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Quase todos os dias em Sergipe uma menina de 10 a 14 anos é violentada e fica grávida. O estado tem a 2ª pior redução na taxa de fecundidade no Nordeste nessa faixa etária

LIZ BARRETTO E PRISCILA VIANA, da Mangue Jornalismo

No ano passado, Sergipe registrou 4.272 casos de gravidez em adolescentes, sendo que em 5,33% desses casos (228), as meninas tinham entre 10 e 14 anos. Os dados revelam ainda que somente neste ano (até junho), já ocorreram 234 casos de estupro contra crianças de 0 a 14 anos, sendo 143 entre 10 e 14. Nessa faixa etária, a gravidez se trata de uma violação, já que crianças menores de 14 anos são consideradas vulneráveis e não têm a maturidade suficiente para consentir uma relação sexual, de acordo com a legislação brasileira.

Segundo levantamento da Associação Gênero e Número, divulgado em maio de 2023, Sergipe é o estado nordestino com a 2ª pior redução na taxa de fecundidade entre crianças de 10 a 14 anos. Esse índice de violência só caiu apenas 9% no período entre 2017 e 2021. A pior redução foi no Maranhão, 2%.

À primeira vista, essa diminuição pode significar avanço, mas, se compararmos aos índices de redução de outros estados nordestinos – que chegam a até 27% na Paraíba -, é perceptível que o progresso vem em passos lentos, com poucos esforços. Além de ter a segunda menor taxa de redução da fecundidade entre crianças de 10 a 14 anos do Nordeste, Sergipe está na sétima pior colocação do Brasil.

Em meio a esse triste cenário, quais medidas têm sido adotadas para alterar essa realidade e proteger a infância das meninas sergipanas? Nessa reportagem, a Mangue Jornalismo busca algumas respostas sobre os procedimentos adotados para proteger as vítimas e como evitar novos casos.

As marcas do abuso

Esses números mostram a insistente presença da violência sexual infantil, que gera na criança impactos psíquicos e físicos muitas vezes irreparáveis. De acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), a violência infantil pode resultar em consequências como lesões físicas, infecções sexualmente transmissíveis, ansiedade e depressão. Além disso, as crianças podem adquirir comportamentos agressivos ou antissociais, abuso de substâncias ilícitas, comportamentos sexuais de risco e práticas ilícitas.

Karen Sales, mestra em Psicologia Social pela Universidade Federal de Sergipe (UFS) e que já atuou no apoio às vítimas de violência sexual, afirma que diversos efeitos são observados nas crianças que passam por essa violência. “Os comportamentos eram os mais variados possíveis, algumas delas chegavam com medo, outras não compreendiam o que estava acontecendo e algumas achavam que não era violência pois foram seduzidas e os agressores as presenteavam”, explica a psicóloga.

Para a profissional, o sentimento de culpa era frequente nas vítimas. “Muitas vezes elas se sentem culpadas, já que a partir da revelação dela, ela fez a mãe chorar, foi para a delegacia, passou pelo corpo de delito e por uma série de procedimentos, então ela se sente responsável por aquele sofrimento”, ressalta Karen.

Nos casos de gravidez precoce, os impactos são ainda maiores, comprometendo a saúde da mãe e do feto. Segundo a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS/OMS), a gravidez na adolescência continua a ser um dos principais fatores que contribuem para a mortalidade materna e infantil e para o ciclo de doenças e pobreza.

Além dos casos registrados, devido à falta de apoio da família, despreparo dos profissionais e até a naturalização do abuso, muitas dessas violências sequer são registradas, tornando mais difícil mensurar o real número de vítimas. A delegada Josefa Valéria, da Delegacia de Atendimento a Grupos Vulneráveis (DAGV), já lidou com diversos casos de gravidez precoce e todos resultaram em aborto. Segundo ela, a maioria dos agressores é do convívio familiar da vítima, como pais e padrastos.

No Brasil, ocorrem seis internações diárias por aborto envolvendo meninas de 10 a 14 anos que engravidaram após serem estupradas, de acordo com dados d Sistema Único de Saúde (SUS). O procedimento é invasivo e causa danos imensuráveis à saúde mental da vítima.

Educação transformadora

Em meio a essa triste realidade, a educação sexual é vista pelos profissionais da área como uma das formas mais eficazes de garantir a proteção das crianças, já que, através dela, é possível dar a informação necessária para que as vítimas identifiquem seus agressores.

Para a psicóloga Aurea Rodrigues, mestra em Psicologia Social e doutora em Educação pela UFS, o caminho para erradicar o problema é investir na educação sexual.

“Primeiro, precisamos acabar com o falso discurso e, até violento, de que educação sexual é ensinar pornografia para crianças. Educação sexual é ensinar para as crianças os limites de seus corpos, a reconhecer inclusive seus próprios limites, identificar situações de violência, construir com elas um espaço de confiança. A educação sexual dentro das escolas, com professores capacitados para tal contexto, é imprescindível para mudarmos essa realidade”, explica Aurea, que atua há 11 anos com o acolhimento de crianças e adolescentes vítimas de violações de direitos.

Aurea também aponta que o cuidado e o acolhimento da família são imprescindíveis para lidar com a situação de maneira a minimizar os impactos emocionais das vítimas. “Como a maioria das violências são intrafamiliares, normalmente há conflitos. Há famílias que rompem os laços, inclusive. A relação da família, o modo como ela vivencia a situação é imprescindível para a superação da situação. Receber apoio, ser acolhida sem julgamentos, ter um ambiente onde a criança se sinta segura é um caminho importante para a superação”, explica a psicóloga.

“Várias vezes chegaram crianças e adolescentes que começaram a compreender que estavam passando por uma situação de violência quando tinha educação nas escolas sobre isso. Já atendi crianças que sofreram violência por anos e só descobriram depois de uma fala da professora”, afirma a psicóloga Karen Sales.

Além da educação das vítimas, é importante pensar em políticas públicas eficazes. O atendimento humanizado dos profissionais de saúde, a melhora no processo de denúncia e a devida punição aos agressores contribuem com o fim desse cenário de violência.

Para a assistente social Inácia Brito, que atua na área, é preciso que haja um esforço coletivo para combater a violência sexual infantil. “É importante trazer essa temática para os espaços públicos. É necessário a articulação intersetorial entre todas as políticas, para que esse grande mal possa ser erradicado. É um processo que requer uma união de esforços do poder público e da sociedade”, disse ela.

Outras áreas envolvidas no combate a essa tragédia diária

Em fevereiro deste ano, a Secretaria de Estado da Saúde (SES) promoveu uma campanha em diversos municípios durante a Semana Nacional de Prevenção da Gravidez na Adolescência. Para além de campanhas de conscientização, a gravidez de crianças de até 14 anos deve ser encarada como abuso, e é dever do estado proteger as crianças de qualquer tipo de agressão.

Em casos como esse, as vítimas são encaminhadas para a maternidade Nossa Senhora de Lourdes, em Aracaju, onde é realizado o procedimento do aborto e também está localizado o Centro de Referência no Atendimento Infantojuvenil de Sergipe (CRAI), especializado para crianças vítimas de violência sexual, onde é realizado o atendimento médico, psicológico e fazem o exame pericial.

De acordo com a SES, esse centro “atende crianças e adolescentes vítimas de violência. O serviço envolve os órgãos de saúde, assistência social e segurança pública, para evitar a revitimização da criança, buscando a especialização do serviço, a desburocratização do atendimento e levantamento real dos dados para intensificação de ações que combatam esse tipo de crime e, sobretudo, assistência psicológica”.

Ainda de acordo com o órgão, outras ações realizadas, como “discussões periódicas do Grupo de Trabalho de interrupção lícita na gestação, ações de qualificação profissional das equipes que acolhem essas pacientes por meio do telessaúde, conscientização social através da campanha de mobilização Nacional “Faça Bonito”, que visa conscientizar a sociedade sobre abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes, ações vinculadas ao Programa de Saúde Escolar, com foco na educação sexual e infecções sexualmente transmissíveis”.

A Secretaria de Estado da Assistência Social e Cidadania (Seasc) em Sergipe também atua nesse campo. De acordo com Jorge Villas-Bôas, superintendente do Departamento de Inclusão e Direitos Humanos, a Seasc, “vem desenvolvendo um trabalho de reestruturação de todas as suas coordenações que tratam sobre políticas públicas para as mais diversas populações que necessitam da assistência do Estado em função do situação de vulnerabilidade, inclusive a Coordenadoria de Direitos da Criança e do adolescente”.

Ainda segundo o superintendente, são realizados diálogos constantes junto a todos os conselhos e comitês para construção “de soluções que possam gerar ações efetivas e que se transformem em resultados positivos, sobremaneira em relação a este problema tão crucial, trazido nesta pauta”.

* Esta reportagem passou por revisões e atualizações necessárias às 11h30 do dia 17 de julho de 2023.

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