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Sergipe lidera gastos com segurança pública no Nordeste. Contudo, parte do “investimento” levou o estado a ser o 2º na região onde a polícia mais mata

CRISTIAN GÓES, da Mangue Jornalismo

Nos 31 dias do mês de julho passado, pelo menos 17 pessoas foram mortas “em confronto” com as polícias em Sergipe. Elas se juntaram a mais 110 vítimas que perderam a vida, de janeiro a junho deste ano no estado, também em operações de agentes da segurança pública e que sempre resultaram em “troca de tiros” ou “revide a injusta agressão”.

Julho, por exemplo, começou com uma chacina. No dia 8, no bairro Industrial, em Aracaju, quatro jovens foram mortos pelas forças policiais. Alegou-se mais uma vez “confronto”. Testemunhas dizem que foi execução. O Ministério Público jura que vai apurar. O que teria causado essa chacina? A suspeita do roubo de uma corrente de um policial. Esses casos não são isolados. A Mangue Jornalismo publicou reportagem em 24 de julho, com um pequeno histórico da letalidade policial no estado. A matéria foi Polícia de Sergipe matou quase 700 pessoas em três anos e meio alegando “confronto”. A maioria dos mortos pelos agentes do Estado é negra e jovem.

Em média, 200 pessoas morrem em “troca de tiros” com a polícia de Sergipe (Foto: Pixabay)

Para relembrar: no ano de 2020, agentes de segurança pública mataram em Sergipe 196 suspeitos de crimes, alegando “troca de tiros”. Em 2021, esse número subiu para 210. No ano passado, a SSP/SE manteve o alto número, fechando 2022 com 175 óbitos. Todos esses dados são oficiais. Essa política recorrente de “confronto” levou Sergipe a ficar entre os primeiros colocados no Brasil onde a polícia mais mata nessa circunstância.

No anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) de 2022, Sergipe era o 2º mais violento nesse quesito no país. Na pesquisa deste ano , o estado figurou na 4ª colocação e na 2ª do Nordeste em letalidade policial, perdendo para Bahia. Nem no ano passado nem nos seis primeiros meses de 2023, nenhum agente de segurança pública morreu em serviço.

A professora do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e uma das maiores especialistas nesse campo no Brasil, Andréa Depieri, avalia que os dados sobre a segurança pública em Sergipe e revelados pelo FBSP/2023 “são absolutamente preocupantes, especialmente em face das estatísticas referentes à letalidade policial”.

Para Depieri, “é absolutamente imperativa a adoção de medidas que possam conter a letalidade policial. É possível avançar por meio do estabelecimento de protocolos claros relativamente aos padrões permitidos de uso da força”.

Em 2022, Sergipe foi o 4º estado no Brasil onde a polícia mais mata em “confronto” (Foto: Freepik)

Sergipe: um dos que mais mata e o que mais investe em segurança

Ao mesmo tempo em que Sergipe tem uma das polícias que mais mata no Brasil justificando “confronto”, o estado foi o que mais gastou proporcionalmente (per capita) com segurança pública no Nordeste em 2022, segundo o estudo do FBSP, mesmo tendo, de 2021 para 2022, reduzido os valores com esse segmento em 20%.

Em valores nominais, Sergipe gastou com a rubrica “segurança pública” mais R$ 1,2 bilhões em 2022, valor muito maior que o empregado por estados como Tocantins, Piauí, Acre, Roraima e Amapá. Quando o valor gasto é dividido por habitante, o estado de Sergipe é o que mais gastou com segurança no Nordeste em 2022.

No ano passado, foram gastos R$ 581,52 com segurança pública por cada habitante em Sergipe. Abaixo, na sequência, vem o estado de Alagoas (R$ 519,19). O estado que menos “investiu” nessa área foi o Maranhão (R$ 304, 36). Veja tabela a seguir:

Elaborado pela Mangue Jornalismo a partir de dados do FBSP 2023.

Esses números podem indicar uma conta trágica e que não fecha: muitos desses gastos que deveriam ser usados para promover segurança de todo população foram utilizados em operações policiais letais, isto é, que resultaram em perdas de vidas e insegurança.

Assim como Sergipe, o estado do Amapá é uma prova de que essa conta não fecha. O Amapá é o 1º lugar no Brasil onde a polícia mais sob a justificativa de “troca de tiros”. E é exatamente o Amapá o estado que mais gasta no país nessa área, R$ 1.236,64 per capita.


Governo de Sergipe reduziu gasto com Inteligência em 100%

Chama atenção nos dados do FBSP/2023 o fato do Governo de Sergipe, de 2021 para 2022, ter reduzido em 100% os gastos com “informação e inteligência”. Em valores, saiu de R$ 7 milhões nesta rubrica para quase zero, menos de R$ 3 mil, o que pode indicar uma opção política para ações diretas, apostando no combate à criminalidade pelo “confronto”, abrindo mão do uso de inteligência investigativa.

Dennis Pacheco e David Marques, pesquisadores do FBSP, lembram que “o confronto faz parte da atuação policial e o uso da força é constituinte da profissão. Contudo, a desproporcionalidade do uso da força está evidente em todos os índices. Algumas polícias são muito mais violentas que outras. Amapá, Bahia, Goiás, Rio de Janeiro e Sergipe seguem sendo as polícias que mais fazem uso abusivo da força no país”, revelam eles.

E mais, “jovens negros, majoritariamente pobres e residentes das periferias, seguem sendo alvos preferenciais da letalidade policial”, completam os pesquisadores. Além disso, a grande maioria das vítimas mortas em “confronto” não tem nome revelado nem pela Secretaria de Segurança Pública nem pela imprensa que, por sua vez, apenas reproduz informações da SSP/SE.

Jovens negros, majoritariamente pobres, seguem sendo alvos da letalidade policial (Foto: Freepik)

Apenas no mês passado, nas mortes em “confronto”, as vítimas sequer têm os nomes divulgados: dia 8, quatro no bairro Industrial, em Aracaju; dia 12, um morto no Ponto Novo, Aracaju; dia 12, Centro de Aracaju, dois mortos; dia 13, um morto em Itabaiana; dia 14, um morto no Jardim Centenário, Aracaju; dia 17, em Japoatã, um morto; dia 25, dois mortos em Itabaiana; dia 26, um morto em Maruim; dia 26, em Rosário do Catete, dois mortos; e dia 31, um morto em Tobias Barreto.

Para a professora Andréa Depieri, é fundamental tornar pública e transparente a apuração dos eventos/abordagens que tenham resultado em morte de agentes das forças policiais ou de civis. “As autoridades locais devem se comprometer a buscar soluções e a implementar boas práticas, a exemplo das câmeras corporais nos uniformes dos servidores policiais”, defende a pesquisadora.


Faltam dados e sobram dúvidas sobre apurações dos órgãos de controle

Quantos inquéritos foram abertos para apurar as operações que resultaram em “confronto” e mortes de “suspeitos”? Quais delegacias fazem isso? O que faz a Ouvidoria da SSP/SE, na qual o ouvidor é coronel da reserva? Quais apurações fazem os promotores de Justiça do Estado quando tomam conhecimento de mortes em “confronto”? Quantas apurações chegaram ao Judiciário? Ausência das respostas para esses e outros questionamentos pode passar a impressão de impunidade.

Por meio de nota enviada para Mangue Jornalismo, a SSP/SE afirma que “todas as ações policiais com resultado morte são devidamente apuradas e encaminhadas para o Ministério Público e Poder Judiciário que analisam todas as circunstâncias e legalidade da operação que resultou em morte”. A nota diz que “existe um sistema de controle interno que é exercido pelas próprias polícias através de suas corregedorias e o controle externo exercido pelo Ministério Público o qual acompanha a atuação das forças policiais. Não existe nenhuma morte em decorrência da ação policial que não haja investigação e análise de sua legalidade pelo MP e Poder Judiciário do Estado de Sergipe”.

Sergipe reduziu em 100% gastos com inteligência policial de 2021 para 2022 (Foto: Pixabay)

Sobre a letalidade policial, a SSP/SE entende que “a grande motivação dos CVLIs (Crimes Violentos Letais Intencionais) no estado é a guerra do tráfico de drogas. A letalidade policial é um fenômeno complexo e possui diversas facetas que não devem ser apenas resumidas em números. Em muitos casos, as operações são realizadas em áreas de alta criminalidade em desfavor de criminosos que confrontam com as equipes policiais e resistem à prisão”.

O promotor de Justiça do Controle Externo da Atividade Policial, Deijaniro Jonas Filho, disse em contato com a Mangue Jornalismo que busca agir dentro de seus limites. No dia 21 de julho, ele esteve reunido com o comando da Polícia Militar para discutir “a padronização da abordagem policial no trabalho ostensivo dos agentes da segurança pública, com o objetivo de aprimorar o serviço prestado à sociedade e auxiliar o fluxo processual”.

Sobre a chacina de quatro jovens no bairro Industrial em uma operação da polícia, o promotor disse que expediu ofícios à SSP/SE e ao Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), solicitando informações a respeito da ocorrência policial, os nomes dos policiais que participaram e procura saber se havia decisão judicial respaldando a operação.


“Não estamos em guerra”. Uso da força deve ser limitado e ter parâmetros

A professora e pesquisadora Andréa Depieri analisa que o controle da violência, monopolizada pelo Estado se coloca, desde sempre, como uma questão central para as democracias. “Há um conjunto de normas jurídicas, internacionais e nacionais que estabelecem parâmetros para o uso da força. Mais do que isso, há um conjunto de medidas, que são amplamente conhecidas, sobre o controle da violência armada em cenário de não conflito, ou seja, circunstâncias em que não se está em guerra”, completa. Depieri é categórica: “o Brasil não está em guerra, ainda que se fale em ‘guerra às drogas’ e que, nas últimas semanas, para além dos dados apontados no anuário do FBSP, tenhamos acompanhado ações que tiveram por saldo um elevado número de ‘civis mortos’. Chacinas sempre são apresentadas com a utilização de uma gramática de guerra, talvez para justificar a barbárie, mas não, não estamos em guerra – o que significa que a Segurança Pública é obrigada a usar força de forma limitada e dentro de parâmetros preestabelecidos”.

Chacinas são apresentadas com o uso da gramática de guerra (Foto: Freepik)

CNDH recomenda a governos uso de câmeras na atividade policial

Depois de “operações de vingança” nos últimos dias das polícias dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia, o Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) aprovou recomendação aos governos estaduais para a adoção de medidas pelo respeito ao direito à vida e para impedir chacinas e uso abusivo e excessivo da força policial no Brasil. Uma das medidas é o uso de câmeras em todas as ações ostensivas das polícias.

Em Sergipe, em 8 de junho de 2022, o então deputado estadual Iran Barbosa apresentou na Assembleia Legislativa uma indicação (Nº 580) ao Governo do Estado para adotar “todos os atos administrativos necessários para a implantação da ‘câmera corporal policial’ em todos os agentes de segurança pública no Estado de Sergipe, seja ele civil ou militar”.

Em 15 de setembro do ano passado, a Promotoria de Justiça do Controle Externo da Atividade Policial já tinha expedido uma recomendação para a SSP/SE promover estudos e análises de impacto, com o objetivo de implementar Câmeras Operacionais Portáteis nas atividades ordinárias das polícias. O promotor estipulou um prazo de 30 dias para que a SSP/SE informasse as medidas que serão adotadas. Quase um ano depois, nenhuma câmera foi instalada nos uniformes dos agentes de segurança pública em Sergipe.


Algumas estratégias eficazes para o exercício da atividade policial

Andréa Depieri, professora de Direito na UFS, afirma que, para além de Sergipe, quando pensa sobre a Segurança Pública no Brasil, a imagem que vem à cabeça é a de “um enorme elefante branco na sala. Não dá para não ver. É urgente a tarefa de repensar a modelagem das polícias no Brasil e seus funcionamentos institucionais”, defende.

De forma resumida, Depieri apresenta abaixo algumas estratégias que são reconhecidas como eficazes para o exercício de uma atividade de policiamento responsável:

1 – USO PROPORCIONAL DA FORÇA – devem ser fixadas diretrizes claras sobre a utilização da força em cenários diversos, estabelecendo-se protocolos prévios para abordagem e ação, o que inclusive protege os servidores policiais;

2 – CONDUTA ÉTICA – os padrões éticos esperados daqueles que desempenham a atividade policial são rigorosos por princípio, uma vez que esses funcionários públicos têm a prerrogativa de usar a força contra a população. Assim, sua ação deve ser imparcial e absolutamente dentro da lei, combatendo-se a seletividade e seu enviesamento racial;

3 – TRANSPARÊNCIA – é importante fornecer informações acerca da alocação de recursos e dos resultados da atividade policial, bem como detalhar e investigar incidentes ocorridos durante as operações;

4 – SUPERVISÃO, PRESTAÇÃO DE CONTAS E ACOMPANHAMENTO INDEPENDENTE – é fundamental supervisionar internamente a atividade policial, criando mecanismos permanentes de avaliação, mas também garantir acompanhamento independente externo;

5 – REVISÃO E MELHORIA DOS PADRÕES DE AÇÃO – os repetidos episódios de “troca de tiro” ou de “revide a injusta agressão” precisam ser compreendidos, revistos, pensados, até mesmo para a segurança dos policiais – quando se pensa na importância de investigar uma chacina, não se trata unicamente “de punir ou excluir a punibilidade dos responsáveis”. Mais do que isso, trata-se de rever a ação para que ela não se repita com um enorme saldo de mortos e risco para os policiais; além disso tudo, claro, é preciso treinamento, capacitação, condições adequadas de trabalho e definição prévia dos modelos de policiamento a serem adotados em cada localidade e circunstância.

Luiz Eduardo Soares, antropólogo e cientista político, um dos mais importantes especialistas em segurança pública do Brasil, escreveu para Outra Mídias uma Carta aberta ao ministro Flávio Dino em que discute a brutalidade da polícia contra negros e pobres e compartilha algumas observações e propostas. Trata-se de um texto que dialoga com algumas ideias da professora Andréa Depieri.   

SSP/SE discute com Ministério da Justiça uso de câmeras pelas polícias

A SSP/SE informou que “o sistema de câmeras corporais é uma tendência e há avaliações junto ao Ministério da Justiça e Segurança Pública de como ele pode ser utilizado em Sergipe. Há também discussões sobre o assunto junto ao Ministério Público do estado. No entanto, não se restringe apenas à compra de câmeras e há um alto investimento para a sua aplicação”.

Segundo a SSP/SE, “o Ministério da Justiça trabalha com um protocolo nacional para a adoção das câmeras corporais. Para isso, um representante de Sergipe estará em Brasília no final do mês de agosto para discutir, ao lado de vários outros estados, o assunto junto à Secretaria Nacional da Segurança Pública e a Secretaria de Acesso à Justiça para definir os recursos necessários e as metas de implantação”. Sobre os gastos com a segurança pública, a SSP/SE diz que “o resultado demonstra o compromisso da SSP de garantir os direitos da sociedade e proteger toda a população sergipana da capital, ao interior do estado. Mesmo com a redução na receita, o direcionamento de ampliar as ações de segurança pública em todo o estado foi mantido, com investimentos em todas as áreas da segurança pública”.

SSP/SE informa ter um serviço de inteligência com alto investimento consolidado (Foto: Freepik)

A SSP entende ter “um serviço de inteligência com alto investimento na última década e totalmente consolidado. Nossa inteligência traz um resultado positivo em grandes operações, com informações antecipadas e que afasta de Sergipe o crime organizado, dominante em estados vizinhos. Uma prova disso, segundo o próprio Anuário do FBSP, é que Sergipe é o único estado do Nordeste que não possui o crime do Novo Cangaço e há dois anos e meio não registra nenhum caso de explosões de caixas eletrônicos”.

Para a SSP/SE, “Sergipe é reconhecido no Nordeste pela estrutura consolidada de sua inteligência policial. Não se reduz as taxas de homicídios pela metade em seis anos sem um trabalho efetivo da inteligência. 2021 foi o ano em que no quesito segurança pública e na parte de ‘Informação e inteligência’, tivemos um alto investimento na expansão da rede de comunicação digital no estado de Sergipe. Por conta disso, o valor das despesas em 2021 nesse recorte é bem maior que no ano passado”.

Ainda segundo a nota, “nos tópicos ‘policiamento’ e ‘demais subfunções’ temos investimentos importantes em inteligência, como compra de equipamentos para solução que permite a coleta, preservação e análise em tempo real de dados de domínio público, incluindo informações de localização, perfis, imagens, arquivos e comunicações dos aplicativos de redes sociais mais populares. Ainda, alto investimento em compra de ‘Workstation’ e softwares para o trabalho de equipes de inteligência de unidades especializadas da Polícia Civil, como a Divisão de Inteligência e Planejamento Policial”.



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