela. Assim, noções de liberdade específicas e plurais foram elaboradas e se disseminaram juntamente com outra elaboração da ideia de tolerância de sinal positivo, pela qual se deveria afirmar determinada liberdade, que se tornou fundamento éticopolítico e, também, filosófico e teológico, de sociedades que se pensavam civilizadas e modernas. Formou-se, igualmente, seu oposto, uma noção de caráter negativo, a partir da qual sinais de intolerância tornam-se cada vez menos toleráveis, no sentido de remeterem ao atraso e obscurantismo. Durante a Ilustração, as diversas tradições e correntes que tiveram lugar no curso do desenvolvimento de ideais de tolerância religiosa foram relidas, reapropriadas e levadas às esferas de debate e de decisões políticas, religiosas, filosóficas e culturais das mais diversas. Ainda que, muitas vezes, às Luzes fiquem entendidas como gênese de um ideário moderno de tolerância e de liberdades de pensamento e religião, coube-lhes apenas o trabalho de realizar uma reorganização, feita por agentes dos mais diversos e por núcleos cosmopolitas e pulverizados, dentro e fora da Europa. O contexto iluminista reorganizou tópicas e ideias que eram muito anteriores a ele e que foram elaboradas nem sempre pelos círculos eruditos mais tradicionais. Ainda que os philosophes tivessem grande importância na difusão da defesa da tolerância religiosa como necessidade civilizatória, pensadores de diversos outros círculos – tais como diplomatas, eclesiásticos e religiosos de diversas religiões e igrejas, estudantes, os chamados libertinos e várias pessoas de diversos meios e estratos sociais – foram agentes bastante ativos desse processo. Não se pode, por sua vez, tomar as tradições populares de tolerantismo como externas ou inferiores a essa realidade. Quando se pauta, como o fez esta tese, pela ideia de campo religioso, remetendo a categoria elaborada por Pierre Bourdieu e trazida a trabalhos sobre a Idade Moderna de Roberto 433 Di Stefano, torna-se necessário entender que tais tradições delimitavam diversos dos problemas religiosos enfrentados nessas elaborações que marcaram as Luzes. A ideia de que uma religião verdadeira não poderia ser alcançada e vivida por meio da coação, pois gerava e arraigava uma noção disseminada de haver uma religião privada, sincera e verdadeira, oposta a outra externalizada em função de um teatro social e, por conseguinte, para agradar agentes da vigilância e da repressão religiosas, já existia muito antes da Ilustração. Conforme o recorte espacial adotado nesta tese, que abrange Portugal e, em menor medida, o Brasil, é fundamental levar em consideração a dimensão católica das Luzes. Entender as matrizes de um Iluminismo Católico português permite identificar algumas possibilidades para se analisar a Ilustração portuguesa, sobretudo levando-se em consideração o lugar do Catolicismo em seu interior. Foram apresentados e discutidos aspectos do que se define como um Iluminismo Católico. As discussões feitas nos Capítulos 1 e 2 sustentam a conclusão de que a dicotomia feita entre o Iluminismo e a religião é incorreta, uma vez que grande parte dos debates do dito contexto sociológico e intelectual partiu de problemas formulados dentro de percepções de realidade que não prescindiram da religião. Tomar essa relação Iluminismo x religião, possibilita, por um lado, evitar a generalização e a conotação pejorativa, muitas vezes presente em uma concepção específica de “Luzes católicas” que é ancorada na oposição entre razão e religião, em que à segunda confere-se uma espécie de papel de “contaminador” de um processo marcadamente secular, que seria o Iluminismo. De outro, evita-se também a desconsideração do lugar da religião no próprio processo das Luzes portuguesas, a quais muitas vezes se ocuparam de diversos temas e problemas de fundo absolutamente religioso. Considerando os casos especificamente português e luso-brasileiro, a forte presença de agentes católicos e de questões oriundas do Catolicismo – tais como os conflitos de alçada entre monarca e papa, o jansenismo, o regalismo, o antijesuitismo e as críticas ao clero regular, a necessidade de haver ou não uma Inquisição, entre outros – não os relega a uma condição inferior a outros desenvolvimentos das Luzes. Pelo contrário, apenas indica trânsitos e especificidades do universo luso e diversas inserções de vários dos seus agentes no contexto das Luzes, bem como seus processos de reformismo. Dessa maneira, a tolerância religiosa, na cultura erudita portuguesa de meados do século XVIII, ainda que não tenha sido defendida abertamente na maioria das vezes, 434 teve lugar, sendo articulada a algumas tópicas. É preciso dizer que tal cultura erudita esteve marcada por um substantivo dirigismo cultural, estando fortemente alinhada e a serviço do reformismo empreendido pelo Marquês de Pombal. Ela se aproximava de debates que existiram em diversos outros contextos europeus das Luzes, sobretudo ao longo do reformismo do Marquês de Pombal. Na obra de pensadores como Antônio Nunes Ribeiro Sanches, Luís Antônio Verney, d. Luís da Cunha, aparecia, de maneiras diversas, um ideal de religião vincado numa “sã teologia”, fiel ao Catolicismo e contrária ao que se definia como fanatismo, identificado com os exteriorismos e excessos encontrados no chamado “barroco”. Aparecia também nas discussões a respeito de se reformar o Santo Ofício e os órgãos de censura de maneira a se realizar tal ideal ilustrado de Catolicismo, extirpado de qualquer coisa que lembrasse a irreligião ou formas imoderadas de professá-lo. A necessidade de se reformar Portugal, para retirá-lo de um atraso, quando as demais nações europeias também traziam consigo alguns pontos da defesa iluminista da tolerância, uma vez que a intolerância prejudicava o comércio, afastando estrangeiros “hereges”, trazia, por exemplo, rediscussões sobre a necessidade de se rever a condição dos cristãos novos. Isso se relacionava à sua expulsão da Península Ibérica devido à Inquisição e à consequente fuga de seus cabedais e também ao entendimento segundo o qual a divisão entre cristãos novos e cristãos velhos seria sediciosa segundo um ideal regalista. Isso implicava ainda a própria discussão, que aparece ao longo da Ilustração lusa, sobre a condição do clero regular, especialmente a Companhia de Jesus. No Iluminismo, no caso luso-brasileiro, o clero regular, no geral, e em específico, os jesuítas, constituíram mais e mais “antimodelos” de modernidade em campos variados, como o religioso, o econômico, político e outros, sendo criticados fortemente na documentação. Eles, como tópico discursivo, aparecem nos escritos dos letrados do período pombalino. Em tais escritos, vê-se uma articulação bastante significativa entre sua atuação em Portugal e a tópica do atraso, além da ideia de uma forte repercussão de um conspiracionismo, particularismo e sectarismo, contraposto ao ideal centralizador do regalismo. Além disso, de fundo, apareciam com vigor argumentos que buscavam conciliar o Catolicismo com a razão ilustrada, em que pontos como o empirismo eram valorizados, por exemplo, em relação à defesa de um amplo exame das Escrituras na instrução do clero, além da necessidade de uso da persuasão racionalmente fundamentada – e não do dogmatismo ou da pura e da simples repressão à “heresia” – para se converter “heréticos”. 435 Porém, ideias mais radicais de defesa da tolerância religiosa desenvolveram-se paralelamente e para fora de qualquer dirigismo. Como já foi dito, existia um substrato de tolerantismo vindo de estratos populares e que delimitava de maneira significativa as disputas do campo religioso. No Capítulo 3, foi discutido que o homem da Idade Moderna viveu no que bem definiu Lucien Febvre como um “mundo de teólogos”, ou seja, um universo cultural em que questões como o pós-vida ou a materialidade da alma eram objetivamente debatidos, e desses embates derivavam muitas chaves de leitura necessárias para suas representações do mundo. O processo de secularização de que o reformismo pombalino tomou frente, indiretamente, forneceu diversos elementos novos para ideias em defesa de maiores liberdades de pensamento e em matérias religiosas. Com ele, tópicas como da injustiça das perseguições inquisitoriais ou dos prejuízos que a Inquisição causava para a própria religião foram reorganizados e tomaram espaço no ambiente público, em formação. Os trânsitos de estrangeiros em Portugal e de portugueses em contextos estrangeiros também são importantes para se entender tal processo de reelaboração de ideias sobre a tolerância religiosa. O contato com contextos religiosos distintos rearranjou esquemas antes fixos de tolerância e intolerância para muitas pessoas, tornando-os mais móveis aos seus olhos. A presença de agentes, tais como as primeiras lojas maçônicas instaladas em Portugal, assim como de obras como as do Cavaleiro de Oliveira, contribuiu de maneira a colocar a tolerância religiosa e as críticas à Inquisição como constituintes de uma narrativa crítica, que aproximava sentimentos e ideias intimamente identificadas com a religião às tópicas secularizadas. Ao fim do século XVIII, como foi analisado no Capítulo 4, a figura dos libertinos aparece com maior destaque. Entendidos, no período, como aqueles que envergam um arquétipo que alia uma crítica universal, que perpassa a moral, a religião e a monarquia absoluta, suas sociabilidades, marcadas pela liberdade no falar e disputar sobre diversos pontos, os libertinos se fizeram presentes em Portugal e na América portuguesa. A defesa da tolerância religiosa apareceu em suas proposições, em grande medida, amparada numa percepção específica do tempo, calcada em grande parte sobre a tensão entre um reformismo incompleto de um passado recente e a urgência da tolerância na modernidade, identificada com o porvir. A Inquisição e outras formas de cerceamento da liberdade de fé e de opinião foram colocadas progressivamente no campo do intolerável. Ao mesmo tempo, sua extinção, tornou-se um pressuposto civilizatório. Os libertinos tornaram-se agentes formuladores e divulgadores de uma 436 defesa da tolerância que tomou parte de um processo amplo de corrosão de valores do Antigo Regime, de forte teor crítico às suas instituições. 437 Referências bibliográficas Artigos e capítulos de livros ABREU, Laurinda. As relações entre o Estado e a Igreja em Portugal, na segunda metade do século XVIII - o impacto da legislação pombalina sobre as estruturas eclesiásticas. In. FARIA, Isabel Leal de; BRAGA, Isabel Drumond (orgs). 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Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Carta de denúncia de d. Maria de Barbosa du Bocage contra José Diogo, proc. 14684. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Carta do Promotor Bernardo Figueiroa Barbudo Seixas sobre a ré Maria Madalena Salvada, proc. 16463. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Confissão de Inácio José Aprígio da Fonseca, proc. 13556. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Correspondência de Antônio Manuel Félix, proc. 13801. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Denúncia contra Cipriano da Costa, proc. 13539. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Denúncia contra Francisco José, proc. 38/0785. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Denúncia de Lourenço Ferreira, proc. 1561. 469 Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Denúncia contra o tenente Hirmógenes e outros, proc. 13.541. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Denúncia do padre João Dias Pereira no Brasil., mç. 61, n.º 8. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Denúncias contra Francisco Luís de Mariz Sarmento, proc.13977. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Minuta da apresentação e confissão do frei Tibúrcio José da Rocha, proc. 16435. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Pedido de informação feito pelo secreto do Santo Ofício de Lisboa à Inquisição de Coimbra, sobre o frei Tibúrcio José da Rocha e do frei Eleutério, proc. 13490. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de Aleixo Escribot, francês de nação, proc. 1900. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de Antônio de Morais, proc. 2015. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa Processo de Doutor José Vieira Couto, proc. 12957. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de Feliciano de Oliveira, proc. 5344. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de Henrique de Jesus Maria, proc. 6239. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de Hipólito José da Costa, proc. 17981. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Processo de Jerónimo Francisco Lobo. Tribunal do Santo Ofício, proc. 6111. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Processo de Joaquim de Amorim e Castro e de Luís Tavares dos Santos, proc. 7035. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de João Baptista Brace, proc. 4189. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de João Constantino Matos, proc. 7120. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de João Custon, proc. 10115. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de João Guibert, proc. 9694. 470 Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de João Tomás Brulé, proc. 10683. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de José António da Silva Freire, proc. 9069. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de José António da Silva, proc. 13365. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de Maria Madalena Salvada, proc. 9276. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de Luís Mourão, proc. 5636. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de Manuel Galvão, proc. 13367. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de Miguel Gregue, proc. 9840. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de Nicolau Tolentino Sales, proc. 13436. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de Rodrigo Gree, proc. 5168. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de Rodrigo Sodré Pereira, proc. 1810. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Processo de Valério Antônio Barreto, proc.12.513. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo do bacharel João da Costa e Sousa, proc. 3250. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Processo do padre Anastácio dos Santos, proc. 9070. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo do padre Boaventura de Santiago, proc. 9066. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo do padre Jacinto José Coelho, proc. 9068. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Processo do Padre João Pedro de Lemos Montes, proc. 6661. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Sumário contra Cipriano José Barata de Almeida e Marcelino Antônio de Sousa, proc. 13865 471 Arquivo Histórico Ultramarino (AHU) 1758, agosto, 12, rio Pardo. AHU-Santa Catarina, cx. 3, doc. 2 1758, agosto, 12, rio Pardo. AHU-Santa Catarina, cx. 3, doc. 2 AHU_CU_0-21, Cx. 2, D. 90; AHU-Santa Catarina, cx. 3, doc. 37. AHU_CU_021, Cx. 3, D. 180. AHU-Santa Catarina, cx. 2, doc. 19 Mídias online “Army of God” Anthrax Threats. CBS News, November 9, 2001. Disponível em: https://www.cbsnews.com/news/army-of-god-anthrax-threats/ . Acessado em jan./2018. Attentat de Charlie Hebdo: il y a trois ans, l’horreur au coeur de Paris. Rfi – Le voix du monde. 07/01/2018. 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BNL < http://purl.pt/12183/3/>. Acessado em jun./2018. 473 Figura 2: Contracapa do poema épico-polêmico Triumpho da Religião, de Francisco de Pina e de Sá e de Mello. Digitalizado por Google Books e disponível em: < https://books.google.com.br/books?id=gqRbAAAAcAAJ&hl=ptBR&authuser=0&pg=PP1#v=onepage&q&f=false> . Acessado em jun./2018. Figura 3- Frontispício da versão, também em inglês, das memórias de John Coustos, na versão publicada em 1820. À esquerda, uma ilustração sobre a chegada do lapidário suíço á Inquisição de Lisboa. COUSTOS, John. The Mysteries of Popery Unveiled in the Unparalleled Sufferings of John Coustos at the Inquisition of Lisbon: To which is Added the Origin of the Inquisition, and Its Establishment in Various Countries, and The Master Key to Popery. By Anthony Gavin, one of the Roman Catholic priests of Saragossa. Hartford: printed for the Publisher R. Reynolds & H. Thompson, 1820. Digitalizado por Google Books e disponível em < https://books.google.com.br/books?id=QIIXAAAAYAAJ&hl=ptBR&authuser=0&pg=PP6#v=twopage&q&f=true> Acessado em jul./2018. Figura 4- Ilustração sobre uma das seções de tortura contra Jonh Coustos. Ibidem, p. 137. Figura 5- Capa da segunda impressão. ZARAGOZA, Bruno, fr. (OMS). Instruccion católica y convencimento racional de los heterodoxos y libertinos, compuesta sobre um sermon panegírico, dogmático y moral del Apóstol San Pedro. Cuenca: por d. Fernando de la Madrid. Año 1804. Digitalizado por Complutense University Library of Madrid. Disponível em Europeana Collections https://www.europeana.eu/portal/pt/record/9200110/BibliographicResource_100012661490 5.html?q=libertino. Acessado em jul./2018. Figura 6- Figura, seguida do início do texto do Catéchisme, logo após a Oraison à Sainte Madaleine. THÉROIGNE DE MÉRICOURT, Anne-Josèphe (atribuído a). Cathéchisme Libertin à l’usage des filles de joie et des jeunes demoseilles qui se décident à embrasser cette profession. Sur la copie imprimée à Paris, aux dépens de la veuve gourdan, 1792. Digitalizes by Google. Coleção Americana. Disponível em Archive.org: < https://archive.org/details/catchismelibert00unkngoog>. Acessado em mai./2018. Outras mídias Monty Python'sLife of Brian. Dir. Terry Jones. Produção: John Goldstone. Escrito por: Monty Python. Cinema International Corporation (UK), Orion Pictures/ Warner Bros. (US), 1979. 93 min 474